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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.17 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2017
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
A psicopatologia psicanalítica das perversões na atualidade: uma revisão sistemática
The psychoanalytic psychopathology of perversions nowadays: a systematic review
La psicopatología psicoanalítica de las perversiones en la actualidade: uma revisión sistemática
Camilla Ferreira dos Santos*; Érico Bruno Viana Campos**
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP-Bauru, São Paulo, Brasil
RESUMO
O conceito de perversão sempre esteve impregnado pela concepção da psiquiatria clássica de um desvio moral e sexual, e seu estatuto costuma ser mal compreendido na própria psicanálise. A presente pesquisa teve como objetivo a discussão das perversões no âmbito da psicopatologia psicanalítica. Trata-se de uma pesquisa teórico-conceitual, baseada na revisão bibliográfica sistemática da literatura nacional feita através de um levantamento no portal da Biblioteca Virtual de Psicologia (BVS-PSI) dos artigos de 10 anos (2003 – 2013) com os descritores psicanálise, perversão e psicopatologia. Chegou-se a um total de vinte e oito artigos, os quais foram resumidos e categorizados, e levados para a sistematização, a interpretação e discussão. Os resultados mostram que na caracterização psicopatológica a literatura PSI tende a privilegiar os modelos pós-freudianos da perspectiva lacaniana e da perspectiva das relações de objeto. Conclui-se que a literatura atual não tem avançado em novas propostas de constructos teóricos acerca das perversões, demonstrando que o modelo da formação do objeto-fetiche freudiano ainda predomina como parâmetro para o seu entendimento, e que as discussões psicodinâmicas e estruturais têm diminuído em detrimento de uma abordagem ampliada de crítica sociológica e histórica sobre a perversão como produto de uma ordem médico-jurídica própria da modernidade.
Palavras-chave: perversão, psicopatologia, psicanálise.
ABSTRACT
The concept of perversion has always been steeped by the classic psychiatric conception of a sexual and moral deviance and its status is usually poorly understood in psychoanalysis itself. This research aims at discussing the perversions within the psychoanalytic psychopathology. This is a theoretic-conceptual work, based on the Brazilian systematic literature review made through a survey on the website of Virtual Library of Psychology (BVS-PSI) of articles in 10 years (2003 – 2013), with the descriptors psychoanalysis, perversion and psychopathology. It was reached a total of twenty eight articles, which were summarized and categorized, leading to a systematization, interpretation and discussion. The results show that regarding the psychopathological characterization, literature tends to emphasize the Lacanian perspective and the object relations perspective post-Freudian models. The discussion often boils down to a historic resumption or a general deconstruction of the concept. It can be concluded that the current literature has not progressed in propose new theoretical constructs about perversions, demonstrating that the Freudian model of the fetish object formation still predominates as parameter for its understanding and that psychodynamic and structural discussions have decreased at the expense of broader sociological and historical criticism about the perversion as a medical-legal product of modernity.
Keywords: perversion, psychopathology, psychoanalysis.
RESUMEN
El concepto de perversión siempre estaba llena de la concepción de la psiquiatría clásica de una desviación moral y sexual y su estado es a menudo mal entendido en la psicoanálisis. Esta investigación tiene como objetivo la discusión de las perversiones dentro de la psicopatología psicoanalítica. Se trata de una investigación teórica y conceptual, basado en revisión bibliográfica sistemática de la literatura nacional realizada mediante de una encuesta en la página web de la Biblioteca Virtual de Psicología (BVS-PSI) de los artículos de 10 años (2003-2013) con descriptores de Psicoanálisis, Perversión y Psicopatología. Llegamos a un total de veinte e ocho artículos que fueron resumidos y categorizados, lo que lleva a una sistematización, interpretación y discusión. Los resultados muestran que sobre la caracterización psicopatológica, la literatura tiende a favorecer los modelos puesto freudianos de la perspectiva lacaniana y la perspectiva de las relaciones de objeto. Llegamos a la conclusión de que la literatura actual no ha avanzado en la propuesta de nueva construcción teórica sobre las perversiones, lo que demuestra que el modelo de la formación de freudiana fetiche a objetos aún prevalece como parámetro para su comprensión, y que las discusiones psicodinámicas y estructurales han disminuido en expensas de un enfoque más amplio a la crítica sociológica e histórica sobre la perversión como un producto de un sistema médico-legal de la propia modernidad.
Palabras clave: perversión, psicopatología, psicoanálisis.
Introdução
O conceito de perversão carrega consigo marcas do sentido pejorativo do termo principalmente por ter sido empregado como sinônimo de desvio sexual e moral pela psiquiatria já no século XIX. A noção de perversão sempre esteve associada, principalmente no que propaga o senso comum, com a própria ideia de um ser desumano, dotado de natureza antissocial - um sociopata ou psicopata - bem como de condutas e hábitos sexuais bizarros. Assim, antes mesmo de estar vinculada a uma questão clínica, ela esteve muito mais associada com a criminologia e com a degeneração moral do indivíduo.
A psicanálise se dispôs a trazer outras significações para o conceito de perversão, propondo um novo olhar sobre esse assunto. Apesar disso, ainda hoje se vê muito do discurso psiquiátrico clássico contaminando as elaborações psicanalíticas sobre a perversão em várias esferas. Não obstante, a teorização sobre as perversões ganhou novos aportes a partir das escolas pós-freudianas, convergindo para alguns modelos em psicopatologia psicanalítica. Além disso, o interesse pelas perversões foi renovado a partir de discussões sobre as relações narcísicas e a perversão do laço social na contemporaneidade.
