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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.17 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2017

 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

 

Desenvolvimento de um instrumento para avaliação de satisfação e segurança no bairro

 

Development of an instrument for the assessment of Satisfaction and Safety in the neighborhood

 

Elaboración de un instrumento para la evaluación de satisfacción y seguridad en el barrio

 

Tânia Abreu da Silva Victor*, I; Dandara de Oliveira Ramos**, I; Maria Lucia Seidl de Moura***, I; Ana Carolina Monnerat Fioravanti****, II

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, Brasil
II Universidade Federal Fluminense - UFF, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho representa o primeiro passo no desenvolvimento da Escala de Avaliação de Satisfação e Segurança no local de moradia (EASS), reunindo evidências conceituais e psicométricas. Propõe-se um instrumento para a avaliação subjetiva do local de moradia, através de duas dimensões teoricamente relevantes para a Psicologia Evolucionista: satisfação e segurança. Participaram 160 jovens moradores do estado do Rio de Janeiro (RJ). Uma análise de componentes principais apontou uma estrutura multidimensional da EASS, com três componentes e boa consistência interna (α=0,83). A análise de componentes principais sugeriu como aceitável a estrutura multifatorial desta medida, o que foi confirmado pela PAF. Apesar de não confirmar a estrutura bidimensional esperada, uma ANOVA com grupos de jovens em diferentes condições de moradia (duas favelas cariocas versus bairros de classe média) demonstrou que a EASS tem boa validade discriminante. São sugeridas as etapas seguintes para a validação da escala, concluindo-se que a EASS é uma medida consistente, e pode ser útil em futuros estudos de avaliação do local de moradia.

Palavras-chave: segurança, ambiente, avaliação, Psicologia Evolucionista.


ABSTRACT

Gathering conceptual and psychometric evidence, this paper reports the first stage of development of the Satisfaction and Safety in the Neighborhood Scale (SSNS), an instrument designed for Brazilian contexts. Satisfaction and Safety are two evolutionary relevant dimensions of people's environment evaluations. The study involved 160 youngsters living in Rio de Janeiro. Principal component analysis yielded a multidimensional structure for the scale, with three components and good internal consistency (α=0,83). This structure was corroborated through principal axis factoring. Though not confirming the two dimensions originally proposed, an ANOVA with two subsets of youth in different living conditions (slums and more affluent neighborhoods) suggested that SNSS has a good discriminatory validity, proving to be able to assess different environmental evaluations of people. Next steps are suggested to continue the validation process of the instrument.

Keywords: safety, environments, assessment, evolutionary psychology.


RESUMEN

Este trabajo representa el primer paso en el desarrollo de la Escala de Evaluación de Satisfacción y seguridad en el lugar de residencia (EASS), reuniendo evidencia conceptual y psicométrica. Se propone un instrumento para la evaluación subjetiva del lugar de vivienda, por medio de dos dimensiones teóricamente relevantes para la Psicología Evolutiva: satisfacción y seguridad. Participaron 160 jóvenes residentes del estado de Río de Janeiro (RJ). Un análisis de componentes principales mostró una estructura multidimensional de la EASS con tres componentes y una buena consistencia interna (α = 0,83). El análisis de los componentes principales sugiere la estructura multifactorial de la medida como aceptable, que fue confirmada por el PAF. Aunque la estructura de dos dimensiones no se ha confirmado, un ANOVA con grupos de jóvenes en diferentes condiciones de la vivienda (dos barrios marginales (favelas) de Río frente a los barrios de clase media) mostró que la EASS tiene una buena validez discriminante. Para validación de la escala son sugeridos los próximos pasos y se concluye que la EASS es una medida coherente, y puede ser útil en futuros estudios para evaluar el lugar de vivencia.

Palabras clave: seguridad, entornos, evaluación, Psicología Evolutiva.


 

 

Introdução

A capacidade de perceber o ambiente, suas condições de segurança e a disponibilidade de recursos, é necessária para a sobrevivência de todos os seres vivos (Slovic, 1993). Os humanos, em especial, são dotados de mecanismos mentais para percepção, avaliação e resposta (imediata ou não) às condições do ambiente físico e social. Saber avaliar um ambiente como predominantemente positivo ou negativo é um mecanismo de extrema importância para o ajuste entre o indivíduo e seu local de moradia, regulando sua circulação, mobilidade, capacidade de evitar riscos e aperfeiçoar suas rotinas cotidianas dentro desse espaço geográfico (Brooks-Gunn, Duncan, Klebanov & Sealand, 1993; Oh et al., 2010).

