Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.13 no.1 Rio de Janeiro abr. 2013
ARTIGOS
Sentidos sobre "sexualidade" e "drogas" entre adolescentes no contexto escolar
Meanings about "sexuality" and "drugs" among teenagers in the school context
João Paulo Pereira BarrosI*; Veriana de Fátima Rodrigues Colaço II**
I Universidade Federal do Piauí – UFPI, Parnaíba, Piauí, BrasilII Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza, Ceará, Brasil
RESUMO
Este artigo apresenta e discute sentidos sobre "sexualidade" e "drogas" construídos por adolescentes em um grupo de discussão sobre saúde, em uma escola de Fortaleza-CE. Resulta de uma pesquisa de mestrado que visou compreender o caráter mediador das interações desse grupo de discussão nos posicionamentos dos participantes uns frente aos outros e frente aos temas discutidos. A proposta buscou fundamentação na Saúde Coletiva e nos legados de Vygotsky e Bakhtin acerca dos processos de mediação semiótica. Metodologicamente, tratou-se de uma pesquisa-intervenção executada mediante observações-participantes da dinâmica escolar e a formação de um grupo de discussão com dez adolescentes e um professor da escola. Os resultados apontam sentidos que articulam "sexualidade" e "drogas" aos signos do "risco" e da "prevenção", indicando tensões entre diversas vozes sociais nos posicionamentos dos adolescentes, o que se relaciona com a condição juvenil na contemporaneidade e com as práticas de saúde corriqueiramente dirigidas a esse segmento.
Palavras-chave: Educação em saúde, Produção de sentidos, Drogas, Sexualidade, Adolescências
ABSTRACT
This article presents ways of "sexuality" and "drug" constructed by teenagers in a discussion group on health, at a school in Fortaleza-CE. It follows from a master's research that aimed to understand the mediating character of the interactions of discussion group participants' positions in front of each other and face the issues discussed. The proposal sought justification of Public Health and the legacy of Vygotsky and Bakhtin on the processes of semiotic mediation. Methodologically, it was a research-intervention observations, performed by participants of the school dynamics and the formation of a group discussion with ten teenagers and a school teacher. The results show that articulate senses "sexuality" and "drug" to the signs of "risk" and "prevention", indicating tensions between different voices in the social positions of adolescents, which relates to the condition among young people and practices health routinely for this group.
Keywords: Health education, Production of meaning, Drugs, Sexuality, Adolescence
1 Introdução
Este artigo compartilha resultados de uma pesquisa de mestrado em Psicologia, cujo objetivo principal foi compreender o caráter mediador das interações de um grupo de discussão sobre saúde - realizado com adolescentes de uma escola pública de Fortaleza - nos posicionamentos dos participantes. Tendo como base tal pesquisa, este texto tem um intuito mais específico, qual seja, apresentar e discutir sentidos produzidos pelos participantes acerca dos temas "sexualidade" e "drogas", dois dos assuntos escolhidos pelos adolescentes para serem discutidos no grupo e que sintetizam como aqueles participantes se posicionavam frente às temáticas relacionadas à saúde que foram debatidas.
Tendo em vista o foco particular deste artigo, as seguintes questões servirão de orientadoras dos resultados e das discussões que serão expostas a seguir: o que o processo de inclusão desses dois temas – "sexualidade" e "drogas" – por parte dos próprios adolescentes pode indicar a respeito da condição juvenil na contemporaneidade e da forma como as práticas de saúde têm ocorrido na escola? Como os adolescentes participantes do grupo de discussão sobre saúde, no contexto escolar, posicionaram-se em relação aos temas "drogas" e "sexualidades"? O que há em comum entre os sentidos produzidos pelos partícipes sobre esses dois temas? Que deslocamentos nos processos de significação referentes a essas assuntos puderam ser identificados no decurso das interações no grupo de discussão?
As últimas décadas do século XX foram palco de debates sobre novas formas de conceber o que seria "saúde". Naquele cenário, criaram-se as condições para transformações consideráveis no sistema de saúde brasileiro e no cabedal de práticas que lhe são concernentes. Dentre essas transformações, após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção Primária em Saúde (APS) consolidou-se como a pedra angular de reestruturação das políticas brasileiras para esse setor. Esse nível de atenção caracteriza-se por uma gama de ações de promoção de saúde junto a populações de territórios previamente delimitados (MENDES, 2002).
Neste panorama, as atividades de educação em saúde são consideradas peças-chave. A Organização Mundial de Saúde (OMS) compreende a educação em saúde como "uma combinação de ações e experiências de aprendizagem planejadas com a finalidade de habilitar as pessoas a obterem controle sobre determinantes e comportamentos da saúde" (SANTOS et al., 2005, p. 339).
No contexto brasileiro, são crescentes os discursos que atribuem grande importância à saúde de adolescentes e jovens, o que, por sua vez, perpassa o campo da educação. Para Catharino (2006, p. 1), "esse fato parece estar relacionado a indicadores epidemiológicos (DATA-SUS, SINASC, IBGE), que apontam para situações que requerem um maior investimento, tanto no nível do planejamento, como no nível da execução de ações voltadas para esse estrato populacional". A elaborada a Política Nacional de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens (BRASIL, 2006) e do Programa de Saúde na Escola (BRASIL, 2007) servem como exemplo desse processo.
A fim de aproximar as ações do cotidiano dos diversos segmentos sociais - como crianças, adolescentes e jovens -, as escolas têm sido apontadas como uma das instituições estratégicas que devem abrigar atividades de educação em saúde. Isto também se deve ao fato de que a saúde, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), assume o status de tema transversal a ser incorporado no espaço escolar.
Gubert et al. (2009), contudo, ressaltam um paradoxo em relação ao lugar da escola nas práticas de educação em saúde. Por um lado, no discurso oficial, a escola é considerada crucial para o desenvolvimento de práticas dessa natureza. Por outro, "a maioria dos serviços de saúde, destacando a atenção primária à saúde, não possuem ações voltadas especificamente para essa população" (GUBERT et al., 2009, p. 166).