Diante disso, propôs-se uma revisão sistemática da literatura PSI nacional como forma de estudo exploratório do campo de discussões sobre essa temática na atualidade. Assim, esta pesquisa teve como objetivo geral discutir o estatuto do campo das perversões no âmbito da psicopatologia psicanalítica, propondo aprofundar a caracterização das estruturas e organizações perversas na atualidade. Tendo em vista o embasamento teórico dos autores clássicos da psicanálise, podemos elencar alguns constructos e modelos iniciais e fundamentais de compreensão e descrição das perversões construídos historicamente, que servirão como balizas e subsídios para a análise e discussão dos artigos selecionados para este estudo. Dentre as tendências básicas gerais, é possível notar que há quatro perspectivas abertas por Freud, que se polarizam entre uma posição mais genérica que toma a perversão como paradigma para pensar o desejo, a sexualidade e a pulsão e, portanto, para afirmar o próprio estatuto perverso do sujeito humano e outra que toma a perversão como um possível arranjo estrutural específico e diferenciado, fortemente embasado e apoiado no mecanismo de formação do objeto fetiche (Ferraz, 2010). Dentre as perspectivas pós-freudianas, a tradição lacaniana é responsável pela definição da perversão como uma estrutura específica, distinta da neurose e da psicose em sua saída diante da castração e tomando o fetichismo como paradigma. Essa perspectiva lacaniana de tomar a perversão como uma estrutura específica é bem representada na literatura de referência pelo trabalho de Dor (1991). Já a tradição das relações de objeto define as perversões como uma saída diante de uma problemática de base psicótica e, portanto, não constituindo um arranjo estrutural específico ou mesmo uma entidade nosográfica diferenciada. Essa tendência de diluição das perversões pode ser observada na literatura de referência na proposta de Bergeret et al. (2006), que as situa no campo das organizações limítrofes, referidas à angústia de perda de objeto.
Metodologia
Esta pesquisa é de caráter teórico-conceitual, tendo como delineamento uma revisão sistemática da literatura científica nacional sobre a temática da perversão como entidade nosográfica da psicopatologia psicanalítica. Para tanto, efetuou-se uma amostragem criteriosa de artigos publicados na área por meio de um levantamento bibliográfico no portal da Biblioteca Virtual de Psicologia (BVS-PSI) dos últimos 10 anos, de 2003 até 2013, com os descritores psicanálise, perversão e psicopatologia. A inclusão da palavra "psicopatologia" na sua busca foi empregada, pois prezamos por um entendimento da questão das perversões a partir de um referencial geral, o qual abarcasse, numa definição de estruturas gerais de organização dos mecanismos do aparelho psíquico que implicam em modalidades preponderantes de defesas, fantasias, lógicas de simbolização, angústias e sintomas, tanto por psicopatologia psicodinâmica quanto estrutural, incluindo nesse segundo aspecto a concepção de estruturas clínicas da abordagem lacaniana. Trata-se, portanto, de um dos recortes que a pesquisa propõe para viabilizar seu objeto. Assim, dos 72 resultados obtidos, foram excluídos aqueles que se limitavam a fazer análises de filmes ou livros sobre o tema, ou seja, que recaiam mais no âmbito de uma psicanálise aplicada, e aqueles que focavam a dimensão social e cultural das perversões na atualidade, ou seja, que recaiam mais no âmbito de uma psicologia social psicanalítica. Desse modo, restringimo-nos apenas aos artigos que discutiam as perversões a partir da clínica e da psicopatologia psicanalítica. Com isso, chegou-se a um total de 51 artigos. Em seguida, restringiu-se a amostra aos artigos disponíveis na íntegra e gratuitamente online, ou seja, em periódicos de acesso aberto. Essa escolha justificou-se, para além da viabilidade da própria pesquisa, por se entender que esses artigos tendem a ter maior visibilidade e alcance e, portanto, alcançarem maior difusão na comunidade científica da área.
Por fim, depois de leitura completa e análise mais apurada dos artigos, foi preciso descartar alguns deles da revisão sistemática já que não se encaixavam nos critérios propostos para o cumprimento dos objetivos desta pesquisa, uma vez que estes artigos, embora o título e resumo indicassem que haveria uma apresentação e discussão dos aspectos estruturais e dinâmicos do aparelho psíquico na perversão, pouco mencionavam esses aspectos, acabando por constituir mais uma descrição clínica, focada em ilustrações de casos clínicos ou aspectos do manejo técnico e não propriamente os aspectos teóricos e psicopatológicos. Desse modo, ao todo foram selecionados 28 artigos para constituírem a amostra a ser sistematicamente revisada nesta pesquisa.
Resultados e Discussão
Os resultados mostram alguns dados importantes que podem esclarecer certas perspectivas pelas quais a literatura nacional tem abordado a perversão. A categorização inicial imaginada não pôde ser completamente desenvolvida a partir da leitura e análise dos textos, uma vez que os artigos em geral não abordam de forma propriamente aprofundada a caracterização psicodinâmica e estrutural da perversão, mesmo sendo artigos selecionados justamente por se aproximarem e alinharem a uma perspectiva do âmbito da psicopatologia psicanalítica. Desse modo, os artigos em geral fazem uma caracterização mais ampla da perversão, que inclui alguns sintomas e mecanismos que estão relacionados àquilo que os autores querem discutir em suas comunicações. Mas, mesmo quando este é o caso, a descrição é pouco abrangente e clara. Isso tornou a categorização sistemática dos pormenores conceituais dos mecanismos psicodinâmicos inviável, fazendo com que se procedesse apenas com uma caracterização e identificação dos modelos teóricos gerais.
Em relação à abordagem psicopatológica psicanalítica, dos 28 artigos lidos, 17 deles [Alberti & Martinho (2013); Barbieri (2007, 2009); Borges et al. (2004); Campos (2010); Castro & Rudge (2003); Coutinho et al. (2004); Jorge (2006); Lima (2010); Lippi (2009); Marques (2010); Mello (2007); Perez et al. (2009); Pimentel (2010); Reis Filho et al. (2004); Rudge (2005); Simoni & Souza (2010)] podem ser enquadrados a partir da abordagem lacaniana, o que equivale a 60,71%. Do total, apenas quatro artigos estão compreendidos dentro da abordagem das relações de objeto: um bioniano (Marques, 2007), um winnicottino (Gurfinkel, 2007), um kleiniano (Welldon, 2008) e um não especificado (Klein, 2011). Isso demonstra que a propagação de ideias em relação a este assunto dentro do âmbito acadêmico é majoritariamente difundida a partir do ponto de vista da psicanálise francesa lacaniana.
Do total, 13 artigos [Barbieri (2007); Borges et al. (2004); Campos (2010); Castro & Rudge (2003); Coutinho et al. (2004); Flores (2010); Jorge (2006); Marques (2010); Mello (2007); Muribeca (2009); Perez et al. (2009); Rudge (2005); Simoni & Souza (2010)] remetem ao modelo fetichista em Freud para descrever a perversão, o que equivale a 46,42% deles. Sem contar que em mais um artigo (Gurfinkel, 2007) aparece também o modelo fetichista, porém a partir de uma concepção especificamente winnicottinana. Embora muitos artigos refiram-se ao modelo perverso-polimorfo em Freud, apenas dois remetem-se especificamente a este modelo para explicar a perversão, ambos do mesmo autor [Ceccarelli (2005; 2011)].
