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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.13 no.1 Rio de Janeiro abr. 2013

 

ARTIGOS

 

Os sensos de si e a intersubjetividade: uma perspectiva desenvolvimentista não-linear

 

The senses of self and the intersubjectivity: a nonlinear developmental perspective

 

 

José Carlos Chaves Brazão*

Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa apresentar, sucintamente, a Teoria dos Sensos de Si de Daniel Stern, como ela é descrita e concebida em seus trabalhos de 1985, 1995, 2004 e 2010. Nossa iniciativa se apóia sobre as questões que o autor levanta que colocam em cheque as concepções de desenvolvimento ortodoxas, propondo um modelo diferenciado para se pensar o desenvolvimento humano e seu consequente efeito sobre a organização da subjetividade. São enfatizados os períodos de desenvolvimento pré-verbais e os modos de relação afetivos que são desenvolvidos anteriores à atualização da competência linguística, e a intersubjetividade como sua expressão mais insígne. Dentre os conceitos principais do autor, destacamos a percepção amodal e a sintonia afetiva. Em paralelo, colocamos em questão a utilização privilegiada do recurso verbal na clínica psi.

Palavras-chave: Intersubjetividade, Sensos de si, Desenvolvimento não-linear.


ABSTRACT

This article aims to present briefly the Theory of Senses of Self in Daniel Stern, as it is conceived and described in their work 1985/1995/2004 and 2010. Our initiative is based on the author raises questions that cast some doubt on the orthodox conceptions of development, proposing a different model for thinking about human development and its consequent effect on the organization of subjectivity. It is emphasized the development periods and pre-verbal modes of affective relationship that is developed prior to the update of linguistic competence, and intersubjectivity in its most singular expression. Among the main concepts of the author, highlight the amodal perception and affect attunement. Meanwhile, bring into question the privileged use of the verbal resource in the psychotherapy.

Key-words: Intersubjectivity, Senses of self, Non-linear development.


 

 

1 Introdução

A proposta deste artigo é apresentar, sucintamente, a teoria desenvolvimentista de Daniel Stern, em sua maior parte ilustrada em seu trabalho The Interpersonal World of the Infant. A View from Psychoanalysis and Developmental Psychology1, enriquecendo com contribuições desenvolvidas em seus trabalhos posteriores. Daniel Stern desenvolve uma tese na qual a afetividade ganha destaque pela dimensão que esta ocupa no compartilhar de um plano comum de experiência intersubjetiva, plano coletivo constituído inter-relacionalmente. Na complexidade de sua tese o autor vai diferir das teorias de desenvolvimento que podemos chamar de ortodoxas, representadas pela tese piagetiana (PIAGET, 1970). Ao invés de centrar sua teoria sobre uma força libidinal ou sobre o desenvolvimento do eu, ele vai afirmar que durante o desenvolvimento do ser humano emergem, a partir de capacidades2 inatas3 para organizar a experiência, sensos de si4.

Os sensos de si podem ser descritos como perspectivas complexas e primárias de organização da experiência subjetiva, sendo constituídos por capacidades que entram em funcionamento no curso da interação entre a criança e seu meio. Os sensos de si não surgiriam como epifenômenos a partir de outros processos - como a emergência do eu, por exemplo - mas seriam por si mesmos modos de funcionamento organizado, cuja complexidade não pode ser reduzida a vetores determinantes.

Coextensivamente a cada senso de si, domínios de relação (domain of relatedness) surgem como planos de consistência onde a experiência subjetiva e intersubjetiva desenrola-se. Os sensos de si seriam perspectivas de organização da experiência subjetiva que emergiriam antes da consolidação da "consciência reflexiva" e da atualização da competência linguística, revelando-se como organizações pré-verbais e pré-egóicas.

A hipótese eixo do trabalho de Stern (a emergência dos sensos de si juntamente com a constituição dos seus domínios de experiência) enuncia a capacidade que o ser humano possui, desde a mais tenra idade, de estabelecer sintonia comunicativa por outras vias que não a da linguagem. Mais que isso, está posto em suas ideias que o ser humano desenvolve modos de organizar e experimentar a realidade que se estabelecem muito antes da formação de uma entidade como o eu: "[...] crianças podem apontar para o rosado dos seus próprios narizes quando elas o vêem em um espelho antes que elas possam dizer 'eu', 'meu' ou 'nariz'" (STERN, 1985, p.168).

Com essas hipóteses se ganha abertura para valorizar experimentações subjetivas muitas vezes relegadas a um "subterrâneo" (STERN, 1985) pela força que a linguagem ocupa na esfera das interações sociais e, de certa forma, ainda ocupa no contemporâneo da experiência clínica em psicologia. Não seria uma tentativa de abolir a fala, mas de apostar em outras vias possíveis de comunicação, que também estão presentes na experiência humana, muito embora estas vias sejam menos utilizadas e às vezes fiquem eclipsadas pela utilização maciça do recurso verbal.

Stern sustenta uma perspectiva desenvolvimentista baseada numa sequência cronológica para a emergência dos sensos de si e com a delimitação de períodos de vida onde se daria a emergência sequencial dos sensos - por volta dos dois meses de idade o senso de um si emergente surge; o senso de um si nuclear emerge entre dois e seis meses de vida; o senso de um si subjetivo entre sete e nove meses e entre 15 e 18 meses o senso de um eu verbal (STERN, 1985). No entanto, o autor, não concebe uma ordem teleonômica na qual os sensos eseus respectivos domínios de experiência se organizariam, formando uma composição hierarquizada. Haveria uma progressão – no sentido de sequência cronológica para a emergência dos sensos – porém não haveria um progresso – no sentido de ultrapassamento com ganho qualitativo – em sua perspectiva. A ideia de sequencialidade ficaria estabelecida sem, contudo, exigir que nessa consecutividade os estados posteriores experimentados, pela experiência que cada senso provoca, contenham em si qualquer ganho qualitativo sobre aqueles que os precedem.

Após a emergência dos quatro sensos e de seus domínios de relação, uma experiência contínua se estabelece, nenhum deles atrofia ou torna-se inoperante ao longo da vida, não há ultrapassamento ou superação dos primeiros estágios pelos últimos, como encontramos na Epistemologia Genética de Piaget. Há modos simultâneos de experimentar a realidade que coexistem temporalmente sem haver privilégio ou hierarquia entre eles. Ao final do processo não haveria algum senso que preponderasse sobre os outros, mas os quatro permanecem ativos na organização da experiência subjetiva (STERN, 1985, p.31).

O processo de diferenciação dos sensos de si não se verifica como uma progressão sucessiva de estágios que culminaria com a formação de uma perspectiva subjetiva de organizar a realidade mediada pelo eu. A orientação do curso do processo seria dada aos moldes do desenvolvimento não linear. Com isso, há a ruptura com a tradição moderna, cujos modelos de inteligibilidade estavam calcados sobre ideais que tinham como referência o eixo de temporalidade (do passado ao futuro) regendo a direção a ser seguida pelo processo de desenvolvimento. Ideais que afirmavam, também, ser a experiência subjetiva constituída sobre o fundamento de uma entidade que organiza e subsume a diversidade das experiências ao eu.

No modelo teórico de Stern, a flecha do tempo – vetor que estabelece a direção bem como a característica de irreversibilidade dos processos evolutivos5 – não agiria mais como uma força determinante do sentido a ser seguido pelo processo. Embora haja períodos temporalmente determinados para a emergência dos sensos de si, a partir do momento que eles estejam plenamente desenvolvidos, a ordem sequencial de emergência, estabelecida cronologicamente, deixa de ser um fator de limitação ou de determinação para sua atividade.

