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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.13 no.3 Rio de Janeiro dez. 2013
ARTIGOS
O menino que queria ser gente... Um estudo da história de vida de adolescentes em conflito com a lei
The boy who wanted to be somebody… A study about the life history of adolescents in conflict with the law
Luziane de Assis Ruela Siqueira*; Gilead Marchezi Tavares**
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil
RESUMO
Este artigo trata de subjetividades produzidas a partir de processos históricos e objetiva evidenciar os processos de subjetivação que compõem o adolescente em conflito com a lei que passou pelo Programa de Liberdade Assistida/Prestação de Serviço à Comunidade (LAC/PSC) no Município de Vitória/ES. Utilizando-se da metodologia da história oral, com depoimentos de história de vida de um jovem egresso do LAC/PSC, buscou-se realizar a análise a partir da produção de sentidos construídos pelo jovem, no encontro com a pesquisadora. Considerou-se que os programas governamentais disponíveis para atender a juventude pobre limitam os modos de vida, podendo produzir, inclusive, subjetividades criminosas. São abordados alguns aspectos da trajetória de vida do jovem, que apontam para escapes, resistências, e demandam uma atuação ético-política da psicologia que aposte nos acontecimentos e nas intensidades da vida.
Palavras-chave: Risco, Subjetividade, Delinquência juvenil - Aspectos sociais.
ABSTRACT
This article deals with the subjectivities produced by historical processes and focuses on such processes that integrate adolescents in conflict with the law who have passed through the Assisted Freedom Program/Service to the Community Program (AFP/SCP) in Vitória/ES. Using the methodology of the oral history and having life testimonies of a young boy coming from the AFP/SCP, this study unfolds the analysis focusing on the production of feelings built by the young boy while meeting with the researcher. It is believed that the government programs built in order to help the poor young people limit their lifestyles, possibly producing even criminal subjectivities. This study also focuses on some aspects of the life's journey of young people, which lead to escapes, resistances and demand ethical and political actions from Psychology, actions of which target life's happenings and intensities.
Keywords: Risk, Subjectivity, Juvenile delinquency - social aspects.
1 Programa de medida socioeducativa de Vitória/ES – o início...
No ano de 2008, a Prefeitura Municipal de Vitória, em parceria com a Vara da Infância e da Juventude, municipalizou o atendimento a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, antes acompanhadas somente pelos técnicos do juizado. Dessa forma, a Secretaria Municipal de Assistência Social criou, em convênio com o Centro Salesiano do Menor1 (Cesam), o Programa de Liberdade Assistida Comunitária e Prestação de Serviço à Comunidade de Vitória (Programa LAC/PSC), que atualmente é integrado ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Na época, o Programa LAC/PSC acompanhava os adolescentes em conflito com a lei (ACL), munícipes de Vitória, cumpridores das medidas socioeducativas de liberdade assistida e/ou de prestação de serviço à comunidade. Trata-se de um Programa de Proteção Especial (média complexidade) que atende adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa (MSE) em meio aberto. A proposta do Programa era de que o adolescente ressignificasse o ato infracional e pudesse construir um projeto de vida. Para atingir esse objetivo, o Programa entendia ser fundamental que o adolescente se conhecesse como sujeito de direitos e deveres e experimentasse sua potencialidade como cidadão pleno de direitos2. Os gestores do Programa buscaram experiências de outros programas similares no Estado e mesmo fora dele. Toda uma equipe de profissionais foi formada, a partir de seleção e capacitação, para a atuação com tais adolescentes. A equipe de trabalho, na qual atuei como psicóloga, criou desde a primeira ficha para o cadastro até o fluxograma de atendimento.
Este artigo trata das experiências, inquietações e encontros vivenciados como psicóloga do Programa e como pesquisadora no re(encontro) com adolescentes atendidos no LAC/PSC durante o desenvolvimento do Projeto de Mestrado.
A experiência como psicóloga proporcionou o atendimento a adolescentes de ambos os sexos. A vivência institucional, a observação e a escuta de suas histórias de vida sinalizaram para processos de subjetivação3 atravessados pelo desejo de ser visível, de ser gente, de ter valor e por instituições4, a tais como: a família, o crime, o tráfico, a mídia, o consumismo, etc. Os elementos que compõem esses processos de subjetivação demandavam uma intervenção que colocasse em análise tais instituições que produzem adolescentes em conflito com a lei. Tendo em vista que tais instituições também nos compõem, afirma-se aqui a urgência de se fazer uma análise de implicação5 no processo de produção de subjetividades marcadas pelo engajamento em condutas de risco6, ou seja, modos de vida que incluem ações que desafiam a morte e/ou infrinjam as regras de convivência social.
No período em que trabalhava no Programa percebia que os adolescentes atendidos eram vistos pela sociedade como rebeldes e marginais, identidades que obscurecem suas forças instituintes capazes de promover rupturas nas instituições dogmáticas e engessadoras de nossa sociedade. É nesse sentido que acredito que a análise dos processos de subjetivação que compõem os adolescentes atendidos pelo Programa deve guiar propostas de intervenções que possibilitem a produção de novos modos de vida, não pautados em formas moldadas a partir de um modelo ideal. Da mesma forma, afirmo que os profissionais da Psicologia e de outros saberes podem colocar em análise suas práticas, investigando a direção dos processos em curso no seu fazer – se tendem a produzir corpos dóceis, domesticados e adestrados, prontos para viverem em sociedade, no caso, adolescentes que não mais ofereçam risco social ou se são capazes de produzir novas práticas e outros modos de vida, pautados numa potência de ação7.
Assim, o presente artigo versa sobre subjetividades produzidas por processos históricos, numa contemporaneidade norteada pela lógica capitalista neoliberal, baseada no consumo e na globalização da economia. Entende-se que o que somos não é um retrato de nossa história individual e privada e sim produzida a partir do momento sócio-histórico no qual estamos inseridos. Os processos de subjetivação produzem formas-subjetividade, instituindo modos que podem se estagnar, tornando-se herméticos.
O menino atendido no Programa representava uma forma hermética (adolescente em conflito com a lei)? Que forças instituintes podem colocar em análise os modos de vida dos adolescentes em conflito com a lei? Que novos modos de vida podem ser produzidos no encontro com profissionais ou programas? Os profissionais e programas das diversas áreas das políticas públicas têm potencializado novas formas de viver ou têm direcionado e instituído formas já prontas e esperadas? Que processos de subjetivação têm produzido o adolescente em conflito com a lei na contemporaneidade submersa no risco, na violência, no ideal de proteção? Estas são indagações que permearam minha vida profissional, a pesquisa de mestrado e este artigo. Não pretendo buscar verdades, e sim, colocar nossas práticas em análise (o que elas têm produzido) e me colocar o desafio de ousar sonhar com outras possibilidades.
Desse modo, este artigo objetiva colocar em análise as práticas presentes nos programas das políticas públicas destinadas ao ACL na tentativa de evidenciar processos em curso que produzam subjetividades criminosas9.
2 O que tem a dizer a Psicologia do Desenvolvimento?
O tempo, já que ao tempo e que ao destino
Se assemelham os dois: a imponderável
Sombra diurna e o curso irrevogável
Da água que prossegue o seu caminho.
(Jorge Borges)
Dentre as áreas de conhecimento da Psicologia, abordaremos a Psicologia do Desenvolvimento em nossas análises, como contraponto fundamental ao que propomos como campo ético-político de invenção de possíveis e às análises de nossa implicação, de nossas práticas presentes nos programas voltados para a infância e a adolescência.
Grande parte do conhecimento no campo da Psicologia do Desenvolvimento está embasada na concepção de homem como indivíduo naturalmente imerso num processo de desenvolvimento linear e determinado. Para esta abordagem, o tempo tem uma dimensão individual (cada indivíduo interpreta os acontecimentos de acordo com seu modo de pensar) e uma dimensão social (divisão em fases distintas e os comportamentos pertinentes a cada fase). Para os estudiosos do desenvolvimento é importante descrever as mudanças ao longo da vida dos indivíduos e determinar os fatores, os processos e os mecanismos responsáveis por tais mudanças (SALUNI, 1993).
Assim, o objeto de estudo do campo Desenvolvimentista na Psicologia são as mudanças no comportamento do indivíduo ao longo de sua vida, na sua ontogenia. Para tanto, partiu, a princípio, de dois eixos explicativos: fatores genéticos/inato/predisposições e fatores ambientais/aprendizagem. Posteriormente, adotou a concepção interacionista, com os fatores genéticos atuando em resposta ao ambiente e os fatores ambientais agindo sobre uma estrutura já existente (BEE, 1996).