Grande parte das pesquisas publicadas do final da década de 90 até hoje enfoca, nos principais periódicos nacionais, as repercussões dos grupos de educação em saúde no redesenho da assistência à saúde, na aquisição de conhecimentos e na melhoria da qualidade de vida (VASCONCELOS, 1998; FAUSTINE et al., 2003; SANTOS et al., 2005; GONÇALVES; SCHIER, 2005; YUNES, MENDES; ALBUQUERQUE, 2005; BELATTOet al., 2006; SANTOS E LIMA, 2008; QUEIROZ et al., 2008).
Todavia, há escassez de investigações que enfoquem os próprios processos interacionais nos grupos que são criados e/ou pesquisados. Isto é, existe carência de estudos que destaquem como as interações em grupos de discussão sobre saúde operam na constituição subjetiva dos participantes, mediante negociações de posições discursivas e veiculação/apropriação/recriação de sentidos referentes aos processos de saúde/doença/cuidado.
Do ponto de vista das ferramentas teóricas utilizadas, recorremos a estudos do campo da Saúde Coletiva, os quais supõem a indissociabilidade e a produção social dos processos de saúde, doença e cuidado. Além disso, referenciamo-nos na Psicologia Histórico-Cultural, criada por Vygotsky, e na Filosofia da Linguagem defendida por Bakhtin.
À luz do materialismo histórico-dialético, as perspectivas de Vygotsky e Bakhtin estabelecem o plano culturalmente constituído da sociabilidade humana como ponto fulcral para a tematização da consciência. Dessa forma, ao longo de suas produções, Vygotsky e Bakhtin deixavam clara a tentativa de operar rupturas com a dicotomia social/individual, situando as relações sociais como constituintes do funcionamento humano e como principio explicativo deste funcionamento.
Vygotsky e Luria (2007) realçaram que a palavra é um dos mais relevantes esquemas de mediação do comportamento humano. Interessado na constituição das funções psicológicas humanas, a linguagem servia à teoria vygotskiana em seu aspecto funcional, como constitutiva do ser humano, organizadora e planejadora do pensamento e da conduta.
Por sinal, tanto nas obras de Vygotsky quanto nas de Bakhtin, a linguagem é concebida "como 'trabalho', como 'atividade', como 'processo', como 'ação' sobre o próprio homem, sobre os outros e sobre a cultura" (MORATO, 2000, p. 151). Com base nisso, então, é possível afirmar que a construção dos sentidos sobre saúde no contexto do grupo de discussão não era um empreendimento individual, mas sim o resultado da interação dos sujeitos entre si e destes com seus contextos socioculturais.
No texto Pensamento e Palavra, Vygotsky (1934 [2001]) insere a problemática do "sentido" para ratificar as particularidades da linguagem interior em relação à exterior. Valendo-se da definição do psicólogo Frederic Paulham sobre a relação entre "significado" e "sentido", Vygotsky (1934 [2001], p.465) traz à baila que:
O sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata.
De modo semelhante, na teoria de Bakhtin, a linguagem emergia como um acontecimento interativo e dinâmico, e não como um sistema formal ou uma representação do pensamento. Aliás, esse autor, em suas investigações sobre como a Filosofia e a Linguistica do início do século XX tratavam os processos relativos à linguagem, teceu críticas às duas principais correntes filosófico-linguísticas que identificou: o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista (BAKHTIN, 2002). Por um lado, sob a ótica do objetivismo abstrato, em que a linguagem seria um sistema de normas imutáveis, o código lingüístico seria o lócus da produção de "sentidos". Por outro lado, considerada a ótica do subjetivismo individualista, para o qual a língua se fundaria no indivíduo, a produção de "sentidos" ficaria a cargo de uma interioridade individual.
Em contraponto àquelas duas correntes filosófico-linguísticas, o "sentido" se construiria, sob a ótica bakhtiniana, mediante as múltiplas interações alteritárias do sujeito com o mundo, nas quais acontecem fricções constantes entre aspectos verbais e extraverbais da comunicação. Com efeito, a produção de "sentidos" seria um processo dialógico:
Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores[...] A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor [...] É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato de dois pólos opostos. (BAKHTIN, 2002, p. 132).
Logo, no que concerne às atividades discursivas em que estiveram envolvidos os participantes do grupo, os sentidos sobre os temas trabalhados nas oficinas foram concebidos como acontecimentos semânticos particulares constituídos nas relações sociais, a partir da articulação de diferentes vozes sociais que atravessavam os enunciados dos participantes.
2 Método
2.1 Natureza da pesquisa
A dissertação consistiu numa pesquisa-intervenção cuja etapa empírica foi executada de agosto a novembro de 2009. A propósito, orientamo-nos pelos argumentos de Aguiar e Rocha (2007) que definem a pesquisa-intervenção como uma investigação de caráter participativo que almeja a intervenção na produção de micropolíticas de transformação social. Desse modo, pesquisar e ao mesmo tempo intervir significou, no contexto dessa pesquisa, "criar dispositivos de análise coletiva" (LOURAU, 1993, p. 30).
2.2 Lócus da pesquisa
O lócus da pesquisa-intervenção foi uma escola pública de ensino fundamental e médio, localizada no bairro Álvaro Weyne, o qual se situa na periferia de Fortaleza e tem 23.113 habitantes (BRASIL, 2000). Dessa população, um número significativo, 6956, tem entre 14 e 24 anos, o que apontava a pertinência de que investigações e ações direcionadas a esse público naquele território.
