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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.15 no.spe Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Quando a terapia se torna arte: Teoria Ator-Rede e cocriação musical1

 

When therapy becomes art: Actor-Network Theory and musical co-creation

 

Cuando la terapia se vuelve arte: Teoria Actor-Red y cocreación musical

 

 

Raquel Siqueira-Silva*; João Arriscado Nunes**

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – CES/UC, Coimbra, Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo toma como ponto de entrada as práticas artísticas/criativas no âmbito da Reforma Psiquiátrica Brasileira e, em particular, a constituição de grupos musicais formados por pacientes/usuários dos cuidados de saúde mental (e dos seus terapeutas) envolvidos em práticas de musicoterapia. Este processo conduziu à sua transformação em músicos-artistas, reconhecidos pelo seu desempenho musical, avaliado pelos critérios estéticos próprios dos gêneros musicais em causa. Aborda-se a passagem de um modo particular de existência da música, enquanto prática orientada para a terapia em saúde mental, para outro modo, o da prática de co-criação artística.  Procura-se assim contribuir para a elaboração de uma abordagem dos processos de co-criação estética que coloque em diálogo a Teoria Ator-Rede, com algumas produções recentes em domínios como a filosofia do processo e os estudos sobre o improviso nas práticas musicais.

Palavras-chave: teoria ator-rede, reforma psiquiátrica, musicoterapia, estética, cocriação.


ABSTRACT

This article takes as its entry point artistic/creative practices emerging from the Brazilian Psychiatric Reform and, in particular, the constitution of music groups composed of mental healthcare service users/patients (and their therapists) involved in music therapy. This process led to their transformation into musicians/artists, recognized for their musical performances, assessed by current standards associated with relevant music genres. The article explores the passage from a specific mode of existence of music, as a therapeutic practice within mental health, towards a different mode, that of artistic co-creation. It is intended as a contribution to the study of processes of esthetic co-creation, setting up a space of dialogue between Actor-Network Theory and some recent work in the fields of process philosophy and studies of improvised music.

Keywords: actor-network theory, psychiatric reform, music therapy, esthetics, co-creation.


RESUMEN

Este articulo parte de las practicas artísticas/creativas que han surgido en el marco de la Reforma Psiquiátrica en Brasil, especialmente la constitución de grupos musicales de usuarios/pacientes de servicios de salud mental (y de sus terapeutas) implicados en practicas de musicoterapia. El proceso los convirtió en músicos/artistas, reconocidos por su desempeño musical, evaluado según los criterios empleados para los géneros musicales relevantes. El artículo explora el pasaje de un modo específico de existencia de la música, como practica terapéutica en el marco de la salud mental, a un modo distinto, el de la cocreación artística. Su intención es contribuir para el estudio de los procesos de cocreación estética/artística, en un espacio de diálogo entre la Teoria Actor-Red y algunas producciones recientes en campos como la filosofia del proceso y los estudios sobre el improviso musical.

Palabras-clave: teoria actor-red, reforma psiquiátrica, musicoterapia, estética, cocreación.


 

 

1 Introdução

1.1 Seguir os atores: movimento e relação

Neste artigo, propomos uma exploração sucinta de um dos mais significativos processos de transformação que ocorreram no quadro da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) como ponto de entrada para interrogar algumas das potencialidades e limitações das versões correntes da Teoria Ator-Rede no estudo da mudança. No centro desse processo está a constituição dos usuários dos serviços de saúde mental (e dos seus terapeutas) envolvidos nas práticas de musicoterapia em músicos-artistas, reconhecidos pelo seu desempenho musical, avaliado pelos critérios estéticos próprios dos gêneros musicais em causa. Como se passa de um agenciamento terapêutico das práticas musicais para um agenciamento artístico? O que permanece e o que muda nesse processo? Que condições capacitantes o tornam possível, e quais as potencialidades que estes abrem e que são ativadas no processo? Como ocorre a metamorfose de pacientes e terapeutas que colaboram num agenciamento terapêutico, e que passam por dinâmicas de individuação que os constituem como pacientes e terapeutas, em artistas/músicos que colaboram num agenciamento artístico? Que proposições emergem dessas dinâmicas? Que novas conexões e articulações são efetuadas nesse/através desse processo?

As práticas artísticas/criativas que surgiram na saúde mental brasileira nos serviram de ponto de partida para interrogar os modos de emergência do que designamos de ecologias da cocriação, entendidas como composição/performação colaborativa, constituição dos coletivos que a realizam e produção de subjetividade. No caso aqui trabalhado, assume especial relevância a passagem de um modo particular de existência da música, enquanto prática orientada para a terapia em saúde mental, para outro modo, o da prática de cocriação artística. Esta questão vai ao encontro de uma interrogação da própria TAR enquanto abordagem, e de alguns dos problemas que ela suscita à indagação de processo e práticas de (co)criação, estético-expressivas.

Não é nossa intenção, assim, apresentar aqui uma discussão detalhada das questões suscitadas pelo tema e pela abordagem que propomos, ou das limitações e méritos comparados das diferentes correntes que nos "emprestaram" conceitos e exemplares. É nosso propósito, mais modestamente, contribuir, através de um trabalho em curso, para um projeto mais amplo de elaboração de uma abordagem dos processos de cocriação que coloque em diálogo a TAR com algumas contribuições mais recentes para o que tem vindo a ser designado de filosofia do processo.