O ser humano seria então capaz de agir/interagir com o meio, porém de acordo com um repertório (inato) de comportamentos e capacidades. Passaria por fases e/ou estágios, de sequência determinada, conforme descrevem Freud com a psicanálise, Piaget com a teoria cognitivo-desenvolvimental, Erikson, com seus estágios psicossociais, dentre outros.
Seja priorizando a programação genética, a aprendizagem, o insconsciente ou a adaptação do ser humano ao ambiente, a Psicologia do Desenvolvimento parte de uma mesma concepção de homem:
Pensa o desenvolvimento do homem de forma apriorística, isto é, concebe um percurso linear e evolutivo, um destino para o desenvolvimento das capacidades psíquicas e acompanha este trajeto, verificando se as condições sociais e ambientais dadas estão facilitando ou não o "desabrochar" de algo que é natural. Há um homem "pronto" dentro de cada um de nós, como uma semente que tem seu desenvolvimento já potencialmente determinado (COIMBRA, 2009, p. 27).
Os princípios dessa abordagem fundamentaram uma prática que visa à normalidade e trabalha com a ideia de formação da criança e do adolescente, de uma linearidade que deve acontecer para a criação de um adulto saudável e completo. A concepção de criança e de adolescente como seres em formação é balizadora do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD)8 e os programas das políticas de atenção à infância têm utilizado também esse discurso do em formação e em desenvolvimento, para justificar intervenções a fim de concretizarem o ideal de adulto sadio física, mental e moralmente.
O que se coloca no trabalho do psicólogo no campo da infância e da adolescência é a inevitável, ainda que mais do ponto de vista ético do que do técnico, análise dos processos de desenvolvimento tomados como universais, entendendo que a prática toca sempre aquilo que é local e situado, portanto historicamente construído, ainda que naturalizado pela psicologia e pelas práticas psis.
A adolescência, vista como um campo aberto, desse modo, em nome de um "sucesso" no desenvolvimento, é alvo de diversos programas e políticas públicas, criados para modelar um caminho restrito, o denominado correto.
Percebe-se que muitas vezes, em nome da formação e da proteção, os programas e as práticas dos profissionais que neles atuam, circunscrevem um caminho, pensado como sendo o "correto". A partir das análises de Foucault, pode-se problematizar tal caminho: a que ou a quem serve? É correto (ou o melhor) para quem? Assim, o que se busca neste trabalho é dar visibilidade à ocorrência dos desvios, pois sempre há escapes.
Foucault não trabalha com a noção de desenvolvimento exatamente porque essa está impregnada da ideia de progresso, de linearidade. O autor aposta na vida como um processo sempre de diferenciação – estética da existência, ou seja, a vida como uma obra de arte (FOUCAULT, 2004). Diferentemente do caminho finalista em que acreditam as teorias de desenvolvimento, pensa na crítica e na resistência como linhas de fuga para o determinismo e os processos de normalização.
3 O estado governamentalizado
Fica difícil continuar vendo crianças (quem ainda consegue?), pois tudo insiste para que vejamos criminosos em potencial (Bocco, 2009, p. 12).
Em Foucault (2003a, p. 281), vemos o questionamento sobre os problemas da população, que o autor remeteu aos problemas do governo, numa chamada história da governamentalidade. Como governar-se a si mesmo? Problematizava o autor, como governar uma população, uma família, as crianças? Analisando o que denominou de "artes de governar", que extrapola tratados, manuais e conselhos, Foucault trata da problemática de como ser governado e governar, do poder sobre o território e as pessoas.
Citando O Príncipe, de Maquiavel, obra que discorre sobre os princípios de governar, Foucault (2003a, p. 286) contrapõe o governo único (um governante) e a pluralidade das práticas de governo, como as exercidas pelo pai de família, o professor, um superior. Para o autor, existem três tipos de governo: "[...] o governo de si mesmo, referido à moral; a arte de governar uma família como se deve, referida à economia; enfim, a ciência de bem governar o Estado, referida à política" FOUCAULT, 2003a, p. 287).
Segundo o autor, para governar o Estado, é preciso saber governar a si próprio e a sua família, bens e domínio. Se um Estado é bem governado, a família, os pais e os indivíduos também serão bem governados, num movimento ascendente (eu, família, Estado) e descendente (Estado, família, propriedades, eu).
Governar um Estado será, então, lançar mão da economia, uma economia no nível do Estado todo, quer dizer, ter para com os habitantes, as riquezas, a conduta de todos e de cada um uma forma de vigilância, de controle, não menos atenta do que a do pai de família para com os familiares e seus bens (FOUCAULT, 2003a, p. 289).
Traçando o percurso histórico do poder soberano, período de submissão absoluta, passando à função do governo de gerir as relações entre homens e as coisas, passou-se da família para a população. Segundo o autor, houve a inversão da família: de modelo para instrumento (quando se quer algo da população, age-se sobre a família).
Mais do que governar as riquezas, o governo passa a ter como objetivo governar as populações, que se tornam sujeito das necessidades e objeto, sendo direcionadas quanto ao que fazer e das maneiras de como agir. Trata-se de uma gestão da população e dos indivíduos: "[...] geri-la igualmente em profundidade, em fineza, e no detalhe" (FOUCAULT, 2003a, p. 302).
Para Foucault (2003a), não ocorre uma substituição do poder soberano/sociedade de soberania para o disciplinar/sociedade de disciplina e depois para a sociedade de governo/gestão governamental; fala-se de uma coexistência que tem por foco e objetivo gerir os sujeitos e seus modos de vida, num "exercício de exploração da vida" (PASSOS; BARROS, 2004, p. 160).
Entendendo governo como técnicas e procedimentos que se destinam a dirigir a conduta dos homens, passamos do corpo/indivíduo, como objeto e sujeito das estratégias do poder disciplinar, para o corpo coletivo das populações, como sujeito e objeto dos mecanismos de regulação sobre os processos da vida. Gestão das formas de viver, da saúde, da segurança, da vida em seus mais ínfimos detalhes.
Assim, pode-se pensar nas práticas, instituições e saberes, que gerenciam a vida, produzindo formas de viver, formatando processos de subjetivação que conduzem subjetividades moldadas de acordo com os interesses do mundo capitalístico contemporâneo. Bem viver, saúde, medicalização, judicialização, individualização, máximas atuais que falam desta economia dos corpos. Assim como falam também dos mecanismos de segurança frente à violência disseminada e, mais especificamente, à violência associada à juventude pobre.
Os mecanismos que direcionam as modos de viver formatam práticas que produzem indivíduos dentre as suas estratégias. Produzem também políticas e modos de atuação com os sujeitos, principalmente os que são considerados "vulneráveis" ou em "risco".
4 Construindo uma metodologia
Entendendo que a investigação é sempre intervenção, produção de mundo, a investigação realizada produziu sentidos no encontro com jovens que passaram pelo Programa LAC/PSC, a partir da utilização da técnica de depoimentos de história de vida, pautada na metodologia da História Oral. A técnica de entrevista foi pensada como práticas discursivas em oposição ao discurso pronto. Segundo Spink (2004), as práticas discursivas são expressão de uma variedade de produções sociais (ações, seleções, escolhas, linguagens, contextos) e possibilitam entender a produção de sentidos no cotidiano (dar sentido aos eventos do cotidiano, numa prática social, que implica a linguagem). A autora afirma que a linguagem e qualquer fenômeno social podem ser vistos a partir das regularidades, porém propõe a entrevista como a ruptura com o habitual, uma vez que pode levar o entrevistado a refletir sobre algo nunca pensado, convocando-o a momentos de ressignificação, de produção de sentidos.
Guareschi et.al. (2007), em estudo sobre a produção de sentidos sobre as situações de vulnerabilidade social, ressalta o papel da linguagem na significação das experiências do cotidiano:
A produção de sentido e as práticas discursivas são relevantes na medida em que visibilizam a importância da linguagem no processo de interação social, visto que é por meio dela que as pessoas significam suas práticas (GUARESCHI et.al., 2007, p. 22).
A história oral foi utilizada a partir da concepção de Delgado (2006, p. 16): "[...] a história oral é um procedimento, um meio, um caminho para produção do conhecimento histórico". A autora concebe a história oral como uma forma de trazer "[...] o passado espelhado no presente e a reprodução da dinâmica da vida pessoal em conexão com processos coletivos" (DELGADO, 2006, p. 16). Os acontecimentos, os sentimentos, as emoções vividas, podem ser registrados através da história oral e serem ressignificadas pelas emoções do (no) presente.
