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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.20 no.spe Rio de Janeiro dez. 2020
https://doi.org/10.12957/epp.2020.56658
Estudos e Pesquisas em Psicologia
2020, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2020.56658
ISSN 1808-4281 (online version)
ARTIGOS
A Mediação Fenomenológica-Hermenêutica em Paul Ricoeur: Uma Proposta ao Psicoterapeuta Frente o Imediatismo da Consciência
The Phenomenological-Hermeneutics Mediation in Paul Ricoeur: A Proposal to the Psychotherapist in Face of the Immediacy of Conscience
La Mediación Fenomenológica-Hermenéutica en Paul Ricoeur: Una Propuesta al Psicoterapeuta ante la Conciencia Inmediata
Jefferson da Silva*
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unisal, Lorena, SP, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
O artigo tem como objeto apresentar a perspectiva fenomenológica-hermenêutica de Paul Ricoeur como um caminho para o psicoterapeuta fenomenológico frente ao risco do imediatismo da consciência que se julga autoevidente. O processo metodológico adotado baseia-se em pesquisa bibliográfica, com o objetivo de compreender os conceitos de fenomenologia, hermenêutica e aplicá-los à psicoterapia. O filósofo Paul Ricoeur partindo da crítica ao idealismo husserliano afirma que a consciência só pode se compreender para além de si mesma, perpassando pelas mediações. É pela crítica ao idealismo que se aproximará a perspectiva ricoeuriana do psicoterapeuta fenomenológico. Para ele, a hermenêutica é uma tarefa que exige esforço e desejo de ser, perpassando as obras da cultura, e, assim, possibilitando que a existência faça sentido. É por esse caminho, partindo da perspectiva ricoeuriana, que o psicoterapeuta também é convidado a sair de si mesmo e mergulhar por entre as obras da cultura, para poder compreender e ajudar seu cliente. É por via da mediação com tais obras que é possível oferecer ao psicoterapeuta uma visão mais ampla do seu cliente.
Palavras-chave: fenomenologia, psicoterapeuta, hermenêutica, mediação.
ABSTRACT
This article has as objective to present the phenomenological-hermeneutics perspective of Paul Ricoeur as a path for phenomenological psychotherapist in face of the risk of the immediacy of the consciousness that judges itself self-evident. The methodological process adopted is based on bibliographical research, with the objective of understanding the concepts of phenomenology, hermeneutics and to apply them to the psychotherapy. The philosopher Paul Ricoeur, starting from the critique of husserlian idealism, affirms that conscience can only understand itself beyond itself, passing through mediations. It is by the critique of idealism that will approach the ricoeuriana perspective of the phenomenological psycotherapist. For the philosopher, hermeneutics is a task that requires effort and desire of being, permeating through the works of culture, and, thus, enabling that existence makes sense. It is by this path, from the ricoeuriana perspective, that the psycotherapist is also invited to leave himself and dive among the works of culture, to be able to understand and help his/her client. It is by way of mediation with such works that it is possible to offer to the psychotherapist a larger vision of his client.
Keywords: phenomenology, psycotherapist, hermeneutics, mediation.
RESUMEN
El artículo pretende presentar la perspectiva fenomenológico-hermenéutica de Paul Ricoeur como una forma para el psicoterapeuta fenomenológico frente al riesgo de la inmediatez de la conciencia que se considera evidente. El proceso metodológico adoptado se basa en la investigación bibliográfica con el objetivo de comprender los conceptos de fenomenología, hermenéutica y aplicarlos a la psicoterapia. El filósofo Paul Ricoeur, a partir de la crítica del idealismo husserliano, afirma que la conciencia solo puede comprenderse a sí misma más allá de sí misma, pasando por mediaciones. Es a través de la crítica del idealismo que se abordará la perspectiva ricoeuriana del psicoterapeuta fenomenológico. Para él, la hermenéutica es una tarea que requiere esfuerzo y deseo de ser, que impregna las obras de la cultura y, por lo tanto, permite que la existencia tenga sentido. Es en ese camino, desde la perspectiva ricoeuriana, que el psicoterapeuta también está invitado a dejarse y sumergirse en las obras de la cultura, para comprender y ayudar a su cliente. Es a través de la mediación con tales trabajos que es posible ofrecer al psicoterapeuta una visión más amplia de su cliente.
Palabras clave: fenomenología, psicoterapeuta, hermenéutica, mediación.
Pertencer ao mundo, relacionar-se com seus objetos e com os outros não é uma tarefa fácil; no entanto, com o advento da modernidade e, depois, com a instalação da dúvida cartesiana e a linhagem de muitos outros pensadores dessa mesma matriz filosófica, a confiança indubitável no pensar coloca a primazia na reflexão como evidência imediata. Priorizando o pensar, quem duvidará que esteja se relacionando com o outro ou com o mundo? A dúvida parece ter ficado em segundo plano para o sujeito pensante, pois quem poderia duvidar da certeza do seu próprio pensar.