Quatro sensos de si são descritos pelo autor. Cada um definindo um domínio de experiência e interatividade social, permanecendo ativos e funcionais ao longo da vida e possibilitando experimentações diferenciadas simultaneamente (STERN, 1985, p.11).

 

2 O senso de um si emergente Sense of an emergent self

O primeiro senso de si a emergir é o senso de um si emergente (STERN, 1985). A expressão utilizada pelo autor sugere que essa primeira perspectiva de organização subjetiva é ainda uma forma muito incipiente de experimentar a si mesmo e a realidade. A ideia de processo em formação vem a ser utilizada: "A experiência de uma organização formando-se envolve tanto o processo de motivação quanto o produto; eu focarei aqui mais no processo" (STERN, 1985, p.46). Dessa forma, fica sugerida a contínua formação e perenidade da experiência que se inicia nesse período e perdura durante toda a vida. Este senso de si pode ser pensado como uma experiência de integração de estados afetivos e corporais, principalmente.

O desenvolvimento do processo já permitiria uma experimentação de si antes mesmo que o senso, no sentido mais estrito do termo, estivesse completamente organizado. Nas teorias ortodoxas não haveria uma experiência de si organizada antes que o eu, como entidade autônoma e reflexiva, estivesse constituído. As experiências subjetivas anteriores a sua mediação seriam experiências de indiferenciação. Essa é uma característica que distingue a teoria de Stern das teorias psicanalíticas e desenvolvimentistas em geral. Na hipótese de Stern haveria uma experiência de si como entidade autônoma, mesmo que elementar, desde o nascimento e que em nenhum momento, durante o desenvolvimento infantil, haveria uma experiência de confusão (fusão com) entre si e o outro, absoluta (STERN, 1985, p.10).

Desconstruindo a noção de indiferenciação, que seria a hipótese dominante sobre a experiência subjetiva que a criança teria antes do senso de eu verbal estar constituído, Stern nos sugere olhar para o bebê com outros olhos, apontando para aspectos presentes no seu comportamento que insinuam haver algo além de um estado psíquico indiferenciado entre ele e o outro ou entre ele e a realidade que o circunda. Mais que isso, para Stern a existência de uma experiênciade si independente é condição para se experimentar o "sentir com" o outro, subvertendo, dessa forma, as concepções clássicas nesse sentido (STERN, 1985, p.70).

Através dos órgãos sensoriais, uma grande quantidade de estímulos chega à criança produzindo sensações claras e muito intensas. A partir de sua associação a criança experimenta a emergência de uma organização. Inicialmente o corpo é sentido como o ponto de referência onde essa experiência irá focar-se. Isso se dá devido à sua coerência, suas ações, suas sensações internas sem, contudo, ser o corpo o fundamento último para que essa experiência se produza, pois o senso de um si emergente inclui em sua experiência o processo e não somente o produto de uma organização em formação.

O período que é atribuído para a emergência desse senso seria por volta da 8ª semana de vida. O que é observável do bebê, nessa idade, sugere que uma verdadeira "revolução" no modo com que ele relaciona-se com o mundo e consigo mesmo está acontecendo. Nesse período, a criança passa por uma mudança qualitativa em seu modo de relacionar-se. Ela passa a fazer contato olho-a-olho e torna-se mais sorridente responsivamente.

Nessa idade encontram-se amadurecidas capacidades que atuando em conjunto concorreriam para produzir a experiência de uma organização em formação, as quais seriam a percepção amodal, a percepção fisiognomônica e os afetos de vitalidade. Estas capacidades constituem meios pelos quais a criança percebe e organiza a realidade e, mais que isso, uma vez em funcionamento, permanecem ativas, produzindo experiências que vão constituir domínios particulares de relação (STERN, 1985, p.29).

A percepção amodal é uma característica observada muito cedo em bebês. A observação sugeriu que desde as primeiras semanas de vida as crianças possuem a capacidade para desempenhar a operação cross-modal - transferência de informação entre modalidades sensoriais distintas - que as permite reconhecer uma correspondência entre tato e visão, por exemplo. Isso significa receber uma informação via uma modalidade sensória e de alguma maneira traduzi-la em uma outra modalidade. Presume-se que a informação não é experimentada como pertencendo a qualquer uma modalidade sensória particular, mas parece que ela transcende os modos ou os canais e existe em alguma forma supramodal. Não seria a simples expressão da tradução entre modalidades perceptivas, parece ser algo que envolve uma codificação em uma representação amodal que pode ser reconhecida em qualquer um dos modos sensoriais (STERN, 1985). O autor apresenta um experimento  realizado com bebês onde estes se mostram capazes de identificar visualmente um objeto – no caso chupetas – que lhes foram apresentadas via tato enquanto seus olhos eram mantidos vendados (STERN, 1985, p.47).

A criança parece experimentar um mundo de unidade perceptual no qual ela pode perceber qualidades amodais através de qualquer via sensorial, provenientes de qualquer comportamento humano expressivo. Ela representaria estas qualidades abstratamente e possuiria a habilidade para transpô-las em qualquer outra modalidade sensorial. Estas representações abstratas que a criança experimenta não são visões, sons, toques ou objetos nomeáveis, mas são contornos, intensidades e padrões temporais (compasso temporal, ritmo e duração), as qualidades mais globais da experiência. A apreensão destas qualidades não se limitaria à percepção amodal, mas estaria presente também na percepção das expressões faciais – percepção fisiognomônica – onde traços faciais simples evocariam sensações que estariam para além das qualidades usuais que a expressão facial das emoções evocaria6, como por exemplo, a sensação de intensidade que é percebida como uma qualidade intrínseca da experiência.

Outra competência que surge nesta fase do desenvolvimento é o que Stern vai chamar de afetos de vitalidade. Talvez estes sejam os atributos, dentre os aqui descritos, mais importantes por sua potência de produzir sintonia. Os afetos de vitalidade constituem formas particulares de afetos, com qualidades muito diferentes dos afetos categorizados7, sendo experimentados em decorrência de encontros casuais, mostrando-se como uma das vias mais efetivas pela qual o bebê distinguiria o que é "animado do que é inanimado". Eles podem ocorrer vinculados aos afetos categorizados ou serem decorrentes de processos internos, próprios das experiências da criança. São qualidades da experiência que podem ser mais bem traduzidas por palavras dinâmicas, cinéticas, tais como: crescendo, decrescendo, explodindo, enfraquecendo, falhando, surgindo, etc., sempre conotando movimento. Um afeto de vitalidade do tipo explodindo pode ser experimentado como uma explosão ou aumento de intensidade afetiva juntamente com uma alegria, com uma tristeza, com um episódio de raiva ou de medo, ou ainda, haver uma experiência de aumento progressivo de excitação produzido por um estímulo interno (fisiológico) ou por estímulos externos diversos. Podemos tomar como exemplos os seguintes: ao experimentar-se um afeto alegre, a intensidade do mesmo pode expressar-se através de um sorriso, passar deste para um riso, e daí virar uma gargalhada. Experimentar-se-ia um aumento da intensidade afetiva sem variar, entretanto, a qualidade do afeto. Da mesma maneira pode acontecer quando ao experimentar-se um afeto triste ocorrer uma variação que poderia progredir indo do simples marejar dos olhos, ao escorrer de lágrimas e destas ao pranto copioso. O riso pode explodir em uma gargalhada e o lacrimejar tornar-se uma explosão de pranto. A ordem nessa experiência poderia ser no sentido inverso também. A modulação da intensidade afetiva, variando ao longo do tempo, pode ser sentida como um crescendo ou enfraquecendo, diminuindo ou aumentando. Em ambos os sentidos essa variação produziria uma experiência dinâmica, sendo esse "movimento" a característica peculiar dos afetos de vitalidade.