O desafio se colocava na medida em que se buscava depoimentos de história de vida não na perspectiva de apenas ouvir e retratar um passado revivido no presente, mas de convocar a uma produção de sentidos, produzir, no encontro com o entrevistado, o acontecimento e a liberdade de criar e recriar sua história.
Ressalto que o lugar de pesquisador foi colocado em análise durante o processo de pesquisa, num processo permanente de análise da implicação. Dessa forma, o pesquisador não é pensado como ocupante do lugar de neutralidade, mas sim do espaço ético, presente nas relações estabelecidas entre pesquisador e entrevistado, vistos como integrantes da produção de conhecimentos, verdades e realidades múltiplas.
Assim, busquei também nas entrevistas romper com o discurso sobre o ACL que envolve a ideia de perigo, marginalidade, risco etc., para dar passagem aos acontecimentos da trajetória de vida dos jovens por meio das práticas discursivas. A proposta com as entrevistas foi de convocar o adolescente a buscar novos sentidos a serem habitados.
Propus-me ser guiada por Lobo (2004), que apresenta o sentido como sendo o acontecimento, o rompimento com as práticas estabelecidas, com as verdades institucionalizadas. Habitar o sentido é, por assim dizer, experimentar a passagem, a borda, os movimentos de diferenciação. Habitar o sentido para poder construir10 novos modos de vida, novas formas de estar, de sentir, de fazer...
Nesse sentido, pode-se afirmar que, no processo de investigação, cartografei um percurso vivido no Programa LAC/PSC, relatando alguns atendimentos realizados no Programa, refazendo o processo vivido com um adolescente, reescrevendo sua trajetória de vida.
A cartografia refere-se, como apontam Barros e Kastrup (2009), a uma pesquisa que busca acompanhar processos, desenhando um campo problemático. Assim, a investigação foi pensada como uma abertura ao encontro:
[...] o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para isso é preciso, num certo nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças. O desafio é evitar que predomine a busca de informação para que então o cartógrafo possa abrir-se ao encontro (grifo nosso, BARROS; KASTRUP, 2009, p. 57).
Fui então ao (re)encontro do adolescente (agora jovem) atendido no Programa LAC/PSC, a fim de, no diálogo, por meio da técnica de "trajetória de vida", cartografar suas formas de viver, ver e sentir o mundo. Mais do que relatar ou dar voz, buscar o acontecimento no encontro. Senti-me convocada, com o que Mairesse e Fonseca delineiam:
Contar uma história pode vir a ser um movimento de desdobramento, deixando vir o "de dentro" para "fora", libertando aquele que se refugia nos entres das envergaduras, agenciando no sujeito uma nova configuração do ser. Em sua pluralidade, infinitas vozes dialogam, disparando um novo processo, um devir de diferença; um sujeito mais livre enquanto em movimento de devir, enquanto em processo de singularização, em entrelaçamento, junção e disjunção de si com os outros (MAIRESSE; FONSECA, 2002, p. 113).
5 O menino dos olhos claros11
Quando o vi pela primeira vez, encantei-me por seus olhos claros, tão límpidos, tão cheios de vida... Ele veio até a mim não por vontade própria, foi encaminhado pela escola, que lhe apontou um caminho por perceber traços que seriam sua marca por toda a vida. Eu, a "Doutora do Posto de Saúde", não conseguia ver os traços, mas ainda assim, me coloquei a escutar e ver o "menino dos olhos claros".
O menino desenhava seus traços nos desenhos, seus próprios, não os que a escola tinha visto. A família também via as marcas, feitas pela vida: mãe "louca" falecida, pai ausente/desconhecido e outro pai/padastro falecido. Ambas, família e escola acreditavam que com esta história de vida o menino não "ia dar boa coisa", "há que ser trabalhado" – vigiado, "para que seu futuro não seja comprometido".
O menino não falava com palavras, falava com o corpo: "menino capoeira". Ginga daqui e dali, mostrando na ginga sua criancice, sua infância, sem preocupação, era só gingar e sorrir. O "menino capoeira" quando gingava era feliz, se deixava levar pela batida do atabaque e do berimbau, era livre e adorava a liberdade.
De repente, o menino não mais cabia na escola e quase não mais cabia na família. Fiquei muitos anos sem vê-lo. Depois fiquei sabendo que tinha virado "menino rua". Foi viver sua liberdade de outra forma, dançou e cantou outras músicas, se deixou levar por outros ritmos da vida.
Numa de suas danças na vida, virou "menino abrigo". Já não tinha mais liberdade, já não gingava do mesmo jeito. Sua cabeça pensava outros caminhos. Mas fez amigos com seus olhos ainda claros...
Sai e volta ao abrigo. Sai e volta à vida. Seus olhos claros se tornam às vezes turvos, talvez por abusar da vida e das drogas. Vira o "menino drogado", depois o "menino infrator". "Há que se cuidar dele (de novo), pois pode se tornar um "marginal", dizia a Justiça, que o encaminha para cumprir medida. Vira menino do LAC. Agora, do alto da sua adolescência, retorna à ginga, reencontra o "menino capoeira". E com tanta gente ao seu redor querendo ajudar, como pode? Ele se perde. Já não sabe quem é. Mas tenta buscar nos laços da família que menino pode ser agora...
De novo, tão rápido, a música muda e ele já não pode ser mais menino. Uma lei, algumas pessoas e lugares dizem que agora o menino é homem. Perdido, não pode mais brincar com outros meninos. Tem que aprender outro jogo. Tem que usar seu corpo de outra forma. Seus olhos, antes cheios de vida, se mostram embaçados e quase mortos. Torna-se o "homem dos olhos de vidro". Anda pela vida, brinca com ela, joga com o menino audaz que persiste em ainda viver dentro daquele corpo. Num frenético movimento, entra e sai; da rua, do abrigo, da vida.
O que queria o menino? O que poderia querer? O que quer o homem? O que pode querer?
Seu corpo, antes ágil, agora está cansado. Antes alto, agora está curvado. E o menino dos olhos claros virou o "homem preso". Seus olhos? De maneira misteriosa, estão vivos. Se olharmos com cuidado, veremos neles um lampejo de vida. Se olharmos com mais cuidado ainda, veremos que o menino ainda está lá, insiste em viver. Seu corpo está preso, mas seus olhos conseguem gingar! Ele esfrega na vida sua teimosia em continuar vivendo. Ousa viver, ousa sonhar, que abusado este menino!
Este é um pequeno recorte da história de vida de um dos adolescentes que acompanhei no Programa LAC/PSC. História da qual fiz (e faço ainda) parte. Vivenciei pedaços desta vida e junto com ele fui traçando sua história, tal como descrevem Mairesse e Fonseca (2002, p. 115): "As histórias escritas começam no desejo do analista cartógrafo, em seu estilo de construir e assim interferir nessas paisagens, de deixar-se envolver e emocionar como se envolvem os escritores com seus personagens". Para falar desse jovem, fizemos um desvio/retorno ao passado e conforme descrevem as autoras, recorremos à memória para descrever mais detalhadamente sua trajetória de vida, desde nosso primeiro encontro.
O discurso produz efeitos ao querer dizer outra coisa do que aquilo que se diz; exerce sua estratégia por um desvio pelo passado, recorrendo à memória como uma de suas táticas geradoras de sentido. [...] A memória fica à espreita, escondida nas sombras das práticas cotidianas, que a aciona como força de intervenção (MAIRESSE; FONSECA, 2002, p.114).
Meu primeiro contato com o menino tinha sido no atendimento psicológico/clínico na Unidade de Saúde em que atuava como psicóloga ("Doutora" do Posto de Saúde). Seu encaminhamento ocorrera devido a questões familiares e escolares. Na época tive contato ainda com seus familiares. Já aqui se configurou a demarcação de "um risco" (o que não me dei conta na época), pois era o cuidado preventivo com aquela criança que apontava para comportamentos indesejáveis, que tinha um histórico familiar "complicado" (a complicação era atribuída ao falecimento da mãe, à ausência do pai e provavelmente a outro fator importante: a pobreza) e que demandava atenção e cuidado, caso contrário seu futuro estaria comprometido.
Da vida familiar para as ruas. Depois de certo tempo, o menino passou a viver em um abrigo municipal para crianças e adolescentes "em risco" pessoal e social, sendo acompanhado pela equipe multidisciplinar do abrigo, com quem construiu fortes vínculos. Vínculos que permanecem fortes até hoje.
