Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.14 no.1 Rio de Janeiro abr. 2014
PSICOLOGIA SOCIAL
Perfil sociodemográfico e padrão do uso de crack entre usuários em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial
Sociodemographic profile and pattern of crack use among users in treatment at the Psychosocial Care Center
Nadja Cristiane Lappann Botti*, I; Jacqueline Simone de Almeida Machado**, I; Felipe Viegas Tameirão***, II
I Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ, São João Del Rey, Minas Gerais, Brasil
II Universidade Presidente Antonio Carlos – UNIPAC, Bom despacho, Minas Gerais, Brasil
RESUMO
Este estudo objetivou descrever o perfil sociodemográfico e padrão do uso de crack entre usuários em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial de seis cidades da macrorregião oeste de Minas Gerais. Estudo transversal com amostra de 40 usuários de crack em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial. A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas estruturadas direcionadas por questionário e análise de prontuários. Os usuários de crack em tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial na maioria são homens, jovens, solteiros e com baixa escolaridade. Apresentam idade média de início do uso de crack de 26,45 ± 8,65 anos com tempo médio de uso de 4,5 ± 3,75 anos, sendo que a maioria usa a droga há menos de cinco anos. Apesar do predomínio de comorbidade psiquiátrica, esse resultado não foi significativo. O perfil do usuário de crack na macrorregião oeste de Minas Gerais se assemelha ao encontrado em diferentes pesquisas realizadas no Brasil.
Palavras-chave: crack, cocaína, transtornos, pacientes, epidemiologia.
ABSTRACT
The objective of this study was to describe the sociodemographic profile and pattern of crack use among users in treatment in Psychosocial Care Center in six cities of macro region western Minas Gerais. Cross-sectional study with 40 crack users in treatment at Psychosocial Care Center. Data collection was done through structured interviews guided by a questionnaire and analysis of medical records. Crack users in treatment in Psychosocial Care Center are mostly male, young, unmarried and with low education. The average age of first use of crack is 26.45 ± 8.65 years with an average use time of 4.5 ± 3.75 years, most use the drug for less than five years. Despite the prevalence of psychiatric comorbidity, these results were not significant. The profile of crack users in macro region western Minas Gerais is similar to that found in different surveys conducted in Brazil.
Keywords: crack, cocaine, disorders, patients, epidemiology.
1 Introdução
Atualmente, o consumo de drogas é problema mundial. Entre as drogas ilegais identifica-se o abuso de cocaína como um dos problemas mais graves e socialmente prejudiciais (Guindalini, Vallada, Breen, Laranjeira, 2006). Levantamentos domiciliares nacionais realizados em 2001 e 2005 identificam que o consumo no país de droga ilícita aumentou de 19,4 para 22,8% (Carlini, Galduróz, Noto, Nappo, 2005).
Desde o final da década de 1980, o uso de cocaína vem aumentando mundialmente, principalmente na forma do crack (Ferri, Laranjeira, da Silveira, Dunn, Formigoni, 1997). No país estima-se que 10% dos que tinham entre 18 e 28 anos usou cocaína pelo menos uma vez. O uso de crack se iniciou no país no final dos anos 1980 e seu consumo aumentou devido ao preço baixo e efeito intenso (Ferri et al. 1997; Ribeiro, Dunn, Sesso, Dias, Laranjeira, 2006). No Brasil, o uso do crack aumentou de 0,4%, para 0,7%, sendo que especificamente no Sudeste, este aumento foi de 0,4% para 0,9% (Carlini et al. 2005).
No Brasil, em meados de 1990, entre os dependentes de drogas ilícitas, os usuários de cocaína e crack foram os que mais buscaram serviços ambulatoriais e de internação para tratamento (Ferri et al. 1997). Apesar de estudos específicos com dependentes de drogas ilícitas, ainda pouco se sabe sobre o perfil dos usuários de cocaína e crack (Duailibi, Ribeiro, Laranjeira, 2008). O primeiro relato de uso de crack em São Paulo ocorreu em 1989 (Ferri et al. 1997). O perfil deste usuário descrito pela primeira vez foi identificado como homem, jovem, de baixa escolaridade e sem vínculos empregatícios formais (Nappo, Galduróz, Noto, 1994). Em função dos efeitos do crack, a maioria dos usuários consome a droga de forma compulsiva até o esgotamento físico, psíquico ou financeiro (Nappo et al. 1994), entretanto já se verifica no país o uso controlado (Oliveira, Nappo, 2008).