 

2 Da terapia à criação estética: os grupos musicais na reforma psiquiátrica brasileira

A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) iniciada em final da década de 1970 (Amarante, 1995) introduziu importantes mudanças no modo como os usuários dos serviços de saúde mental são tratados, no modelo assistencial, nos serviços oferecidos a esta população, na maneira como os portadores de transtornos psíquicos e seus familiares passaram a lidar com as situações que, antes da RPB, baseavam-se no asilamento, isolamento, na segregação, estigmas e nos maus tratos, atendimentos não adequados às necessidades dos usuários dos serviços e até situações de tortura, com métodos coercitivos como formas de tratamento. As mudanças ocorridas nesta área foram objeto de uma já vasta bibliografia 2, que sublinhou a importância de iniciativas e movimentos envolvendo usuários, familiares e profissionais. A formação de coletivos musicais e artísticos neste campo aparece como um desses movimentos, que fortaleceu os efeitos rizomáticos de discussão de temas da saúde mental, provocou um processo de contágio dos ideais da RPB e contribuiu para a articulação das dinâmicas coletivas da RPB (Siqueira-Silva, 2007; 2012; Siqueira-Silva, Moraes, Nunes, Amarante, & Oliveira,2012; Siqueira-Silva, Moraes, & Nunes, 2011; Siqueira-Silva, Nunes, & Moraes, 2013).

Os efeitos produzidos no cenário da RPB pelas conexões entre as artes e o campo da saúde mental, especificamente a produção dos já referidos coletivos musicais, foram tema de pesquisas acadêmicas que engendraram experimentação cartográfica inspirada pela TAR e por abordagens próximas desta (Siqueira-Silva, 2007; 2012). Desde 1996 surgiram coletivos musicais3 que conectaram-se às mídias e a formas de geração de renda, agenciando qualidade estética musical e letras com conteúdo política e existencial, divulgadoras dos pressupostos defendidos pela RPB. Estes grupos/coletivos tiveram e ainda têm um compromisso comum de fazer valer a voz do usuário de serviços de saúde mental. Ouvir e ajudar a amplificar as suas vozes se tornou a tônica da RPB. A anterior e contestada perspectiva de uma saúde mental manicomial assentava numa premissa excludente, no pressuposto de que os que eram declarados pacientes não tinham voz própria, ou que as vozes que se faziam ouvir, apesar de tudo, eram alucinatórias, delirantes ou necessitadas de "tradutores" intelectuais e/ou terapêuticos que falassem em nome dos pacientes. As produções musicais como efeitos das conexões surgidas neste cenário foram, e ainda são, importantes para o processo de transformação que aqui discutimos. As mudanças foram significativas nas vidas tanto dos usuários e seus familiares como dos profissionais envolvidos. Elas implicaram um deslocamento, um desvio, uma passagem do lugar de paciente, e depois usuário, de serviços de saúde mental para o de artista/músico.

As letras das músicas criadas por esses grupos refletem humor, crítica (Dantas, 2010), versões de realidade e ressonâncias com cenas do quotidiano de muitas pessoas, tornando-se assim, juntamente com a qualidade estética das composições, uma condição importante do seu reconhecimento por públicos não envolvidos no campo da saúde mental. Essas letras são compostas por usuários dos serviços, grupos formados tendo-os como protagonistas, suas vozes, ideias, ideais expostos e respaldados na escuta dos profissionais ativistas da RPB. A condição de passagem e lugar de desvio dessas composições assinala sua potência disruptiva (Siqueira-Silva, 2007), enquanto manifestações de recalcitrâncias ao modelo manicomial, de performação de redes que afirmam a sua dissonância em relação ao som excludente das práticas manicomiais.

Mas a passagem do lugar de usuário para o de músico é um entre sem completude nem totalidade. Ocupar o lugar de artista/músico foi performado, ele aconteceu e acontece, mas aí está a interdita localização, as produções musicais coletivas surgidas neste movimento levam a marca da saúde mental que encontra dois tons: o tom da inclusão por proporcionar qualidade estética musical compatível com grupos fora deste cenário da saúde mental e o tom da repercussão destes grupos nas mídias com a vinculação ao campo da saúde mental. Aí está um paradoxo interessante: ao mesmo tempo que incita a inclusão pela qualidade musical, marca um lugar da diferença (Siqueira-Silva, 2012). Há conexões que engendram a saída do lugar estigmatizado e existem as que os marcam. A presença dos grupos musicais em casas de shows pelo país, em programas de rádio, televisivos, websites, video-clipes etc., colocou efetivamente os usuários de serviços de saúde mental na cena das histórias comuns, com a proposta efetiva e compartilhada de convivência. O lugar conquistado de artista trouxe ainda o acréscimo da discussão mais pública desta inclusão, ou mais precisamente, desta mistura. A formação de grupos musicais, blocos carnavalescos 4 e outros coletivos artísticos na área de saúde mental brasileira com repercussão nas mídias, geração de renda e as mudanças referidas à passagem do devir-usuário para o devir-artista ainda estão em curso. A produtividade de abordagens inspiradas na TAR foi demonstrada em estudos já publicados deste processo. Mas poderão essas abordagens explorar algumas das direções ainda em aberto sobre a transformação do devir-usuário em devir-artista, o entre em que se joga essa transformação? Serão os recursos geralmente associados à TAR adequados a essa tarefa? Para onde devemos olhar para ampliar essa indagação e cartografar esse entre, campo de imanência em que a terapia se transforma em arte, os usuários e terapeutas em músicos?