Os fatores determinantes da avaliação do local de moradia têm sido amplamente estudados. Até o presente momento há evidências de que tais avaliações são moldadas tanto pelas características objetivas (ex: pobreza, composição étnica da população de moradores, características físicas e de infraestrutura) quanto pelas interpretações subjetivas dessas características (Krysan, 2002a, 2002b; Krysan & Farley, 2002; O'Brien, Norton, Cohen & Wilson, 2014; Sampson & Raudenbush, 2004).

Neste trabalho, adotamos uma perspectiva evolucionista da psicologia e consideramos que tais mecanismos de avaliação contextual são produtos da história filogenética humana. Eles denotam a configuração de uma mente moldada pela seleção natural, capaz de detectar pistas ecológicas de risco ou segurança, escassez de recursos ou abundância e, de forma adaptativa, responder a tais pistas ajustando seu ciclo de vida (Ellis, Figueredo, Brumbach, & Schlomer, 2009).

Duas dimensões teóricas têm destaque na perspectiva evolucionista para o estudo da avaliação do contexto de desenvolvimento: o risco ambiental (environmental harshness) – características de morbidade e mortalidade para individuos de mesma faixa etária – e a imprevisibilidade/escassez de recursos (resource scarcity) – flutuações no risco ambiental e nas condições locais referentes a distribuição de recursos necessários para a sobrevivência e desenvolvimento saudável (Ellis et al. 2009, pg. 238).

Em nossa compreensão do modelo teórico evolucionista, as dimensões de risco ambiental e escassez/imprevisibilidade de recursos podem ser mensuradas através das condições de saúde, morbidade, mortalidade, educação, mobilidade urbana e lazer, características que compõem o desenvolvimento em um bairro. De forma objetiva, propomos que essas duas dimensões fundamentais na avaliação do ambiente de desenvolvimento, derivadas do modelo original de Ellis e colaboradores (2009) são: a segurança – relativa ao risco ambiental e à sensação psicológica de estar seguro, protegido de situações que ofereçam riscos fatais para si ou para seus familiares e amigos próximos; e a satisfação – com a disponibilidade de recursos essenciais para a sobrevivência e para o desenvolvimento.

Com base nestas características que influenciam as estratégias de vida dos indivíduos, entendemos que, na avaliação do contexto de desenvolvimento, ambas, a imprevisibilidade do ambiente e a disponibilidade de recursos, se expressam por meio das dimensões de segurança e a satisfação com o local de moradia.

Em busca realizada nas bases bibliográficas (MEDLINE, ISI Web of Science e Bireme) não foi encontrado registro de um instrumento fundamentado na abordagem evolucionista da psicologia e que leve em conta essas dimensões básicas. Diante do exposto, o objetivo do presente estudo consiste em construir e buscar evidências de validade de um instrumento sobre avaliação de satisfação e segurança no local de moradia com referencial evolucionista e apropriado para a realidade brasileira. Serão apresentados: a) o modelo teórico da psicologia evolucionista para a avaliação do local de moradia, com ênfase nas dimensões de satisfação e segurança; b) uma revisão de literatura sobre os instrumentos já existentes; c) o processo de construção e investigação da validade da escala proposta.

 

O modelo teórico da psicologia evolucionista: as dimensões de segurança e satisfação

No processo de elaboração de um instrumento, Pasquali, 1999 sugere atenção especial à validade da medida. A partir de um quadro teórico bem definido, que o autor denomina como o Pólo Teórico da construção de um instrumento, é possível identificar as dimensões que constituem o constructo, para que se possa defini-lo de forma operacional, de modo a buscar maior relação entre o conteúdo semântico dos itens e o referencial teórico da medida. O desenvolvimento do presente instrumento fundamenta-se na perspectiva da Psicologia Evolucionista.

A psicologia evolucionista, abordagem alicerçada na biologia evolutiva darwinista e nos princípios da psicologia cognitiva, define a mente humana como um conjunto de mecanismos evoluídos que foram selecionados no ambiente ancestral de evolução da espécie por meio de seleção natural (Cosmides & Tooby, 1987). Esses mecanismos são predisposições cognitivas estruturais, ou seja, capacidades inerentes ao cérebro e a mente humana, que fazem parte de nossa constituição enquanto espécie (Ottoni, 2009). A capacidade de avaliar a segurança e os recursos disponíveis no ambiente foi certamente relevante em nosso passado ancestral nas sociedades de caçadores coletores (Izar, 2009), traduzindo-se então em um traço característico de nosso funcionamento mental até os dias de hoje.