A via de administração tem implicações no desenvolvimento da dependência química. O crack, em comparação com a cocaína em pó está associado à alta dependência (Guindalini, et al. 2006). Estudos nacionais sobre mudanças nas vias de administração e padrões de uso de cocaína demonstram aumento no número de pessoas que usaram crack na última década (Ferri et al. 1997; Ferreira Filho, Turchib, Laranjeira, Castelo, 2003).
O crack é uma forma potente de cocaína que resulta em rápido efeito estimulante quando fumado (Ferri et al. 1997). Em função da dependência química o usuário foca sua vida no consumo da droga de forma que sono, alimentação, afeto, senso de responsabilidade e sobrevivência perdem o significado (Nappo et al. 1994), e devido a sensação de urgência pela droga e falta de condições financeiras, o usuário geralmente participa de atividades ilícitas (tráfico, roubos e assaltos) ou troca sexo por crack ou dinheiro, correndo risco de infecções sexualmente transmissíveis (Nappo, Galduróz, Raymundo, Carlini, 2001). Tais características interferem negativamente sobre a saúde e funcionamento social do usuário de crack de forma a marginalizá-lo, tanto no contexto micro (rede de uso) quanto macrossocial (comunidade e serviço de saúde) (Oliveira, Nappo, 2008).
Apesar dos graves problemas que o crack causa ao usuário (marginalidade, criminalidade e efeitos físicos e psíquicos devastadores) o seu uso tem aumentado no país (Carlini, et al. 2005). A dependência química se tornou importante problema de saúde pública e tem desafiado os profissionais da saúde a compreenderem o perfil do usuário de drogas, em vista das dificuldades de manejo e abordagem do problema (Guimarães, Santos, Freitas, Araújo, 2008). No Brasil existe a preocupação em estudar o perfil da população usuária de crack que acessa os serviços de saúde (Ferreira Filho, Turchib, Laranjeira, Castelo, 2003). Estudos transversais que se direcionem a estes usuários de drogas ilícitas são importantes, pois se observa aumento da procura por tratamento em suas diversas modalidades (Guimarães, Santos, Freitas, Araújo, 2008). Há registro de alta prevalência de internações em hospitais psiquiátricos devido ao uso de crack com ou sem associação com outras drogas (Ferri et al. 1997). Estudo demonstra que 46% dos usuários de crack não melhoraram ou permaneceram na mesma situação depois de 1 ano de internação, sendo que 10% dos usuários acompanhados após internação morreram e 7% foram presos, o que sugere a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre essa população, a fim de contribuir de forma eficaz no tratamento (Laranjeira, Rassi, Dunn, Fernandes, Mitsuhiro, 2001). Os usuários de crack estão mais expostos à violência, assim há maior vulnerabilidade e aumento de fatores de risco para a saúde (Ferreira Filho et al. 2003). Apresentam maior risco de morte do que a população em geral, sendo o homicídio a principal causa, tornando-se fundamental estudo sobre dados sociodemográficos, história do uso de drogas e influências culturais e econômicas dos usuários de crack, possibilitando a construção de novas estratégias para a abordagem desse problema social (Ferreria Filho et al. 2003).
No Brasil ainda pouco se sabe a respeito do padrão de uso e das características do usuário de crack (Ferri et al. 1997). Conhecer estas características nos serviços de saúde possibilita fundamentar propostas para melhor adequação dos dispositivos de tratamento e otimizar os recursos disponíveis (Vargens, Cruz, Santos, 2011).
A partir destas considerações e tendo em vista a ausência de estudos sobre o uso de crack em Minas Gerais, este estudo tem por objetivo descrever as características dos usuários de crack em tratamento nos CAPS de seis cidades da macrorregião oeste do Estado.
2 Métodos
Foram entrevistados usuários de crack em tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Itaúna, Pará de Minas, Formiga, Bom Despacho, Campo Belo e Divinópolis, municípios polos das seis microrregiões de saúde que compõe a macrorregião oeste mineira. Em relação a modalidade do CAPS onde os dados foram coletados identifica-se o CAPS I em Formiga, Bom Despacho e Campo Belo; o CAPS II em Pará de Minas; o CAPS III em Divinópolis e o CAPSad em Itaúna. A coleta de dados foi realizada durante uma semana típica, em cada CAPS, no período de abril a julho de 2011.