 

3 A TAR entre o movimento e a relação

"Seguir os atores": esta fórmula condensa uma ideia partilhada pelas diferentes versões dessa constelação transdisciplinar de abordagens designada de Teoria Ator-Rede (TAR). Essa ideia é a de movimento, o movimento das entidades que agem – os actantes, como são designadas no vocabulário emprestado da semiótica - mas também o movimento dos que, como os pesquisadores, seguem essas entidades. A fórmula, porém, veicula uma tensão com que diferentes versões da TAR procuraram lidar, com mais ou menos sucesso. Essa tensão torna-se visível quando consideramos uma outra fórmula, também ela aparentemente consensual entre os que praticam a TAR: os atores definem-se pelas suas relações, ou, segundo outro enunciado, as relações constituem os seus termos, estes não correspondem a entidades pré-constituídas, cujas características seriam alteradas pela entrada em novas relações. Um dos enunciados mais concisos dessa ideia ilustra bem essa tensão: "A identidade de um actante tem de ser formalmente indexada aos atributos que ele pode apresentar quando entra em relações" (Brown & Capdevila, 1999, p. 41). 5 A tensão resulta do encontro entre as duas fórmulas: como podemos decidir se os atores que pretendemos seguir, no decurso do seu movimento, mantêm características ou apresentam "atributos" que permitem identificá-los como os "mesmos" atores? Como dar conta das mudanças, das transformações, das metamorfoses que resultam de novas configurações de relações? O que muda, o que se transforma? As entidades designadas de "atores" (ou actantes) que procuramos seguir? Mas se a definição de um ator depende das relações que os constituem, não deveremos seguir antes as transformações e metamorfoses das relações e das suas configurações? O que fazer, então, do conceito de ator? Estas interrogações têm acompanhado, desde há mais de três décadas, as muitas contribuições para o corpus - sempre em crescimento - empírico e conceptual da TAR, e atravessam os diferentes balanços, debates e avaliações críticas que, periodicamente, vão sendo propostos (por ex., Law & Hassard, 1999; Latour, 2005; Mol, 2010; Akrich, Barthe, Muniesa & Mustar, 2010). O termo ator-rede surgiu da tentativa de, num momento inicial, caracterizar a peculiaridade desses atores/actantes, humanos e não-humanos, cujas capacidades seriam definidas pelas suas associações com outros atores/actantes. Um exemplo desse processo seria a tradução. Outras formas de caracterizar as relações entre essas entidades foram sendo propostas, na busca de maneiras adequadas de lidar com a diversidade e a especificidade que as relações podem assumir. Termos como conexão (attachement) (Gomart & Hennion, 1999; Hennion, 2010), proposição, articulação (Latour, 2008), interferência (Law, 2002; Mol, 2002), intermediação ou mediação (Latour, 2005) vieram, assim, enriquecer o vocabulário da TAR, sem, contudo, darem resposta ao problema de como encontrar um vocabulário de descrição daquilo que se movimenta e muda quando o enfoque está nas relações e não em entidades que são constituídas por essas relações 6. Algumas contribuições mais recentes têm incidido sobre o que designam de "passagens", entendidas como uma forma particular de movimento, que pode ser  reversível, e geralmente vinculado a atividades ou processos situados (Moser & Law, 1999). Uma orientação bastante promissora é a que procura examinar os modos de estabilização de certas relações sob a forma de dispositivos, e a sua atualização (no sentido deleuziano de realização de uma virtualidade) enquanto agenciamentos, em domínios como a ciência, a tecnologia, a constituição e funcionamento dos mercados ou as práticas terapêuticas, por exemplo 7. Mas, nas suas diferentes versões, a TAR propende para a descrição das interrupções do movimento, das estabilizações, mesmo temporárias, de processos, reconhecíveis nos dispositivos e agenciamentos, mas também nas entidades que são criadas por aqueles processos, os actantes ou atores. 8

O problema é considerável, e mostra-nos como é difícil passar de uma enunciação geral dos princípios do primado do movimento e da relação à elaboração de formas de indagação que, entrando "pelo meio" (como diz Deleuze) dos processos que se propõe estudar ou nos quais pretende intervir, possam lidar com o movimento, a transformação e a metamorfose colocando a relação no centro dessa indagação. Ou, na formulação de Massumi (1998, p. 22), os termos de uma relação passariam a ser concebidos como "emergências diferenciais a partir de uma multiplicidade relacional que é um só com o devir – e com a pertença […] produtos, efeitos, co-derivados de uma relação imanente que seria a mudança em si mesma". Contribuições recentes que provêm, sobretudo, da exploração de práticas de criação estética, como a música – especialmente a música improvisada -, a dança e outras artes performativas e visuais, sugerem uma direção possível para a enunciação e performação dessa maneira de indagar.  Por exemplo, ao descrever a transformação do usuário de serviço de saúde mental em músico, dar conta do movimento, do "jogo", entre a estabilização de certas relações e as potencialidades que emergem dos condicionamentos ou constrangimentos criados por essa estabilização. Ao longo do processo, vai tomando forma uma ecologia, um espaço-tempo de constituição mútua, por um lado, da individuação de entidades que, no vocabulário da TAR, seriam designadas de atores-actantes (humanos ou não-humanos ou inclassificáveis segundo essa divisão), com características que poderão ser mais ou menos estáveis, e, por outro, de um "fazer o comum" (commoning) que torna possível essa individuação. Manning, seguindo a via aberta por Gilbert Simondon, entende por individuação o processo de tornar-se corpo, "um complexo agenciamento de sentires, ativo entre diferentes meios co-constitutivos" mas sem nunca resultar numa totalização, numa individualização (Manning, 2013, pp 2-3). Algumas contribuições para a reflexão sobre práticas criativas-expressivas podem ajudar a clarificar a relevância deste tipo de proposta para as abordagens dos processos de produção de subjetividade inspiradas na TAR. 9