Stern (1995, p. 82-83) introduz a expressão sentimentos com contorno temporal (temporal feeling shapes, ouapenas feeling shapes) para caracterizar os sentimentos subjacentes às experiências na sua variação temporal. Ele remarca o caráter difuso que o sentimento possui em contraste com o aspecto objetivo que o afeto pode assumir (por exemplo, quando se trata dos afetos categorizados darwinianos) e enfatiza a sua insubordinação a qualquer processo cognitivo. O autor acrescenta a avaliação hedonística (hedonic evaluation) como aspecto inerente ao sentimento. Em 2004 (p.86) ele usa tanto afetos de vitalidade quanto sentimentos contornados para indicar a impressão subjetiva simultânea à variação objetiva do tempo nas experiências clínicas ou cotidianas e em 2010 ele adota o termo formas de vitalidade (forms of vitality) para designar o mesmo processo. A modulação que o conceito, ou sua simples nomenclatura, sofre é brevemente discutida em seu trabalho Forms of Vitality. Exploring Dynamic Experience in Psychology, the Arts, Psychotherapy, and Development. Contudo podemos antecipar que a mudança de nome, no último caso, não se dá devido a alguma alteração teórica significativa, mas foi em virtude da tentativa do autor em explicitar melhor o fenômeno que ele aponta (STERN, 2010, p. 17-43).

Afetos de vitalidade, analogamente à percepção amodal, dizem respeito a um modo de perceber a realidade através das características mais globais da experiência. Remetem-nos a um plano de experimentação pré-verbal e pré-egóico, onde não haveria, ainda, a qualificação da experiência em categorias. Os estímulos sensoriais, na percepção amodal, não são percebidos como oriundos desse ou daquele órgão sensorial especificamente, mas são organizados em uma representação supra-modal, que remeteria a um plano de produção das formas e dos sentidos primário da organização do eu. Fundamentalmente, afetos de vitalidade poderiam ser sentidos como: "alterações dinâmicas ou mudanças nos padrões em si mesmo ou no outro" (STERN, 1985, p.156).

 

3 O senso de um si nuclear - The sense of a core self

Não seriam somente os atributos, até aqui citados, que concorreriam para a produção da experiência subjetiva. Chegamos a outro processo presente na formação dos sensos de si que estaria relacionado com os dispositivos de autorregulação, cuja natureza seria fundamental para a constituição do senso de um si nuclear (STERN, 1985).

A autorregulação é concebida como sendo a capacidade que o ser humano possui para regular os níveis de excitação corporal e os estados afetivos através da relação consigo mesmo ou com algum objeto fora de si. Essa capacidade é percebida desde o nascimento e permanece operante ao longo de toda a vida. Entendemos que a autorregulação seria uma operação fundamental de constituição de si, no encontro com a alteridade. O ser humano, por sua natureza livre de uma essência, carrega a necessidade do contato com outros seres. Não somente para sua sobrevivência, mas para que através desse contato ele possa estar se constituindo como ser, em seu aspecto ontológico e em seu aspecto como espécie. Nesse âmbito, algumas formas de contato são concebidas como processos através dos quais o aprendizado e a constituição de si são produzidos. A imitação seria o processo mais célebre nesse sentido, podemos acrescentar a afetividade/emoções8 que emergiriam nos encontros e a autorregulação, como concebida por Stern.

A autorregulação poderia ser experimentada, basicamente, através de três formas. A primeira seria uma forma de autorregulação produzida através de dispositivos internos que atuariam de modo não consciente, estando relacionada com as funções fisiológicas em geral. Sua mecânica de funcionamento poderia ser concebida aos moldes do modelo de prazer-desprazer9, onde o alívio de qualquer tensão sentida no organismo seria concebido como prazer e o aumento de tensão como desprazer. Uma segunda maneira de autorregulação aconteceria toda vez que uma atividade consciente fosse utilizada para reduzir os níveis de tensão corporal ou alterar um estado afetivo, sem contar a alimentação que seria a forma mais notória de autorregulação. A terceira forma que concebemos estaria relacionada com as atividades que envolvem o encontro com um objeto externo, sendo esse inanimado ou animado. É da experiência comum com bebês disponibilizar ao seu alcance vários tipos de objetos com os quais ele desenvolve jogos lúdicos. Esses jogos, que seriam brincadeiras e atividades relacionadas à maternagem em geral, tornam-se comuns na relação estabelecida com o cuidador (babá, por exemplo). Os objetos variam desde móbiles, bonecos (as), almofadas, travesseiros e cobertores, com os quais a criança estabelecerá uma relação que servirá tanto para regular seus níveis de excitação quanto seus estados afetivos.

Para Stern, haveria uma "experiência concreta de estar com o outro (um outro autorregulador) tal que sentimentos de si seriam essencialmente alterados" (STERN, 1985, p.105), e onde os indivíduos envolvidos manteriam uma percepção clara de si mesmos.

Durante o evento real, o senso de si-nuclear não é rompido: o outro é ainda percebido como um outro-nuclear separado. A alteração na experiência de si pertence ao si-nuclear somente. O si-nuclear alterado também entra em relação (mas não se funde) com o outro-nuclear. A experiência de si é sem dúvida dependente da presença e ação do outro, mas ela ainda pertence inteiramente ao si (STERN, 1985, p.105).

É sugerido que a autorregulação seja um processo com funcionamento autônomo e independente a qualquer outra força (libido, por exemplo), prescindindo de uma relação simbólica para ser produzida. Relação simbólica, nesse caso, implicaria haver um objeto internalizado e previamente representado. Não haveria, nesse sentido, uma atualização desse objeto na experiência real, uma vez que a autorregulação seria um processo com início em um período do desenvolvimento infantil muito anterior, cronologicamente, à formação da função simbólica. Essa experiência não seria buscada conscientemente, mas é sentida por ambos os agentes envolvidos nela, quando se trata de autorregulação entre seres animados.

Haveria ainda outras modulações possíveis da experiência de autorregulação, não se reduzindo estas a alterações puramente fisiológicas. De fato, a ênfase seria para as modulações afetivas que são produzidas através dessa experiência. Sentimentos de segurança e apego são frequentemente referidos como experiências de si facilitados pela proximidade física e concorrentes para a produção de vínculo pela continuidade desse contato (BOWLBY, 1969). A intensidade de uma gama muito variada de afetos seria continuamente modulada pelo encontro.

É importante lembrar que essas experiências têm início na mais tenra infância e não seriam fenômenos transitórios que só existiriam em um período determinado do desenvolvimento, mas permaneceriam funcionais modulando a experiência subjetiva ao longo de toda a existência individual.

 

4 O senso de um si subjetivo - The sense of a subjective self

O desenvolvimento infantil segue seu curso e vai complexificando-se em uma ordem não linear. Os sensos de si e seus respectivos domínios de experiência não se superpõem, ocluindo a organização subjetiva que se constituiu imediatamente anterior a sua emergência, mas coexistem temporalmente e possibilitam que a experiência subjetiva seja multidimensional.

Quando o bebê está entre o sétimo e o nono mês de idade novas mudanças são percebidas em sua capacidade de interação social. A complexidade dessas alterações é comparada a um verdadeiro "salto quântico" cuja energia para realização seria proveniente dos processos anteriormente constituídos e potencializados pelas novas capacidades que entram em cena. Em virtude desse salto, é atingida uma experiência subjetiva qualitativamente distinta daquela que havia sido até então possibilitada pelas perspectivas de organização já emersas.