2.3 Participantes
O grupo de discussão formado a partir da pesquisa-intervenção na escola em questão foi composto por 11 participantes: 01 professor de biologia e 10 estudantes de 15 a 17 anos, 03 do sexo masculino e 07 do sexo feminino. Tal composição se deu por conveniência. O critério de escolha dos participantes, quer fosse professor, quer fosse aluno, foi interesse e disponibilidade de discutir temáticas ligadas à saúde na escola. No caso dos professores, aproveitou-se uma das reuniões dos docentes para apresentar a proposta teórico-metodológica da pesquisa e fazer-lhes o convite a participarem de discussões sobre saúde. No caso dos alunos, optou-se por divulgar a pesquisa nas salas de aula do ensino médio e criar uma lista para os estudantes interessados pudessem se inscrever. Tanto os responsáveis legais dos estudantes quanto o professor que participou do estudo firmaram seu consentimento para a realização da pesquisa a partir de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará – UFC. Vale ressaltar que todos os nomes que aparecerão na seção dos resultados são fictícios.
2.4 Procedimentos
A pesquisa erigiu-se em consonância com os padrões éticos exigidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa / Conselho Nacional de Saúde / Ministério da Saúde (CONEP/CNS/MS) no tocante à pesquisa empírica com seres humanos. Dessa forma, os responsáveis legais dos adolescentes partícipes do estudo firmaram seu consentimento para a realização da pesquisa mediante um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, devidamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC).
De agosto a novembro de 2009, a pesquisa-intervenção se efetivou a partir de observações-participantes do cotidiano daquela instituição escolar. Durante quatro meses, procuramos nos inserir em várias situações do dia-a-dia da escola, tais como algumas aulas, intervalos das aulas, reuniões docentes, atividades recreativas e esportivas, bem como os eventos organizados pela escola naquele período. Com tais observações-participantes, nosso intuito foi compreender as significações que os próprios atores escolares produziam sobre funcionamento institucional, assim como de que forma signos relativos à saúde circulavam cotidianamente ali. As observações realizadas ao longo daqueles quatro meses foram registradas a partir de diários de campo, os quais continham a descrição pormenorizada das atividades observadas, as impressões do pesquisador sobre os processos aos quais teve contato em campo, bem como esboços de reflexões sobre as interações entre os participantes, o funcionamento institucional e as significações circulantes naquele contexto referentes, em especial, aos assuntos atinentes ao campo da saúde.
Além de observações-participantes, a pesquisa-intervenção se efetivou também mediante a formação de um grupo de discussão sobre saúde com os 11 participantes supramencionados. O grupo de discussão se realizou por meio de 09 oficinas, entre setembro e novembro daquele ano, sobre os seguintes temas, escolhidos pelos participantes, logo no primeiro encontro: "o que é saúde", "saúde mental", "transtornos alimentares", "drogas" e "sexualidade". Cada oficina teve duração de 01h30min e foi registrada também a partir de diários de campo e por meio da videogravação das interações entre os participantes. Conforme esclarecido na introdução deste artigo, os resultados a seguir versarão sobre os sentidos produzidos e circulantes sobre os dois últimos temas – "drogas" e "sexualidade".
2.5 Análise dos dados
A unidade de análise da investigação foi a atividade discursiva (COLL; ONRUBIA, 1998) do grupo de discussão, que correspondeu aos processos interacionais semioticamente mediados – como as interlocuções e as demais atividades realizadas em grupo. Ao trabalhar com tal unidade, partimos do pressuposto, conforme a perspectiva bakhtiniana, de que o discurso inclui os enunciados e suas condições de produção, abarcando elementos xtralinguís e xtralinguísticos que participam da construção de sentidos num determinado contexto.
As atividades discursivas foram examinadas a partir de uma análise microgenética, que se trata da "análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua gênese social" (GÓES, 2000, p.9). Sua aplicação "[...] requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento de sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos" (Idem, Ibidem).
A seguir, os resultados e discussões propiciados pelas análises microgenéticas das interações nas quais sentidos eram construídos pelos participantes acerca dos temas "sexualidade" e "drogas". Esse recorte se justifica pelo fato de que as interações e sentidos estabelecidos em torno desses dois temas expressam contundentemente os posicionamentos dos participantes ao longo de todo o grupo de discussão.
3 Resultados e discussão
3.1 A escolha dos temas sexualidade e drogas: o que ela diz sobre a condição juvenil na contemporaneidade?
Um dos questionamentos que perpassaram a composição do grupo de discussão foi: o que a escolha dos temas discutidos poderia indicar dos posicionamentos dos participantes frente à condição juvenil na atualidade e frente às práticas de saúde já feitas junto a esse segmento?
De acordo com a perspectiva bakhtiniana, "todo enunciado é um diálogo, desde a comunicação de viva voz entre duas pessoas, até as interações mais amplas entre enunciados" (FREITAS, 1996, p. 135). Logo, as interações no grupo eram mediadas por signos "tecidos a partir de uma multidão de fios ideológicos" (BAKHTIN, 2002, p. 94), não se limitando às interações entre os interlocutores imediatos. A partir da perspectiva histórico-cultural e da filosofia bakhtiniana, os sujeitos se forjam como posições enunciativas nas relações sociais. Cabe, então, distinguir os sujeitos empíricos - os indivíduos participantes do grupo - e os sujeitos do discurso, cuja marca principal é a heterogeneidade decorrente do dialogismo e da polifonia das produções discursivas.
Então, quando um adolescente do grupo sugeria um tema ou argumentava em torno disso, diversas vozes falavam por ele simultaneamente. A escolha de temas como "sexualidade" e "drogas" pelos próprios participantes exemplifica a intertextualidade entre suas falas e outras produções discursivas:
Pesquisador: Vocês já discutiram sobre droga e sexualidade alguma vez, na escola ou em outro canto?
Laura: Ô...
Lia: Com Certeza! (risos)
Renata: É só o que tem aqui no colégio! (risos)
Pedro: Demais até! (risos)
Laura: Os trabalhos que a gente faz aqui (na escola) ou é "DST", ou é "sexualidade", ou é "droga"!
[...]
Pesquisador: Então porque mesmo é que vocês querem discutir isso mais uma vez, sobre drogas e sexualidade. Não seria melhor discutir outras coisas?
Laura: Pra saber!
Lia: Porque é sempre bom saber!