 

4 Dispositivos e agenciamentos

As condições e processos através dos quais são estabilizadas certas configurações de relações, assim como as dinâmicas de desestabilização e as linhas de fuga que elas potencializam estiveram no centro dos trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972, 1980), e contribuíram, de maneira explícita ou indireta, para a emergência e desenvolvimentos de diferentes versões da TAR. Conceitos como dispositivo e agenciamento, utilizados de maneira muitas vezes vaga e imprecisa pelos praticantes da TAR, aparecem, em trabalhos mais recentes, associados a definições mais precisas de arranjos ou composições dotados de uma certa estabilidade, através dos quais são viabilizadas práticas específicas, como a pesquisa científica, a perícia forense, a decisão judicial, o funcionamento dos mercados, as atividades terapêuticas, as práticas educativas ou as atividades artísticas, entre outras. Foram tentados alguns exercícios de clarificação - como o de Deleuze a propósito do uso do conceito de dispositivo em Foucault (Deleuze, 2003, pp. 316-325), ou o de Stengers e Bensaude-Vincent (2003, 115-119) sobre os dispositivos na atividade científica, ou ainda o de Guattari, definindo agenciamento como "uma noção mais ampla do que a de estrutura, sistema, forma, processo, montagem, etc. Um agenciamento comporta componentes heterogéneos, tanto de ordem biológica como social, maquínica, gnoseológica, imaginária" (Guattari & Rolnik, 2007, p. 455). 10 Mas os dois termos são frequentemente usados de forma intermutável na literatura associada à TAR. Isabelle Stengers propõe um uso mais preciso: "Os diferentes modos de existência não são nunca ‘em si', mas sempre relativos aos dispositivos que os convocam ou aos agenciamentos que os suscitam". E acrescenta, em nota:

...neste contraste, o dispositivo remete para uma técnica, enquanto que o agenciamento designa o evento de um ‘manter junto' de elementos heterogêneos conferindo a cada um deles um modo de existência singular. Um dispositivo pode ser caracterizado de maneira estável, dado que é tecnicamente estabilizado. Em contrapartida, quando as operações do dispositivo são descritas de maneira concreta, ou seja, incluindo o técnico (sempre "este" técnico), aquilo que é descrito é um agenciamento (sempre "este" agenciamento, que se produz aqui e agora). (Stengers, 2002a, 145-46 e nota 81).

A estabilização dessas configurações de relações designadas de dispositivos aparece, assim, para Stengers, como uma configuração tecnicamente estabilizada, mas que só é acessível à descrição empírica através dos seus agenciamentos, ou seja, das relações que conectam o dispositivo a uma prática situada e ao espaço-tempo em que ela ocorre, e sempre incluindo o "técnico", como lhe chama Stengers, ou seja, retomando o vocabulário da TAR, os atores/actantes que "operam" o agenciamento. O adjetivo "técnico", como veremos mais adiante, tem uma relevância especial na caracterização de qualquer dispositivo e, por extensão, de qualquer agenciamento. Por agora, importa salientar que a distinção/clarificação proposta por Stengers permite diferenciar a descrição geral das relações que definem um certo arranjo (técnico) estabilizado e os modos específicos de existência desses arranjos, através dos quais eles se tornam acessíveis à indagação empírica. A chamada de atenção para a inclusão do "técnico" na descrição de um agenciamento não significa que este exista como efeito da intervenção de um (ou vários) ator(es) humano(s), mas que os atores humanos que "operam" os agenciamentos são sempre, ao mesmo tempo, constituintes desses agenciamentos heterogêneos e constituídos por estes. A palavra "técnico" pode, assim, designar (sem preocupação de exaustividade) um pesquisador, um terapeuta, um funcionário administrativo, um professor, um engenheiro ou um artista...  No rastreio das conexões no processo de formação de grupos musicais no campo da saúde mental (Siqueira-Silva; 2007, 2012), foi possível observar como os musicoterapeutas enquanto técnicos se tornavam vetores de dissolução de lugares previamente instituídos como os de terapeuta e usuário, mas também de transformação da função instrumental das práticas musicais enquanto parte de um agenciamento terapêutico em agenciamento estético-criativo. A participação de usuários e de terapeutas em práticas musicais orientadas para o "fazer música" enquanto atividade suscetível de validação e avaliação segundo os padrões estéticos próprios dos gêneros musicais envolvidos correspondeu a uma redistribuição dos lugares de saber e de autoridade, um exercício de micro-democratização das relações constitutivas do agenciamento musicoterápico e de (re)apropriação coletiva e criativa de saberes e práticas. Nesse processo, o usuário torna-se técnico, no sentido em que Stengers entende o termo, produtor/criador de música. Mas essa transformação depende das potencialidades que são abertas por um dispositivo musical agenciado de formas distintas na musicoterapia e na criação musical.