Nos domínios de relação formados até esse período havia alguma expressão (mímica facial, gesticulação, vocalizações) sinalizando a experiência que estava sendo compartilhada. De certa maneira, essa expressividade serviria como indicativo de que os processos, desenvolvidos até o momento, estariam funcionais. Entretanto, no domínio de relações que entra em cena algo mais sutil passa a ser compartilhado. O senso de um si subjetivo emerge conjuntamente com a experiência de compartilhar estados subjetivos. Nesse novo plano de ensaio relacional, "o foco muda de regular experiências para compartilhá-las" (STERN, 1985, p.203), podendo agora ser atribuída à criança a capacidade para a intimidade psíquica e com isso as possibilidades de "estar com o outro" se expandem dramaticamente. Além de toda a gama de experiências já possíveis, a partir desse momento "estados mentais entre pessoas podem agora ser 'lidos', equiparados, alinhados, ou afinados [...]" (STERN, 1985, p.27).

A experiência intersubjetiva, nesse nível, ocorreria de forma não consciente e a sua tradução em palavras seria uma tarefa difícil de ser realizada. De fato, em se tratando de bebês, a linguagem falada ainda não estaria desenvolvida e sem ela a tradução verbal de qualquer experiência estaria impossibilitada. Entretanto, queremos evidenciar que a experiência intersubjetiva perdura e continua sendo produzida na vida adulta, mesmo após a atualização da competência da fala. A narrativa dessa experiência, quando conseguida, apenas produz uma pálida visão do que é sentido, não recobrindo a riqueza global da experiência. É preciso também realçar que a linguagem não consegue traduzir toda a gama de experiências possíveis de serem atingidas pelo ser humano. A multiplicidade de sensações corporais ultrapassa em muito a capacidade de expressá-las verbalmente. Estados psíquicos alterados são dificílimos de serem descritos em palavras.

Para Stern, destacar a importância da experiência intersubjetiva, em uma idade ainda tão precoce, não teria a finalidade de subverter a ordem do desenvolvimento proposta pelas teorias ortodoxas, embora isso seja feito inelutavelmente. Essas teorias trariam, em seus ideais de inteligibilidade, uma ordem de desenvolvimento estabelecida sob a orientação que o tempo em seu curso cronológico aponta e afirmariam que uma experiência dessa magnitude – intersubjetiva e diferenciada - só seria possível após o estabelecimento da consciência reflexiva, como indicativo de que o eu, como entidade autônoma, estaria minimamente constituído. Stern se ocupa em destacar a importância dessa experiência no desenvolvimento saudável do indivíduo e de suas relações sociais.

Uma das primeiras experiências intersubjetivas que o bebê experimenta seria a de "compartilhar intenções". Através da expressividade recíproca (troca de olhares entre bebê e o seu cuidador e o direcionamento do olhar para o objeto desejado, por exemplo) estabelece-se um canal de fluxo relacional através do qual seria possível a "compreensão da intenção do bebê" (STERN, 1985, p.204) pelo seu cuidador e a intenção do cuidador pelo bebê; com isso, o autor assume que intenções tornam-se experiências compartilhadas. Não é raro, na experiência clínica, a troca de olhares entre paciente e terapeuta servir como meio pelo qual afetos e perceptos sejam comunicados, entendidos ou que alguma intervenção seja produzida por esse meio.

Certamente, é neste senso que o sentido de subjetividade ganha seu contorno, mas não podemos dizer que nesta fase é que se inaugura a "relação inter". Compreendemos que em relação à experiência que ocorre nos sensos constituídos anteriores ao senso de um si subjetivo, o foco se daria principalmente na afirmação de uma experiência inter-subjetividades. Essa experiência, a despeito de sua precocidade temporal, já seria indicativa da existência de uma organização subjetiva diferenciada. A afirmativa do autor contrapõe-se às teorias clássicas nesse sentido, as quais apostam em estados fusionais experimentados até a constituição do eu. Stern vai afirmar que desde as primeiras semanas de vida já é possível ter a percepção de uma unidade física organizada, mesmo sem essa entidade psíquica estar formada. Esta experiência de si como uma unidade na relação com o outro é o que ele vai chamar de interpessoal. Não encontramos uma negação do autor de que nestes sensos iniciais algo mais sutil (estados mentais) seria experimentado, além da pura percepção de uma unidade física aliada a estados afetivos. De fato, para ele, como é apontado em muitas passagens, isso já se configuraria como uma experiência subjetiva. Stern sugere que a criança registra subjetivamente a experiência de autorregulação: "De alguma maneira a criança registra a experiência objetiva de autorregulação com o outro como uma experiência subjetiva" (STERN, 1985, p.104). Mas devemos salientar que a ênfase seria na mudança de qualidade da experiência que ocorre, como verdadeiro "salto quântico", quando o senso de um si subjetivo emerge.

Juntamente com a comunicação/compreensão de intenções, estados afetivos passam a serem compartilhados enriquecendo a experimentação nesse plano comum. Por volta dos 12 meses de idade é observado que, em situações que provoquem uma atitude ambivalente por parte do bebê - do tipo aproximação e recuo em face de algum objeto altamente estimulador e incomum - este mantenha, enquanto em curso para o objeto, frequente contato visual com o cuidador. Essa atitude do bebê dá indícios que ele, ao hesitar diante do que fazer, busca alguma referência, sobre o que fazer, na pessoa com quem ele mantém-se em relação naquele instante. Esta referência para o bebê não se limitaria a uma simples negação ou consentimento para o seu ato, mas implicaria na comunicação do sentimento de seu cuidador para uma situação em curso. A interafetividade seria a primeira, a mais abrangente, e a mais imediata forma de compartilhar experiências subjetivas, segundo o autor.

[...] a criança de alguma maneira faz uma equiparação entre os estados afetivos como experimentados internamente e os vistos 'sobre' ou 'dentro' do outro, uma equivalência que nós podemos chamar interafetividade (STERN, 1985, p.132).

 

5 Afinando os ritmos vitais10

A intensidade e a complexidade dos estados subjetivos compartilhados torna-se uma experiência constante e crescente na vida do bebê. Através da via de comunicação intersubjetiva que se estabelece, novas formas de experiência sensível tornam-se possíveis de serem compartilhadas, experimentações que prescindiriam do eu em sua organização, estados que parcamente poderiam ser traduzidos através da linguagem.

No domínio de relação intersubjetiva emerge um fenômeno que, sob o ponto de vista clínico, seria aparentemente uma simples imitação, uma "responsividade empática".

A imitação vem a ser um método de aprendizagem cujo valor (PIAGET, 1967, 1970; WALLON, 1971) desempenharia um papel fundamental nos processos de desenvolvimento e sociabilização do ser humano. Sob uma perspectiva mais ortodoxa, ela limita-se à "imitação de gestos corporais e exteriores" (PIAGET, 1967 p.25), sem possuir o caráter de uma experiência subjetiva propriamente dita. No entanto, Stern nos fala de processos mais complexos do que a simples imitação de gestos corporais, que incluiriam estados subjetivos compartilhados. É desta forma que ele apresenta a sintonia afetiva11 (STERN, 1985, p.140).

Enquanto que a imitação diria respeito à forma (traz carreada a ideia de alguma expressão mais objetiva do comportamento); a sintonia afetiva diria respeito ao sentimento de fundo, ao estado subjetivo que a expressão exteriorizada corresponderia. Este processo pode ser compreendido como uma experiência de equivalência, equiparação de ritmos vitais. Equivalência essa que não fica restrita à gesticulação somente, mas que a comporta e inclui a performance, intensidades afetivas, níveis de excitação diversos, expressividade facial e exteriorização emotiva (STERN, 1985). Não haveria, nesse processo, a coincidência gestual ou de expressões faciais simplesmente, mas entraria em jogo todo o repertório das capacidades sensíveis e expressivas até aqui desenvolvidas. A sintonia afetiva processa-se em sua maior parte através da capacidade cross-modal, ou seja, os canais sensoriais para a recepção e expressão do estado afetivo desejado seriam diferentes nas duas pessoas envolvidas na experiência. O que estaria sendo equiparado, não seria um comportamento em si, mas "algum aspecto do comportamento que reflete o estado afetivo pessoal" (STERN, 1985, p.142).