Renata: Porque a cada dia que passa é uma nova descoberta, é uma nova coisa que aparece e já faz um tempo que a gente não discute.
[...]
Laura: Porque o que é que acontece? A gente vai pro pedestal, faz o cartaz e apresenta. Mas nunca teve essa coisa de pegar pessoas de salas diferentes, de séries diferentes pra chegar e debater. Tipo: - "a minha opinião é essa, eu penso isso"!
Lia: Trabalho de escola é assim, a gente pega um papelzinho e aí decora, mas a gente não entende aquilo, a gente lê, decora e fala lá, esquece, por isso que é bom a gente debater aqui, trocar umas idéias pra gente saber mais.
Nessa tessitura das vozes em jogo, a condição juvenil na contemporaneidade se fazia ouvir. Segundo pesquisa nacional sobre o perfil da juventude brasileira organizada por Abramo (2008), as Drogas são o terceiro problema que mais preocupa os jovens brasileiros, citado por 24% dos participantes, ficando atrás somente dos temas violência/segurança e emprego/profissão, respectivamente. Além disso, o peso desse tema no dia a dia da juventude brasileira também é presumível na medida em que ele figurou no primeiro lugar dentre os assuntos da vivência propriamente juvenil, relacionado às experimentações, descobertas, diversões e riscos, para serem discutidos entre pares, conforme 46% dos participantes da pesquisa nacional. Por sua vez, dados daquela mesma pesquisa também dão conta de que relacionamento amoroso e sexualidade ocupam o terceiro e o quarto lugares dentre os assuntos de maior interesse pessoal dos jovens em todo o Brasil, com 20% e 11% das respostas, respectivamente. Sexualidade, aliás, aparece em segundo lugar entre os temas que os jovens preferem discutir com amigos (45% das respostas), ficando atrás do primeiro lugar, drogas, por apenas 1% (ABRAMO, 2008).
Todavia, mais pistas da intertextualidade entre os enunciados juvenis e o discurso adulto sobre o jovem podem ser identificadas. Os mesmos participantes optaram pela permanência dos assuntos, argumentando sempre ser necessário que os jovens os discutam, denotando como as vozes dos adultos também falam por seus enunciados. Cabe ressaltar que aqueles dois temas estavam entre as principais preocupações dos professores e gestores da escola, além de estarem entre as principais pautas das práticas de educação em saúde já levadas a cabo por profissionais de saúde na instituição junto ao segmento juvenil.
Contudo, há que se ressaltar que, no começo e no fim do excerto, as vozes dos próprios adolescentes se destacaram diante das vozes já assumidas, como a voz da escola e da família. Isso se explicita quando aqueles participantes interpelaram criticamente as práticas de saúde dirigidas ao público juvenil no tocante aos referidos temas.
3.2 Drogas: reiterações e questionamentos do discurso "Diga Não às Drogas!"
O tema "drogas" veio a lume na quinta e na sétima oficina. Nesta, especificamente, a discussão se deu mediante uma atividade de perguntas e respostas elaborada por duas participantes, Lia e Renata. A seguir, um episódio que girou em torno de uma das perguntas formuladas pelas adolescentes, acerca do assunto "drogas":
(Mariana pega a caixa com as perguntas, retira um papel com uma pergunta elaborada por Lia e Renata. Lê em voz alta a pergunta)
Mariana: "Marta tem 16 anos e foi convidada para uma festa de casamento. Tinha bebida na festa. Ela nunca havia bebido muito, mas, como estava quente, tomou uns quatro ou cinco deles. A frase 'evite o primeiro gole' serve para todos ou apenas para aqueles que são viciados, que estão em fase de tratamento?".
Pesquisador: O que vocês acham, gente, na frase "evite o primeiro gole é pra todos ou só pra quem já tá em tratamento?"
Mariana: Rapaz, eu acho que é pra todos. Porque, tipo assim, se você não conhece é melhor você não conhecer pra depois você não ter vontade de repetir, né? Aí é melhor prevenir do que remediar. Num é verdade? Pronto, falei.
Pesquisador: Sobre o tema drogas, né? O que é que vocês acham aí dessa questão? (dirigindo-me aos demais participantes)
Lia: Foi como ela disse, eu acho que a gente tem que evitar o primeiro gole sim, porque se não vai ficar viciado, querer tomar mais. Tem que evitar a primeira mesmo.
Pesquisador: Mas toda pessoa que toma o primeiro gole se torna "um viciado"?
Lia: Não.
Mariana: Não.
Renata: Eu acho que não.
(Lia, Mariana e Renata respondem ao mesmo tempo)
Mariana: Não, mas é melhor prevenir.
Renata: Vai que vicia.
Mariana: É, você não sabe, né.
Lia: Nem tanto viciar, mas fica tomando, aí vai que aumenta... a vontade. É melhor evitar.
Nesse episódio, ficou evidente quão forte era o discurso preventivista entre os adolescentes em se tratando desse tema, o que é ilustrado pela potência que enunciados como "Evite o primeiro gole!" ganhavam nas atividades discursivas. Uma questão endossava como os adolescentes se apropriavam do discurso da prevenção às drogas. Mesmo reconhecendo dificuldades do dia a dia que podem favorecer o uso de drogas, as alternativas de combate a esse uso que aparecem no discurso dos participantes não acenavam para o enfrentamento desses problemas, mas sim pela modelação das condutas dos indivíduos. Era o que explicitavam enunciados como "Evite o primeiro gole" e "É melhor prevenir do que remediar".
De acordo com as ferramentas teóricas utilizadas por nós, levamos em consideração que tais sentidos se forjam no jogo das experiências e das posições desses sujeitos, a partir de uma certa lógica de produção erigida coletivamente, com base em uma gama de sentidos já estabilizados e de outros que também vão sendo possibilitados. Desse modo, que condições histórico-ideológicas ajudam a compreender por que os jovens elegem o discurso da prevenção e da normalização da conduta juvenil como principal meio de combate ao elevado consumo de drogas na contemporaneidade?