Dentre todas as categorias de conceitos envolvidos em uma caracterização psicopatológica psicodinâmica, a do mecanismo de defesa é a que mais aparece na maioria dos artigos, já que em 21 deles a recusa é descrita como mecanismo específico da perversão, o que equivale a 75%. Obviamente, os autores referem-se a esse mecanismo nas mais diversas denominações e suas interpretações a respeito dele é particular a cada um, sendo que, como já foi ressaltado acima, geralmente não temos uma apresentação explícita da posição do autor. Em um artigo (Ceccarelli, 2005) encontrou-se que o mecanismo de defesa também é o recalque, o que é uma posição bastante particular pois, embora alguns outros também o citem, não o caracterizam como específico para esta estrutura.
Outros dados gerais que sobressaem é que a subcategoria cisão do ego também aparece em 46,42% artigos como característica essencial presente na perversão, independente da abordagem a que os autores se referem, e que em 50% dos artigos a angústia própria da perversão apontada é a angústia de castração. Quanto a outras angústias, aparecem também a angústia de perda de objeto em três artigos [Ceccarelli (2005); Klein (2011); Welldon (2008)], além da angústia de aniquilação em outros três artigos [Ceccarelli (2005; 2011); Gurfinkel (2007)] e a angústia depressiva em um único artigo (Rudge, 2005).
Sobre a fantasia típica da perversão, a questão que mais aparece é que o perverso fantasia deter o saber sobre o gozo ou saber sobre a verdade do gozo, de tal forma que a "entrada do sujeito perverso no mundo do simbólico se deu através da fixação no outro polo da fantasia, no polo pulsional, no polo de gozo. O perverso tem uma fantasia de completude de gozo" (Jorge, 2006, p.33). Reitera-se assim a posição de que o perverso possui um saber sobre a verdade e um poder sobre o gozo, o que implica uma postura de sedução e submissão do outro a partir da assunção de uma posição fálica.
Observou-se que grande parte dos autores relata como sintomatologia própria da perversão, principalmente, a transgressão [Barbieri (2007); (Campos, 2010); (Castro & Rudge, 2003); (Rudge, 2005); (Ferraz, 2005); (Lippi, 2009)], o desafio [(Barbieri, 2009); (Campos, 2010); (Castro & Rudge, 2003); (Coutinho et al., 2004); (Perez et al., 2009); (Reis Filho et al., 2004); (Rudge, 2005)] e o acting out ou passagem ao ato [(Lima, 2010); (Ferraz, 2005); (Klein, 2011); (Welldon, 2008)].
De modo geral, observou-se uma grande diversidade de temas relacionados à perversão. Artes, medicina legal, toxicomania, laço conjugal, política, entre outros são temas que foram pertinentes para ou autores correlacionarem com a perversão. Isso demonstra a heterogeneidade com que este tema é tratado, colocando assim em questão o quão diverso é a compreensão dos autores sobre o tema e o quanto se pode avançar sobre o tema em diferentes abordagens. Apesar disso, no que diz respeito à caracterização clínica e psicopatológica, observou-se uma carência de detalhamento dos principais aspectos psicodinâmicos relacionados à perversão.
As descrições dos autores em geral remetem apenas aos aspectos mais comuns e estabelecidos da teorização sobre o tema. Desse modo, o que fica de uma leitura mais panorâmica do conjunto dos artigos são algumas linhas gerais bem demarcadas e constantes, a saber: a estruturação da personalidade a partir da recusa da castração produzindo uma cisão do ego que permite uma postura de perversão da lei simbólica e moral, tendo como ilustração exemplar o mecanismo de formação do objeto fetiche. As tendências secundárias não são suficientemente consistentes e presentes para marcar efetivamente um constructo diferenciado na literatura e, principalmente, os autores que tentam discutir para além desses parâmetros clássicos não parecem convergir para um conjunto de hipóteses ou referências comuns.
Isso por si só constitui um dado importante e também preocupante, pois se observa a desconsideração por uma discussão e caracterização mais pormenorizada no âmbito da literatura especializada da área, já que mesmo nos relativamente poucos artigos que objetivam uma discussão especificamente psicopatológica sobre a perversão, o nível de detalhamento sobre esses aspectos é restrito.
Além disso, constatou-se que a maioria dos artigos tende a privilegiar uma discussão mais enfocada no laço social contemporâneo ou então numa desconstrução da própria abordagem psicopatológica em psicanálise, sugerindo uma noção mais simples e fundamental de que a perversão, assim como qualquer outro sintoma, deva ser entendida, antes de mais nada, como o arranjo possível que o sujeito pôde fazer em sua tentativa de sobreviver psiquicamente. Esta posição, que é a da psicanálise por excelência, mas que, por outro lado não avança em um aprofundamento teórico no âmbito mais propriamente psicopatológico e psicodinâmico é a sustentada por Ceccarelli (2005; 2011). Seus dois artigos criticam a psicopatologia e apontam contra o preconceito teórico e analítico. Para o autor, escutar a variedade das manifestações perversas da sexualidade a partir de uma só referência teórico-clínica, adequando a escuta a uma categoria nosográfica rígida, atesta um embotamento clínico que produz um marasmo teórico e anula a riqueza da descoberta freudiana. Embora essa discussão seja válida, o autor não aponta como podemos pensar e articular essa pluralidade teórica. Além disso, o fato de haver um uso ideológico ou taxativo dos conceitos de um campo não descarta a importância de se ter modelos teóricos que referenciem também a pratica clínica, uma vez que sem estes parâmetros, opera-se no escuro.
Outro texto que também criticou certa postura psicopatológica frente a perversão é o deFrota Neto & Rudge (2009). Para esses autores, a partir de uma análise histórica, o perverso é entendido como o bode expiatório, cuja periculosidade real ou fantasiada é elemento fundamental à sua eficiência em polarizar multidões em torno de e contra si. Sua figura remete a um dos mais recentes desdobramentos desta entidade do imaginário social e sua função é assumir a culpa de todos e apresentar-se como causa de um mal-estar coletivo.