A sintonia afetiva seria, a princípio, uma impressão clínica. Porém, Stern vai apontar algumas características deste processo que o evidenciariam distinguindo-o da imitação e o constituindo propriamente. As características constitutivas da sintonia afetiva contribuem para formar a dimensão múltipla das experiências subjetivas. Seriam capacidades que atestam a complexidade da constituição dos processos em jogo na experiência humana, as quais estariam sendo equiparadas, equivalidas, na experiência de "estar com". Estas características que formam a base da sintonia afetiva seriam "intensidade, duração e forma" (STERN, 1985, p.146), que dão um contorno rítmico a essa experiência. Nesse contexto, falar de ritmo seria pensar nesta imagem musical que ritmo, compasso e intensidade evocam, mas não a partir da experiência do solo musical, da musicalidade que cada instrumento individualmente produziria, mas do concerto, da composição harmônica em contraponto de uma organização sinfônica.

Se atribuíssemos uma função para a sintonia afetiva certamente esta seria muito diferente da que poderíamos atribuir aos processos de autorregulação. Além de ambos ocorrerem em domínios de relação distintos, a função do primeiro não estaria comprometida em acalmar ou aquietar estados afetivos ou níveis de excitação, nem tampouco reforçar comportamentos em um sentido behaviorista, mas visaria, primeiramente, estabelecer comunicação subjetiva, visaria atingir um estado de "comunhão interpessoal" (STERN, 1985, p.148).

O autor ressalta a importância da experiência da comunhão de estados internos vivenciados pela criança para o seu desenvolvimento subjetivo e para ela delimitar a dimensão de seu território existencial (STERN, 1985, p.152). A falta dessa experiência, assim como a má formação ou perda da devida experimentação em quaisquer dos sensos de si ou em seus respectivos domínios de relação, estaria na base de processos subjetivos implicados na produção de expressões psíquicas patológicas (STERN, 1985, p.200-201).

Para a sintonia afetiva operar torna-se mister que haja algum dispositivo estabelecendo comunicação entre vias sensórias distintas e que produza equivalência entre comportamentos expressos não idênticos, em virtude de ela possuir características muito diferentes das de uma simples imitação. Vimos acima, que as características principais que dariam consistência para a sintonia seriam aquelas referentes às qualidades subjetivas de intensidade, tempo e forma. Estas qualidades, intrínsecas da experiência subjetiva, formam as propriedades amodais, que permitiriam que os objetos (como no exemplo das chupetas) tornem-se perceptíveis indeterminadamente por este ou por aquele canal sensorial. Estas qualidades da experiência podem ser abstraídas a partir de propriedades invariantes dos estímulos externos e seria "a existência destas representações abstratas das propriedades amodais que nos permitiria experimentar um mundo perceptualmente unificado" (STERN, 1985, p.152).

Seria esta capacidade que possuímos para identificar equivalências amodais (percepção amodal ou cross-modal) que, além de produzir o sentimento de uma experiência unificada - a realidade sendo apreendida em seu aspecto global -, permitiria que "engajemo-nos em sintonia afetiva para alcançarmos intersubjetividade afetiva" (STERN, 1985 p.156). Teríamos, dessa maneira, nas propriedades amodais e nas qualidades subjetivas da experiência, os elementos fundamentais para que o processo de sintonia afetiva se tornasse operante. Entretanto, faz-se necessário a presença de um meio através do qual essa experiência seja ensaiada. Como na idade em que ela emerge a linguagem ainda não se apresentaria como recurso disponível, um outro canal comunicativo deve ser tomado para que a operação de sintonia seja efetivada. Pela disponibilidade dos recursos presentes, até esse período do desenvolvimento, as vias afetivas tornam-se os meios privilegiados para que a sintonia afetiva produza seus efeitos. Não somente os afetos discretos categorizados (alegria, tristeza, medo, etc), mas, principalmente, os afetos de vitalidade serviriam como instrumentos pelos quais a sintonia viria a ser operada. Assim, os afetos de vitalidade evidenciam-se como os instrumentos ideais, não exclusivos, para que um sentimento de ligação contínua esteja em vigor, pois "manifestam-se em todo comportamento" (STERN, 1985, p.157).

Nota-se que esta intervenção não deve ser pensada como um movimento repentino, disruptivo, estanque de um contexto relacional no qual ela prescindisse de estar inserida. A sintonia afetiva pressupõe haver um estado de comunhão intersubjetiva, o qual viria a ser experimentado como um "processo contínuo" (STERN, 1985, p.156). Uma vez existindo essa experiência comum de compartilhar só então seria possível operar clinicamente com ela. É necessário que se esteja "dentro", imerso, nesse plano comum para que essa possibilidade apresente-se como real. A sintonia afetiva, juntamente com a experiência de comunhão intersubjetiva que ela promove, nos convoca a refletir sobre o lugar que essa experimentação ocuparia na clínica e como se daria o manejo com ela. Qual a sua relevância na clínica contemporânea e quais seriam os seus efeitos sobre a subjetividade do paciente no que importa à redução de seu sofrimento.

A experiência intersubjetiva se caracteriza por uma sintonia com o mundo do paciente, fazendo com que este mundo deixe de ser isolado, deixe de ser uma vivência de clausura afetiva, como em muitos casos que a literatura clínica nos apresenta12, para tornar-se uma experiência de território compartilhado. O modo de subjetivar do paciente pode, então, ser compartilhado e experimentado por e com outrem. Seu mundo, com ideias, sonhos, afetos, sentimentos e desejos, deixa de ter, ainda que por instantes, um caráter fechado, obscuro, claustro. Quais efeitos esta experiência pode produzir, na clínica e na vida cotidiana? Mas a dimensão deste artigo não comporta uma discussão minuciosa dos efeitos que este dispositivo pode produzir, entretanto cabe-nos apontar a potência que ele tem de operação clínica, no sentido de produção de desvio de estados patológicos e de sofrimento.

A intersubjetividade, como experiência clínica, implica no compartilhar do mundo do paciente, de seus sonhos, de seus medos, de seus anseios. O autor de O Momento Presente na Psicoterapia e na Vida Cotidiana aponta que "o desejo de intersubjetividade é uma das mais importantes motivações que impulsionam uma psicoterapia" (STERN, 2004, p.119). Para ele a intersubjetividade é um "sistema motivacional básico" (STERN, 2004, p.120) fundamental para a formação de pares, de grupos e de famílias, detendo "status comparável ao do sexo ou do apego" (STERN, 2004, p.119). Nosso interesse se aplica aos efeitos que esse impulso produz. O que entra em jogo para nós, como clínicos, é a "regulação do pertencimento psicológico versus solidão psicológica" (STERN, 2004, p. 122) que a experiência intersubjetiva delimita.

A espécie humana situa-se, dentre os mamíferos, como a mais social. A formação de grupos não parece atender meramente às exigências de segurança, de proteção, e de reprodução da espécie, fundamentais para sua adaptação e preservação. Atividades lúdicas, recreativas, e a produção de cultura, são difíceis de serem explicadas através de modelos de inteligibilidade que tenham como base a adaptação e a seleção. Elas põem em cheque tais modelos e atestam que na riqueza das relações sociais há algo que transborda as exigências seletivas. O impulso para o contato íntimo fica sugerido pelos trabalhos de Spitz, e de Bowlby, nos quais a importância do contato corporal, para os recém-nascidos, não se restringe às necessidades de alimentação e de cuidados maternos básicos, como estes autores destacam, o que pode ser compreendido como um impulso precoce para a intersubjetividade.