Para tanto, a visada sobre os desenhos das ações públicas de saúde pode ser útil. Caponi (2009, p. 68) lembra que, tradicionalmente, tais ações passaram ao largo dos questionamentos sobre os determinantes psicossociais dos processos de saúde/doença:
É preciso lembrar que a normalização das condutas e dos estilos de vida faz parte do próprio nascimento da medicina social. Desde o seu início, o âmbito do público e o âmbito do privado começaram a misturar suas fronteiras, fazendo com que as políticas de saúde se convertessem em intervenções, muitas vezes coercitivas, sobre a vida privada de sujeitos considerados 'promíscuos', 'alienados', ou simplesmente 'irresponsáveis'. [...] Tudo parece indicar que é mais simples normalizar condutas do que transformar condições perversas de existência.
Mülller, Paul e Santos (2008, p. 610), assim como Moreira, Silveira e Andreoli (2006),ressaltam duas das principais maneiras pelas quais o uso e o abuso de drogas têm sido abordados no contexto escolar: a primeira estimularia a proibição, com informações caracterizadas pelo apelo moral e pela persuasão à abstinência; já a segunda assumiria um viés de redução de danos, oferecendo alternativas e criando propostas de educação para a saúde que operem modificações das condições de ensino.
De acordo com Muller, Paul e Santos (2008), os programas do Ministério da Saúde têm se afiliado cada vez mais a essa segunda maneira, a reboque da emergência do conceito de promoção de saúde e das problematizações do conceito de saúde como mera ausência de doença. Mas, para Muller, Paul e Santos (2008), o discurso "Diga Não às Drogas!" ainda é o que predomina em grande parte das práticas no âmbito escolar, seja por profissionais de saúde que eventualmente comparecem às escolas, seja pelos profissionais da educação, em sua relação diária com os alunos. Segundo esses autores, o que caracteriza tal discurso é a ênfase nos danos causados pelo uso de drogas e nas proibições relacionadas a esse uso.
Por conseguinte, a ideia de que o jovem é o principal responsável por sua "entrada no mundo das drogas" e a emergência de enunciados como "Evite o primeiro gole!" e "É melhor prevenir do que remediar!" são indícios de como o discurso "Diga não às drogas!" era incorporado pelos participantes do grupo de discussão, orientando seus posicionamentos frente ao tema em pauta.
Nas observações-participantes, conhecemos iniciativas de alguns profissionais da escola, sobretudo um professor de história, através do que ele chamava de "Grupo de Prevenção ao Uso de Drogas". Cartazes com informações sobre os danos causados pelo álcool e pelo tabaco, distribuição de panfletos, solicitação de trabalhos junto dos estudantes e realização de seminários em sala de aula enfocando essa temática: esses foram alguns exemplos de ações que pude entrar em contato na escola. Durante essas observações, as ações mais significativas desenvolvidas ali nos pareciam orientadas pelo discurso "diga não às drogas".
Durante as oficinas, os estudantes fizeram menção a atividades realizadas na escola voltadas à prevenção do uso de drogas, frisando o grupo de prevenção ao uso de drogas formado pelo professor de história. Assim, passamos a debater sobre como os participantes percebiam a efetividade do que era realizado junto aos estudantes:
Pesquisador: Assim, vocês acham que essas atividades que têm sido desenvolvidas, elas têm resultado?
Renata: Assim, eu sou do Grêmio (estudantil), e a gente tá tentando montar um projeto de trazer palestras aqui pro colégio sobre drogas, alcoolismo.
Lia: Na minha opinião, tinha que fazer parte do cotidiano da gente, sempre, assim, três vezes na semana, pra nunca sair do foco do assunto. Se não, se fizer uma vez no mês, a pessoa esquece, num ta nem aí. Eu acho que é assim.
Laura: Assim, eu acho que quando a pessoa quer usar droga, ela sabe as conseqüências, ela sabe, usa porque ela quer. Porque a mídia fala, o colégio fala, mas a pessoa, num sei, ela tem uma ideia dela formada que pra ela ali é aquilo e pode falar o que você quiser, dizer o que quiser que a pessoa vai....
No episódio em exame, um embate de pontos de vista se evidencia: ao mesmo tempo em que surgem falas, como a de Lia, propondo a intensificação da abordagem já existente sobre drogas, a fim de que o segmento juvenil "não esqueça" das orientações, outras vozes, como a de Laura, no fim do episódio, destacam-se porque evidenciam certa descrença quanto à efetividade das ações preventivas. Isso torna a sugerir ambivalências dos posicionamentos dos adolescentes frente aos temas discutidos e frente às atividades de saúde já existentes, acarretadas pela coexistência de diversas vozes que vêm à tona através das atividades discursivas no contexto do grupo de discussão.
3.3 Sexualidade e suas articulações com os signos do "risco" e da "prevenção"
As discussões sobre sexualidade, ocorridas principalmente na sexta oficina, tiveram como mote a exibição do documentário brasileiro "Meninas", dirigido por Sandra Werneck. Em tal produção, alternaram-se cenas do cotidiano de quatro jovens gestantes e de como seus pais e parceiros se posicionavam frente à gravidez. Na intervenção, adentramos na discussão sobre sexualidade abordando a gravidez na adolescência porque essa questão foi uma das que mais apareceu quando da escolha do tema "sexualidade", na primeira oficina.
Quando perguntados sobre o que mais tinha lhes chamado atenção no documentário, muitos participantes destacaram o estranhamento frente à forma "sem juízo" com que as protagonistas lidavam com a gravidez:
Camila: Porque elas (referindo-se às quatro protagonistas) pensam (a gravidez) como se fosse uma brincadeira.
Laura: Só falam assim: "Não, aconteceu, simplesmente aconteceu, foi um azar, aconteceu". Como se fosse algo muito simples você criar uma vida, um novo ser, que ta lá sob a responsabilidade de você todo momento, ser mãe. – "Aconteceu!" (reproduz, em tom de indignação uma expressão usada por uma das protagonistas), uma simples coisa de momento...