Ainda adolescente, cometeu ato infracional (fora do abrigo) e passou a ser acompanhado por vários profissionais: psicólogos, assistentes sociais, educadores, professores de oficinas das equipes do LAC/PSC e do abrigo. Vários vínculos foram construídos e desconstruídos.
Antes psicóloga dele na Unidade de Saúde e depois no Programa LAC/PSC. Quanta vida havia passado naquele intervalo... Uma vida na rua, o uso de drogas, o rompimento com a família.
O menino evadiu do abrigo com as equipes acompanhando o retorno e nova evasão, com o acréscimo do Conselho Tutelar. Em um dos retornos ocorreu uma situação de risco/ameaça e a equipe do abrigo chamou a polícia para intervenção. Ressalta-se que a equipe do abrigo se viu numa situação conflituosa: proteção do adolescente, proteção dos outros adolescentes do abrigo, da própria equipe. Proteção ou vigilância? Que lugar ocupar quando o adolescente abrigado coloca em risco outros abrigados?
Um momento vivido foi marcante para todos: uma vivência no abrigo, em que todos juntos (a equipe do LAC/PSC, alguns adolescentes que estavam cumprindo medida socioeducativa, a equipe do abrigo e adolescentes abrigados) fizemos uma oficina de capoeira e educação física. A interação entre todos foi importante para o adolescente, vivenciando a ligação entre abrigo e medida socioeducativa, sua realidade naquele momento de vida.
Outros dois marcos: a visita à unidade prisional onde se encontrava detido o irmão (sua referência mais marcante de família) e a maioridade – passagem cronológica de adolescente para adulto. Na passagem à "de maior"12, o então jovem vai para um abrigo para moradores de rua, pois não havia outro caminho possível para ele: como não era mais adolescente, não poderia permanecer no abrigo para crianças e adolescentes, a família não aceitava seu retorno e não possuía recursos para sua manutenção. Após várias discussões entre as equipes, ele vai para o atendimento para população de rua adulta (diurno) e para o abrigo destinado a este público (noturno), apesar da equipe desse abrigo não concordar, por acreditar que agravaria sua situação, principalmente em relação ao uso de drogas. Aqui então agregaram-se outros profissionais: psicólogo, assistente social e novos educadores. Após um tempo, ocorreu evasão/desligamento do abrigo por não respeitar as regras. Ressalto que mesmo adulto, a MSE do "menino dos olhos claros" (que naquele momento de vida havia virado "o homem dos olhos de vidro" devido às drogas) teve continuidade, com a manutenção do vínculo com o LAC/PSC.
Na vida na rua, uso abusivo de álcool, drogas e da própria vida. Muito foi vivido naquele período, inclusive quando ele quase acabou preso por denúncia da mãe de sua namorada (menor de idade). O que soube depois, pois ele não era mais acompanhado por nenhuma das equipes que se colocaram em seu caminho.
Perda de vínculos e finalmente a prisão por roubo (noticiada no jornal A Tribuna – um dos principais jornais periódicos impressos de Vitória/ES).
5.1 Unidade Prisional
Quando fui à sua procura, encontrei-o em uma unidade prisional, onde fui entrevistá-lo. Para estar com ele precisei de autorização da Secretaria de Justiça (Sejus). A liberação foi um processo difícil, que somente teve êxito diante da formação de uma rede de relacionamentos. No mundo contemporâneo, onde ainda temos o foco na prisão como método punitivo, com o investimento em tecnologias e estabelecimentos "seguros" e eficazes, o preso é responsabilidade do Estado, tendo que ser alimentado, vestido e "cuidado" por ele. Na verdade, acreditamos que ele passa a ser propriedade do Estado, como num correlato do poder soberano, descrito por Foucault, em que seu corpo (e sua alma) passa a pertencer a este poder. As vestes dos presos são iguais não somente para destituir de uma identidade e criar outra ("o preso"), mas também para demarcar uma posse. Essa é a estratégia de controle desse corpo/preso, controle da violência, pois estando o preso em posse (é propriedade) do Estado, do sistema penal, este pode dispor (ou não dispor) daquele corpo/sujeito da forma que quiser. Enfim, a Sejus "quis" e fui à entrevista.
Quando peguei a autorização da Sejus e fui ao seu encontro, buscava ouvir sua história – a qual eu já tinha ouvido e vivido parte dela junto a ele. Eu fazia parte daquela história e queria torná-la visível.
É necessário descrever o cenário da prisão em que estive. Muros altos, assépticos, pois se trata de uma unidade nova de detenção provisória. Vigilância, guaritas, uma construção imponente que isola o de fora e o de dentro.
Fui recebida pelo diretor da unidade prisional, de quem percebi certa estranheza e curiosidade pelo meu objetivo e presença. A assistente social que foi designada a me acompanhar se mostrou disponível, aberta e solícita, porém também demonstrava certa dose de estranheza com a minha presença, o que se dissipou após alguns bons momentos de troca e conversa.
Aí o encontro: a assistente social se retira para enfim chamar o "menino dos olhos claros" para a entrevista.
Depois de certo tempo, fui conduzida pela profissional a um auditório onde ele estava nos aguardando sentado numa cadeira, algemado e acompanhado por dois agentes penitenciários.
Pairava um grande silêncio no ar, que somente foi quebrado pelo contato físico entre nós – um aperto de mão. Neste momento seus olhos claros se iluminaram e um esboço tímido de um sorriso tomou conta de seu rosto – e do meu. Arrisco-me a dizer que tive um sentimento de cumplicidade, algo que pareceu ir além de um reconhecimento mútuo.
A assistente social se retirou do auditório, foi quando solicitei aos agentes que nos deixassem a sós e que suas algemas fossem retiradas. A primeira solicitação foi atendida, com os agentes se colocando fora da sala, com a porta aberta, a uma distância segura, porém garantindo-nos privacidade. A segunda solicitação, quanto às algemas, não pode ser atendida, o que para minha constatação (não tão agradável), o "menino dos olhos claros" diz que "não tinha importância, pois já estava acostumado com elas".
Começamos a conversar e um dos primeiros assuntos de nossa conversa foi o rap que ele havia escrito tempos atrás. Naquele momento de conversa e lembrança, ele começou a cantá-lo novamente:
Rap
Vou contar uma história que eu guardei na minha mente
A vida na cadeia não é vida de gente
Cumprimenta o seu parceiro guardado no coração
Tratado que nem cachorro e preso que nem leão
A comida era sem sal, o suco sem açúcar
O pão sem manteiga e a comarca sem figura
Eu acendo um cigarro, vejo o dia amanhecer
Seja em qualquer cadeia o preso não tem lazer
O banho de sol é muito curto
O boi maior horror,
E quando a Choque invade é um filme de terror
Seja humilde, pense bem,
Se liga autoridade, o preso é gente também...
Este rap foi cantado várias vezes pelo adolescente quando ainda cumpria medida socioeducativa no Programa LAC/PSC e novamente cantado, naquele momento, pelo jovem detento, no início da entrevista.
Quando cantava, há alguns anos, se tratava de uma profecia (autorealizadora)? De uma certeza, de um destino traçado? No momento em que o ouvia sua história voltou como um filme em minha mente... Passamos a lembrá-la e durante a entrevista falamos sobre os abrigos, os profissionais, MSE, família, drogas, vida na rua, na prisão e futuro. Lembramos de fatos, pessoas e momentos marcantes.
Trechos dessa entrevista serão relatados como parte da composição das análises de sua trajetória de vida. Pretendo colocar em análise alguns pontos desta trajetória, baseada em algumas questões norteadoras: passagem por vários programas de políticas públicas em diferentes áreas, como assistência social, saúde e segurança; atuação de vários profissionais (psicólogos, educadores, assistentes sociais); formação de rede e a forma que esta atua; a questão da invisibilidade/busca de reconhecimento. E por fim, o sentimento de que parece que "nada deu certo", ou melhor, ele não deu certo. O insucesso se justificava na falta de contrapartida dele, como se ele tivesse que ser forte o suficiente ou mesmo algo mais, e aproveitar as "oportunidades" que os programas e os profissionais estavam lhe oferecendo e, assim, mudar de vida (estudar, trabalhar, ter família), o que não ocorreu, já que estava preso, "cumprindo seu destino".
A partir da trajetória de vida do "menino dos olhos claros", contada por meio dos encontros/atendimentos nos vários programas, na convivência com ele e no último encontro na prisão, coloco em análise o que as práticas presentes nos programas das políticas públicas focadas na infância e na adolescência têm produzido. De que forma o ideal de proteção, a ideia de criança e adolescente como "ser em formação", "em desenvolvimento" e visto como sujeito de direitos tem norteado (e justificado) práticas hegemônicas e o que elas têm produzido?