Compreendemos que essa avaliação é orientada, para duas características essenciais do ambiente: a segurança e a satisfação com a disponibilidade de recursos. As pistas mais relevantes para essa avaliação individual do ambiente de vida são: fatores externos capazes de causar incapacidade ou morte de outros indivíduos da mesma faixa etária (morbidade e mortalidade, respectivamente), imprevisibilidade na disponibilidade de recursos e competição intraespecífica (Ellis et al., 2009).

Nos ambientes urbanos modernos, tais pistas podem ser detectadas, por exemplo, pelos eventos relacionados à violência urbana (ex.: assaltos, roubos, homicídios) e pela quantidade e qualidade dos recursos disponíveis em um bairro ou município (ex: transporte, educação, lazer e serviços de saúde). Medidas objetivas para a avaliação desses itens em uma localidade são desenvolvidas e atualizadas periodicamente por órgãos internacionais, federais, estaduais e municipais. Exemplos de índices importantes são: Gini e Atkinson (índices de desigualdade) e o IDH (índice de desenvolvimento humano). Para análises macrossociais, caracterizações populacionais e identificação de áreas de risco, tais índices são indispensáveis. No entanto, para a avaliação dessas questões do ponto de vista individual, tais índices não são apropriados ou suficientes. É necessário considerar a percepção dos sujeitos, a fim de mensurar como as pistas ambientais são captadas e avaliadas positiva ou negativamente.

Essa avaliação, de acordo com a teoria das estratégias de vida proposta por Ellis e colaboradores (2009), está na base do processo pelo qual os indivíduos desenvolvem estratégias para alocação de recursos, esforços vitais e comportamentos de competição, reprodução e investimento na prole. Partindo de um referencial evolucionista, compreendemos o desenvolvimento como situado no contexto, valorizamos a interação indivíduo-meio e suas diferentes possibilidades adaptativas. Desta forma, para a elaboração de pesquisas que tenham como objetivo analisar variáveis do desenvolvimento, é imprescindível a existência de instrumentos capazes de mensurar como os sujeitos avaliam seu contexto de vida quanto à segurança e satisfação com os recursos.

 

Instrumentos existentes para avaliação do local de moradia: uma breve revisão da literatura PSI

Para identificar os instrumentos já utilizados na avaliação do local de moradia, foi realizada uma busca eletrônica nas bases de dados MEDLINE, ISI Web Of Science e Bireme em Maio de 2014. Foram utilizadas as palavras chave neighborhood perception, neighborhood evaluation, neighborhood environment e environmental perception. Os artigos foram selecionados por sua relevância (avaliada pelo número de citações) e pertinência ao tema e sua fundamentação e a seção de métodos foram analisadas, para um levantamento das escalas, inventários e outros instrumentos mais frequentes na literatura psi. Dentre os estudos encontrados que utilizavam instrumentos para avaliação do local de moradia, alguns aspectos são comuns: a avaliação das condições físicas (pavimentação, esgoto, iluminação, etc.), dos serviços disponíveis e da sensação de segurança. Foram organizados de acordo com as duas dimensões que consideramos relevantes teoricamente (Ellis et al., 2009).

Avaliação da satisfação no local de moradia

Com base em um extenso trabalho de investigação do construto, Sirgy e colaboradores (2000) propuseram uma metodologia de aferição para classificar a satisfação ou insatisfação dos indivíduos com o seu local de moradia, a partir de três domínios específicos: a qualidade dos serviços públicos geridos pelo governo (policiamento, defesa civil, bombeiros, limpeza urbana, bibliotecas, etc.), a qualidade dos serviços privados (bancos, shopping centers, supermercados, postos de abastecimento, etc.) e a satisfação com os serviços comunitários não governamentais (abrigos, casas de adoção, de apoio a adictos, etc.) (Sirgy & Cornwell, 2001; Sirgy, Rahtz, Cicic & Underwood, 2000). Voltado para a investigação da satisfação com o local de moradia (cidade), um extenso instrumento desenvolvido pelos autores, contempla 22 questões sobre a satisfação com serviços governamentais, 26 questões sobre serviços privados e 18 questões sobre serviços comunitários não governamentais. As opções são apresentadas seguidas do enunciado: "Como você se sente sobre os serviços listados abaixo na sua cidade?" e para cada opção são oferecidas oito categorias de resposta em escala de intensidade (1 - terrível, 2 - infeliz, 3 -geralmente insatisfeito, 4 - tenho sentimentos mistos, 5 - geralmente satisfeito, 6 - satisfeito, 7- maravilhado e 8 - nunca pensei sobre isso/não tenho opinião formada).

