19 Biomusicalidade, Experiência e Awareness Coletiva: Gestalt-Terapia e Musicoterapia no Cuidado de Pais e Bebês 
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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.19 no.spe Rio de Janeiro  2019

 

RESENHA

 

Resenha do Livro Situações Clínicas em Gestalt-terapia

 

Book Review Clinical Situations in Gestalt-therapy

 

Revisión del Libro Situaciones Clínicas en la terapia-Gestalt

 

Erika da Silva Araujo*; Deborah da Silva de Souza**

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Frazão, L. M., & Fukumitso, K. O. (Orgs.). (2019). Situações clínicas em Gestalt-terapia (Coleção Gestalt-terapia: fundamentos e práticas - 06). São Paulo, SP: Summus Editorial.

 

Situações clínicas em Gestalt-terapia é o sexto livro da série Coleção Gestalt-terapia: fundamentos e práticas e foi publicado em 2019. Em sua apresentação,as organizadoras Lilian Meyer Frazão e Karina Okajima Fukumitsu nos introduzem à obra, que foi pensada a partir da proposta de se criar uma conexão entre a teoria e o trabalho prático na clínica gestáltica. A obra é composta por nove capítulos, escritos por onze autores, e tem o cuidado de explorar uma diversidade de situações clínicas, incluindo trabalhos de longo prazo, atendimentos a diferentes faixas etárias e a diferentes temáticas. Os autores relatam os desafios e as possibilidades encontradas em suas práticas, valorizando sempre a sensibilidade das narrativas e o caráter de resgate através do processo de crescimento singular em cada acompanhamento. O livro é também uma homenagem a Jean Clark Juliano, gestalt-terapeuta falecida em 11 de setembro de 2016, que teve grande relevância na Gestalt-terapia brasileira, ao trazer o processo terapêutico como uma "arte de restaurar histórias". Com isso, inspirado em Juliano, o volume tem o intuito de apresentar como é possível "restaurar histórias", através do relato de diversos atendimentos clínicos.

Aparentemente, seguindo a ideia de Juliano (Juliano, 1999) sobre o processo terapêutico como uma dimensão de arte, o primeiro capítulo foi escrito por Selma Ciornai, relevante arte-terapeuta a trabalhar com a Gestalt-terapia, e é denominado Atendendo em Gestalt-terapia. Selma apresenta dois atendimentos clínicos onde nos aproxima da experiência tanto de gestalt-terapeuta, quanto de arte-terapeuta. Sua escolha dos relatos se torna particularmente interessante quando ela sustenta para o leitor a importância do respeito à disponibilidade do cliente para o trabalho com a arte, o que pode ou não acontecer. No primeiro relato, que se restringe a uma sessão, o processo de awareness acontece mediado por um experimento mais clássico em Gestalt-terapia, enquanto no segundo relato a autora nos oferece flashes de um acompanhamento de alguns meses, em que a abertura para um trabalho envolvendo as artes plásticas pôde ser integrado como potente recurso ao atendimento. A todo momento, a autora busca situar o terapeuta em relação aos cuidados aos quais esse lugar convoca, uma preocupação com os leitores que estão em processo de formação.

O segundo capítulo, escrito por Beatriz Helena Paranhos Cardella, chama-se A mulher-almirante, a menina-náufraga e a terapeuta-âncora. A metáfora náutica trazida por sua cliente nos embala agora nesse capítulo, no movimento inconstante e desafiador de um processo terapêutico. Seu começo é justamente no primeiro encontro terapeuta-cliente e já aí nos convoca a olhar tanto para o cliente, quanto para o terapeuta, na formação e sustentação do que é relevante para cada um nessa relação para que o vínculo possa surgir de forma autêntica, potente e ética. O contrato surge para dar o contorno inicial a esse processo, como cuidado da terapeuta consigo e a possibilidade de uma cliente tão voltada a cuidar dos outros se autorizar, então, a ocupar um outro lugar, de quem é cuidada. O vínculo acontece sustentado pelas fronteiras estabelecidas e pela ética. São cinco anos de processo resumidos pela autora em suas passagens mais significativas, onde a grande figura é a relação terapêutica como experimentação capaz de permitir a exploração de novas formas de navegar e ancorar.

O terceiro capítulo foi escrito por Maria Aparecida Barreto e chama-se O significado de ajuda em psicoterapia. Atravessada pelas palavras erro e ajuda, que perpassam as mentes de muitos terapeutas, Maria Aparecida nos convoca a buscar suporte no terapeuta enquanto corpo e sua corporeidade como lugar de saber, convocando a confiar nos sentidos, no coração e nas intuições como suporte à teoria. A autora compartilha a dificuldade de comunicação com a cliente que, vivenciando um ajustamento psicótico, se mostrava com muita dificuldade para ouvir a terapeuta e estabelecer contato, mas que ainda assim se fazia presente por meses a fio. A confiança e o vínculo que se estabeleceu, foi a base para o caso descrito. Foram 18 anos de acompanhamento terapêutico e manejo de crises complexas, onde o que aparece como figura nos relatos é a construção de um cuidado legitimador da existência, que demandou respeito e paciência no tempo necessário para sua cliente, sem pressa. Desapegar das preocupações iniciais de diagnóstico, prognóstico, eficiência e resultado foram requisitos para poder mergulhar na experiência fenomenológica, do corpo vivo, em contato, no tempo da cliente para se permitir que um outro a acompanhe nesse processo.