Mas, pode ser alegado que nem todos os seres humanos expressam tais impulsos, e que quiçá os carreguem. Que há muitos que decidem por um modo de vida solitário sem que isso lhes traga sofrimento e que essas pessoas não padeçam pela falta do contato íntimo, físico ou mental, com outros. Sem dúvida este é um argumento inquestionável. No entanto, é pela observação de determinados fenômenos, no cotidiano e na clínica, que estas hipóteses são teorizadas. A assunção de Stern é de que nos estados onde o "sofrimento mental" seja intenso, a exigência de pertencimento psicológico produza uma demanda de formação de "parentesco subjetivo", levando em consideração que a procura por tratamento ocorre, em geral, em momentos em que o nível de sofrimento do paciente é o fator que o impele em tal procura (STERN, 2004, p.124). Apesar da vida solitária ser um fato muito comum na atualidade, e os modos de vida presente facilitarem a autonomia individual, seria em meio a esta condição de vida, que a inibição, ou mesmo a oclusão, dos referidos impulsos, ganharia expressão afetiva como sofrimento. "É no campo da clínica que estamos em condições de acompanhar as estranhas metamorfoses subjetivas" (RAUTER, 2005, p.63), e suas implicações políticas, não havendo dissociação entre o que a clínica expressa e o que é produzido no campo social.

O compartilhar que a intersubjetividade promove se dá ao nível de afetos e de toda a paisagem mental do paciente, de seu universo existencial particular, por mais árido, exótico, esquisito, ou bizarro, que seja. Empregamos tais adjetivos, deliberadamente, na tentativa de reproduzir o quadro afetivo no qual muitos dos pacientes que procuram a psicoterapia se encontram.

 

6 O senso de um eu13 verbalThe sense of a verbal self

A intersubjetividade tornou-se uma experiência possível com a emergência do senso de um si subjetivo e de seu equivalente domínio de relação. Nesse domínio o estar com o outro ganha uma dimensão que ultrapassa as experiências de autorregulação para tornar-se uma experimentação comum sentida a dois, um compartilhar de intenções, de afetos e de estados subjetivos. Nesse ponto do desenvolvimento infantil a experiência subjetiva de si/outro, como entidades independentes, está bem delimitada. As capacidades envolvidas na emergência dos sensos de si, já despertos, juntamente com os próprios sensos, preparam o terreno para que o próximo senso esteja emergindo. Contudo, embora haja uma sequência cronológica para que a emergência dos sensos aconteça e, de certa forma, também haja a exigência de que todas as capacidades, até aqui desenvolvidas, estejam concorrendo para que a experiência de si se produza; não haveria uma relação de hierarquia entre qualquer um dos sensos.

É durante o segundo ano de vida da criança que a linguagem emerge, produzindo uma expansão fantástica das possibilidades de estar com o outro. Agora, os conteúdos mentais e afetivos além de já serem compartilhados, em uma experiência não necessariamente tradutível em palavras, tornam-se possíveis de serem expressos verbalmente, permitindo duas pessoas criarem significados para experiências mútuas (STERN, 1985 p.182).

Stern vai apontar a necessidade de que determinadas capacidades estejam operando para que o senso de um eu verbal possa emergir. A atitude da criança frente ao espelho (apontar para o seu próprio nariz, ou alguma outra parte do seu corpo, ao invés de apontar para o espelho), referindo a imagem a si mesma, desponta momentos antes da linguagem entrar em cena (STERN, 1985, p.168). Propõe-se que esse seria um indício de que a criança já possuiria uma noção subjetiva de si com certo grau de amadurecimento, que seria o germe de uma entidade reflexiva em seu estado nascente. Essa entidade psíquica, em conjunto com a linguagem, irá constituir o eu, o sujeito cognoscente, entidade descrita por Descartes como aquela que pondera, reflete, sobre si mesma e distingue-se da realidade objetiva.

Entre o décimo quinto e o décimo oitavo mês de vida, a criança "[...] começa a imaginar ou representar coisas em sua mente de tal forma que signos e símbolos estariam agora em uso. O jogo simbólico e a linguagem agora se tornam possíveis" (STERN, 1985, p.163). Nessa idade é observado que a imitação comum – aquela realizada na presença de um modelo (objeto ou comportamento do outro) – começa a ser substituída por um tipo diferenciado de imitação: a imitação na ausência do modelo, "imitação com retardo" temporal ou imitação diferida14 (STERN, 1985, p.163). Essa capacidade para evocar um objeto ausente, ou reproduzir um comportamento com retardo, vem a ser condição necessária para que a linguagem se estabeleça.

Outras capacidades da competência do senso de um eu verbal são inferidas em virtude da sua expressão no comportamento percebido da criança. Assume-se que quando a criança evoca um objeto na ausência do mesmo, ou realiza um comportamento que tenha presenciado anteriormente, ela já teria desenvolvido a "capacidade para representar acuradamente coisas e eventos feitos por outros" (STERN, 1985, p.164). Suas ações não mais corresponderiam à execução de, em linguagem piagetiana, simples esquemas sensório-motores15, mas implicariam em já haver um tipo de elaboração interna que sugeriria uma ação mental na sua coordenação. Stern sugere que para a criança realizar uma imitação com retardo seria necessário também que a mesma possuísse duas versões internalizadas do mesmo comportamento para que pudesse, de alguma maneira, verificar a correta execução daquilo que está fazendo (STERN, 1985, p.164). Finalmente o autor assume que a criança deve conceber uma relação psicológica entre si e o modelo imitado, representando a si mesma como similar a ele para que possa ser capaz de executar o comportamento em questão. Isso apontando a existência de um sentimento de si, como uma entidade independente ao exterior (STERN, 1985).

Com essas capacidades em curso estaria preparado o solo para que a linguagem emergisse e com ela o estabelecimento de outros modos de "estar com" seriam atualizados, instaurando o domínio de relação verbal. Com a entrada da linguagem em cena o eu – entidade subjetiva que identifica e unifica as experiências a si – atinge o ponto máximo de sua capacidade reflexiva. As operações abstratas que dizem respeito à reflexão do pensamento sobre si mesmo, ou operações lógico-formais (PIAGET, 1970), instauram-se definitivamente como experiência subjetiva. A partir desse momento, prescindir-se-ia da mediação necessária do concreto para que se possa realizar "operações sobre outras operações", ou seja, a criança torna-se capaz de pensar sobre si mesma, tornando-se objeto do seu próprio pensamento.

Com a linguagem presente, a relação intersubjetiva ganha novas dimensões. A partir de agora, além da criança poder construir uma narrativa sobre sua própria vida, a criação de significados comuns, para o que é experimentado entre dois, é acrescentada como nova capacidade. Sob uma perspectiva dialógica, que é entendida como um processo de constante negociação na experiência de "estar com", a construção de um significado comum para as experiências é produzido no encontro entre dois.

Não se trata de atribuir um significado proveniente de "fora" da experiência, pois cada experiência se constrói a partir de processos imanentes e ela só poderia ser entendida e qualificada sob um ponto de vista também imanente, nunca extrínseco a ela: "[...] a criança e a mãe criam uma experiência de estar-com usando símbolos verbais – um compartilhar de significados mutuamente criados sobre a experiência pessoal" (STERN, 1985, p.172).