Utilizou-se amostra intencional formada por dependentes químicos, com idade igual ou superior a 18 anos, em tratamento intensivo ou semi-intensivo no CAPS por problemas decorrentes do uso de crack.
Foi elaborado um formulário com questões sociodemográficas e história sobre o uso da droga. Os usuários foram entrevistados após a anuência da participação na pesquisa. Após as entrevistas, os prontuários dos pacientes foram utilizados para se verificar o diagnóstico estabelecido, o tratamento em uso e as comorbidades apresentadas.
Os dados foram organizados em termos de frequência absoluta e percentual. As variáveis estudadas foram agrupadas segundo as características sociodemográficas dos usuários de crack, características da história do uso de crack e comorbidades psiquiátricas. Para análise dos resultados utilizou-se teste qui-quadrado (X²) no SPSS para Windows versão 14.0, para verificação de diferenças estatisticamente significantes. Para as análises o p < 0,05 foi considerado significante.
O projeto foi encaminhado à Comissão de Ética do Hospital São João de Deus, para avaliação dos aspectos éticos, tendo sido aprovado com parecer nº 37/2011, em 28.03.2011.
3 Resultados
Entre os 40 usuários de crack em tratamento nos CAPS verifica-se que a faixa etária foi bastante jovem, sendo que 42,5% tem menos de 35 anos de idade, com média de 26,45 ± 8,65 anos, mínimo de 18 e máximo de 43 anos. A maioria são homens, correspondendo a 67,5% da amostra (P=0,05). O subgrupo de solteiros foi o maior, representando 47,5%. A maior parte dos usuários de crack apresenta baixa escolaridade, sendo que 75% com até 7 anos de estudo (75%) (P=0,01) (Tabela 1).
A idade média de início do uso de crack foi de 26,45±8,65 anos com tempo médio de uso de 4,5±3,75 anos, sendo que a maioria (82,5%) usa o crack há menos de 5 anos (p=0,001). Verifica-se que 70% dos usuários de crack encontra-se em tratamento nos CAPS há menos de 5 anos (P=0,05) e que 72,5% relata histórico de tratamento para dependência química exclusivamente nesta modalidade de tratamento psiquiátrico (p=0,01) versus 27,5% com internação em hospital psiquiátrico ou comunidade terapêutica. Também se identifica relato de tentativa de suicídio (22,5%) e presença de antecedentes criminais (42,5%) (Tabela 2).
Pelos análise dos prontuários identifica-se que 37,5% registra exclusivamente transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substâncias psicoativas versus 62,5% com comorbidade psiquiátrica, tendo maior frequência os transtornos devidos ao uso de álcool, (37,5%), a esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e delirantes, (25%) e os transtornos do humor, (21,9%) (Tabela 3).
4 Discussão
O perfil dos usuários de crack em tratamento nos CAPS da região oeste de Minas Gerais é semelhante ao encontrado em outros estudos nacionais. O predomínio de homens jovens e de baixa escolaridade também é identificado na revisão da literatura sobre o perfil de usuários de crack (Duailibi, Ribeiro, Laranjeira, 2008). Estas características também são encontradas entre usuários de crack atendidos em serviço ambulatorial no Rio de Janeiro (Vargens, Cruz, Santos, 2011) e São Paulo (Guindalini, Vallada, Breen, Laranjeira, 2006; Ferri, Laranjeira et al. 1997), entre usuários e ex-usuários de crack de São Paulo (Oliveira, Nappo, 2008) e ainda entre usuários em tratamento hospitalar (Ferreira Filho et al., 2003; Ribeiro et al. 2006). Estas características sociodemográficas também foram identificadas em usuários de crack do sexo masculino internados em hospital psiquiátrico de Porto Alegre (Guimarães, Santos, Freitas, Araújo, 2008).
Importante ressaltar que discutir o perfil dos usuários de crack em tratamento nos CAPS não reduz a legitimar a demonização do crack, localizando e culpabilizando o indivíduo, de forma que o debate seja desviado da dimensão socioeconômica, política, jurídica, clínica e cultural. Discussões antropológicas afirmam que o crack é uma droga que dá à pobreza acesso ao sonhado consumo contemporâneo e, principalmente, permite a essa categoria escapar temporariamente da rotina e mazelas do cotidiano (Sapori, Medeiros, 2010).