Pesquisador: O que vocês identificam no comportamento delas que faz com que pra vocês pensem assim?
Laura: Eu acho que imaturas, elas são muito imaturas.
Mariana: Como é que a pessoa ta grávida e vai pras festas...(entoação que mostra indignação)
Laura: Toma cerveja. (fala enquanto mariana fala, complementando-a)
Mariana: ... toma cerveja! (entoação que mostrava indignação)
Renata: Foi pro baile funk, bebeu ainda (fala enquanto mariana fala, complementando-a)
Pesquisador: Mas, por exemplo, a pessoa estar grávida e ir pra festa é algo (Mariana se antecipa ao fim da pergunta, já a prevendo)
Mariana: Não, depende da festa.
Renata: É baile funk, ela tava dançando! (entoação que mostra indignação)
Mariana: Mas, pelo amor de Deus, ela tava dançando de salto alto. Ela tava tomando cerveja, pelo amor de Deus (entoação que mostrava indignação)
Lia: Depende do jeito que ela se comporta na festa, né?
Mariana: É verdade.
Tendo em vista o princípio dialógico da linguagem, bem como o caráter interativo e dinâmico da produção de sentidos, esse episódio suscita algumas indagações: como a condição juvenil figura no imaginário de estudantes da escola através da discussão sobre gravidez na adolescência? Que marcas da projeção de posições identitárias socialmente construídas podem ser identificadas no que concerne à sexualidade?
Nos comentários sobre o filme, ficou claro que as quatro personagens do documentário eram para os participantes daquela oficina "figuras de alteridade". As personagens causavam-lhes estranhamento por contrariarem as expectativas das participantes de que a gravidez significaria a abdicação de uma gama de atividades intimamente características do "ser jovem" atualmente, como ir para festas, divertir-se, namorar etc. As reações de indignação da maioria dos presentes durante a exibição do documentário e o episódio acima levaram o pesquisador, em determinado momento da interação, a suscitar problematizações sobre os sentidos que aquela questão tinha para os participantes:
Pesquisador: Gravidez na adolescência, necessariamente, é uma coisa ruim?
Mariana: É.
Laura: Eu acho que é ruim. (Fala olhando para as outras meninas) Não é que... (Mariana interrompe)
Mariana: Não, não é ruim a gravidez na adolescência, né? Quando a pessoa não tem uma condição, uma condição...
Renata: Financeira.
Mariana: ... financeira boa, condição moral, a pessoa não tem uma cabeça feita, a pessoa não tem nada... (Camila interrompe)
Camila: Não tem apoio de ninguém.
Mariana: Não tem amor... nem não tem amor, porque, às vezes, os pais, mesmo não querendo, acabam dando apoio porque eles não vão abandonar os filhos, né, a maioria pensa assim, tipo manda os filhos embora, mas eu acho que...(Renata interrompe)
Renata: Porque a adolescente engravida, com certeza não vai querer ir pro colégio com vergonha, não sei o quê. Aí, hoje em dia... Aí a menina engravida, não estuda mais, tem que cuidar do filho. Que futuro ela vai dar pro filho dela? Nenhum, porque ela não vai ter estudo, não vai ter trabalho...
Camila: E nem sempre o pai e a mãe vai tá por perto.
Pesquisador: Tu acha o que, Pedro? Tu acha que gravidez na adolescência é algo, necessariamente, ruim ou pode ser visto de outra forma?
Pedro: Concordo com o que ela (aponta para Mariana) disse, não é que é ruim, é... porque, tipo, se ela tiver financeira, moral dentro de casa... (Pesquisador interrompe)
Pesquisador: Então, se for uma adolescente que tem uma condição financeira boa, se for uma adolescente que tem uma estrutura familiar boa... (Pedro interrompe)
Pedro: Não necessariamente precisa engravidar, né, de todas as formas...
(Risos)
Mariana: De todas as formas é um pouco ruim, entendeu, porque, pra mim, a pessoa pra engravidar a pessoa tem que ta casada, pronto.
Laura: Também acho.
Mariana: Pra engravidar tem que tá casada.
Laura: Também porque a adolescente ainda tá estudando, os pais sempre pensam assim: "Não, minha filha... eu..." Por exemplo, às vezes os pais não terminaram os estudos, não puderam ter um futuro bom, aí se sacrificam pelos filhos pensando assim: "Não, meu filho vai ter um futuro bom, vai mudar de vida, ele vai ser diferente, vai ter o que eu não tive, né". Aí quando você vê, sua filha chega e fala: "Mãe, eu tô grávida", ela tem 13 anos de idade, ela tá, tipo... freia a vida dela, freia a vida dela pra viver a vida de um filho.
Nesse episódio, um discurso moralizador emergia na discussão sobre sexualidade, embora nem todos os participantes fizessem uso dele. Como se pode denotar, ganhava terreno, naquelas interações, o ponto de vista de que a gravidez na adolescência se constitui algo necessariamente negativo. Kahhale (2003, p. 95) ajuda a identificar algumas condições histórico-ideológicas que possibilitam tais processos de significação. Mediante seu estudo sobre juventude e gravidez, a referida autora aponta como a gravidez na adolescência passou a ser considerada "precoce" ou "de risco", figurando como um problema de saúde:
A gravidez na adolescência tem sido alvo de estudos e preocupação dos órgãos governamentais ligados à saúde num movimento que corresponde ao atual desenvolvimento histórico, social e tecnológico. Até a década de 1940, era 'natural' a gravidez na adolescência, uma vez que as meninas casavam-se e reproduziam-se após alguns anos de menarca, isto é, na adolescência. [...] Com o desenvolvimento do conhecimento médico, sociológico e psicológico, bem como com a complexificação do mercado de trabalho nas sociedades industrializadas, a gravidez na adolescência constitui-se como fator de risco, porque compromete a inserção social do adolescente, bem como a qualidade da vida do binômio mãe-filho e as condições de nascimento e de vida futura dos recém-nascidos.