Acredito que as práticas desenvolvidas nos programas que atuam com a infância e adolescência, atravessadas pela demarcação de risco, têm produzido subjetividades criminosas. Não quero dizer que somente essas práticas produzem tais subjetividades, nem tampouco que existem somente essas práticas nos programas, mas parece que as práticas hegemônicas nos programas são as de criminalização (atravessadas pelo risco), o que pode ser explicado a partir da conjuntura em que vivemos: violência, medo, insegurança, conforme trata Wacquant (2001) ao falar do Estado Penal.
O ideal de proteção da infância e formação do futuro adulto "sadio" demarca práticas que circunscrevem subjetividades criminosas, que se atualizam nas crianças pobres abrigadas ou não, nos ACL, nos jovens presos. Criminalização da pobreza14, da juventude, da vida. Punição e controle da virtualidade, que apontam para um processo de judicialização da vida, numa tentativa de administrar o risco, o perigo, o medo e a insegurança. O Estado objetivando punir e controlar a violência pela via de políticas públicas de proteção e assistência à infância pobre...
Quando a escola enviou o "menino dos olhos claros" para atendimento psicológico, demarcava um risco para o futuro, pois com seu histórico de vida, "não daria boa coisa", teria/seria um problema. Quando um profissional não diz, mas em sua prática reforça que o menino "não vai dar pra ser alguém", é uma prática que produz subjetividade criminosa. Assim como a justificativa na falta de contrapartida do menino, privatizando questões sociais e econômicas, com um "Fizemos tudo por ele, mas ele deu errado".
"O menino dos olhos claros", na nossa concepção, não deu errado, ele cumpriu exatamente o que se esperava dele, o que lhe foi possível. Assim, deu muito certo...
Bocco (2009) aborda a questão de vida determinada pelo/escolha do crime ao relatar que para os técnicos das unidades de internação e as pessoas em geral " [...] não havia possibilidade de mudança para aqueles sujeitos, pois já tinham escolhido "o caminho do crime" (sic), esse seria seu "projeto de vida" (sic) e terminariam invariavelmente, presos" (BOCCO, 2009, p. 18).
Quando a equipe do LAC/PSC falava com os meninos e meninas acerca da importância de não reincidirem, apoiando-se no fato de que com a maioridade não seria mais internação e sim prisão, não estava reforçando a ideia de destino traçado, do caminho do crime como uma realidade "certa" para eles? Um alerta preocupado devido à possibilidade de trajetórias circunscritas ao mundo da criminalidade ecoa aqui com práticas pretensamente de cuidado que reforçam subjetividades criminosas...
Em relação à atuação em rede, verificou-se no caso do "menino dos olhos claros" que foram feitos vários estudos de caso, principalmente em relação à maioridade e a impossibilidade de permanência no abrigo para crianças e adolescentes.
"Só devo sair no final do ano. Aqui não é três aninhos não. Ninguém, por mais que alguém fale que tá gostando, não tá não. Cadeia é só secura", disse na entrevista, em referência à internação para adolescentes em conflito com a lei. Aponta para a constatação da diferença no tratamento conforme a idade. Parece que apesar da intenção das equipes em trabalhar a autonomia dos adolescentes institucionalizados, a maioridade traz outros sentidos para os ACL, sentidos "na pele". "Depois já de maior queria conversar, mas não podia mais...", diz, demonstrando ter tido vontade de procurar o Programa LAC/PSC, mas acreditava que não podia mais, pois já era adulto. Relata também que não retornou ao abrigo para moradores de rua porque não tinha alvará. Sem documento, mas com memória.
Além dos estudos de caso, foi feito o Plano Individual de Atendimento (PIA)15 no LAC/PSC e, junto aos outros profissionais que atuavam diretamente com ele ou que formavam a rede, foram traçados vários encaminhamentos possíveis ou ao menos planejamentos (tratamento por uso de drogas, cursos profissionalizantes etc.).
Na entrevista na prisão indaguei, em relação aos programas e profissionais que o acompanharam: "Os lugares te ajudaram em que e não ajudaram em que?"
A resposta dele: "Falar com o tio, porque ele tava só o ódio". Com isso, ele sinalizava a importância da atuação dos profissionais em relação ao resgate de vínculos com a família, no caso, com o tio materno, com quem sempre manteve uma relação conturbada, de proximidade e ao mesmo tempo de conflitos devido à sua inserção nas drogas e vida na rua.
Pode-se indagar: e em relação a outros aspectos de sua vida? De que forma os programas teriam interferido? Os vários profissionais conseguiram atuar em conexão, já que se tratava de um mesmo menino? Foi formada uma rede e esta teve efetiva atuação? Será que houve erro/falta no primeiro contato na unidade de saúde? E a proteção preconizada no ECRIAD? Efetivou-se para o menino dos olhos claros ou serviu a outros propósitos? E as políticas públicas para a infância e juventude em/de risco, de que forma atuaram? Defendendo-o ou defendendo a sociedade dele, quando o colocavam em abrigo e em MSE?
Torna-se necessário falar um pouco sobre rede, pois se tratava de um menino que passou por vários programas, de várias áreas da política pública e esses programas deveriam ter sua atuação conectada entre si.
Tomarei emprestado o conceito de rede conforme descreve o Ministério da Saúde quanto à Política Nacional de Humanização de Atenção e Gestão do SUS e Redes de Proteção de Saúde: "[...] um conjunto de serviços e equipamentos de uma área da política pública num determinado território geográfico" (BRASIL, 2009, p. 8). De acordo com as orientações do Ministério da Saúde, existem as redes especializadas (homogêneas), compostas por serviços semelhantes e redes transversais (heterogêneas), composta pelo entrelaçamento de diferentes serviços, de diversas áreas. O desafio de trabalhar em rede seria o de compor "[...] projetos comuns na diferença, construir possibilidades para além dos limites de território, de saberes, e práticas estanques" (BRASIL, 2009, p. 17), numa gestão em que não há hierarquia de poder, supondo conexão das diferenças.
Muito se fala sobre atuação em rede nas políticas públicas e, ao longo dos anos, o psicólogo teve que aprender a deixar seu lugar de certo isolamento, justificado muitas vezes pelo sigilo ético e trabalhar em rede nos espaços em que atuava. Aprendemos, assim, a sair do lugar do psicólogo, do pedestal de especialista de segredos, da verdade, e atuar em equipe. Esta mudança aconteceu em parte porque perdemos a clínica como o principal campo de atuação e nos vimos como parte de equipes na assistência social, na saúde e em outros espaços, com demandas diversas da tradicional psicoterapia intimista.
Formação de rede, lugar de psi. E o lugar de pesquisadora? Afirmação de um lugar de intervenção, que recusa a obtenção de dados simples, mas que busca algo no encontro. Afirmar possibilidades, caminhos possíveis no futuro, resgatar e construir novas redes. Mas e as informações trocadas? E a ética? Na verdade nada além do já dito... O lugar de profissional/atuação de psi do Programa LAC/PSC comparece na articulação de ações conjuntas e tentativas de resgatar ações e relações do menino entrevistado com as instituições pelas quais passou. Articular políticas públicas e propor ações focadas em dados de realidade, não é a "ponta" que aponta ações? Estudos de caso que geram ações.
No caso do "menino dos olhos claros", sua entrevista na prisão provocou a (re)articulação da rede de atendimento, a partir de demandas observadas no momento que o aguardava: saída da unidade prisional. Assim, após a entrevista com o menino, algumas questões foram formuladas pelas profissionais em questão: como reinserir, se a sociedade é preconceituosa, segregadora? Como, "se até para o ônibus é necessário mostrar alvará", indagava a assistente social da prisão? A que instituições encaminhar? A quem pertence o egresso?
Por isso articular redes... Antes, durante e depois dos abrigamentos, internações e prisões.
"Meus papos mudaram, tinha papo de criança, era muito moleque. Quando era de menor não pensava em mudar minha vida, construir minha família, ir para Igreja".
Na prática, na hora de concretizar as ações propostas na troca com a assistente social, ainda no dia da entrevista na unidade prisional, percebi os "furos" da rede. Como se a única forma de estar inserida numa rede, de ser legitimada e legitimar as ações fosse fazendo parte de algum estabelecimento/programa/política.