 

7 A linguagem como "espada de dois gumes"

Para Stern, a aquisição da linguagem constitui-se como um dos mais potentes recursos a serviço da união e da experiência comum: "De fato, cada palavra aprendida é um subproduto da união de duas mentalidades em um sistema simbólico comum, um forjar de significados compartilháveis" (STERN, 1985, p.172). Entretanto, o autor chama a atenção para os problemas que a linguagem produz na experiência subjetiva e no "estar com", tratando a linguagem como uma "espada de dois gumes". Pois, se por um lado a linguagem potencializa a experiência de si e ajuda a desenvolver novos modos de compartilhar experiências, por outro lado: "Ela insere uma cunha entre duas formas simultâneas de experiência interpessoal: como ela é vivida e como ela é verbalmente representada" (STERN, 1985, p.162). Desse modo, haveria simultaneamente a experiência vivenciada em sua globalidade, com toda a riqueza de sensações que ela produz e uma narrativa dessa experiência ou, em outras palavras, a tentativa de expressar através da linguagem todos os matizes suscitados na experimentação. Há experiências vividas que através da linguagem só conseguem serem recobertas parcamente. Sua tradutibilidade, quando conseguida, não consegue abarcar toda a riqueza da experiência (STERN, 1985, p.176). Como transmitir em palavras a experiência de assistir a um pôr-do-sol ? Como traduzir, pela palavra, a complexidade da experiência de pegar uma onda de peito (o velho jacaré)? O contato com a água, a sensação térmica, o prazer nos movimentos que o corpo faz para entrar na onda, a sensação de deslizar com o corpo na água, tomar um caldo, perder o fôlego... Para descrever essa experiência precisamos de muitas palavras e contudo não conseguimos passar a verdadeira sensação do que seria pegar uma onda. O caráter global da experiência ficaria perdido, pois aludiria a uma ordem, a um regime sensível, que escaparia à codificação que a linguagem exerce, assujeitando a experiência à sua estrutura funcional. Além disso, certas experiências que ocorrem nos outros domínios de experimentação, não são passíveis de fragmentação a fim de serem traduzidas através da fala, ou seja, não daria para expressá-las fora da sua integridade e estas acabariam sendo relegadas a um plano secundário.

A experiência global pode ser fraturada ou simplesmente pobremente representada [...] E finalmente, algumas experiências globais nos níveis de relação nuclear e intersubjetivo (assim como o próprio senso de um si nuclear) não permitem à linguagem penetração suficiente para separar uma parte para transformação linguística. Tais experiências então simplesmente continuariam subterrâneas, não verbalizadas [...] (STERN, 1985, p.175).

A percepção amodal - capacidade fundamental presente na constituição dos sensos emergente e nuclear - cuja função diz respeito, diretamente, à percepção das qualidades intensivas da experiência, sofreria uma "quebra" para poder ser traduzida adequadamente pela linguagem. O autor nos traz como exemplo a imagem de uma criança contemplando os raios de sol projetados sobre uma parede e toda a riqueza de sensações pertinentes a essa experiência, tais como intensidade, calor, forma, brilho, prazer, "e outros aspectos amodais do raio" (STERN, 1985 p.176), inclusive a tonalidade de amarelo do mesmo. Enquanto a criança estaria engajada em uma experiência global, com uma gama de qualidades amodais intrínsecas a tal experimentação, ela se manteria alheia para as propriedades mais particulares, tais como a cor do raio, a qual seria específica de uma única modalidade sensorial. Na interrupção dessa experiência por uma exclamação do tipo: "Oh, veja o raio de sol amarelo!" (STERN, 1985, p.176, grifo do autor), haveria a redução de todo o espectro das qualidades multimodais da experiência a uma categoria específica de sensação. A categorização da experiência através da linguagem interviria promovendo corte, cindindo o fluxo contínuo de percepção amodal.

No exemplo acima citado - em virtude do status que a linguagem alcança tornando-se a forma privilegiada para a tradução da experiência subjetiva - a expressão "raio de sol amarelo" provavelmente se tornaria a versão oficial da experiência sem, contudo, recobri-la por completo. Assim como nesse caso, muitas outras experiências que desafiam a categorização verbal, tais como "certos estados contemplativos, certos estados emocionais e a percepção de certas obras de arte" (STERN, 1985, p.176), estariam fadadas a sofrer semelhante redução descritiva, quando expressas pela fala.

Da mesma forma, pensamos o quanto a experiência clínica pode ficar comprometida quando é dada atenção excessiva ao recurso verbal. A linguagem falada não é a única via de expressão da subjetividade. Há toda uma gama de experiências subjetivas que não é veiculada pela linguagem e consequentemente não pode ser capturada pelo eu, pois sua matéria expressiva é outra que não aquela produzida pela razão. Quanto da experiência global do "estar com" ficaria excluída na tentativa de expressar a totalidade dessa experiência intersubjetiva através da fala? Ou mesmo, quanto da experiência pessoal do paciente ficaria "ausente" da sua narrativa, pela limitação que a própria linguagem possui como recurso descritivo das experiências vividas?

Além do empobrecimento da experiência global há um outro problema que a utilização da linguagem, através de sua função categorizadora16 da realidade, traria. Seria o efeito generalizador que a nomeação das experiências e dos objetos possui. Experiências cotidianas tais como "ir para a cama" (STERN, 1985, p.177) rapidamente tornam-se uma categoria geral à qual são subsumidas uma grande diversidade de eventos específicos de "ir-se para a cama". Cada evento é concebido como uma experiência única, complexa, que não se repete, e que sendo generalizado perderia seu caráter especial. Esta dimensão complexa de cada experiência ficaria elidida quando da sua subsunção a uma categoria genérica. Realçamos que o objetivo não é desqualificar a importância que a linguagem possui como meio de traduzir a experiência sensível, ou como veículo de união intersubjetiva, mas de chamar a atenção para as falhas, equívocos, que ela introduz na tradução dessas experiências.

A natureza particular da linguagem, como especificadora da modalidade sensória em uso (em contraste com a não-especificidade amodal) e como especificadora de episódios generalizados ao invés de eventos específicos, assegura que haverá pontos de equívoco (STERN, 1985, p.178).

Outros pontos nos quais a linguagem encontraria dificuldades para traduzir a íntegra da experiência seriam, principalmente, na explicitação de estados afetivos. A tradução de estados internos ou afetivos, em palavras, esbarra no embaraço para classificar qualidades implícitas da experiência subjetiva que não se conseguiria objetivar descritivamente. Mas que seriam expressões de um gradiente de intensidade, cuja descrição verbal recairia na exigência de delimitar, com precisão, aquilo que por sua natureza imprecisa escaparia de uma categorização racional. Seria como exigir a classificação entre preto e branco para um gradiente de tons de cinza ou a descrição, verbal, da intensidade transmitida pelas cores e traços de uma pintura de Van Gogh, por exemplo.

Mas a problemática que se instaura com a emergência da linguagem não se exaure aí. Outra forma de equívocos é produzida pela divergência entre a experiência vivida e sua representação, pela consequente tradução verbal. A compreensão e interpretação daquilo que o outro comunica, incluindo a verbalização do seu pensamento, esbarra na dificuldade de haver uma univocidade entre o que pode ser expresso globalmente (experimentado nos domínios de relação constituídos anteriormente ao senso de um eu verbal) e aquilo que pode ser dito e entendido pela via da linguagem.

É muito comum na experiência cotidiana, clínica ou não, termos a nítida impressão de que aquilo que está sendo dito não corresponde ao que sentimos como verdadeiro no outro. Talvez possamos afirmar, junto com Stern, que essa sensação seria proveniente da percepção das propriedades amodais, ou da experiência nos domínios de relação não-verbais, constituídos juntamente com os sensos de si emergente, nuclear e subjetivo. Contudo, estando o autor correto ou não em suas hipóteses, o que podemos dizer é que essa impressão, em muitos casos, insiste. Stern traz uma anedota que marca bem esse ponto. A piada relata o encontro de dois terapeutas que se cruzam na rua, sorriem um para o outro, e saúdam-se com um simples hello. Então cada um prossegue pensando: "Eu me pergunto o que ele quis dizer com aquilo?" (STERN, 1985, p.179). Para o autor, esta anedota exprime bem o equívoco que existe entre a informação que é modulada via um gradiente contínuo, percebido como fluxo amodal, e aquela informação expressa pela via da palavra. Este equívoco impõe aos protagonistas da estória a tarefa de interpretar o que o outro disse. Ora, só existe a necessidade de interpretar aquilo que não tem obviedade em sua expressão e, no exemplo citado, o trabalho de interpretação se daria pela distância existente entre as duas versões possíveis de haver na experiência, ou seja: "como ela é vivida e como ela é verbalmente representada" (STERN, 1985, p.162).