O Quarto capítulo, O mundo onírico e o mundo desperto: o desdobramento da expressão existencial, de Fátima Aparecida Gomes Martucelli, revisita a relação dos sonhos com os indivíduos na cultura e na psicoterapia para então nos apresentar uma situação clínica. O sonho é trazido a partir dos pressupostos da abordagem gestáltica, como uma experiência existencial em busca de integração de suas partes e que trazem grande mobilização de energia. A integração das partes alienadas é capaz de formar um todo, fechar uma gestalt. O caso apresentado traz também a experiência de um trabalho em grupo, com suas potências e reverberações, onde o tema "sonhos recorrentes" ocupou o ponto central dos encontros.

O quinto capítulo, de Lucas Caires Santos e Sérgio Lizias Costa de Oliveira Rocha, denominado A performance de gênero em Gestalt-terapia, apresenta o processo de transexualização de um sujeito e a complexidade de aspectos envolvidos em tal experiência, a partir de considerações gestálticas. A vivência de João (nome fictício) é acompanhada através da criação de um documentário e na importância que tal produção teve para que João se apresentasse de forma nova aos seus colegas, e para que estes entendessem o que João estava experienciando. Neste sentido, o texto nos mostra o quanto uma escolha individual percorre o caminho coletivo, pois o sujeito em muitos momentos é confrontado por um ambiente que não assimila com facilidade outras formas de ser. Desta maneira, o capítulo aborda o conceito de performance de gênero da filósofa Judith Butler a partir de uma noção de recriação do corpo, em que no caso de João, seu corpo feminino vindo da biologia vai se tornando fundo para emergir caracteres masculinos. Deste modo, João vai rompendo com alguns parâmetros que a história, a vida em comunidade e a cultura consideram comuns a todos, para buscar o corpo que deseja e encontrar a sua forma possível de estar no mundo, conduzindo a sua própria história através das múltiplas possibilidades de seu vir a ser. Vale ressaltar que, a partir da transexualidade, o capítulo aborda um tema pouco trabalhado na literatura da abordagem gestáltica.

O sexto capítulo de título Rosa: da ansiedade pela perda do outro à awareness sobre a perda de si, escrito pelos autores Luciane Patrícia Yano e Alysson de Oliveira Mendes, aborda o caso clínico de Rosa (nome fictício) que apresentou sinais e sintomas de fobia e alta ansiedade. Rosa relatou o motivo de procurar psicoterapia por sentir um intenso medo de morrer, tremores, taquicardia e por chorar copiosamente, atribuindo seu sofrimento ao enlutamento pelo esposo e por perceber a necessidade de resgatar sua autonomia. Através de 18 sessões de psicoterapia individual (inicialmente semanais e posteriormente quinzenais), realizadas por um dos autores, o texto nos apresenta como se deu tal acompanhamento, desde a chegada da cliente, até a finalização do processo terapêutico. Com isso, os autores relatam a história de Rosa e o desdobramento psicoterápico do seu processo através de cinco etapas, sendo elas: vinculação; identificação dos riscos e encaminhamentos; desenvolvimento do autossuporte e redução das crises; identificação das interrupções de contato predominantes; ressignificação dos sintomas e finalização coparticipativa do processo psicoterapêutico. Assim, seguindo os pressupostos filosóficos e epistemológicos da Gestalt-terapia, é possível acompanhar a situação clínica da cliente sendo apresentada de forma processual e implicada, em que a psicoterapia possibilitou a Rosa o fortalecimento do autossuporte, bem como o desenvolvimento de autonomia e autoconfiança, ampliando sua disponibilidade para uma nova maneira de viver.

O capítulo sete chama-se A delicada ponte entre mundos: ansiedade, sofrimento e a experiência livre de tornar-se adulto na contemporaneidade, e com este texto a autora Laura Cristina de Toledo Quadros nos relata sua experiência terapêutica acompanhando um rapaz que aos 20 anos procura psicoterapia por se sentir paralisado diante do processo que o levaria da vida juvenil à vida adulta. Miguel (como foi chamado neste relato) levou, como questão inicial ao setting, a dificuldade de ler e absorver o conteúdo dado na graduação e as reverberações que isto estava trazendo em sua vida. É com a história de Miguel, permeada por desafios e surpresas, que a autora nos alerta sobre termos cuidado com os atalhos, com os truques que nos prometem rapidez, mudança, cura e que nos desviam dos caminhos necessários de seguirmos em nossa prática, nos impedindo, assim, de construir uma jornada potente que emana na relação através da sensibilidade, da paciência e da cautela. Neste sentido, o capítulo nos apresenta um processo que se teceu a partir de um fazer gestáltico, integrando ciência e arte ao acompanhar a travessia de Miguel, através de uma delicada ponte entre mundos que emergia na relação entre terapeuta e cliente, em que ambos puderam viver juntos tal processo de forma cuidadosa, criativa, potente, marcada pelas possibilidades do encontro e pela disponibilidade em apreciar as paisagens inusitadas que podem surgir no trajeto da psicoterapia.