No episódio em destaque, três razões se sobressaíram a fim de justificar os contornos negativos que foram dados à gravidez na adolescência: os adolescentes ainda não teriam maturidade nem condição financeira suficientes para cuidar de um filho, endossando a condição da adolescência como período de transição (KEHL, 2004); a gravidez atrapalharia o futuro profissional da jovem, o que tem a ver com posições identitárias socialmente construídas na atualidade, segundo a qual a mulher deveria primeiro se consolidar profissionalmente; na maioria dos casos, a gravidez na adolescência estaria em desacordo com o princípio moral e religioso de que a gravidez deveria vir depois do casamento. As interações até aqui explicitadas tornam plausíveis reflexões sobre como os sentidos que emergiam sobre a gravidez na adolescência estavam intimamente articulados às significações sobre a condição juvenil. Segundo Abramo (2008, p. 56), os dados da pesquisa nacional sobre o perfil da juventude brasileira apontam que, quando os jovens respondem à pergunta sobre o que é o melhor dessa condição,
[...] as respostas mais recorrentes indicam dois grandes blocos de conteúdos: por um lado, a menor carga de responsabilidades, principalmente aquelas referentes à manutenção e aos cuidados com a família, conseqüência do casamento e chagada de filhos; de outro, a possibilidade de viver com mais alegria, de se divertir, sair, passear, etc.
Posto isso, o olhar negativo dos participantes sobre a gravidez possivelmente se explica pelo fato de que essa questão tiraria a jovem do que seria próprio da juventude: a possibilidade de aproveitar a vida sem tantas responsabilidades. Tanto é que, conforme os sentidos que circulavam com mais potência ao discutirmos aquele assunto, não seria compatível ter filho na adolescência e continuar gozando da condição de "ser jovem". Isso pôde ser evidenciado nos vários momentos em que os participantes estranharam e significaram como inconsequentes os comportamentos das protagonistas do documentário, quando pareciam "sustentar" sua condição de "jovem", divertindo-se, namorando e vivendo com os pais, por exemplo.
Em meio às discussões sobre gravidez na adolescência e iniciação sexual, houve também debates sobre como aqueles adolescentes percebiam as atividades então existentes na escola sobre o tema "sexualidade":
Pesquisador: E, no caso, vocês já... disseram que já assistiram a várias coisas nesse sentido, palestras, aulas, seminários. Quando se fala em sexualidade esses trabalhos enfocam o quê?
Mariana: Como se prevenir...(é interrompida por Camila)
Camila: Prevenção de doenças
Mariana: Fala das possibilidades da pessoa que já engravidou...
[...]
Pesquisador: E por que quando se fala em sexualidade pra adolescentes, pra jovens, se fala desse jeito, se fala dessas coisas?
Camila: Eles falam pra gente dessa maneira já dizendo: "Olha, eu tô dizendo pra vocês que isso [sexo] é errado, eu to dizendo pra você não fazer isso".
Renata: Eu acho que eles falam porque é um dos fatores mais comuns, assim, gravidez, DST.
[...]
Pedro: Eu acho que se fala mais... se fala mais os pontos piores, tipo, o que acontece quando a mulher engravida na adolescência, as DSTs são as doenças... Acho que o pessoal só fala só da parte ruim, é, tipo, como se fosse pra botar medo, pra pessoa não fazer isso. Por causa de que se ela for falar: "Ah, a mulher, é muito bom ser mãe", esse tipo de coisa é um incentivo e as pessoas, os pais, nem todo mundo quer que a filha engravide, por isso que fala mais os pontos ruins, pra evitar a pessoa fazendo isso.
Mariana: Mas já imaginou? A pessoa viesse dar a palestra dizendo como é bom fazer sexo, pelo amor de Deus, todo mundo ia querer fazer. (tom de indignação)
A partir do que foi apresentado em episódios anteriores, já foi possível identificar posições enunciativas derivadas da aprendizagem de recomendações de caráter preventivo que caracterizam grande parte das ações de educação em saúde desenvolvidas no contexto escolar. O referido episódio ficou marcado pela eloquência com que as vozes dos próprios jovens se colocaram frente aos pontos de vistas já assumidos, denunciando contradições do discurso da educação em saúde que, por vezes, consideram os jovens como sujeitos sem voz e sem desejo. Em alguns trechos, Mariana, Pedro e Camila põem em parêntese o discurso social vigente sobre sexualidade, que tantas vezes atravessou as falas dos participantes, posicionando-se criticamente diante do caráter repetitivo e unilateral que as atividades educativas teriam.
No final do episódio, um diferencial no processo enunciativo foi provocado por Pedro, que fez uma reflexão interessante sobre a "pedagogia do medo" muitas vezes utilizada na prevenção de doenças. A voz de Pedro insurgia contra o enfoque negativo dado ao tema da sexualidade junto ao segmento juvenil e muitas vezes incorporado pelos próprios estudantes ao falarem deste tema, como observado em outros episódios.
Todavia, o fluxo de sentidos nesse episódio dava mais indícios de como as interações no grupo se constituíam arenas onde vozes se relacionavam tensamente e onde vários sentidos eram produzidos e negociados. Ao mesmo tempo em que emergiu a crítica à negatividade que recaia sobre a relação entre sexualidade e juventude, o enunciado de Mariana que encerra o episódio é emblemático da dissociação entre sexo e prazer no discurso dos jovens.
O posicionamento de Mariana parecia trazer consigo a voz adulta que exclui a sexualidade do campo de forças potencializadoras dos jovens. A garota, que antes criticou a "mesmice" das ações, parecia não achar prudente desenvolver ações educativas sob uma nova proposta, que também discutisse, por exemplo, prazeres e aspectos positivos que podem acompanhar a experiência sexual na juventude.