A clarificação proposta por Stengers permite que, na descrição de um dado agenciamento, possa ser identificada a configuração estabilizada de relações que permite reconhecer o agenciamento como atualização de um certo tipo de prática, mas esta não é suficiente para a especificação das características situadas daquele agenciamento em particular. Por exemplo, um dispositivo musical (incluindo um conjunto de instrumentos, de instrumentistas, de convenções e formas de notação, de técnicas...) pode ser acessível à descrição como parte de um agenciamento artístico (um grupo musical, uma orquestra), terapêutico (um grupo que faz musicoterapia), educacional (um curso ou aula de educação musical ou de formação de músicos), político (animação de comícios ou passeatas), lúdico (festa de aniversário, comemoração), ritual (funeral, celebração religiosa), publicitária (jingle), cinematográfico (trilha sonora)...

Como esta lista sugere, não é possível inventariar tipos de agenciamento sem violentar o seu caráter situado e a singularidade de cada agenciamento. Mas ela permite uma rápida ilustração, mesmo que em traços gerais, das implicações da distinção entre dispositivo e agenciamento.

Permanece, contudo, a questão de como se faz a passagem de um agenciamento para outro, com a conversão de usuários e terapeutas em (co)criadores de música, em artistas. Será suficiente, para dar conta dessa conversão, inventariar e rastrear as mudanças nas conexões que se fazem e desfazem entre actantes pré-identificados envolvidos nos agenciamentos em causa? Mais do que uma mudança de configuração de conexões, importa seguir o movimento de que emergem simultaneamente as relações/conexões e os seus termos.

 

5 A cocriação e as suas ecologias: improvisos, coreografias, arquiteturas móveis

Erin Manning, uma filósofa, artista visual e bailarina influenciada por Whitehead, Deleuze e Guattari, propõe uma outra via para abordar as práticas de cocriação e as suas ecologias, que designa de coreografia (Manning, 2013). A esse termo, inspirado na sua experiência com a dança, ela atribui a capacidade de dar conta de processos vários, constituídos através de práticas ao mesmo tempo colaborativas e dissonantes ou discrepantes, feitas de contrapontos que fazem o movimento ou a sonoridade que possibilita a constituição mútua de coletivos e a individuação dos que neles se encontram e através deles se definem na sua diferença, mas também na partilha e na atividade comum. Essa definição não corresponde a uma identidade pré-determinada, mas a um processo dinâmico em que cada um dos atores/actantes humanos (para retomar o vocabulário da TAR) é "mais-do-que-humano", é parte indissociável de uma ecologia que emerge através do movimento colaborativo. Mas este movimento ocorre através de uma tensão nunca resolvida entre uma estabilização - que remete para o que Manning chama a técnica, entendida como os "constrangimentos capacitantes" que tornam possível a "solidariedade operativa" (Simondon) própria da colaboração – e a geração continuada de desestabilizações e, com estas, de potencialidades (ainda) não atualizadas, mas que poderão sê-lo através da passagem da técnica à tecnicidade. Para os praticantes da TAR, a proposta de Manning evoca a distinção entre dispositivos – configurações relativamente estáveis de relações entre componentes heterogêneos orientadas para um tipo específico de práticas - e de agenciamentos – os modos empiricamente reconhecíveis e observáveis de existência desses dispositivos 11.

A música enquanto cocriação, realizada de diferentes modos, tanto na composição e execução como nas formas específicas de composição-execução que são descritas sob o termo de improviso (Fischlin, Heble, & Lipsitz, 2013), apresenta características próximas do que Manning entende por coreografia. No caso aqui tratado dos grupos musicais na Reforma Psiquiátrica Brasileira, a possibilidade de "fazer música" tanto com propósito terapêutico como enquanto prática de (co)criação guiada por critérios estéticos remete para a partilha de um dispositivo que inclui instrumentos, formas de notação, técnicas de leitura, escuta ou execução musical, definições de gêneros musicais e seus critérios de avaliação técnica e estética, relações entre instrumentos, instrumentistas e sons... A expressão dispositivo aponta, por um lado, para a disposição dos elementos enunciados, e para as relações que mantêm entre si; por outro, para a disposição/disponibilização que permite a sua atualização em práticas musicais que geram proposições e articulações específicas e situadas em espaços-tempos diversos. O dispositivo dá forma, assim, aos constrangimentos capacitantes de que fala Manning, ele cria a possibilidade de fazer música, ainda que esse fazer música seja atualizado em práticas situadas com finalidades ou propósitos distintos – neste caso, terapêuticos ou artísticos.