A questão da desconstrução da perversão como entidade nosográfica é bastante discutida, principalmente entre os autores das teorias de gênero, os quais estão bastante preocupados em debater questões como a diversidade e normatividade, posicionando-se contra uma postura preconceituosa. Preocupada com essas questões, Marques (2010) foca seu artigo em opor-se à ideia de que a homossexualidade estaria atrelada a perversão, evidenciado que a escolha de estrutura não tem relação alguma com a escolha de objeto, mas sim, com a maneira pela qual se nega a castração simbólica que ameaça e angustia o sujeito, seja ele homem ou mulher.
Para os autores dessa corrente, a discussão gira em torno da construção histórica do sistema binário dos gêneros, a qual encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo: dois sexos, logo, dois gêneros. Contestam-se assim o caráter imutável do sexo, olhando através de escopo histórico como foi feita a construção dos gêneros, haja vista que "há uma complexidade das práticas sexuais e dos posicionamentos psíquicos que não pode ser reduzida tão simplesmente ao desmentido da diferença dos sexos e às concepções binárias do masculino e do feminino" (Ayouch, 2014, p.94), põe-se em questão grande parte da construção psicanalítica de estruturas de personalidade, como é o caso da perversão, que é fundamentada principalmente na diferença de sexos. Assim, para eles é necessário o questionamento da interação entre perversão com a realidade social, discutindo as concepções culturais do gênero e as formações discursivas próprias a uma época e uma cultura.
Nesse contexto, a teoria queer aparece como forte representante de uma posição militante, preocupando-se em descontruir tudo o que já se escreveu sobre o tema e construir um novo saber sobre o sexo. O artigo de Flores (2010) propõe que essa política feminista é uma forma contemporânea de laço social que se sustenta privilegiadamente, se não exclusivamente, no mecanismo perverso da Verleugnung, a recusa. Ao desmentir a castração materna, a Verleugnung desmente simultaneamente a diferença sexual. Ao afirmar isso, a autora garante uma posição distinta centrada apenas na discussão do laço social e das críticas das teorias de gênero, pois afirma justamente o que os outros negam e, nesse sentido, reabilitam a noção de perversão que é rechaçada por eles.
A questão da identidade de gênero e do feminino é bastante discutida, relacionada também a perversão feminina. Muito embora este conceito não faça parte dos objetivos específico da pesquisa e, portanto, não nos caiba promover propriamente uma discussão e problematização da temática masculina/feminina das perversões, ressaltamos a descrição de como, em geral, isso aparece na amostra estudada. Dois textos se propõem a discutir exclusivamente esse tema. Welldon (2008) aponta que a razão pelas quais a perversão masculina e a feminina são tão diferentes poderia obedecer às diferenças básicas quanto ao desenvolvimento sexual normal dos dois sexos. Nesse sentido, a principal diferença que há entre a ação perversa de um homem e de uma mulher estaria no objeto. Nos homens, o ato é direcionado contra um objeto parcial externo e no caso das mulheres, o ato geralmente é dirigido contra si mesmas, seja contra seus corpos ou contra os objetos que elas entendem como sendo suas próprias criações, ou seja, seus bebês, sendo ambos os casos tratados como sendo objetos parciais desumanizados. Assim, a maternidade perversa é produto da instabilidade emocional e da inadequada individuação, tratando-se do produto final de um abuso em série ou de uma depravação infantil crônica. A posição da autora, fundamentada a princípio em uma posição kleiniana de desvio da ordem natural, marca no corpo a diferença, numa posição mais biológica, descartando, porém, a dimensão simbólica e imaginária. Para ela, as fantasias de gênero são determinadas pelo seu corpo biológico e, por si só, isso seria caracterizante da perversão, retomando assim a posição freudiana do bebê ser o falo materno.
Já Campos (2010) insiste que o fetichismo que se constitui nas mulheres é mais um fetichismo "relacional", em que o próprio vínculo primário mãe-filha é fetichizado do que propriamente a constituição de um objeto fetiche concreto e externalizado, como é comum nas perversões masculinas. De modo geral, afirma para as perversões femininas a mesma posição estrutural que as masculinas, que, embora não se explique muito bem como se dá, consistiria em uma fixação na segunda etapa do complexo de Édipo, na identificação narcísica com a mãe fálica e com a posição de seu falo. Esta posição seria expressa por meio da construção de objetos/relações fetichistas, em que se assume a posição de ter o objeto como forma de permanecer detentor do saber sobre o gozo do Outro.
Grande parte dos artigos revisados, ao utilizar-se de vinhetas ou descreverem casos clínicos para ilustrar o que se propõem a discutir teoricamente em seus textos, insistem em uma dimensão transferencial como característica da perversão. A perversão de transferência é particularmente discutida no artigo de Klein (2011), em que a autora discute a tendência do paciente perverso a erotizar a transferência e a utilizar as palavras e os silêncios para excitar o analista, assim como sua passividade para provocar sua impaciência e levá-lo ao acting out. Segundo a autora, esse tipo de paciente exerce pressão sobre o analista para deslocá-lo de seu lugar e comprometê-lo em enactments contratransferenciais perversos, tentando converter o analista num sócio perverso e cúmplice. Assim, a modalidade transferência-contratransferência está determinada pela estrutura perversa do mundo objetal interno inconsciente do paciente, mas o analista, de maneira inconsciente, também se compromete.
A prática clínica é também abordada no texto de Coutinho e colaboradores (2004), em que os autores se preocupam em fazer uma análise da posição subjetiva do perverso na relação analítica e em desconstruir a noção de que o perverso não procura a clínica e não possui sofrimento psíquico, apontando inclusive possíveis recursos táticos para o manejo da transferência com perversos.
No âmbito das opiniões do senso comum ainda propagadas nos artigos, encontramos a respeito do sofrimento psíquico um ponto importante a ser destacado, posto que a maioria dos artigos não se refere ao sofrimento psíquico perverso. Embora os autores tendam a descartar a concepção generalizada de negação de que não haja sofrimento no perverso, não chegam a aprofundar na caracterização das modalidades específicas de angústia e outras dinâmicas defensivas e afetivas próprias dessas estruturas subjetivas.