Apesar de sua abrangência e consistência, o instrumento não se mostra apropriado a todas as culturas, incluindo serviços que nem sempre são disponíveis. Além disso, é muito extenso (66 itens), dificultando sua utilização em entrevistas pessoais.

A Neighborhood Problems Scale (NPS), desenvolvida por Steptoe e Feldman (2001) dedica-se a avaliar o relato de problemas no bairro de moradia. Em uma lista de 10 itens envolvendo lixo nas ruas, segurança no tráfego, mau cheiro, vandalismo e outros problemas, o respondente é solicitado a classificar, em uma escala de três pontos, a extensão desses problemas em seu bairro como 1 (não é um problema), 2 (algum problema) ou 3 (um sério problema). Em análise de componentes principais, os 10 itens da escala se agruparam em um único fator, com cargas fatoriais variando de 0,45 a 0,71, indicando a representação de um único construto. Além disso, a escala apresentou boa consistência interna (alpha de Cronbach de 0,79). O escore é computado pela soma das pontuações em cada item e pode variar de 10 a 30, com altos escores indicando maior relato de problemas no bairro. A NPS já foi utilizada em estudos de diversas áreas do conhecimento, principalmente para avaliar a relação entre problemas no bairro de moradia e desfechos em saúde (Steptoe, O'Donnell, Marmot & Wardle, 2008; Carter, Williams, Paterson & Iusitini, 2009), contudo, ainda não foram publicados estudos de adaptação ou tradução para outros idiomas.

A NPS se apresenta como um instrumento unidimensional, voltado à avaliação do relato da intensidade dos problemas no bairro. Nesse sentido, a resposta do participante não se constitui, objetivamente, como um depoimento de sua satisfação ou insatisfação com o local em que vive. O construto avaliado pela escala é o relato de problemas reais, relativos às condições do bairro. Refletindo sobre o construto de satisfação com o local de moradia dentro do referencial teórico da psicologia evolucionista, consideramos que a satisfação é um depoimento do indivíduo, relativo ao quanto os recursos do ambiente são (ou não) suficientes para o seu desenvolvimento. Dentro dessa perspectiva, satisfação com o local de moradia traduz não exclusivamente a presença dos recursos, mas a percepção que se tem destes.

 

Instrumentos para a avaliação da segurança

Avaliando a questão das mudanças na percepção de segurança em quarteirões e bairros em Baltimore nos EUA, Robinson e colaboradores (2003) utilizaram duas questões em escala de intensidade para comparar mudanças na percepção de segurança. Os participantes eram solicitados a informar se, com relação a dois ou três anos atrás, sentiam que o local era mais perigoso, igual ou mais seguro. Compondo o que os autores chamaram de índice de mudanças na percepção de segurança (Safety Changes Index), a questão foi aplicada duas vezes, com relação ao quarteirão e ao bairro, e o alfa de Chronbach para esse índice foi de 0,79, indicando boa consistência interna (Robinson, Lawton, Taylor & Perkins, 2003).

Rasmussen, Aber e Bhana (2004) desenvolveram um instrumento chamado Danger Questionnaire para avaliar a percepção pessoal e geral de segurança e a exposição de violência no bairro. O instrumento é composto de três subescalas. A subescala de percepção pessoal (14 itens, α = 0,88) apresenta o enunciado "eu me sinto seguro..." seguido de uma lista de situações cotidianas do bairro, o respondente é solicitado a classificar se se sente seguro quase nunca, as vezes, frequentemente e quase sempre. Para a subescala de segurança geral (13 itens, α= 0,88) é apresentado o enunciado "é seguro para a maioria das pessoas..." com o relato de situações semelhantes a subescala anterior e classificados da mesma forma. Um exemplo de item inclui "estar na escola". A subescala de exposição a violência apresenta 15 itens subdivididos em vitimização (7 itens, α = 0,64) e testemunho de violência (8 itens, α = 0,75). Os itens abordam o tipo de violência que o respondente foi exposto no último ano, compondo um escore geral com a soma dos 15 itens (Rasmussen, Aber, & Bhana, 2004). Após o desenvolvimento da escala não foi publicado nenhum estudo de validação da mesma.