Não pretendemos, aqui, comparar de maneira detalhada esses dois agenciamentos, mas iniciar a exploração dos processos de transformação de um agenciamento no outro, de usuários e terapeutas em músicos/artistas, da música como terapia em música como arte. O movimento e a relação aparecem, aqui, como os conceitos que permitem, já não (apenas) seguir os atores (mais-do-que-) humanos e as conexões que estabelecem, que fazem e desfazem, mas as "arquiteturas móveis" de práticas e sons, através das quais se realiza uma transformação das ecologias de práticas, sentires e experiências que conferem existência aos usuários/terapeutas-tornados-artistas, mas também aos grupos musicais enquanto vetores de subjetividade que transformam a diferença que estigma, segrega e exclui em diferença que capacita para a cidadania.

 

6 Transformações: entre a terapia e a arte

Como acontece o processo em que a música passa do agenciamento terapêutico e se transforma num agenciamento estético? O domínio técnico da música, das suas convenções, formas de notação, instrumentos, é uma condição dessa passagem, o que Manning chama de constrangimento capacitante. As capacidades sonoras dos instrumentos (incluindo a voz humana), as destrezas no seu manejo, os procedimentos de interferência e co-laboração discrepante/dissonante na performação musical (Mackey, 1993; Fischlin, Heble, & Lipsitz, 2013) tornam possível o que Gilbert Simondon chama de solidariedade operativa, o processo colaborativo que viabiliza uma prática (citado por Manning, 2013, p. 141). A técnica não determina o processo e o seu resultado; ela configura um campo de potencialidades, mas também possibilita a captura de um devir, a estabilização de identidades (incluindo as de gênero, sexuais, raciais ou étnicas) e de configurações de práticas:

A mudança é uma relação emergente, o devir sensível, nas condições empíricas da mistura, de uma modulação do potencial. Após a emergência vem a captura e o "colocar em conteúdo". Regras são codificadas e aplicadas. A mistura dos corpos, dos objetos e dos signos é padronizada e regulada. O devir torna-se narrável e analisável: o devir torna-se história (Massumi, 1998, p. 128).

Os grupos musicais que surgiram no Brasil emergiram de práticas musicoterápicas. Os usuários puderam assim, como parte da sua terapia, adquirir capacidades técnicas com práticas coletivas realizadas através do tocar e cantar. O aperfeiçoamento de técnicas musicais e o desenvolvimento de capacidades organizativas permitiram formar grupos que, a partir da sua experiência coletiva no espaço terapêutico, tornaram possível a sua apresentação pública, para além desse espaço, enquanto coletivos criadores de música. Foram assim forjadas novas conexões com o "exterior" do agenciamento terapêutico, reconfigurando os usuários e os terapeutas como protagonistas dessa atividade de criação, como artistas, e convertendo a diferença estigmatizante associada à doença mental na diferença criativa da produção musical enquanto forma de atividade artística. Deste modo, a técnica musical, ao mesmo tempo que estabelecia condições para a prática musicoterápica, abria para potencialidades que, através de modulações dessas condições, permitiram um devir-artista dos usuários e dos terapeutas. Esse devir, como nota Massumi, é susceptível de interrupção, de captura, de "colocação" dos usuários-artistas numa nova distribuição de atributos, condicionada pelas articulações com o político, o económico ou o midiático.

Mas consideremos, primeiro, o próprio processo, as suas potencialidades, o entre que configura essa passagem do lugar do usuário/paciente estigmatizado para o de músico/artista celebrado como protagonista da diferença, da música como terapia para a música como arte e como criação estética. Ou seja, aquele momento em que se "deixa a história", para regressar à "imanência do campo de potencial" que torna possível a mudança (Massumi, 1998, p. 128), explorar as aberturas do agenciamento musicoterápico para outros futuros. 12

Que novas relações podem emergir da dissolução das amarras do estigma, através desse devir-artista? As sonoridades dos grupos musicais dão expressão a um potencial que permite abrir brechas no muro da indignidade que divide os "loucos" dos "normais". O estigma é, muitas vezes, silencioso e dissimulado, mas a música diz o que soa e permite ecoar em ondas o que se pensa e o que se procura mover, pode expressar o devir, a imprevisibilidade. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, com os seus avanços e recuos e as inevitáveis hesitações, abriu um espaço que torna possível uma estética propositiva de deslocamento. O desvio que permitiu a brecha para o devir músico do lugar instituído do "louco" não foi previamente estruturada, mas pragmaticamente produzida com as iniciativas de desconstrução do modelo hospitalocêntrico, a formação de assembléias nas unidades de saúde, equipes interdisciplinares, participação política, decisória e ativista de usuários de serviços de saúde mental, seus  familiares e profissionais engajados. Todos pela causa da dignidade humana e dos Direitos Humanos, convertidos numa bandeira a partir da qual se exige que as falas "outras" sejam ouvidas, confrontando os saberes, destituindo a ideia do poder centralizado na figura do médico psiquiatra, um exercício de democratização de (não) saberes. As artes ratificam as outras possibilidades de dizeres. Elas encarnam um conhecimento situado, contraponto de qualquer pensamento que pretenda alijar o usuário à condição de inoperante e incapaz. A Luta Antimanicomial seria o exemplar deste movimento de participação dos diretamente envolvidos, fazendo proliferar em ondas de contágio os ideais da RPB. A luta é a dos que sofrem as controversas consequências da estigmatização. Mas a que formas de estigmatização estamos nos referindo? Àquelas organizadas em torno de ideia de que há uma razão assertiva e que as desrazões devem ser inibidas. As artes, e aqui nos referimos precisamente à música, interrompem esta lógica excludente, dicotômica e performam outros modos de lidar com as ditas insanidades. O que é o devir-músico do usuário de serviço de saúde mental senão o devir-músico de qualquer outra pessoa fora deste cenário manicomial? A formação de coletivos musicais na área de saúde mental no Brasil se constituiu pelo caldeirão de possibilidades que a atividade da existência implica. Se atualmente existem tais grupos, blocos carnavalescos, talentos artísticos reconhecidos entre os usuários de serviços de saúde mental, não é por que eles passaram a sê-lo depois que foram "descobertos pela RPB", mas por que se criaram conexões e emergiram ecologias capazes de escutar e ecoar suas vozes, e  coreografaram-se modos de transformar. Estas vozes, antes abafadas por práticas manicomiais, encontraram eco nos pressupostos da RPB e assim puderam ser amplificadas pelas conexões com as mídias, familiares, profissionais, usuários dos serviços, pessoas fora do cenário manicomial, além de agregarem interesses políticos, ações coletivas por condições melhores, dignas e adequadas de atendimento ao usuário.