Seguindo a tendência que já apontamos, cabe ressaltar que alguns artigos analisados tratam do tema da perversão de forma bastante superficial, calcadas pura e simplesmente no aporte teórico freudiano, sem preocupar-se em trazer nenhuma contribuição mais atual para a discussão. Esse é o caso do artigode Mello (2007), trabalho que faz somente uma recapitulação do conceito de perversão e como este se modificou ao longo da obra freudiana até chegar ao fetichismo, e do texto de Muribeca (2009), o qual limita-se a trazer tudo o que Freud propôs sobre a perversão, só para apontar como a própria concepção de perversão se modificou com o advento do DSM-IV.
Nessa linha também seguem os textos de Borges (2004), o qual endossa uma perspectiva clássica em psicanálise: a estrutura só se consolida diante da revivência do Édipo na puberdade; de Alves & Sousa (2004), o qual se resume a fazer uma caracterização da Medicina Legal sobre a perversão e seu conflito com a psicanálise; e o de Pimentel (2010), o qual, ao trazer a discussão sobre a psicopatia, reitera o preconceito em sua caracterização de "sintomas", como, por exemplo, transtorno de conduta.
Outros artigos tratam de temais mais específicos, como é o caso de Ferraz (2005), no qual são comparadas características entre a neurose obsessiva e a perversão com aspectos da religião e da gnose para defender que eles se organizam em uma relação antitética. Embora o texto se aprofunde mais na questão neurótica, não deixa de fazer sua contribuição ao evidenciar as similaridades entre a gnose e a perversão. Já Barbieri (2009), aborda o tema pelo viés do humor e da sublimação, tentando responder à pergunta de como podemos entender que o perverso o qual, supostamente, desmente e desafia a lei civilizatória em sua busca de satisfação, lança mão desse desvio que corresponderia à sublimação. A autora aponta que é justamente por essa habilidade de desviar-se dos obstáculos à satisfação pulsional, diante de uma impossibilidade de realizar o ato, que o perverso se vê obrigado a formular em outro ato sua recusa da castração enveredando por uma satisfação substitutiva, que acaba por revelar-se como criação. Assim, o perverso teria de lidar com os limites da realidade e da lei, de tal forma que a sublimação seria uma via substitutiva igualmente válida.
Já no artigo de Reis Filho e colaboradores (2004), a questão gira em torno de um trauma não simbolizado, o que, segundo eles, seria diferente da recusa da castração. Porém, curiosamente os autores não caracterizam ou definem explicitamente esses mecanismos. Para eles, o trauma, mesmo que não anule a percepção, não se inscreve simbolicamente na cadeia significante, permanecendo no psiquismo sempre pronto a fazer irrupções nos momentos menos esperados. Para compensar, cria-se uma realidade que substitui aquilo que falta, seja pelo fetiche, seja pelas posições masoquista e sádica. Assim, a origem está em um trauma não simbolizado e não em uma defesa contra a angústia de castração ou a perda do falo materno. Porém não chegam a especificar sobre outra dimensão da angústia como fator central ou caracterizam melhor a natureza desse traumático.
Como se pode observar, a amostra de artigos sobre o tema é bastante variada em suas tentativas de articulação das perversões com outras temáticas mais gerais, quer seja no âmbito da teoria psicanalítica, quer seja no de outras teorizações mais amplas sobre a cultura e a subjetividade. No entanto, no que tange ao aprofundamento da discussão de modelos de compreensão da perversão a partir dos parâmetros da psicopatologia psicanalítica, a questão é um pouco mais delicada. Em uma perspectiva mais geral, como já apontado, encontramos reiteradamente as mesmas balizas básicas. Porém, em uma abordagem mais detida e pormenorizada, conseguimos refinar e ampliar o quadro de modelos em utilização na literatura.
De modo geral, podemos observar basicamente três grandes grupos de modelos na caracterização das perversões: o freudiano, o lacaniano e o kleiniano. Poucos textos são estritamente freudianos e os artigos lacanianos tendem a se referirem mais detidamente ao legado e percurso de Freud no mérito da questão. A grande maioria dos textos revisados segue a abordagem lacaniana, então foram as nuances de modelos e abordagens dentro dessa tradição que puderam ser mais bem abordadas.
Em geral, os textos tendem a remeter aos fundamentos freudianos e indicar os dois polos da problemática que se anunciam em sua obra. Assim, os textos costumavam partir de uma caracterização geral da perversão como polimorfia própria das pulsões e como negativo da neurose para afirmar a centralidade do tema para a concepção de sujeito em psicanálise. O artigo de Lippi ilustra bem essa posição ao afirmar que a transgressão, como posição exemplar da perversão, é um jogo que consiste em "uma astúcia, um estratagema para poder gozar, graças ao fantasma" (2009, p. 182), sendo tomada como uma característica fundamental do sujeito e do desejo, justamente para descolá-la da identificação com uma estrutura perversa, contribuindo assim para uma descaracterização da perversão como estrutura e sua identificação com a natureza fundamental do desejo. Trata-se de um artigo importante para fundamentar a postura ontológica fundamental da concepção de sujeito em Lacan e para caracterizar sua postura em que a perversão é a tônica do desejo e, portanto, de natureza generalizada.
Em seguida, os artigos costumam abordar propriamente a concepção de uma estrutura perversa, tomada a partir do modelo da formação do objeto fetiche. Isso quer dizer que os textos consultados da literatura não fazem jus à própria complexidade do tema na obra freudiana, reduzindo-a a seus dois polos mais característicos e antagônicos. Com isso desconsideram o potencial de outras caracterizações perversas para além do fetichismo para a compreensão do fenômeno, principalmente a dinâmica sado-masoquista, que comparece sistematicamente na obra de Freud como fonte de inspiração e discussão, mas que simplesmente parece não contribuir em nada para o modelo genérico da perversão como uma entidade psicopatológica específica que ficou como legado para sua obra.
Uma exceção pode ser encontrada no artigo de Castro & Rudge (2003), em que aparece a caracterização de que tanto o sádico como o masoquista se oferecem como instrumento de gozo do Outro, colocando-se em posição de objeto, sendo que o masoquista se exibe abertamente como objeto, enquanto o sádico desempenha este papel de forma inconsciente. Também afirmam que no sadismo o objetivo de suscitar a angústia no outro não é para causar sofrimento, mas para radicalizar a divisão do outro. Isto é bem mais explícito do que no masoquismo, que também o busca, embora de maneira menos óbvia, ao provocar o constrangimento de seu algoz. Porém, observa-se, a caracterização é mais descritiva e pouco avança na compreensão da estrutura da dinâmica relacional ou remete aos seus mecanismos geradores.