O capítulo oito foi escrito pela autora Rosana Zanella e se chama Gestalt, crianças e crescimento. Nele, a autora compartilha sobre um caso clínico com uma criança de 6 anos, a qual escolhe chamar de Pedro. A queixa a ele atribuída era a falta de comunicação, em que Pedro não conversava com as pessoas que faziam parte do seu convívio, como professores, colegas e parentes, se calando em diversas situações sociais. A partir da história de Pedro, Rosana Zanella aborda sobre o atendimento infantil em Gestalt-terapia, explanando sobre a importância de percebermos a criança como um todo, incluindo seu sintoma, bem como a parte saudável que a constitui, estimulando sua criatividade, suas potencialidades, suas possibilidades, seus sentimentos e suas emoções. Outro aspecto importante, apresentado no texto pela autora, diz respeito à tarefa do terapeuta infantil em estabelecer um forte vínculo com a criança e resgatar sua própria criança interior, como modo de compreender a criança acompanhada da melhor forma possível. Com isso, através de 80 sessões com frequência bissemanal, o espaço de encontro e vínculo entre terapeuta e cliente foi se construindo, e outras formas de comunicação foram se mostrando pela via do brincar. Então, a riqueza interior de Pedro ganhava forma e ele pôde seguir na construção do autossuporte, do heterossuporte e na reconfiguração de sua existência de criança.

O nono e último capítulo, da autora Eleonôra Torres Prestrelo, tem como título "Não precisamos ficar sozinhos..." - Desdobramentos de uma prática gestáltica de cuidado e compartilha a narrativa de uma sessão de grupo que ocorreu através de um projeto de extensão denominado "GAPsi: grupos de apoio psicológico". Tal projeto é coordenado pela autora e desenvolvido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro com alunos e alunas do curso de Psicologia, tendo como referencial teórico-metodológico a abordagem gestáltica e a terapia comunitária. O GAPsi tem como intuito o favorecimento para que os integrantes do grupo se conectem com o vivido, estimulando uma pausa para o ouvir, o escutar, o sentir e suas infinitas reverberações, através de um espaço de troca e compartilhamento que se propõe assimétrico. Neste sentido, a autora nos apresenta a narrativa de um dos encontros do GAPsi, em que Maria (nome fictício) compartilha sobre a ansiedade que sente em querer controlar as coisas ao seu redor, o que a faz perder o sono. A autora nos alerta que muitos dos temas que surgem nos encontros são questões comuns, que circulam em muitos estudantes presentes na universidade. Após o relato de Maria e o acolhimento de seus sentimentos, o cuidado reverberou no grupo e se expressou através de um abraço coletivo e, com isso, a autora nos transporta para uma experiência de encontro, de partilha, de redes de suporte e de apoio construídas, em que é possível pensar no trabalho em grupo como a tecitura de um olhar de reconhecimento de si e no outro, além da compreensão da possibilidade de seguir acompanhados, pois como diz a frase de uma das alunas "Não precisamos ficar sozinhos...".

Assim, considerando a obra em seu todo, a partir das várias temáticas abordadas de forma sensível e cuidadosa pelos autores através de situações clínicas, bem como do domínio teórico exposto, pode-se ressaltar que a sua publicação representa uma contribuição importante na articulação entre teoria e prática na clínica em Gestalt-terapia. Por apresentar um caráter didático, a obra é um potente recurso não apenas para psicólogos e gestalt-terapeutas, como também para a formação clínica de graduandos.

 

Referências

Frazão, L. M., & Fukumitso, K. O. (Orgs.). (2019). Situações clínicas em Gestalt-terapia (Coleção Gestalt-terapia: fundamentos e práticas - número 6). São Paulo, SP: Summus Editorial.         [ Links ]

Juliano, J. C. (1999). A arte de restaurar histórias - O diálogo criativo no caminho pessoal. São Paulo, SP: Summus Editorial.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Erika da Silva Araujo
Rua Barão de Mesquita, 248 apto 402, Tijuca, CEP 20540-003, Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Endereço eletrônico: esaraujo.psi@gmail.com
Deborah da Silva de Souza
Rua Leonel Carvalhaes de Souza, 11 quadra 7, Caramujo, CEP 24141-162, Niterói - RJ, Brasil
Endereço eletrônico: deborah_de_souza@yahoo.com.br

Recebido em: 13/10/2019
Reformulado em: 30/01/2020
Aceito em: 07/02/2020

 

 

Notas

* Graduada em Psicologia (UERJ). Mestra em Ciências Biológicas (PPGZOO-UFRJ). Doutoranda em Psicologia Social (PPGPS-UERJ). Especialista em Gestalt-terapia (USU).
** Graduada em Psicologia (UERJ). Mestra em Psicologia Social (PPGPS-UERJ). Doutoranda em Psicologia Social (PPGPS-UERJ).

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

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