Conhecer os determinantes mais complexos do comportamento humano, além das condições materiais de vida dos grupos sociais, é necessário para que as práticas de promoção da saúde e de prevenção possam ser efetivas (Barata, 2009). Neste sentido, identifica-se baixa frequência de mulheres em tratamento pelo uso de crack, o que está de acordo com a literatura (Ferri, et al., 1997; Nappo, et al., 1994; Carlini et al., 1995; Nappo et al.,1996). Neste estudo verifica-se aumento da frequência de mulheres no uso do crack (32,5%) em comparação com outros estudos nacionais que identificaram 19% de usuárias de crack atendidas em serviço ambulatorial no Rio de Janeiro (Vargens, Cruz, Santos, 2011), 17,7% de usuárias de crack e 8,06% de ex-usuárias de crack em São Paulo (Oliveira, Nappo, 2008).
A baixa escolaridade observada entre os dependentes químicos já é tratada na literatura como grave problema, decorrente, muitas vezes, do próprio uso da droga (Scheffer, Pasa, Almeida, 2010). Verificou-se também maior proporção de usuários de crack solteiros (47,5%) e separados (30%) corroborando dados da literatura que apontam a dificuldade que esse grupo tem para manter relacionamentos. Em geral o dependente químico passa a reduzir as atividades com a família em benefício do uso da droga (Figlie, Fontes, Moraes, Payá, 2004). Também os altos índices de violência familiar podem ser desencadeadores de frequentes separações (Rabello, Caldas Júnior, 2007).
A idade média de início do uso de crack foi de 26,45 ± 8,65 anos com tempo médio de uso de 4,5 ± 3,75 anos sendo que a maioria usa crack há menos de cinco anos. Estudo com usuário de crack em tratamento no CAPS de Santa Catarina descrevem a droga como uma alternativa para lidar com as exigências sociais e da família. O uso do crack possibilitaria o alívio temporário da tensão, como se fosse um refúgio, um meio eficaz para amortecer o sofrimento, um não confronto com a angústia (Ferreira & Silva, 2010). Estudo com dependentes químicos realizados em São Paulo apresenta a idade de início do uso de crack de 22,9 ± 6,9 anos, entre os usuários em tratamento hospitalar (Ferreira Filho et al., 2003); 22,7 ± 8,1 anos, entre os dependentes químicos em tratamento ambulatorial (Guindalini et al., 2006); e 22 anos, entre os dependentes de crack admitidos em enfermaria de desintoxicação (Dias, Araújo, Laranjeira, 2011).
O perfil de usuário, geralmente encontrado, refere-se a homens, jovens, com baixa escolaridade e, em sua grande maioria, desempregados ou sem vínculo formal com trabalho. Este aspecto chama a atenção para o fato de que a droga, o crack, pode ter uma inserção maior nessas populações com maior vulnerabilidade social (Jorge, Quinderé, Yasui, Albuquerque, 2013).
Sabe-se que a saúde dos indivíduos decorre das trajetórias do desenvolvimento pessoal no transcorrer de um período, confirmadas pela história de cada um e referida ao contexto social, econômico, político e tecnológico das sociedades nas quais tais trajetórias de desenvolveram. Os indivíduos não são independentes de seus grupos sociais na escolha dos hábitos de vida. Comportamentos socialmente desejáveis influenciam as escolhas aparentemente individuais, revelando a força dos hábitos coletivos (Barata, 2009).
Estudo sobre a dimensão subjetivo-social com base nos percursos de jovens internados em hosptial psiquiatrico aponta que a situação de pobreza socioeconômica (favela onde mora), o uso de drogas (crack) e a autoria de atos infracionais (furto, tráfico) são aspectos importantes que configuram a internação psiquiátrica de jovens; mas, ao que parece, esse jovem se percebe como único protagonista desse percurso. Dessa maneira, tais experiências não são vistas como uma vivência produzida por uma dada configuração social, mas são tomadas pelo jovem no âmbito exclusivo da sua individualidade (Scisleski, Maraschin, Silva, 2008).