Ainda no que tange à abordagem lacaniana, os modelos que mais se destacam são o da perversão como estrutura e o da perversão como expressão da natureza transgressora do desejo. Como esses dois modelos lacanianos reiteram os dois polos da abordagem freudiana, tem se que a abordagem lacaniana consolida a noção de duas leituras psicanalíticas para a perversão. A primeira é mais geral, ligada ao desejo e à própria natureza da subjetividade, que serve então como um princípio ontológico e ético geral da psicanálise contra o moralismo e a normatividade. A segunda é mais específica e propriamente psicopatológica, pois remete às perversões um arranjo estrutural característico, que se opõe à neurose e à psicose. Essa posição pode ser claramente constatada no artigo de Rudge (2005), que, apesar de falar de um discurso perverso, ainda se remete ao modelo estrutural clássico lacaniano, ou seja, fala do discurso no sentido estrutural e não como forma de laço social.
De qualquer forma, a abordagem lacaniana vem consolidar um modelo que era incipiente em Freud, tornando-se uma proposta bastante difundida na psicopatologia psicanalítica. Podemos afirmar que esse acoplamento entre os modelos freudianos e lacanianos acabou contribuindo para a tendência mais forte e consagrada de abordagem e compreensão das perversões no senso comum da psicanálise contemporânea.
Contudo, a revisão dos textos lacanianos mostrou que a problemática da perversão não é tão simples nessa tradição psicanalítica. Isso se dá principalmente porque a abordagem estrutural se torna uma perspectiva ultrapassada no último momento da obra de Lacan. Contudo, não encontramos textos suficientemente esclarecedores na definição do estatuto das perversões no campo do gozo ou na clínica do real em Lacan, o que mostra que a literatura nacional sobre o tema, mesmo que majoritariamente alinhada a essa tradição, não conseguiu avançar muito em relação aos modelos mais consagrados. O mínimo que se diz a respeito disso pode ser constatado no artigo de Alberti & Martinho (2013), que conclui que o gozo perverso não pertence exclusivamente à estrutura perversa, podendo o sujeito gozar perversamente orientado, quando neurótico. O que distingue fundamentalmente o neurótico do perverso é a posição desejante, haja vista que ele está no lugar da vontade de gozo, de instrumento que suplementa o Outro com gozo, dividindo seu parceiro, fazendo dele sujeito.
Por fim, o que podemos encontrar como uma terceira via entre os dois modelos lacanianos foi a discussão da perversão como um traço ou montagem. Nessa perspectiva, se afirma a perversão não a partir de uma estrutura subjetiva específica, mas a partir de certas características mais pontuais e restritas presentes como um "traço" no âmbito mais geral da estrutura ou mesmo no âmbito de uma "montagem" relacional intersubjetiva. Desse modo, o traço perverso pode aparecer em qualquer uma das estruturas e ilustra o fundamento da perversão original, ou seja, após a consolidação da personalidade, algum traço da perversão ficaria recalcado permanecendo como traços que emergem em acting outs ou passagens ao ato. Esta característica estaria associada a algo mais circunscrito, de ordem propriamente de um sintoma que seria dissonante em relação às outras formações sintomáticas de um sujeito.
Barbieri (2007) destaca em seu artigo que o traço perverso seria da ordem de um comportamento sexual montado sobre uma fantasia que veicula um gozo. É um efeito de gozo implicado na finalidade do ato, que é de provocar a divisão subjetiva do outro. Esta permite ao sujeito gozar, resguardado da angústia de castração e também tem por finalidade chocar o outro. O segundo efeito é ético e permeia o argumento através do recurso à moralidade. Tal argumento propõe o direito de gozar do corpo do outro. A vontade de gozo fica então instituída como lei natural. Assim o sujeito – colocando-se em posição de objeto – opera uma inversão da relação com o outro, denunciando a verdade sobre o seu desejo e a sua falta. O outro é que desejou e provocou seu ato, não ele. Ainda para essa autora, esta impostura se presta ao aliciamento do neurótico "desprevenido" que, fisgado entre esses efeitos de gozo e a sua verdade recalcada, participa dela do mesmo modo que no chiste, onde um diz a verdade e os outros dela desfrutam, constituindo uma manobra que favorece uma satisfação perversa.
Esse tipo de manobra, em uma dimensão mais abrangente, é o que está em jogo nas chamadas montagens perversas. Em seu artigo, Perez e colaboradores (2009) propõem que há uma montagem perversa, a qual está mais ligada a uma posição frente ao gozo, referindo-se a posição discursiva lacaniana. Podem entrar numa montagem perversa quaisquer sujeitos a partir de uma circunstância relacional, os quais, em conjunto, adentram no mesmo fantasma, numa tentativa de chegar a um modo específico de gozo, utilizando-se da posição de instrumento e de detentor do saber sobre esse gozo, cumprindo um fim utilitário. Os autores apontam o laço social como definidor dos mecanismos específicos da perversão. O objeto parcial no fantasma apresenta-se como uma regra absolutamente universal. Nesse sentido, qualquer estrutura pode ser regida através de uma solução perversa, numa montagem coletiva. Basta o mínimo de instrumentalização dos sujeitos e a consequente redução de possibilidade simbólica oriunda daí, para que uma relação perversa se instale. Assim, nas montagens ocorre uma forma de captura que é da ordem intersubjetiva.