Passos e Barros (2004) abordam a dimensão das redes no contemporâneo. Para os autores, "Tal noção de rede ganha na atualidade um sentido ambíguo, já que comporta esperança e perigo ou, em outras palavras, comporta um funcionamento quente e um funcionamento frio" (PASSOS; BARROS, 2004, p. 168). A rede fria seria composta de "cima para baixo", direcionada por um centro, que no mundo globalizado neoliberal, produz o que os autores chamaram de efeitos de homogeneização e de equivalência. A rede quente produz efeitos de diferenciação e, na experiência do coletivo, do público, busca a "[...] produção de novas formas de existência que resistem às formas de equalização ou de serialização próprias do capitalismo" (PASSOS; BARROS, 2004, p. 169). Assim, a dimensão ético-política da atuação do psicólogo (e dos demais profissionais), deve atuar dentro das redes quentes produtoras da diferença.
O lugar de pesquisadora que eu ocupava, naquela época, parecia não legitimar ações em rede. Os profissionais procurados (após a entrevista na prisão tentei alguns contatos com profissionais de alguns programas, na tentativa de articular possibilidades para o "menino dos olhos verdes", mas tive muitos obstáculos, não consegui aquecer a rede, pois todos demandavam saber a qual "instituição" eu pertencia, não aceitando o fato de ser somente para pesquisa) indagavam-me sempre: "Por que você está tentando ajudar essa pessoa? É pessoal?" Ou seja, ou fazia parte de uma rede institucionalizada/fria ou agia por interesse pessoal, filantrópico e protetivo. Estava, portanto, no limite de uma rede morna, um limbo, nem quente, nem fria...
Apesar de não ter conseguido aquecer a rede, a escuta no encontro continuava a gerar análises...
O "menino dos olhos claros" falava de roubar para ter, falava da família, como falta sim, mas de uma falta que dificultava seu reconhecimento como pessoa, com história, com ações e emoções. Não se via como ahistórico: tinha uma história, tinha família - talvez idealizada, mas não temos todos nós construções ideais de nossas famílias?
"Eu penso muito na minha família, aí faço doideira. Se minha mãe tivesse viva eu não estava nisso aqui não. Depois que minha mãe faleceu eu tive uma passagem atrás da outra. [...] Meu irmão nunca tinha matado ninguém..."
"Fiz 20 agora. Meu irmão fez em agosto, você lembra?".
"Roubava mais pela falta da mãe do que para usar drogas".
Estranhando, indagou-me: "Você pensou assim, hoje vou ver lá o "menino dos olhos claros"?"
Demonstrava um misto de estranheza, satisfação e reconhecimento quando lhe contei da tramitação e da dificuldade para vê-lo, talvez mais pelo fato de que alguém tivesse o desejo de falar com ele, já que não recebia visita de familiares. Entendo que o "menino dos olhos claros" falava do afeto e da falta da família, que deve ser interpretada não somente pelo viés da falta, da negação, da explicação causal da inserção no crime, mas sim como Peralva (2000) e Oliveira (2001) ressaltam, de busca por reconhecimento. O menino buscava a família como lugar de afeto e de sentido, buscava habitar o sentido de "ser gente".
As instituições/práticas hegemônicas produziram o "não-sentido" e assim o não-reconhecimento, pois atualizaram o sentimento de que ele "nada era, não era gente". As práticas não deram visibilidade ao menino que é gente, que sofre, que ri, que vive, que tem memória, que tem desejos, que joga capoeira, que ama...
Tavares et.al. (2011b) relatam uma experiência que ilustra bem a visão das pessoas sobre esses "meninos". As autoras descrevem uma cena ocorrida quando as alunas/pesquisadoras se dirigiam ao projeto social no qual faziam a pesquisa. O seguinte diálogo se travou entre o cobrador do ônibus, no qual se dirigiam ao local do projeto, e as alunas:
- "Vocês não são daqui..."
- "Não. Por quê?" – Perguntamos.
- "Vocês são gente!" Responde o cobrador.
Da fala do cobrador, segundo as autoras, "[...] percebe-se que da pobreza e dos pobres não se espera certo nível de civilidade e de educação" (TAVARES et.al., 2011b, p. 15). Assim, para as autoras, os meninos do projeto social pesquisado, os meninos pobres, e acrescentamos, o "menino dos olhos verdes", não são vistos como gente, ou são vistos como gente inferior, devendo ser "salvos" de seu destino: a criminalidade.
E o "menino dos olhos verdes" queria merecer viver, queria ser gente. Para tanto, buscava reconhecimento na família, ou melhor, no afeto da família como proximidade subjetividade/relacional. Buscava habitar o sentido "ser gente".
5.1.1 Invisibilidade/morte
Retornando à entrevista, quando me encaminhava ao presídio, uma lembrança me veio à mente: quando "perdemos" o primeiro adolescente (assassinado), a equipe ficou muito mobilizada e ouvimos, como que ressoando nos cantos do Programa, "que era esperado", algo que fazia parte daquele público, deveríamos esperar esse "fenômeno" - a morte, como algo esperado. Naturalizar a morte, por quê? Porque aqueles meninos e meninas eram invisíveis? Eram somente números, estatísticas? Recordo este episódio porque em relação ao "menino dos olhos claros" e a todos os meninos e meninas atendidos no Programa, não os considerava como números, casos ou qualquer outra denominação generalista. Ou seja, ele não é somente mais um que hoje adulto, está preso, não é mero dado estatístico, ele "é gente".
Quando fui à Unidade Prisional, não sabia o que me esperava, mas sabia que havia conhecido uma pessoa, ainda que nos últimos contatos, já sem o brilho nos olhos, mas uma vida. Não acredito que fazendo este movimento estou romantizando uma imagem, mas sim resgatando o que há de humano, de pulsante numa vida. Recuso-me a ver a morte e a prisão como destino natural somente pela inserção na criminalidade.
Quando estava a caminho da última entrevista me questionava: O que me espera? Ainda uma vida? Que vida seria possível num presídio? Há ainda uma vida, ainda que enclausurada? Ele realizou seu sonho de encontrar o irmão, único elo familiar, vivendo a vida como ele? Acabou aí? Está preso...
Na entrevista com o menino, ao tentar falar da vida, indaguei: "O que é importante que as pessoas saibam de você?"
"Pode falar, pode explicar tudo. Saber que eu vou mudar de vida, né véio. Eu tô percebendo que parada é essa. Que esta vida não dá futuro não. Que que eu tô vendo da rua aqui? Não to vendo nada daqui não. Botei isso na cabeça, cadeia não é para mim mais não. Seis passagens já".
Para além das análises habituais dos discursos dos presos, quando sempre se analisa que todos falam em mudar de vida, sair do crime (não é à toa que a assistente social me indaga se vi sinceridade na fala dele acerca de mudança), acredito que sair da fala derrotista e pensar num futuro possível, ainda que difícil, é uma produção de sentidos, é sair do lugar que lhe cabe como ex-ACL, egresso de detenção e preso. Acredito e aposto na vida, não exatamente na "mudança de vida", termo que se tornou pejorativo e sinônimo de ressocialização, mas em novas formas de vida, desafiadoras do natural, do dado, do instituído. Acredito naquele que ousa se desafiar e desafiar o que o mundo lhe dá e ousa querer mais!
5.1.2 Um paradoxo vivido
Há alguns anos jamais pensaríamos, nós psicólogos e profissionais afins, que apoiaríamos a visão de que nem sempre a família representa o melhor caminho para uma criança ou adolescente. Em alguns casos chegamos a apoiar (em casos extremos) a destituição do poder familiar. Da mesma forma, nunca imaginaria pensar que um jovem poderia estar "melhor" preso do que em liberdade. Arrisco-me a pensar assim, por mais difícil e paradoxal que seja fazer essa análise, porque no caso do jovem descrito, eu já tinha visto seus olhos mortos, sem vida, consumidos pela droga, se esvaindo. Na entrevista na prisão, ou ao menos no encontro que tivemos, pude ver lampejos de vida novamente... Pude ver pensamentos encadeados e sonhos e desejos... Que loucura! Como pensar assim? Que vida é essa que enclausurada em si mesma se torna possível?
Assim, ainda evocando a vida, antes de finalizar a entrevista, ele disse: "Capoeira é massa!", e lembramos (juntos) que ele sabe jogar capoeira muito bem, tendo feito anos de treinamento. Naquele momento disse a ele que com certeza não havia esquecido, que estava tudo gravado em sua mente e em seu corpo. Quando perguntei o que mais estava gravado em sua mente, ele respondeu: "Só derrota..."