Como pode a transformação ser observada, vista, ouvida, cartografada? A RPB e a TAR têm em comum a sua condição de intervenções que se atualizaram na exploração de movimentos e de relações, ou, mais precisamente, de relações em movimento, nos encontros potencializados pelos seus agenciamentos.

 

7 Das práticas musicais à Filosofia do Processo

Num comentário muito citado à música Africano-Americana e ao jazz em particular, o poeta, ensaísta e crítico Amiri Baraka afirmava que a apropriação dessas formas musicais por parte de músicos, produtores, empresas e críticos brancos havia levado à passagem do verbo ao substantivo ("from verb to noun"), ao que pode ser descrito como uma interrupção do movimento que vincula essas formas musicais à experiência histórica e à vida dos Africanos-Americanos e das suas comunidades (Jones, 1963). Num estudo recente sobre Baraka e outros pensadores "orgânicos" da cultura e da experiência Africano-Americana, como James Baldwin e Ralph Ellison, Walton Muyumba (2009) caracteriza-os como expoentes de um pensamento pragmatista, de um pensamento da prática, do movimento, do processo. É notória a convergência dessa versão do pragmatismo com uma constelação mais ampla e heterogénea que tem vindo a ser designado de filosofia do processo (Manning, 2013). 13

Uma linha de reflexão semelhante tem sido seguida por outros autores, ampliando-a à(s) música(s) produzida(s) no espaço do chamado Atlântico Negro (Gilroy, 1993; Brennan, 2008; Fischlin & Heble, 2003, 2004; Fischlin et al., 2013) e a diferentes formas de atividade expressiva/criativa caracterizadas pelo improviso, pela resposta ao mesmo tempo colaborativa e dissonante/discrepante a situações marcadas tanto por constrangimentos como por potencialidades  (Mackey, 1993).

Práticas estéticas/criativas, como a música, o teatro, a dança, ou diferentes formas de arte visual, de arte multimídia ou de arte pública aparecem, assim, como realizações exemplares de mundos em processo, de práticas através das quais se constituem mutuamente o "fazer o comum" (commoning) e a individuação e singularização (Manning, 2013, Massumi, 1998). A interrupção ou estabilização do movimento, que está no centro de muitos dos trabalhos que reivindicam alguma forma de filiação na TAR, é abordada por Manning como um resultado possível do que ela designa de especiação – a estabilização de fluxos em espécies, incluindo a individuação dos humanos. Não será estranho, por isso, que a ampliação e renovação do vocabulário da TAR possa encontrar nas práticas estético/expressivas – isto é, em práticas que, como as que são designadas de "artes", têm como seu terminus (James, 1912/1996) ou propósito a produção de objetos ou atividades validadas ou avaliadas a partir de critérios estéticos – um campo fértil de indagação sobre os modos como se faz e refaz o mundo. Mas, em relação a outras correntes que habitam esse espaço, sempre em movimento e com contornos indefinidos, das filosofias do processo, as abordagens que configuram a TAR postulam a indagação empírica como o lugar onde as proposições-especulações da(s) filosofia(s) do processo podem ser postas à prova. Enquanto filosofia empírica (Mol, 2002; Thompson, 2005, 2013), a TAR apresenta acentuadas convergências com a versão peculiar do pragmatismo praticada tanto por músicos e outros artistas 14 como pelos pensadores "orgânicos" dessas atividades e dos universos materiais-semióticos em que elas se realizam. Mas os seus procedimentos permitem explorar uma faceta menos visível dos processos através dos quais se realizam as práticas estético-expressivas. Algumas dessas práticas têm lugar enquanto recursos instrumentais para outro propósito (lúdico, político, terapêutico, educativo, comercial, religioso, ritualístico...). Em certas circunstâncias, elas podem transformar-se em práticas reconhecidas socialmente como práticas artísticas, orientadas e validadas por critérios que lhes são imanentes, e não por critérios "externos" que definem a sua relevância em função da sua adequação instrumental a outros propósitos. Essas circunstâncias, e os processos que tornam possível essa transformação, os constrangimentos e potencialidades que os atravessam, as mudanças que ocorrem nos agenciamentos daquelas práticas que produzem a sua viabilidade nem sempre são caracterizados com a atenção e o detalhe que merecem e que abordagens como as que propõe a TAR permitem descrever e analisar.