Avançando um pouco mais em relação aos demais textos que abordam a questão, Lima (2010), apoiando-se fundamentalmente no termo Zeichen como ele aparece nos primeiros textos de Freud(traço ou signo de percepção como o parâmetro indicativo para o teste de realidade do ego) discute a possibilidade de que os sintomas das psicopatologias assim como os próprios processos defensivos operariam a partir da falha na transcrição sucessiva desses registros. Desse modo, essa falha operaria uma impossibilidade de elaboração simbólica da experiência, ficando em um registro imagético primitivo. Assim, o autor propõe que o mecanismo de defesa que opera é da ordem de uma recusa da realidade, portanto, da ordem de um mecanismo perverso. Esse mecanismo produziria então as condições para passagens ao ato que não se caracterizariam como atuações no sentido mais tradicional, mas sim seriam, na verdade, a irrupção de um gozo da ordem do real, abrindo uma brecha na organização simbólica e fálica predominante na estrutura dos sujeitos. A apresentação feita pelo autor de um modelo para pensar o traço estrutural perverso é uma questão pertinente e poucas vezes trabalhada. A recusa descrita é mais específica, operando uma falha de tradução de algumas marcas de simbolização primitivas. Basicamente, não se trata de uma operação estrutural, mas apenas pontual. Já Simoni & Souza (2010) salientam que a questão da montagem perversa deve ser analisada a partir do ponto de vista lógico, uma vez que é a partir desse lugar que se encontra com a posição perversa dentro da clínica e não a partir de um ponto de vista psicopatológico estrutural. Desse modo, esses autores afirmam que o sujeito, independentemente da estrutura, pode apresentar uma montagem ou traço perverso para solução do problema edipiano ou como forma de evitar a dor psíquica. De qualquer forma, quer seja a partir do traço ou da montagem, alguns autores avançam em relação a uma perspectiva estritamente estrutural para pensar os fenômenos perversos. Contudo, observou-se que a distinção entre um traço ou uma montagem não fica muito bem delimitada pelos autores que se propõem a tratar sobre o tema.
Já no âmbito da tradição das relações de objeto, tivemos, como já apontado, poucos artigos, mas eles chamam a atenção por sua diversidade. Embora apenas um texto específico ilustre o modelo clássico dessa tradição sobre a perversão como o negativo da psicose (Klein, 2011), também encontramos referências a uma perspectiva mais especificamente bioniana sobre o tema (Marques, 2007) e também a outra winnicottiana (Gurfinkel, 2007). Em todos, para além da negação das angústias psicóticas, evidencia-se uma concepção mais propriamente traumática para a gênese das dinâmicas perversas, em que a dimensão da autenticidade no vínculo com o objeto ganha destaque. Assim, os autores dessa tradição teórica postulam que trauma e autenticidade são dimensões essenciais para descrever a gênese da perversão.
Klein (2011) retoma a consideração da humilhação e os maus-tratos na infância como um fator etiológico significativo, entendendo que a perversão é uma forma de luta contra experiências traumáticas infantis e contra ameaças à identidade egoica e de gênero. O ato perverso se dá com a finalidade de vingar e triunfar sobre os traumas e o objeto traumatizante. Assim, além da constelação essencial do triunfo narcísico, a essência da perversão é a conversão de um trauma infantil num triunfo adulto. Além disso, resgata a sugestão de que a perversão surge do ódio, produto da relação com uma mãe frustradora derivada da fixação ao trauma e não se tratando apenas de um gozo.
Gurfinkel (2007) apresenta um esboço do que seria a perversão na perspectiva winnicottiana. Para ele, é na distinção entre o eu e o outro, e, portanto, na desconfiguração do fenômeno transicional que se fixa o conflito estruturante. Assim, seria nesse contexto de patologização dos fenômenos transicionais que se configura o fetiche. Isso se daria porque observa-se um exagero no uso do objeto transicional, uma espécie de hiperinvestimento, como tentativa de negação de que haja ameaça do objeto se tornar sem sentido. A função do objeto transicional se modifica de meio de comunicação para negação da separação, tornando-se coisa em si, como estratégia defensiva diante de uma ameaça de aniquilamento. Esta estratégia cristaliza o indivíduo no instante da iminência do colapso. Assim evita-se pelo mecanismo de negação a queda no vazio do desinvestimento, tanto do objeto como do self. Portanto, há um adoecimento fundamental da relação do sujeito com a realidade, que conduz ao uso fetichizado dos objetos e à inversão potencial entre sujeito e objeto.
Já o artigo de Marques (2007), propõe caracterizar certos elementos mentais que configurariam uma forma de ação emocional de cunho perverso que não se restringiria a uma estrutura ou manifestação psicopatológica específica, mas que se evidenciaria nos mais diversos momentos da vida cotidiana. A hipótese principal é que as ações perversas são movimentos de distorção do pensamento, os quais produzem um descolamento da realidade vital e animada do vínculo humano de forma a produzir uma existência paralela que se sobrepõe e imita o humano, porém em uma condição existencial inautêntica, impossibilitando assim a realização simbólica propriamente humana.
O que se nota da leitura dos poucos artigos nessa tradição, em especial pelas referências citadas pelos autores, é que as discussões nessa área tendem a se organizar em torno de uma noção genérica de trauma. Contudo, os textos estudados que abordam as perversões sob uma perspectiva da psicanálise contemporânea e, portanto, para além das grandes escolas tradicionais, foram poucos e também pouco elucidativos em uma visão mais sistemática ou mesmo um modelo mais característico e definido das perversões que pudesse contrastar com o lacaniano da estrutura perversa e com o kleiniano da defesa contra a psicose. O que se pôde notar é uma certa convergência geral na referência de autores como Stoller, McDougall, Winnicott e Kernberg em torno de um trauma ambiental como fator etiológico, mas a caracterização mais específica fica a desejar.
A perspectiva traumática para pensar as relações de objeto iniciais também está presente na proposta mais contemporânea de Bergeret (2006). Esse autor considera que o fator etiológico primário do chamado tronco comum das organizações limítrofes é da ordem de um trauma que antecipa dinâmicas para as quais o aparelho psíquico infantil ainda não está preparado, como uma forma de intrusão que produz uma desorganização precoce e uma resposta compensatória que é mais frágil e lábil. Nesse sentido, sua visão geral se alinha a perspectivas de autores que versam sobre a inautenticidade na constituição do núcleo da personalidade, tais como McDougall e Winnicott o que é, ademais, uma tendência de autores mais contemporâneos na linhagem das relações de objeto.