Dessa forma, fatores relacionados aos modelos sociais vigentes, políticas públicas ineficazes quanto à abordagem às drogas têm articulação direta com o início do uso do crack, assim como o desenvolvimento de uma dependência dessa substância, discordando, desse modo, de teorias que atribuem ao potencial da substância de causar problemas de saúde e de viabilizar por si só a dependência em seus usuários (Jorge, Quinderé, Yasui, Albuquerque, 2013).
Verifica-se que entre os usuários de crack, a maioria faz tratamento exclusivamente na modalidade de tratamento intensivo ou semi-intensivo disponível nos CAPS, entretanto 27,50% relatam já terem realizado outras modalidades de tratamento como internação em hospital psiquiátrico ou comunidade terapêutica. Nas últimas décadas, os hospitais psiquiátricos deixaram de constituir a base do tratamento em detrimento de uma rede de serviços extra-hospitalares de crescente complexidade. A internação psiquiátrica tornou-se mais criteriosa, com períodos mais curtos de hospitalização, favorecendo a consolidação de um modelo de atenção à saúde mental mais integrado, dinâmico, aberto e de base comunitária (Cardoso, Galera, 2011). Estudo com dependentes químicos de cocaína e crack, maiores de 18 anos, internados em hospitais psiquiátricos de São Paulo identificaram que 52,7% estavam na sua primeira internação e 38,9% já haviam sido internados anteriormente de uma a três vezes, sendo o número de internações anteriores maior entre os usuários de crack (Ferreira Filho et al. 2003). Sapori e Medeiros (2010) apontam que a grande dificuldade no tratamento do usuário de crack é o estabelecimento do vínculo terapêutico com a instituição e o manejo correto, por parte dos profissionais, principalmente, da fissura.
Verificou-se, também, que a maior parte dos usuários de crack nãorelata tentativa de suicídio, apesar de a literatura científica considerar o uso/abuso/dependência de substâncias psicoativas como importante fator de risco para a ocorrência de comportamentos suicidas (Borges, Walters, Kessler, 2000). Estudo com dependentes químicos internos em comunidade terapêutica, em Porto Alegre identificou entre os usuários de cocaína/crack frequência de 41,2% de risco de suicídio (Scheffer, Pasa, Almeida, 2010).
Neste estudo verifica-se, apesar de não haver diferença significativa, maior proporção de antecedentes criminais entre os usuários de crack, dado corroborado por outros estudos nacionais com usuários de crack em tratamento ambulatorial em São Paulo (Guindalini et al. 2006). A literatura aponta que a marginalidade é característica comum entre os dependentes de crack (Ferreira Filho et al., 2003) e entre as atividades ilícitas cometidas comumente cita-se a prostituição, tráfico, roubos, sequestros, venda de pertences próprios e familiares e golpes financeiros de naturezas diversas (Oliveira, Nappo, 2008). A presença de abuso/dependência de substâncias psicoativas é associada com risco aumentado de comportamentos violentos/homicida (Guindalini et al., 2006). Neste sentido Sapori e Medeiros (2010) ao analisar a evolução dos homicídios num período de 20 anos defendem que o recrudescimento dos assassinatos em Belo Horizonte encontra-se relacionado à consolidação do tráfico do crack na cidade. Porém, ainda afirmam que a mídia está encarregada pela demonização do crack com forte sobrecarga moral, associando o seu uso à violência.
Estudo com dependentes químicos internados em hospitais psiquiátricos em São Paulo identificaram maior registro de prisão entre os usuários de crack como também aprisionados por maior período de tempo (Ferreira Filho et al., 2003). Estudo longitudinal com usuários de crack internos em serviço de desintoxicação de São Paulo identifica alta incidência de mortalidade por causas externas com predomínio de morte violenta (Ribeiro et al. , 2006; Dias, Araújo, Laranjeira, 2011).
Não haver maior proporção de antecedentes criminais entre os usuários de crack é um achado importante pois ressalta o cuidado que precisa se ter em relação a associação entre uso de drogas e comportamento violento. Sabe-se que é preciso identificar a relação do sujeito com a droga sem excluir a subjetividade e singularidade de cada caso. Segundo Jorge, Quinderé, Yasui, Albuquerque (2013) a contextualização do entorno sociocultural, bem como a experiência dos efeitos das drogas são relevantes para se construir novas formas de abordagem aos usuários. Os delitos, situações de conflitos com a lei, especialmente associação com tráfico, implicam uma maior exposição à violência e, portanto, maior vulnerabilidade (BRASIL, 2010).