O problema da confiança indubitável no pensar é a ampliação de seu horizonte como compreensão de si mesmo, das coisas e do mundo. Dessa forma, o pensar torna-se um conceito dogmático aferindo uma falsa legitimidade para todas as circunstâncias e coisas. Contra essa posição imediata e autoevidente da reflexão ou transparência absoluta na imanência da consciência, o filósofo Paul Ricoeur irá empreender sua interpretação filosófica. É justamente aqui, partindo dessa perspectiva fenomenológico-hermenêutica, que o presente artigo pretende refletir sobre os riscos que um psicoterapeuta pode ter em suas sessões, quando não coloca em questão suas próprias convicções e interpretações. Parece que o ceticismo cartesiano, renovado pela fenomenologia husserliana e retomado por muitos pensadores, faz-se mais necessário do que nunca, diante de posicionamentos e teorias fechadas e inquestionáveis.
É passando pelo convite de se colocar em questão que a perspectiva de Paul Ricoeur, pela mediação, pode contribuir para uma metanoia do sujeito e, consequentemente, do psicoterapeuta consigo mesmo e nas sessões com seus clientes.
Para tal investigação, primeiramente, será posto o problema cuja reflexão envolve a questão da fenomenologia e o possível modo de compreender do psicoterapeuta nos seus limites e desafios. No segundo momento, adentrando na perspectiva fenomenológico-hermenêutica de Paul Ricoeur, pretende-se refletir sobre o idealismo husserliano e a possibilidade de gerar uma consciência falsa no psicoterapeuta. Por fim, desenvolvendo o conceito de hermenêutica no filósofo investigado, pretende-se discutir um caminho de compreensão para o psicoterapeuta, principalmente, o formado na abordagem fenomenológica husserliana.
Entre a Suspensão dos Juízos e o Psicoterapeuta: Ingerência das Referências
Na perspectiva da fenomenologia em Husserl (2010), o termo fenômeno, é tudo aquilo que aparece ou surge no campo da consciência como algo puro e absoluto. A consciência é sempre consciência de alguma coisa. Ela sempre possui suas intenções que podem ser baseadas no pensamento natural ou no pensamento filósofo. Ele propõe, baseando-se no pensamento filosófico, através da epoché, a suspensão dos juízos, apreender os objetos em carne e osso ou como esses se dão em si mesmos (Husserl, 2006). Isso significa a apreensão do objeto ou da realidade como se apresenta em si mesma, a realidade como ela é. Como afirma Heidegger (2015) "o que se mostra em si mesmo." (p. 67). Quer-se dizer que, na compreensão filosófica de Husserl, aí se tem uma redução fenomenológica, ou seja, uma descrição do fenômeno.
Segundo Husserl, o que se dá à consciência para ser apreendido na sua esseidade não é o objeto real, mas o vivido intencional; isso significa que é a mais primitiva originalidade que se dá a conhecer pela intuição, quando um sujeito se abstém de sua crença no mundo natural e procura apreender a essência através das várias visadas, ou seja, conforme se dirige ao objeto que vem ao seu encontro.
É importante destacar que a intuição das essências não é nenhum ato místico, mas uma intuição que se dá a partir dos fenômenos. A "fenomenologia não se alarga a nenhum outro lugar, a nenhum outro mundo, mas ao próprio lugar da experiência natural enquanto essa ignora seu sentido." (Ricoeur, 1989, p. 52). Pode-se afirmar que a redução é suspensão de ideias pré-estabelecidas, sejam crenças, ideologias ou preconceitos, em vista de apreender os fenômenos em si mesmos, diretamente ou como vivenciados.
Tendo como base esses pressupostos da fenomenologia e aproximando esses da psicoterapia e, da perspectiva fenomenológico-hermenêutica de Paul Ricoeur, pode-se perguntar: qual deveria ser a compreensão do psicoterapeuta nas sessões em vista de apreender as vivências do cliente como elas de fato se dão? Procurando responder a essa questão, é importante delimitar que a reflexão desse artigo é objeto de pesquisa incipiente, uma tentativa de aproximar a perspectiva filosófica-hermenêutica de Paul Ricoeur da psicoterapia. Sendo assim, o artigo fará um recorte da questão da Fenomenologia e da Hermenêutica na obra Do Texto à Ação, tentando encontrar luzes para psicoterapia na abordagem fenomenológica.