As experiências nos domínios que emergiram anteriormente ao domínio de relação verbal ocorriam, em seu auge, em um estado de "comunhão intersubjetiva" (STERN, 1985, p.27), incluindo sentimentos e afetos compartilhados e experimentados como comuns de dois. Entretanto, com a emergência do senso de um eu verbal, e do consequente domínio de relação que com ele coemerge, produz-se uma ruptura nessa experiência de "comunhão". A segurança do "sentir com" é abalada pelas incertezas produzidas pelo emprego do recurso verbal, quando este é utilizado para dar conta de uma experiência não tradutível por meio da linguagem.

Para o autor, há muitas experiências de "estar com" que, por sua natureza complexa, encontrariam muita dificuldade de serem categorizadas ou descritas verbalmente. Características pessoais as quais podemos chamar de estilo, formadas por modulações singulares de ritmos vitais, são experimentadas na sua integralidade, não podendo ser fraturadas ou ter seus elementos decompostos e isolados a fim de permitir uma análise descritiva de tal experiência. Estes aspectos seriam experimentados mais como "um raio-de-sol" (em sua dimensão global) do que como "um raio-de-sol amarelo" (em sua dimensão circunscrita a uma única modalidade sensória, nesse caso a cor).

Finalmente, para Stern, com o recurso da linguagem e do pensamento simbólico, a criança adquire meios para construir um relato de sua vida pessoal, dos fatos acontecidos em seu cotidiano, incluindo os eventos passados e, também, poderia fantasiar acerca do seu futuro (STERN, 1985, p.162). Com isso, a produção em paralelo de duas versões da experiência, uma realmente vivida e a outra narrada, passa a ser uma característica permanente e constitutiva da experiência subjetiva, isso incluindo a sua experiência de "estar com o outro".

Stern subverte, com suas proposições, a ortodoxia do pensamento desenvolvimentista em psicologia, colocando em cheque seus modelos hegemônicos, cuja lógica era pautada sobre a organização hierarquizada de estruturas psico-biológicas. Deslocando, dessa forma, o lugar que o sujeito, formalizado como eu, e as funções, tais como a linguagem e o pensamento racional, a ele correlatas, ocupavam nessa organização. O alcance de suas ideias ultrapassa as questões envolvidas na relação mãe-bebê, como é possível supor com uma leitura ingênua do título de um de seus trabalhos (1985), pois os processos que ele evidencia, desenvolvidos em períodos muito precoces da vida infantil, permanecem funcionais na vida adulta, mediando as relações entre o indivíduo e a sociedade. Fica sugerido, também, um método de conhecer a realidade que não privilegia o sujeito cognoscente como entidade que detém tal prerrogativa, pois a experiência intersubjetiva põe em jogo um modo diferenciado de relação com o mundo anterior à constituição do sujeito, que permite o compartilhar de intenções, de estados afetivos e mentais, consequentemente uma via para o conhecimento. Mas talvez seja na clínica que seu pensamento ganhe destaque. A experiência intersubjetiva modulada pelos sensos de si coloca em evidência nuanças da subjetividade comumente ausentes das terapias psi em geral. Estas facetas subjetivas, tão caras quanto os conteúdos simbólicos na constituição do universo existencial do paciente, permanecem eclipsadas pelo uso maciço do recurso verbal, predominante nas intervenções clínicas. Acreditamos que evidenciar tais questões encontra relevância no contexto atual em que o desenvolvimento do ser humano é pensado e para a experiência clínica com as subjetividades contemporâneas, no consultório particular ou na esfera da saúde pública, em seu caráter individual ou coletivo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
José Carlos Chaves Brazão
UFF – Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia
Departamento de Pós Graduação de Psicologia
Campus Gragoatá, Bloco O
Endereço eletrônico: zebraza@grupochi.com.br

Recebido em: 04/07/2011
Reformulado em: 16/11/2011
Aceito para publicação em: 16/12/2011
Acompanhamento do processo editorial: Deise Maria Leal Fernandes Mendes

 

 

Notas

* Doutorando em Psicologia Clínica pela UFF – Universidade Federal Fluminense- Niterói, Rio de Janeiro.
1 Para o presente trabalho utilizamos a obra original em inglês, como consta na bibliografia.
2 "Estas incluem as capacidades para compartilhar um foco de atenção, atribuir intenções e motivos para outros e apreendê-los corretamente, e atribuir a existência de estados afetivos em outros e senti-los sejam eles congruentes ou não com os seus próprios estados afetivos" (STERN, 1985, p.27). Todas as traduções são de nossa autoria.
3 O inatismo presente na tese de Stern não é apresentado como um fator determinante para padrões de conduta ou conteúdos mentais que o bebê apresentaria, mas diz respeito às capacidades específicas presentes nos dispositivos da percepção e fundamentais para a construção dos modos de organizar a experiência em cada etapa do desenvolvimento da criança. Essas capacidades não seriam deflagradas a partir de exigências do meio, mas apresentar-se-iam como dispositivos filogeneticamente constituídos que amadureceriam em períodos determinados da vida, desempenhando papel capital na elaboração da experiência subjetiva.
4 Do original em inglês "senses of self". Decidimos adotar como tradução, entre os significados possíveis, da palavra self, o si, para estarmos diferenciando do significado mais comum que seria eu. Diferenciação necessária a ser feita no contexto da teoria do autor.
5 É de consenso, em biologia, que uma mutação bem sucedida adaptativamente não reverta para seu estado anterior (DOBZHANSKY, 1961).
6 "Werner sugere que elas surgem da experiência com a face humana em todos as suas expressões emocionais [...]" (STERN, 1985, p.53).
7 Afetos categorizados seriam aqueles basicamente descritos por Darwin, a saber: medo, raiva, alegria, tristeza e seus derivados (DARWIN, 1863).
8 Em relação à afetividade e às emoções, como processos de constituição do si na relação com o outro, podemos citar o trabalho de Wallon (1971).
9 Conforme a concepção freudiana do princípio do prazer, como vemos: "Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção de prazer" (FREUD, 1920 [2006], p.17).
10 RAUTER, 1998.
11 "Affect attunement".
12 Citamos o caso clínico Prisões (KHAN, 1988, p. 13-41).
13 Deliberadamente, ao invés de utilizarmos a palavra si, como estávamos utilizando, para traduzir a expressão self, utilizamos a palavra eu para designarmos este senso, pois nesse momento ela se torna adequada.
14 "[...]'imitações diferidas', isto é, a primeira reprodução do modelo não se faz mais, necessariamente, em presença do mesmo, mas na sua ausência e após um intervalo mais ou menos longo de tempo. Por outras palavras, a imitação desliga-se da ação atual e a criança torna-se capaz de imitar interiormente uma série de modelos, dados no estado de imagens ou de esboços de atos. A imitação atinge, assim, os primórdios do nível da representação" (PIAGET,1964).
15 PIAGET, 1970.
16 A categorização da experiência subjetiva, bem como da realidade concreta, não é uma característica exclusiva da linguagem, mas é um atributo do pensamento racional o qual atinge sua maior potência e expressão através da linguagem.