Dentre os instrumentos identificados, a Neighborhood Environment Walkability Scale (NEWS) se mostra a mais abrangente, com a proposta de avaliar a percepção dos moradores sobre características do bairro relativas a mobilidade, densidade residencial, uso dos espaços, conectividade entre as ruas, infraestrutura para pedestres e ciclistas, estética, segurança e satisfação, a escala é composta por 83 itens subdivididos em nove subescalas. São elas: densidade residencial, diversidade de lojas e serviços, acesso aos serviços disponíveis, conectividade entre as ruas, facilidades para caminhada e ciclismo, estética do bairro, segurança no tráfego para motoristas e pedestres, segurança para o crime e satisfação geral com o bairro. Desde sua publicação original, passou por diversos estudos psicométricos (Cerin, Leslie, Owen & Bauman, 2008; de Melo, Menec, Porter & Ready, 2010; Saelens, Sallis, Black,& Chen, 2003) e já foi traduzida e adaptada para diversos idiomas (Cerin, Macfarlane, Ko & Chan, 2007; De Bourdeaudhuij, Sallis, & Saelens, 2003).

Uma versão brasileira da NEWS foi desenvolvida em 2007, com a intenção de disponibilizar um instrumento capaz de avaliar a mobilidade ativa em contextos brasileiros. A versão brasileira da NEWS, no entanto, demonstrou moderada reprodutibilidade (0,55 < rs<0,99) e fidedignidade (0,655 < α < 0,904) em uma amostra de 75 adultos moradores do estado de Santa Catarina (Malavasi, Duarte, Both & Reis, 2007).

Além dos questionários e escalas desenvolvidos para a avaliação do local de moradia, muitos estudos aferem esse construto por meio de questões abertas (Foster, Knuiman, Wood & Giles-Corti, 2013), itens únicos para avaliação da segurança no bairro em escala de intensidade (Self Care Checklist - Posner & Vandell, 1994), avaliação da satisfação com o local de moradia (Robinson, Lawton, Taylor & Perkins, 2003) ou de listas de itens extraídos de escalas maiores, sem um processo formal de adaptação (Ferreira, Cesar, Camargos, Lima-Costa & Proietti, 2010; Oh, Zenk, Wilbur, Block, McDevitt, & Wang, 2010). Nesses casos, os índices utilizados acabam por perder confiabilidade e não são passíveis de reprodução em estudos futuros.

Analisando o conjunto de instrumentos apresentados, podemos concluir que do ponto de vista metodológico, as escalas em geral apresentam bons índices psicométricos. No entanto, algumas ainda não foram adaptadas para o contexto brasileiro (Steptoe & Feldman, 2001; Rasmussen, Aber & Bhana, 2004; Sirgy & Cornwell, 2001; Sirgy, Rahtz, Cicic & Underwood, 2000). O único instrumento brasileiro encontrado (NEWS) ainda não passou por um estudo nacional de validação e conforme os autores, sua aplicação é apropriada apenas para a avaliação da mobilidade urbana em bairros do município de Florianópolis. O mais importante, no entanto, evidenciado pelo levantamento feito é que os instrumentos disponíveis carecem de uma fundamentação teórica clara, apenas abordando temas relacionados às características do ambiente, considerando os aspectos positivos ou de deterioração dos dispositivos de um bairro que podem influenciar na saúde física e mental dos indivíduos nestes contextos. Compreendemos assim que uma fundamentação teórica evolucionista é pertinente para estudos de desenvolvimento no contexto, considerando que para esta abordagem, muito mais que identificar fatores que podem ser iatrogênicos no contexto é compreender as estratégias adaptativas para lidar com as adversidades dos mesmos. Buscando preencher essa lacuna, o objetivo do presente estudo é construir e buscar evidências de validade de uma escala brasileira de avaliação da satisfação e segurança do bairro como local de moradia baseada no referencial teórico da psicologia evolucionista.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 160 sujeitos, 44,4% do sexo masculino, com média de idade de 21,4 anos (DP = 3,39) e 55,68% do sexo feminino, com média de idade de 20,4 anos (DP= 3,70), da cidade do Rio de Janeiro. Entre os participantes, 48,1% possuía curso superior incompleto, seguidos de 21,9% de ensino médio completo. Metade dos participantes (N=80) se constituiu com moradores de duas favelas do estado do Rio de janeiro: Vigário Geral - IDH 0,076 (N=40, 20 homens e 20 mulheres) e Rocinha - IDH 0,073 (N=40, 19 homens e 21 mulheres). A outra metade (N=80, 32 homens e 48 mulheres) foi constituída por estudantes universitários dos períodos iniciais (até o terceiro período) de diversos cursos de universidades públicas e particulares, sendo 27 estudantes de psicologia, 17 estudantes de matemática e outros 36 alunos distribuídos por 14 outros cursos.