A sexualidade também foi discutida na sétima oficina, mediante uma das perguntas que compuseram a atividade de perguntas e respostas elaborada por Lia e Renata. A segunda pergunta discutida foi lida por Laura e versava sobre iniciação sexual:
Laura: Vamo lá. "Ele é um pouco tímido, mas gostaria de fazer sexo porque vários amigos seus dizem que é o máximo. O que as influências podem gerar? Você concorda que devemos ter opinião própria?" Assim, as influ... (Ri meio envergonhada. O grupo também ri) Assim, tem influências boas e tem influências más, né?! Eu acho que a pessoa tem que ter sua opinião, pensar assim "Não, eu concordo com isso, eu vou concordar com isso, eu discordo disso, eu quero isso, eu não quero isso". Saber separar o que é certo, o que é errado, o que faz bem pra você, o que não faz bem pra você, né. E...
Mariana: Qual é mesmo a pergunta?
Laura: É "o que as influências podem gerar? Você concorda que devemos ter...". Com certeza, tem que ter sua opinião própria, saber o que é que a gente pensa, o que a gente quer. Porque eu acho que a pessoa que não tem opinião própria ela é fácil de influenciar, ela é igual a uma folha que o vento passa e ela vai pra todos os lados, diferente de um tronco de uma árvore que ta presa ali, dali ela não sai, só se você for lá e cortar, né, é claro. Então, eu acho que você tem que ter opinião própria, tem que saber o que quer e... quando vier uma coisa errada: "Não, eu não quero, acabou a história, ponto final".
Pelo exposto, mais uma vez a influência dos pares figurava como prejudicial à saúde, pois induziria os jovens a escolhas de "risco", tais como a iniciação sexual, além de outras já abordadas em oficinas anteriores, como o uso de drogas. Porém, o episódio em tela apresentou especificidades em relação a outros já expostos. Nele, indícios de um processo de recriação de sentidos puderam ser identificados: pela primeira vez, houve, por conta da intervenção de Laura, uma relativização de que a influência dos pares seria sempre negativa.
No que diz respeito à produção/circulação/negociação de sentidos sobre o tema em foco, notavelmente as vozes que articulam a sexualidade ao risco se sobressaíram em relação às que articulam sexualidade e prazer, no curso das interações do grupo. Por isso, é pertinente explicitar duas condições para que a combinação saúde-risco-sexualidade-juventude tenha aparecido de modo tão forte.
No tocante à primeira dessas condições, desde a invenção da "juventude" como categoria explicativa da condição humana, a sexualidade aparece como um dos principais vetores da "crise" que seria própria dessa fase. Segundo Calazans (2008, p. 216), a prática sexual dos jovens corriqueiramente comparece, nos discursos pedagógico, médico e cotidiano, como "irresponsável, descontrolada, impulsiva, instável, experimental, adjetivada pelos significantes da adolescência, interpretada como fase transitória".
Quanto à segunda condição, ainda de acordo com Calazans (2008), mesmo com uma tolerância maior em relação à sexualidade dos jovens, sob a influência de discursos da mídia e de vários movimentos sociais, tais como o movimento feminista e o movimento gay,
[...] as estatísticas produzidas pela saúde pública sobre a gravidez na adolescência e a AIDS reelaboraram a sexualidade de adolescentes e jovens como um problema social, realimentando o controle sobre a sexualidade juvenil à luz das conseqüências negativas de suas práticas sexuais.
É justamente a combinação dessas condições que contribui para o delineamento de intervenções voltadas para esse segmento populacional em diversas áreas, entre as quais a Saúde e a Educação, objetivando prevenir comportamentos de risco.
4 Considerações finais
Os dados produzidos indicam que a presença das temáticas "drogas" e "sexualidade" no cotidiano investigado entrelaçava-se não somente com as vivências pessoais daqueles jovens, mas, também com a condição juvenil da contemporaneidade e com as pautas das práticas de saúde dirigidas àquele público, inclusive nas situações cotidianas da vida escolar. Assim, a análise microgenética de episódios que marcaram as atividades discursivas permitiu denotar que, naquele grupo, tanto "drogas" quanto "sexualidade" eram signos em disputa, ratificando a produção dialógica de sentidos.
Os enunciados produzidos pelos jovens sobre os dois assuntos em pauta materializavam tensões entre a voz do jovem e a voz dos adultos. A propósito, a voz dos adultos costumava aparecer na fala dos jovens, por exemplo, sob a forma dos discursos religioso, científico, pedagógico e midiático acerca das experiências juvenis. Para clarificar ainda mais a tensão supramencionada, a análise mostrou determinadas situações nas quais as vozes dos próprios jovens se destacavam frente às outras no processo enunciativo.
Por um lado, entre os próprios jovens, mediante os dois temas em destaque, foi potente a circulação de sentidos que ligam a saúde aos signos do "equilíbrio" e da "prevenção". Nos enunciados dos jovens sobre "drogas" e "sexualidade", fazem-se escutar também vozes das ações de saúde destinadas à juventude e de vozes de instituições como escola, família e igreja, que, por vezes, concebem quaisquer tipos de risco como algo a ser evitado por quem se pretende "saudável" (SPINK, 2007).
Por outro lado, convém frisar algumas mudanças que a pesquisa-intervenção foi capaz de acionar em seus participantes. Embora na pesquisa-intervenção não tenhamos como 'controlar' as reverberações das narrativas de si e do Outro produzidas no contexto do grupo de discussão, podemos supor que "novos posicionamentos só podem ser construídos quando os sujeitos reconhecem seus atuais posicionamentos e vivem a possibilidade de narrá-los, de expressá-los sem tantas censuras" (MENEZES; ARCOVERDE; LIBARDI, 2008, p. 221). Com base nisso, avaliamos que o grupo de discussão foi útil para a criação de dispositivos de análise coletiva naquela escola, compatibilizando o aprofundamento de informações com a problematização do cotidiano e possibilitando, consequentemente, reposicionamentos dos participantes frente aos temas debatidos.
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Recebido em: 17/07/2011
Reformulado em: 18/02/2012
Aceito para publicação em: 01/12/2012
Acompanhamento do processo editorial: Adriana Benevides Soares
Notas
* Mestre em Psicologia e Doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
** Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).