As comorbidades psiquiátricas, como transtornos de humor ou quadros psicóticos, implicam frequentemente em pior prognóstico em avaliações prospectivas (BRASIL, 2010). Neste estudo identifica-se no registro dos prontuários que 62,5% dos usuários com comorbidade psiquiátrica, dado corroborado por estudo com dependentes de cocaína/crack do sexo masculino em tratamento nas comunidades terapêuticas no sul do país (Scheffer, Pasa, Almeida, 2010). Entre a comorbidade mais frequente verifica-se a dependência de álcool. No Brasil, estudo mostra risco elevado de transtornos relacionados ao uso de cocaína em indivíduos com história pregressa de alcoolismo (Lopes, Coutinho, 1999). A literatura discute que os usuários de crack geralmente são poliusuários, tanto que iniciaram antes com outras drogas, como mantém o uso de outras substâncias psicoativas concomitantes. O álcool e o tabaco são as drogas lícitas consumidas antes do início do uso do crack. A maconha é a substância ilícita usada pelos usuários antes de iniciarem o consumo do crack. Assim,o crack não costuma ser a primeira droga a ser usada, podendo haver a utilização de outras substâncias. A facilidade de ter acesso ao crack e de todas as outras drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, bem como o início precoce do consumo, tem-se mostrado um impulsionador do começo do uso. Desta forma, não são apenas os efeitos físico-químicos que impetram no individuo o desejo de usar ou de manter-se no uso, mas os aspectos sociais envolvidos nos contextos de uso (Jorge, Quinderé, Yasui, Albuquerque, 2013).
Estudo com dependentes químicos, especialmente de cocaína, em tratamento ambulatorial em São Paulo encontrou frequência de 8% de comorbidade psiquiátrica relacionada a esquizofrenia (Silveira, Jorge, 1999). A frequência mais alta encontrada no presente estudo (25%) pode ser decorrente do fato de que a amostra de usuários de crack foi constituída por pacientes em tratamento intensivo e semi-intensivo no CAPS, enquanto serviço de referência para tratamento psiquiátrico público tende a receber casos de maior gravidade comparativamente ao tratamento ambulatorial.
Neste estudo identificou-se que entre os usuários de crack que apresentam comorbidade psiquiátrica, 21,88% com diagnóstico de transtornos do humor. Estudo nacional identifica que indivíduos com história de pensamentos suicidas eram cerca de três vezes mais prováveis de apresentarem diagnóstico de abuso/dependência de cocaína, sugerindo associação entre quadros mais graves de depressão e este abuso (Lopes, Coutinho, 1999). Entre os dependentes químicos em tratamento ambulatorial em São Paulo verifica-se que 44% exibe critérios diagnósticos para transtornos depressivos (Silveira, Jorge, 1999). A comorbidade psiquiátrica é um dos fatores que compromete o cuidado junto a dependentes químicos. O diagnóstico adequado dos transtornos associados possibilita intervenções apropriadas que facilitam a interrupção do uso de drogas e diminuem a incidência de recaídas (Silveira, Jorge, 1999). Importante ressaltar que o cuidado em saúde mental decorre da intrínseca relação entre os serviços e profissionais de saúde, paciente e família, considerando as particularidades de cada contexto cultural, social e econômico (Cardoso & Galera, 2011).
5 Conclusão
Observa-se que o perfil sociodemográfico se assemelha em diversas regiões do país, independente do serviço que os usuários estão inseridos para tratamento, embora tenha se observado que a idade média de início de uso do crack seja mais elevada no caso dos usuários de crack em tratamento no CAPS. Os resultados apontam que, embora as mulheres em tratamento apresentem baixa frequência, a mudança no padrão de uso sugere um aumento no uso de crack pelas mulheres. Nota-se a presença de comorbidade psiquiátrica entre os dependentes químicos, especialmente a dependência do álcool, o que acentua a importância do diagnóstico e tratamento. Conclui-se que os dados apresentados neste estudo contribuem para um maior conhecimento do perfil e padrão de uso do usuário de crack. No entanto, para a compreensão do fenômeno e viabilização de intervenções mais condizentes pelos trabalhadores de saúde faz-se necessário novos estudos que investiguem elementos do contexto social e cultural do uso de crack.