Considerações éticas

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e recebeu aprovação em Julho de 2008 (protocolo 036/2008).

Procedimento de coleta e análise de dados

A coleta de dados ocorreu de forma coletiva, em visitas as salas de aula de algumas universidades, no caso dos estudantes universitários, e de forma individual no restante da amostra. A duração da aplicação de todo o questionário do projeto "Desconto do Futuro: um estudo sobre jovens do Rio de Janeiro" foi de aproximadamente 30 minutos, sendo esclarecidos primeiramente os objetivos da pesquisa, solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, por fim, a resposta ao questionário. No caso específico das respostas, informou-se aos participantes sobre a importância de preencher todos os itens e que não existiam alternativas certas ou erradas.

Construção de uma escala brasileira para avaliação do local de moradia

Buscando uma medida do nível individual de percepção do ambiente com fundamentação evolucionista e adaptado para a realidade brasileira, vimos a necessidade de criar um novo instrumento. Para tal, foi elaborada a Escala de Avaliação de Satisfação e Segurança no bairro. A construção dos itens partiu da experiência das duas primeiras autoras como moradoras de comunidades e da participação da primeira autora em pesquisa na comunidade da Rocinha (Maiolino, Cabral, Souza, Victor & Silva 2007). Os itens foram discutidos em reuniões teóricas com os membros do grupo de pesquisa do qual as autoras fazem parte, analisando sua compreensão e a clareza semântica da escala, sendo feitas algumas modificações. Dessa forma, a versão com 14 itens foi produzida, apresentando o seguinte enunciado para o respondente: "Abaixo você encontrará algumas afirmações sobre a vida cotidiana em seu bairro, por favor, responda com sinceridade, marcando um x o quanto você concorda ou discorda com essas afirmações". Os itens foram organizados em escala do tipo Likert de cinco pontos (1 para discordo totalmente e 5 para concordo totalmente).

O formato Likert, proposto por Rensis Likert, é um instrumento de medida que pretende "verificar o nível de concordância do sujeito com uma série de afirmações que expressem algo favorável ou desfavorável em relação a um objeto psicológico" (Pasquali, 1993). Deste modo, espera-se que indivíduos que apresentem avaliações positivas da segurança em seu bairro e estejam satisfeitos com os recursos disponíveis no mesmo possivelmente concordem com itens que expressem algo positivo sobre essas questões, discordem dos itens que expressem algo negativo e, se são ambivalentes em relação ao conteúdo da afirmação, ou não têm avaliação bem definida, vão, provavelmente, expressar dúvidas diante de alguns itens. Na Tabela 1 estão listados os itens da Escala de Avaliação de Satisfação e Segurança no bairro e sua classificação quanto às dimensões de satisfação e segurança. Alguns itens estão em sua forma invertida, ou seja, para o cálculo total do escore é necessário inverter sua pontuação. O escore é obtido pela soma dos itens, sendo oito itens na ordem direta e seis invertidos. Uma pontuação mais elevada representa uma visão mais positiva com relação a Segurança e maior Satisfação com os recursos disponíveis no bairro.

A análise de dados envolveu dois estágios. Com objetivo de explorar a dimensionalidade dos dados, estes foram examinados por meio da Análise de Componentes Principais (Principal Component Analysis – PCA) com o IBM SPSS 19. Essas análises foram seguidas por uma análise fatorial (Principal Axis Factoring – PAF) com rotação Varimax. Com o objetivo de investigar o poder de discriminação da escala a amostra foi dividida em dois grupos, moradores de comunidades e não moradores de comunidades. Foi feita uma análise de variância GLM entre os grupos e os escores da escala com o IBM SPSS 19.

 

Resultados e Discussão

Estatística descritiva

Os escores na escala podem variar entre 14 e 70. A média amostral obtida foi de 41,4 (DP =0,8). O alfha de Cronbach da consistência interna apontou um valor de 0,83, indicando boa consistência.