Então evoquei outras lembranças, como as aulas no Programa LAC/PSC, no abrigo, os encontros, os atendimentos e conversas. Buscava trazer lembranças e fios onde pudesse refazer uma trama, como num fio muito fino, traçado a quatro mãos... O abrigo, a educadora, o albergue, as assistentes sociais, as psicólogas, os amigos, a família... Tentativa de buscar um caminho para onde pudesse ir quando saísse. Tentativa de construir um possível futuro. Outros possíveis. Não esperar a família ideal, idealizada, imagem, mas construir a sua família, a sua história.
5.1.3 Pode um encontro potencializar uma vida?
"Você veio de tão longe só para me ver? Da próxima vez você não vai precisar vir tão longe não, vou sair dessa".
E finalizou: "Vou pensar como se fosse minha mãe aqui na minha frente agora".
E a mãe aqui, cheia de água nos olhos, viu o filho ser levado e a porta ser trancada.
Lugar de mãe, acolhimento, proximidade, lembranças boas, pessoa que quer bem... Vínculo, encontro, bom encontro. Sentido, produzido no encontro. Mãe, não da forma naturalizada pela nossa cultura (mãe "natural"), mãezona, protetora.
Aqui a mãe fala do lugar de proximidade, do cuidado, do afeto, a que acolhe e se preocupa, fala de uma convocação a sair do lugar de especialista, de psi neutra, de pesquisadora e habitar outros sentidos. Fala de um reconhecimento como gente.
Aqui a produção de sentidos... Aqui o encontro...
5.1.4 Então, o que pensar?
É claro que ainda me vejo a pensar onde eu e a equipe "falhamos", sou ainda capturada pelo atravessamento psi e o "dar certo/errado", mas acredito que seja uma armadilha ir à caça de culpados. Há que se colocar em análise que práticas permearam a vida do "menino dos olhos claros", que moldaram esta vida, que não encontraram caminhos para potencializar outros modos de vida, que não agenciaram com ele, sem culpar somente sua falta de contrapartida.
Após estar com ele na prisão e retomando sua trajetória de vida, é possível ver sua potência na ousadia de viver, de impor sua existência, se negando a aceitar as forças que querem imprimir sua invisibilidade. "[...] Os jovens são invisíveis no chão da escola, em seus movimentos instituintes, naquilo que tem de força, resistência, potência de vida e expressão de singularidades" (CORDEIRO, 2009, p. 148).
Falo aqui de invisibilidade como Lobo (2008, p. 17) se refere aos infames históricos, deficientes, negros escravos, loucos:
[...] sem notoriedade, obscuras como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo sem deixar rastro – nenhuma nota de fama, nenhum feito de glória, nenhuma marca de nascimento, apenas o infortúnio de vidas cinzentas para a história e que se desvanecem nos registros porque ninguém as considera relevantes para serem trazidas à luz. [...] Apenas algumas vidas em meio a uma multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor. Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixões alvos ou não da violência instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as vigiasse, quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento ou as manifestações de alegria (grifo nosso, LOBO, 2008, p. 17).
O ACL é um infame histórico e atualizado? Acreditamos que o "menino dos olhos claros" e muitos ACL podem ser vistos como infames. Para Foucault (2003b, p. 210), é no encontro com o poder que surge essas existências infames, a fim de escapar das armadilhas das práticas de poder. "Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou ao menos apagá-las" (FOUCAULT, 2003b, p. 210). Porém o menino não se deixa aniquilar ou apagar, resiste, ousa continuar vivendo, circulando no mundo, ainda sonhando, buscando uma existência...
Há muito neste menino, há muito de resistência! Para Sousa Filho (2008), seguindo o pensamento de Foucault, a resistência se dá onde há poder e este reage onde há liberdade, tomada como experiência, invenção do sujeito sobre seu destino. Segundo o autor, "[...] o poder, longe de impedir a liberdade, excita-a" (SOUSA FILHO, 2008, p. 17), o poder (com suas táticas) não impede as práticas de liberdade, apenas limita-as. Podemos conceber o poder como positivo, na medida em que produz, fabrica e utiliza estratégias, táticas que circunscrevem as subjetividades, mas também porque há sempre algo que escapa, e nas linhas de fuga, o infame "meninos dos olhos verdes", resiste às práticas dominantes que tentam impor invisibilidade à sua existência, à sua potência de vida, ainda que sob formas que cerceiam sua liberdade no corpo.
6 Compondo linhas de fuga
"As linhas de fuga visam a desterritorialização escapando à conservação do poder, buscando destruir um certo conformismo e estagnação" (OLIVEIRA; FONSECA, 2007, p. 135). Domingues aproxima linhas de fuga de fissura, resistência das multiplicidades de forças que percorrem uma situação (Deleuze, apud Domingues, 2010, p. 24).
Não pretendo, como aponta Mairesse e Fonseca (2002), corroborar hipóteses e construir verdades. Não desejo comprovar pontos, como falar que, de fato, o ACL busca o reconhecimento, que a família é responsável pelo que tem acontecido com os adolescentes...
Sim, acredito que temos, todos nós, em nossas reproduções e formas de viver no mundo, contribuído para a disseminação do sentimento de insegurança e medo e do distanciamento subjetivo que dá espaço à violência, vista como não-sentido a habitar. Acredito também que as práticas hegemônicas nas políticas que envolvem a infância e a adolescência têm produzido subjetividades criminosas.
O que fazer com essas análises? Se respondo à questão dos processos de subjetivação dos ACL, estarei relatando uma lista de condições e generalizando/universalizando. Se por outro lado, respondo com individualizações (cada caso é único, com razões intrínsecas), corroboro com o movimento de privatizar as questões sociais, colocando no indivíduo a explicação da violência e do ato infracional.
Parece ser mais interessante apontar caminhos, tornar possíveis suas vidas (dos ACL) e histórias e desconstruir a possibilidade de uma única história, com um único final, quase sempre infeliz.
Hoje, não mais exercendo a função de psicóloga no Programa LAC/PSC, quando encontro casualmente, na rua, no cotidiano, com alguns dos adolescentes que atendi, vejo que eles fazem questão de "ver e serem vistos", falam de suas vidas: "Estou estudando, trabalhando..." Enfim, é de outro lugar que falam e de outro lugar que ouço. É, nesse sentido, que busquei o novo encontro com esses meninos, aberta a novas experiências e a habitar outros sentidos...
Durante o percurso me indagava: Que direito tenho eu de convocar esses meninos e meninas? Buscava produzir o acontecimento no encontro, mas acho que o acontecimento deu-se em mim (e talvez não neles).
As entrevistas favoreceram o olhar face to face, tornando visíveis sentidos opacos e a entrada na memória viva, abrindo o campo do sensível a experiências outras, aos acontecimentos. Falo aqui de acontecimento como expressão das misturas dos corpos que produz efeitos. A produção de sentidos, dessa forma, é a linguagem em ação que abre passagem a tal expressão, aos acontecimentos. Segundo Lobo (2004), o acontecimento: "É sempre algo que nos espera no que acontece, numa relação de corpos, e por isso se efetua em nós" (LOBO, 2004, p. 203). Para a autora, o acontecimento se instala no que acontece. O adolescente pode atualizar a forma "conflito com a lei" e habitar o sentido ACL, tornar-se o perigo, o risco, o marginal, e se resignar com esse sentido, atuando no ressentimento e estagnando-se nessa forma/fôrma ou pode buscar outros modos de existência, escapar da normatividade das formas dadas, prontas e habitar outros e novos sentidos. Buscar o acontecimento, o movimento, a ruptura do que está dado como pronto. Sair do caminho circunscrito e buscar outras composições.
A produção de risco, da forma como é vivida hoje, como uma estratégia de vigilância e controle da virtualidade, busca negar o acontecimento. A tentativa de controlar os riscos vai ao encontro do que é vivido como seguro, ainda que leve a mortificações. O adolescente pode atualizar o conflito com a lei, a internação, mas pode também "dar certo", ser potência. Parece que o ato infracional, o tráfico, as drogas, falam do território habitado pelos jovens, mas o que pode um adolescente? Que outros sentidos ele pode habitar?
Uma liberdade que é a expressão da potência dos corpos para querer o acontecimento. [...] Querer não o que acontece aos corpos, porque o sentido, o acontecimento, é um efeito e como tal não é o que acontece aos corpos que se misturam, se separam ou se decompõem (LOBO, 2004, p.204).