 

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Endereço para correspondência
Raquel Siqueira-Silva
Universidade de Coimbra
Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia
Colégio S. Jerónimo, Apartado 3087
3000-995, Coimbra, Portugal
Endereço eletrônico: raquelsiqueira13@gmail.com
João Arriscado Nunes
Universidade de Coimbra
Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia
Colégio S. Jerónimo, Apartado 3087
3000-995, Coimbra, Portugal
Endereço eletrônico: jan@ces.uc.pt

Recebido em: 29/04/2014
Aceito para publicação em: 09/11/2014

 

 

Notas

* Doutora em Psicologia na UFF. Pós-doutorado em Saúde Pública no CES-UC.PT (CsF/CAPES). Professora Adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
** Doutor em Sociologia. Professor Associado com Agregação e Pesquisador.
1 Agradecemos o apoio do Programa Ciência sem Fronteiras/CAPES à viabilização do pós-doutorado de Raquel Siqueira-Silva.
2 Destacamos como mais relevantes para o tema deste artigo Amarante & Torre, 2010; Amarante, 1995; 1998; Basaglia, 2001; Birman & Costa, 1994; Siqueira-Silva, Nunes, & Moraes, 2013; Siqueira-Silva, Moraes, Nunes, Amarante & Oliveira, 2012.
3 Para ver e compreender os coletivos/ grupos musicais aos quais nos referimos neste artigo recomendado os seguintes sites, acessados em 22 de abril 2014: www.harmoniaenlouquece.com.br, https://www.youtube.com/watch?v=DjtU5bNuyDU, https://www.youtube.com/watch?v=-k-6gKaZz8c, https://www.youtube.com/watch?v=NT8TRmNkYiE
4 Para informações sobre blocos carnavalescos, veja-se http://www.youtube.com/watch?v=O5Wh_qR3gFA http://incubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/2025, acessados em 29 de abril de 2014.
5 Brown & Capvila (1999) apresentam uma discussão instigante de vários dos termos que procuram dar conta do movimento em diferentes versões da TAR (tradução, circulação, deriva...). Os autores tratam questões que convergem com algumas das preocupações que nos guiam. Mas a direção que toma a sua argumentação é diferente, como quando propõem, por exemplo, uma caracterização dos actantes como "funcionalmente  em branco" (functionally blank) e com uma "vontade de conexão" (will to connect), que constituiria uma forma de agência (agency) (p. 41).
6 Um termo como híbrido, que pressupõe as divisões entre a natureza e a cultura, o humano e o não-humano, o natural e o técnico, tem o inconveniente de sugerir a pré-existência de entidades com características associadas a cada um dos lados dessas divisões, e que seriam "hibridizadas" através das associações estudadas pela TAR. Desta forma, compromete-se o postulado do primado da relação sobre os seus termos.
7 Ver, em particular, Callon, 1999, e os trabalhos subsequentes  sobre a constituição e dinâmica dos mercados, reunidos em Callon et Collectif, 2013.
8 A ideia de interrupção é tomada de Deleuze e Guattari (1972), uma importante influência na emergência das primeiras versões da TAR.
9 Contribuições para esse projeto podem ser encontradas em Ferreira, Freire, Moraes & Arendt, 2010; Moraes & Kastrup, 2010; e Law & Moser, 1999.
10 Latour recorre, em alguns dos seus trabalhos, ao termo "dispositivo", mas  de um modo situado, vinculado aos fenómenos particulares que estuda. Veja-se, por exemplo, Latour, 1984, p. 49 (sobre Pasteur) e 2002, pp. 100-104 (sobre o Conseil d'État francês).
11 Massumi (1998), partindo de um texto de Michel Serres, retomado por Bruno Latour, oferece uma fascinante descrição do futebol em termos que apontam já para a abordagem proposta por Manning.
12 Na sua discussão do futebol, Massumi refere o "estilo" como uma dessas aberturas, entendendo-o como uma forma de "individuação coletiva" e tomando o "corpo individual que canaliza o potencial evolutivo" como "ponto nodal de expressão de um devir coletivo", "inextricavelmente estético (estilístico) e ontológico (emergente)", como afirmava Guattari (1998: 128-29).
13 A expressão "filosofia do processo" começou por designar a obra do filósofo britânico Alfred North Whitehead, especialmente Process and Reality, de 1925.  Ela tem sido usada, mais recentemente, para designar um conjunto de contribuições influenciadas por Whitehead, mas também pelos filósofos pragmatistas (especialmente William James e John Dewey) e por autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari. Outras designações, como filosofia empírica especulativa, têm sido propostas para caracterizar esta corrente. Sobre Whitehead e a sua relevância para um pensamento do processo, veja-se Stengers, 2002b.
14 Conta Yussef Lateef que o baterista de jazz Jo Jones, interrogado sobre a sua filosofia, terá respondido: "Eu toco minha filosofia" (I play my philosophy) (cit. in Fischlin & Heble, 2004: 173). Várias décadas de pesquisa em Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia mostraram que esta filosofia "em ato" é também característica dos pesquisadores em diferentes áreas científicas, especialmente aquelas em que existe menos ansiedade em relação ao estatuto de ciência da disciplina ou área em questão. Para uma discussão deste ponto, veja-se Arriscado Nunes, 2009.

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