Análise de Componentes Principais (ACP)

A escala apresentou três componentes. O primeiro apresentou autovalor de 4,83 e explicou 34,51% da variância. O segundo componente teve autovalor 2,42, explicando 17,31% da variância. O terceiro e ultimo componente apresentou autovalor 1,341, explicando 9,58%. Na escala, os dois primeiros componentes explicaram uma proporção substancial da variância. Para avaliar melhor essa proposta, recorremos à Análise Fatorial Exploratória, Principal Axis Factoring (PAF) com rotação Varimax.

Análise fatorial exploratória (PAF)

Tanto a Análise de Componentes Principais quanto a Análise Fatorial Exploratória – Principal Axis Factoring maximizam a variância extraída por meio de componentes ortogonais. Entretanto, enquanto que, na primeira (ACP), há uma solução matematicamente determinada, com as variâncias comum, única, e de erro misturadas com os componentes, na segunda (PAF) há uma estimativa inicial do que as variáveis têm em comum, isto é, das comunalidades, como uma tentativa de eliminar das variáveis a variância única, individual de cada item, bem como a variância de erro (Tabachnick & Fidell, 2007).

Na análise fatorial (PAF) o primeiro fator apresentou autovalor 4,67 e explicou 38,93 %da variância. O segundo fator teve autovalor 2,32, explicando 19,33% da variância. O terceiro e ultimo fator apresentou autovalor 0,87 explicando 7,3%, sendo com isso um fator residual por apresentar autovalor inferior a 1. Na escala, os dois primeiros componentes explicaram uma proporção substancial da variância.

 

 

Os itens de segurança e satisfação com a disponibilidade de recursos, compuseram respectivamente os fatores 1 e 2. Os itens 12, 8, 2, 10, 4 e 6 carregaram bem no fator 1, pois são itens de conteúdo semântico relativos a segurança no bairro. Já os itens 1, 5, 14, 11, 3 e 9 carregaram mais no fator 2, relacionados com conteúdo semântico de disponibilidade de serviços. Os itens 13 e 7, que teoricamente comporiam o fator 2, se agruparam em um terceiro fator, conforme indicado no scree plot  (Figura 1) provavelmente por sua redação não estar alinhada com a dos itens anteriores, o que deverá ser aperfeiçoado em versões posteriores da escala (Tabela 1). No entanto, os dois primeiros fatores já explicam mais de 50%, sugerindo ser uma escala de dois fatores.

 

 

O primeiro e o terceiro item se agruparam nos dois fatores e apresentaram crossloading, isto é, correlação alta tanto com o primeiro quanto com o segundo fator. Observe-se que a rotação Varimax minimiza a complexidade dos fatores ao simplificar as colunas de cargas fatoriais por meio da maximização das variâncias das cargas em cada variável, isto é, "cargas altas após a extração dos fatores tornam-se ainda mais altas após a rotação" e, inversamente, "cargas mais baixas tornam-se ainda mais baixas" (Tabachnick & Fidell, 2007, p. 638).

Avaliação de satisfação e segurança na amostra brasileira estudada

A segunda parte das análises foi testar a validade da escala em discriminar grupos de sujeitos que vivem em diferentes contextos, moradores de favelas e estudantes universitários (não moradores de favelas ou bairros com IDH semelhante). Para tal forma calculados os escores fatoriais das duas dimensões. O escore de cada subescala e gerado pela soma dos itens que compõe cada fator. Assim, temos fator 1 – Segurança (Alpha de Cronbach = 0,85), e o fator 2 – Satisfação (Alpha de Cronbach = 0,78). Uma Análise de Variância (ANOVA) foi utilizada para testar a diferença entre as médias dos dois grupos nas duas subescalas do instrumento. Houve diferença significativa entre moradores de favela (M=16,33, DP=4,59) e os universitários (M=18,46, DP=6,30) no fator 1 (segurança) F (1,157) = 5,95, p<0,05, η=0,40 assim como no fator 2 (satisfação), entre moradores de favela (M=19,88, DP=5,71) e os universitários (M=28,11,DP=4,57), F(1,157)=100,79, p<0,05, η=0,04. Houve diferença também no escore total da escala entre moradores de favela (M=36,09, DP=8,27) e os universitários (M=46,65, DP=8,74), F(1,157)=,p<0,05.

Os resultados deste estudo demonstram que as subescalas foram capazes de discriminar diferenças na avaliação do bairro entre grupos de diferentes contextos, e trazer novas evidências para estudos futuros. O escore total da escala com 14 itens também foi capaz de discriminar os sujeitos neste construto, comportando-se na direção indicada pela teoria e literatura psi.