6 Agradecimentos
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo financiamento do projeto Caracterização dos usuários de cocaína/crack na macrorregião Oeste de Minas Gerais e aos CAPS de Itaúna, Pará de Minas, Formiga, Bom Despacho, Campo Belo e Divinópolis pelo apoio na produção científica e aos usuários de crack pela participação na pesquisa.
Referências
Barata, R.B. (2009). Desigualdades sociais e saúde. In G.W.S. Campos, M.C.S. Minayo, M, Akerman, M. Drumond Júnior & Y. M.Carvalho (Orgs.). Tratado de saúde coletiva (pp. 457-486). São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitet, Fiocruz. [ Links ]
Borges, B., Walters, E.E. & Kessler, R.(2000). Association of substance use, abuse, and dependence with subsequent suicidal behavior. American Journal of Epidemiology, 15(8), 781-789. [ Links ]
Brasil. Ministério da Saúde (MS) (2010). Abordagens terapêuticas aos usuários de cocaína/crack no Sistema Único de Saúde. Brasília-DF. [ Links ] Brasil. Ministério da Saúde (MS) (2011). Departamento de Atenção Básica. Atenção Básica e Saúde da Família. Recuperado em 02 novembro, 2013, de <http://www.dab.saude.gov.br/atencaobasica.php> [ Links ]
Cardoso, L.& Galera, S.A.F. (2011). O cuidado em saúde mental na atualidade. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 45(3), 687-691. [ Links ]
Carlini, E.A., Galduróz, J.C., Noto, A.R. & Nappo, S.A. (2006). II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país. São Paulo: CEBRID. [ Links ]
Carlini, E.A., Galduróz, J.C.F., Noto, A.R., Nappo, S. , Lima, E. & Adiala, J.C. (1995). Perfil de uso da cocaína no Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 44, 287-303. [ Links ]
Dias, A.C., Araújo, M.R. & Laranjeira, R. (2011). Evolução do consumo de crack em coorte com histórico de tratamento. Revista de Saúde Pública , 45(5), 938-948. [ Links ]
Duailibi, L.B., Ribeiro, M. & Laranjeira, R. (2008). Profile of cocaine and crack users in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, 24(4), 545-57. [ Links ]
Ferreira Filho, O.F., Turchib, M.D., Laranjeira, R. & Castelo, A. (2003). Perfil sociodemográfico e de padrões de uso entre dependentes de cocaína hospitalizados. Revista de Saúde Pública , 37(6), 751-759. [ Links ]
Ferreira, V. & Silva, J.C. (2010) Crack e toxicomanias: dimensões subjetivas. Recuperado em 02 nov, 2013, de <http://www.psicologia.pt/artigos/textos/TL0286.pdf> [ Links ]
Ferri, C.P., Laranjeira, R.R., Da Silveira, D.X., Dunn, J. & Formigoni, M.L.O.S. (1997). Aumento da procura de tratamento por usuários de crack em dois ambulatórios na cidade de São Paulo, nos anos de 1990 a 1993. Revista da Associação Médica Brasileira, 43(1), 25-8. [ Links ]
Figlie, N., Fontes, A., Moraes, E. & Payá, R. (2004). Filhos de dependentes químicos com fatores de risco biopsicossociais: necessitam de um olhar especial? Revista de Psiquiatria Clínica, 31, (2), 53-62. [ Links ]
Guimarães, C.F., Santos, D.V.V., Freitas, R.C. & Araújo, R.B. (2008). Perfil do usuário de crack e fatores relacionados à criminalidade em unidade de internação para desintoxicação no Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre (RS). Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul , 30(2), 101-108. [ Links ]
Guindalini, C., Vallada, H., Breen, G. & Laranjeira, R. (2005). Concurrent crack and powder cocaine users from Sao Paulo: Do they represent a different group? BMC Public Health, 6(10), 1-17. [ Links ]
Jorge, M. S. B. , Quinderé, P.H.D, Yasui, S. & Albuquerque, R.A. (2013). Ritual de consumo do crack: aspectos socioantropológicos e repercussões para a saúde dos usuários. Ciência & Saúde Coletiva, 18(10), 2909-2918. [ Links ]