Ser livre para querer o acontecimento, as rupturas, no que possa vir e não as formas prontas. Lobo (2004) fala de uma "[...] política de expansão das potências dos corpos, [...] que nada tem a dizer sobre o que os nossos corpos são, mas que afirmam o poder de se tornarem livres, soberanos e belos" (LOBO, 2004, p. 204).
Um caminho que parece ser também importante é insistir na desconstrução da associação de juventude-violência, como Malvasi e Trassi denunciam,
[...] considerando que ela foi produzida e é sustentada historicamente para encobrir aspectos problemáticos e constitutivos das dificuldades da convivência humana e de um modo de organização econômica e política produtora de desigualdades e intolerante com as diferenças (MALVASI; TRASSI, 2010, p. 81).
Para os autores, é fundamental pensar em práticas (inclusive da psicologia) comprometidas eticamente com a juventude, que possam reconhecer suas manifestações no contemporâneo e assim construir formas de expressão fora do âmbito da violência destrutiva.
Nas indagações de Bocco: "[...] que práticas são possíveis, junto aos jovens, para criar outras formas de existência que subvertam a referência identitária do "criminoso" como única permitida e reconhecida?" (BOCCO, 2009, p. 20).
Acredito que temos muito a construir em relação a uma "prática encarnada", ético-política. Aposto na prática refletida, na prática de liberdade que, a cada novo passo, coloca em análise suas implicações. Insisto numa atuação compromissada, afetiva, responsável no sentido de se colocar no lugar do guardião da vida. Esta atuação não é uma utopia! Ela se faz, como afirma Bocco (2009), quando acreditamos num "modo de fazer psicologia que se afirma na potência do encontro e na aliança com os jovens como estratégia para subverter as formas de subjetivação capitalística. [...] alia a clínica à política, possibilitando a criação de novos territórios existenciais tanto para os jovens como para os que trabalham com eles" (BOCCO, 2009, p. 33).
Finalizo, ou melhor, fico por aqui com a "subjetividade à flor da pele", como sugere Domingues (2010, p. 27):
À flor da pele. Subjetivações à flor da pele. Subjetivações no limiar. Barcos sem porto, sem rumo, sem vela. Bichos soltos, cães sem donos, cavalos sem celas que não sabem para onde ir ou o que fazer. Toda a pele percorrida por sensações de apreensão e incerteza. Padecemos a dimensão do acontecimento e estamos esfacelados. É preciso forjar portos, bóias, ancoradouros, mas no sentido da criação de planos de consistência, de territórios existenciais que se engendram na experimentação do mundo. O homem precisa acreditar no liame com o mundo, na ligação com o mundo, nas conexões com a vida, [...] Trata-se de tomar posse do mundo, ou melhor, de inventar mundos (grifo nosso, DOMINGUES, 2010, p. 27).
Estar "à flor da pele" faz doer a pele, os ossos, o corpo todo. Dor que faz sofrer, faz pensar o quão impotentes nós todos somos diante dos discursos de violência, medo, insegurança, risco. Ficamos cansados da luta pela paz, pelas diferenças... Mas também nos faz sentir na pele a abertura a mudanças, a criação de novos sentidos. No movimento de romper, nos vemos novamente potentes a buscar os acontecimentos, as intensidades da vida.
Referências
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Endereço para correspondência
Luziane de Assis Ruela Siqueira
Universidade Federal do Espírito Santo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional
Av. Fernando Ferrari, n. 514, Goiabeiras, CEP 29075-910, Vitória/ES, Brasil
Endereço eletrônico: luzianesiq@gmail.com
Gilead Marchezi Tavares
Universidade Federal do Espírito Santo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional
Av. Fernando Ferrari, n. 514, Goiabeiras, CEP 29075-910, Vitória/ES, Brasil
Endereço eletrônico: gilead.dindin@ig.com.br
Recebido em: 21/03/2012
Reformulado em: 16/04/2013
Aceito para publicação em: 19/06/2013
Acompanhamento do processo editorial: Alexandra Cleopatre Tsallis
* Psicóloga. Mestre em Psicologia Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES. Bolsista Fapes. Vitória-ES, Brasil.
** Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória-ES, Brasil.
1 O Centro Salesiano do Menor (Cesam) faz parte do Colégio Salesiano de Vitória e tem como objetivo o encaminhamento de adolescentes ao mercado de trabalho como adolescentes aprendizes. Do Cesam fazem parte também o Programa LAC/PSC, o pré-vestibular Dandara e os oratórios festivos (encontros com a comunidade local).
2 Coimbra (2006) coloca em análise o processo de naturalização dos direitos humanos como essenciais e universais, o que acaba por despotencializá-los.
3 Os processos de subjetivação, modos de subjetivação, falam de uma processualidade, "referem-se à própria força das transformações, ao devir, ao intempestivo, aos processos de dissolução das formas dadas e cristalizadas, uma espécie de movimento instituinte que ao se instituir, ao configurar um território, assumiria uma dada forma-subjetividade". [...] "A subjetividade nos fala de territórios existenciais que podem tornar-se herméticos às transformações possíveis, como mapas, ou podem tornar-se abertos a outras formas de ser, como nas cartografias" (DOMINGUES, 1999, p. 2).
4 Para a Análise Institucional, "instituição não é uma coisa observável, mas uma dinâmica contraditória construindo-se na (e em) história, ou tempo" (LOURAU, 1993, p. 11). De acordo com Altoé (2004), para a corrente institucionalista, existe uma relação antagonista entre o instituído (regras, normas, costumes, tradições que o indivíduo encontra na sociedade) e o instituinte (o homem não fica somente passivo diante do instituído, há atividade instituinte, que coloca em questão as instituições).
5 "A proposta de analisar nossas implicações é uma forma de pensar, cotidianamente, como vêm se dando nossas diferentes intervenções" (COIMBRA e NASCIMENTO, 2007, p.29).
6 Condutas de risco podem ser vistas como uma forma de antecipar e controlar o risco que faz parte do cotidiano de alguns adolescentes, como exemplo, o engajamento no tráfico (PERALVA, 2000, p. 126).
7 Segundo Sawaia (2004), a partir da filosofia espinosana, os homens (os modos de existir) precisam do encontro com o outro para conservar e expandir a própria existência. A potência de ação seria a vontade guiada pelo desejo de liberdade e o seu aumento provoca o sentimento de alegria, já as paixões (emoções tristes e passivas), enfraquecem a potência de ação e são nomeadas de potência de padecer.
8 No Espírito Santo, diferentemente de outros estados, utilizamos a sigla ECRIAD, pois acreditamos que a sigla ECA tomou um sentido pejorativo de "algo nojento", não muito desejável. Assim, trata-se de uma afirmação positiva do Estatuto.
9 Para Tavares (2011a), as subjetividades criminosas derivam dos processos de subjetivação contemporâneos, atravessados pelos dispositivos do medo, da insegurança e da violência.
10 "Não habitamos porque construímos. Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos" [...] (HEIDEGGER, 2010, p. 128). Para Guidoni (2011), "O significado de habitar de Heidegger, nos remete ao modo como o homem se relaciona com o mundo. Ao habitar o mundo, o homem constrói sua história, seus sentidos, diferentemente do uso em nosso cotidiano" (GUIDONI, 2011, p. 17).
11 A designação "menino dos olhos claros" foi adotada no lugar do nome do adolescente/jovem. O termo se refere à cor de seus olhos, "claros como os da mãe", como o jovem ressalta.
12 A expressão "de maior" é usada pelos adolescentes para designar tanto a idade (a partir de 18 anos), quanto a tudo que se refere a esta idade no meio deles, ex: fulano é "de maior", pegou "cadeia de maior".
13 Para Passos e Barros os conceitos podem ser ferramentas, quando nos chegam como operadores de realidade, ou conceitos-ferramenta, como "[...] aquele que está cheio de força crítica", portanto "cheio de força para produzir crise, desestabilizar" " (PASSOS e BARROS, 2000, p. 77).
14 Coimbra (2006) aponta "[...] como nossas subjetividades vêm sendo produzidas há séculos e cotidianamente no sentido de percebermos como natural e, portanto, aceitar a relação indissociável entre pobreza e criminalidade: onde está o pobre está a violência" (COIMBRA, 2006, p. 10). A autora também coloca em análise o que temos produzido com nossas práticas (psis), quer seja processos de criminalização ou de vitimização.
15 O Plano Individual de Atendimento (PIA), era feito em conjunto com o adolescente e o responsável, tratava-se do planejamento da medida socioeducativa de forma geral, no Programa LAC/PSC e nos outros aspectos da vida do adolescente (cursos, escola, emprego etc.).