Porém, no que diz respeito a esse modelo, constatamos que nenhum dos artigos estudados da literatura nacional trabalha ou mesmo cita de forma mais detida o modelo psicopatológico de Bergeret (2006), um dos poucos autores contemporâneos que se preocupou com a sistematização de um modelo psicopatológico geral em psicanálise e que é uma referência importante no Brasil, já que consiste praticamente no único manual sobre psicopatologia psicanalítica na literatura nacional. Essa ausência nos parece muito significativa e pode indicar um certo descompasso entre a produção científica de artigos e os livros de referência do campo. Isso pode se dar porque se considera o livro um mero "manual" com objetivos didáticos e, portanto, referência secundária que em nada contribui para o avanço da pesquisa propriamente inovadora que vem da clínica e dos autores primários, ou porque realmente uma psicanálise que pretenda produzir um modelo psicopatológico sistemático e abrangente é algo que está em desacordo com os interesses de pesquisa e mesmo a visão geral de sujeito e de prática psicanalítica.
Em todo caso, a análise mais detida dos modelos utilizados pelos autores da amostra revelou que tanto na tradição lacaniana como na tradição das relações de objetos há tendências secundárias que se distanciam de seus modelos básicos e clássicos de compreensão das perversões. Contudo, essas tendências estão minoritariamente representadas e pouco sistematizadas, de forma que ainda não aparecem de forma consistente como um contraponto às posições mais ortodoxas.
Conclusão
Diante da análise da amostra selecionada da literatura psi no Brasil em um período de 10 anos (2003-2013), pudemos constatar que no que diz respeito à compreensão psicopatológica da perversão, a abordagem lacaniana é a que predomina dentre todas as outras. Isso demonstra um déficit de produção acadêmica de outras abordagens psicanalíticas sobre o tema e também ilustra a força do movimento lacaniano no Brasil.
Como contribuição pertinente desta pesquisa para o campo da psicopatologia psicanalítica, podemos apontar que se observou que os textos elaborados raramente trazem algo significativo de novo, evidenciando que a psicanálise se encontra empobrecida de seu pleno potencial. No âmbito da amostra estudada na revisão de literatura empreendida, pode-se afirmar que a literatura atual da área não tem avançado em termos de novas propostas de constructo teórico acerca das perversões, demonstrando que o modelo da formação do objeto fetiche freudiano ainda predomina como parâmetro para o seu entendimento. Do mesmo modo, até mesmo dentro de uma circunscrição do âmbito da perversão como herdeira da tradição médico-psiquiátrica, a discussão encerra-se tão somente numa dimensão geral com foco na perversão sexual a partir do modelo do fetichismo e raramente os autores se propõem tratar ou fazer referência à perversão moral da psiquiátrica clássica em seus artigos, no caso a psicopatia e sociopatia. Tal fato também demonstra o quanto ainda se está por avançar na caracterização das perversões além dos modelos clássicos. Dos modelos recenseados pela pesquisa, o que houve de mais consistente foi a articulação entre as perspectivas de Freud e de Lacan na afirmação de duas polaridades para pensar a temática: (1) a perversão como transgressão e desvio originário próprio do desejo e da sexualidade; e (2) a perversão como estrutura subjetiva específica calcada na recusa da castração e na formação do objeto fetiche. Na tradição da psicanálise das relações de objeto, por sua vez, há apenas um indicativo muito genérico e incipiente para a compreensão das perversões a partir de uma teoria do trauma. Além disso, observou-se uma grande falta de articulação entre os diferentes modelos e perspectivas sobre a perversão.
Esta pesquisa também observou que a preocupação com a caracterização psicopatológica está em baixa dentro do ambiente acadêmico em função de uma maior preocupação com uma compreensão mais social sobre o tema da perversão. Se as discussões propriamente psicodinâmicas e estruturais têm diminuído em detrimento dessa abordagem mais ampla de crítica sociológica e histórica sobre a perversão como produto de uma ordem médica e jurídica própria da modernidade, ela não exclui a necessidade de uma elaboração teórica no campo específico da psicopatologia psicanalítica. Além disso, também pudemos notar falta de aprofundamento e mesmo de teorização na discussão do contexto social e cultural das perversões, que muitas vezes se resume a uma retomada histórica do conceito ou a uma desconstrução geral da própria noção de normatividade moral e sexual.
Muito embora a pesquisa tenha prezado em seus objetivos por fazer um recenseamento de caráter exploratório e descritivo do que atualmente se publica no campo das perversões, uma vez que fora delineada dentro dos parâmetros de uma revisão de literatura, julga-se que essa circunscrição tenha limitado um fecundo aprofundamento em questões bastante pertinentes ao tema e que não foram muito explorados por outros autores, como é o caso da questão das perversões masculina/feminina e das perversões morais/sexuais mencionadas no artigo. Assim, seria cabível um aprofundamento tanto dessas linhas de investigação como de possíveis outras em novas pesquisas. Além disso, ainda que a questão sobre a escolha da palavra "psicopatologia" para fazer o levantamento bibliográfico possa parecer restritiva, após diversas reflexões sobre o tema, tanto por fazer parte do recorte proposto pela pesquisa, refletindo uma abordagem específica à subjetividade, como em função dos descritores catalogados na base de descritores em psicologia mantida pelo próprio portal de pesquisas, que são inclusive referência para o estabelecimento de palavras-chave em publicações e trabalhos acadêmicos, entende-se que, mesmo que seja uma limitação dos próprios instrumentos de pesquisa e uma circunstância da área de psicologia, a utilização do termo tenha, de certa forma, conferido um viés na pesquisa. Seria cabível uma possível modificação dos termos chave utilizados na base de dados para pesquisas futuras.
Diante do exposto, concluímos que, dentro dos limites do presente estudo, a caracterização psicopatológica das perversões ainda é uma questão a ser amadurecida e sistematizada na psicanálise da atualidade.
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Endereço para correspondência
Camilla Ferreira dos Santos
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP
Faculdade de Ciências de Bauru - Departamento de Psicologia
Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, CEP 17033-360, Bauru – SP, Brasil
Endereço eletrônico: kmilla182@hotmail.com
Érico Bruno Viana Campos
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP
Faculdade de Ciências de Bauru - Departamento de Psicologia
Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, CEP 17033-360, Bauru – SP, Brasil
Endereço eletrônico: ebcampos@fc.unesp.br
Recebido em: 06/30/2015
Reformulado em: 10/21/2015
Aceito em: 05/05/2016
Notas
* Estudante de graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) no Campus de Bauru e bolsista de Iniciação Científica pela FAPESP.
** Professor assistente doutor do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências de Bauru da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).