 

Considerações finais

Os resultados apresentados nos procedimentos exploratórios indicaram uma medida composta por duas dimensões, como inicialmente proposto: Satisfação e Segurança, cada uma contendo 7 itens, com indicadores de confiabilidade satisfatórios para ambos os fatores. A presença de um terceiro fator, provavelmente, se deve a problemas na redação dos itens 7 – "Sinto-me satisfeito com a qualidade das instituições de ensino existentes no local onde moro" e 13 – "Sinto-me satisfeito com os serviços de saúde (postos, hospitais) presentes em meu bairro", que destoam dos outros itens componentes do fator ao qual pertencem teoricamente, o fator Satisfação. De um modo geral, as análises realizadas neste estudo demonstram que a escala construída apresenta qualidades psicométricas satisfatórias, com subdimensões consistentes com a literatura, adequada consistência interna e capazes de discriminar a avaliação do bairro em amostras que possuem de fato diferentes condições de vida. É necessário fazer uma ressalva, contudo, para relembrar que os dados foram obtidos por meio de uma amostra de tamanho reduzido, composta apenas por jovens moradores de diferentes bairros do estado do Rio de Janeiro, que provavelmente não representam de forma suficiente a população brasileira. É necessário que o estudo seja ampliado, com amostras de outras faixas etárias, classes sociais, culturais e regiões do país, a fim de validar o instrumento nacionalmente.

Esta característica da ESAA de discriminação de contextos a partir das duas dimensões, satisfação e segurança, nos mostra que o instrumento tem o potencial de captar as diferenças a partir de medidas subjetivas, de um componente psicológico de avaliação do contexto, o que não pode ser encontrado nos parâmetros objetivos que temos para a avaliação de uma localidade, como os índices Gini e Atkinson (índices de desigualdade) e o IDH (índice de desenvolvimento humano). Deste modo, o instrumento mostra-se potencialmente relevante como uma medida de experiência pessoal, que não pode ser analisada a partir de medidas objetivas como o Gini e o IDH.

Partindo de um referencial evolucionista, compreendemos o desenvolvimento como situado no contexto, sendo a capacidade de avaliar a segurança e os recursos disponíveis no ambiente uma estratégia importante na adaptação de diferentes contextos, com o objetivo principal de sobrevivência e reprodução (Ellis et al, 2009). Levando em consideração esta perspectiva, de uma visão interacionista entre indivíduo-ambiente, afetando seu meio e sendo afetado pelo meio em que vive, consideramos relevante a construção de um instrumento que possa abordar estas dimensões dentro de um componente psicológico de avaliação do contexto.

A EASS, frente aos instrumentos já disponíveis para a avaliação da satisfação e segurança no bairro, oferece a vantagem de ser um instrumento curto, de fácil aplicação e elaborado em língua portuguesa. Mostra-se, assim, potencialmente útil para uso em pesquisas nacionais que pretendam aferir esses construtos.

Concluímos que o presente estudo atingiu o objetivo inicial de desenvolvimento e validação da EASS em uma amostra brasileira. Os resultados sugerem a existência de uma estrutura fatorial bidimensional que desempenha de forma adequada o papel de discriminar grupos distintos e mensurar os construtos de satisfação e segurança de forma consistente. Estudos adicionais, com a revisão dos itens de carga cruzada e o refinamento dos itens que não carregaram da forma esperada, serão pertinentes para o alcance e fortalecimento dos elementos de confiabilidade e a contemplação da bidimensionalidade da avaliação do bairro numa perspectiva evolucionista.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Rua São Francisco Xavier, 524, 10º andar sl 10009 Bloco F, Maracanã, CEP 20550-013, Rio de Janeiro – RJ, Brasil
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Maria Lucia Seidl de Moura
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Recebido em: 06/11/2015
Reformulado em: 04/11/2016
Aceito em: 16/11/2016

 

 

Notas

* Psicóloga (UERJ), Mestre e Doutora em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro - Brasil.
** Psicóloga (UERJ), Mestre em Psicologia Social (PPGPS-UERJ) e Doutora em Epidemiologia (IMS-UERJ). Realiza estágio de Pós-Doutorado no CIDACS-Fiocruz Bahia.
*** Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil.
**** Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica e Neurociências pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Rio. Pós doutora em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Rio das Ostras – Brasil.

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