Laranjeira, R. , Rassi, R. , Dunn, J. , Fernandes, M. & Mitsuhiro, S. (2011). Crack cocaine-a two-year follow-up of treated patients. Journal of Addictive Diseases , 20(1), 43-8. [ Links ]
Lopes, C. S. & Coutinho, E. S. F. (1999). Transtornos mentais como fatores de risco para o desenvolvimento de abuso/dependência de cocaína: estudo caso-controle. Revista de Saúde Pública, 33(5), 477-486. [ Links ]
Nappo, A. S., Galduróz, J. C. F. & Noto, A. R. (1994). Uso de crack em São Paulo: fenômeno emergente? Revista Associação Brasileira de Psiquiatria, 16, 75-83. [ Links ]
Nappo, S. A., Galduróz, J. C., Raymundo, M. & Carlini, E. A. (2001). Changes in cocaine use as viewed by key informants: a qualitative study carried out in 1994 and 1999 in São Paulo, Brazil. Journal Psychoactive Drugs, 33(3), 241-53. [ Links ]
Nappo, S. A. , Galduróz, J. C. F.& Noto, A. R. Crack use in São Paulo. Substance Use & Misuse, 31, 565-79. [ Links ]
Oliveira, L. G. & Nappo, S. A. (2008). Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Revista de Saúde Pública, 42(4), 664-71. [ Links ]
Rabello, P. M. & Caldas Júnior, A. F. (2007). Violência contra a mulher, coesão familiar e drogas. Revista de Saúde Pública, 41(6), 970-978. [ Links ]
Ribeiro, M., Dunn, J., Sesso, R., Dias, A. C. & Laranjeira, R. Causes of death among crack cocaine users. Revista Brasileira Psiquiatria, 28(3), 196-202. [ Links ]
Sapori, L. F. & Medeiros, R. (org.) (2010). Crack: um desafio social. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. [ Links ]
Scheffer, M. , Pasa, G. G. & Almeida, R. M. M. (2010). Dependência de Álcool, Cocaína e Crack e Transtornos Psiquiátricos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(3), 533-541. [ Links ]
Scisleski, A. C. C., Maraschin, C. & Silva, R. N. (2008). Manicômio em circuito: os percursos dos jovens e a internação psiquiátrica. Caderno Saúde Pública, 24(2), 342-352. [ Links ]
Silveira, D. X. & Jorge, M. R. (1999). Co-morbidade psiquiátrica em dependentes de substâncias psicoativas: resultados preliminares. Revista Brasileira de Psiquiatria, 21(3), 145-51. [ Links ]
Vargens, R. W., Cruz, M. S. & Santos, M. A. (2011). Comparação entre usuários de crack e de outras drogas em serviço ambulatorial especializado de hospital universitário. Revista Latino-americana de Enfermagem, 19(spe.), 804-812. [ Links ]
Endereço para correspondência
Nadja Cristiane Lappann Botti
Universidade Federal de São João Del Rei - Campus CCO Dona Lindu
Av. Sebastião Gonçalves Coelho, 400 Sala 301.1 Bloco D, Bairro Chanadour, CEP 35501-296, Divinópolis – MG, Brasil
Endereço eletrônico: nadjaclb@terra.com.br
Jacqueline Simone de Almeida Machado
Universidade Federal de São João Del Rei - Campus CCO Dona Lindu
Av. Sebastião Gonçalves Coelho, 400 Sala 301.1 Bloco D, Bairro Chanadour, CEP 35501-296, Divinópolis – MG, Brasil
Endereço eletrônico: jack.machado@hotmail.com
Felipe Viegas Tameirão
Faculdade Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho
Faculdade de Educação de Bom Despacho
BR 262, Km 480 - Caixa Postal 160, CEP 35600-000, Bom Despacho – MG, Brasil
Endereço eletrônico: fvtameirao@yahoo.com.br
Recebido em: 01/06/2012
Reformulado em: 04/11/2013
Aceito para publicação em: 28/11/2013
Acompanhamento do processo editorial: Alexandra Cleopatre Tsallis
Notas
* Doutora em Enfermagem Psiquiátrica pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professora Adjunta da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ).
** Mestre em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros. Professora Assistente da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ).
*** Especialista em Saúde Mental e Psicanálise pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professor da Universidade Presidente Antonio Carlos (UNIPAC).