Karl J., um dos precursores na aplicação da fenomenologia à pesquisa psiquiatria, afirma: "À fenomenologia compete apresentar de maneira viva, analisar em suas relações de parentesco, delimitar, distinguir de forma mais precisa possível e designar com termos fixos os estados psíquicos que os pacientes realmente vivenciam." (Jaspers, 1987, p. 71).
Pode-se dizer que o psicoterapeuta, partindo da abordagem fenomenológica, é convidado a apreender o fenômeno psíquico do cliente naquilo que ele vivência, que vai além do dado imediato, além dos fatos, mas o vivido intencional. O psicoterapeuta, metodicamente, deverá apreender o essencial, o compreensível entre a vivência experimentada ou vivenciada e o psíquico intencional do cliente. Ele "não [...] pode perceber diretamente um fenômeno psíquico de outrem, assim como se percebe um fenômeno físico, só se poderá tratar de representação [...] pelo meio de levantamento de uma série de caracteres e símbolos" (Jaspers, 1987, p. 71).
O psicoterapeuta, pela redução fenomenológica, é convidado a encontrar as experiências vivenciadas do seu cliente, os significados dos objetos do seu mundo ideal. O cliente, por sua vez, com a ajuda do psicoterapeuta poderá aprender a lidar com as experiências vividas e representadas, mas para isso, como afirma Berg (1981), é necessário deixar o sistema habitual de pensamento. Isso significa abandonar a atitude natural, o mundo dado, ou seja, os pensamentos padronizados e tentar descobrir uma nova possibilidade de compreender a si mesmo e o mundo.
O cliente, assim como o psicoterapeuta, é convidado a abandonar os conhecimentos prévios, estabelecidos para apreender as experiências naquilo que elas são, fugindo assim de idealizações desproporcionais para si mesmo.
É nessa possibilidade de compreender que as sessões na relação terapeuta/cliente deveriam acontecer. À luz da fenomenologia, o psicoterapeuta não deveria ir para as sessões munido de uma teoria que explique, previamente, os fenômenos, pois é convidado a se colocar diante do cliente sem prévias considerações ou especulações. No entanto, não parece ilusório acreditar que as pessoas conseguem distanciar-se de suas referências na relação terapeuta/cliente?
Segundo Sapienza (2015), na suspensão dos juízos, epoché, é necessário saber o que está suspendendo, pois para ela não é razoável ignorar todo o conhecimento que a psicologia já acumulou no que diz sobre o homem. O profissional não pode ignorar as ciências e os saberes todos que descrevem o homem. Mas, o profissional, segundo ela, não pode ter pressa em aplicar sobre o cliente determinadas teorias psicológicas; ao contrário, ele deve aprender a esperar e permitir que o fenômeno manifeste-se, revele-se por si mesmo. As conjecturas, hipóteses e diagnósticos apressados podem limitar a interpretação do psicoterapeuta e enquadrar o cliente uma visão unilateral.
Por isso, o psicoterapeuta, à luz da fenomenologia, é convidado a abandonar as teorias estabelecidas e apreender a esperar a manifestação do fenômeno. Como diz Husserl, dirigindo-se aos filósofos: "todo aquele que queria seriamente tornar-se um filósofo deve, uma vez na vida, recolher-se em si próprio e procurar, dentro de si próprio, destruir todas as ciências já dadas e de novo a construir." (Husserl, 2010, p. 15). A suspensão do mundo natural é uma condição prévia para a apreensão da essência, as visões cientificistas podem reduzir a compreensão do ser humano e principalmente da pessoa que procura ajuda para sua demanda. Mas, é importante destacar mais uma vez, como afirma Sapienza (2015), suspensão não significa ausência completa de referência.
É justamente aqui, no entrelaçamento ou nos limites entre a suspensão de juízos e as teorias já adquiridas, seja na formação e com outros artifícios, que a proposta fenomenológico-hermenêutica em Paul Ricoeur pode contribuir, pois oferece uma alternativa para que a relação terapeuta/cliente se desloque do autocentramento de um e outro e entre eles se abra uma relação que vá além de suas próprias autorreferrências.
A Crítica Ricoeuriana ao Idealismo Husserliano: Pertencimento e Distanciamento
Paul Ricoeur (1978) em suas reflexões filosóficas abordará sua aproximação com a fenomenologia de Husserl e ao mesmo tempo seu distanciamento, realizando o que ele chama de enxerto hermenêutico na fenomenologia. Rejeita o imediatismo cartesiano e o idealismo husserliano e ao mesmo tempo realiza o desdobramento filosófico por uma hermenêutica entendida como reflexão mediada (Ricoeur, 1995). Diz ele, "foi contra o primeiro Husserl, contra as tendências alternadamente platonizantes e idealizantes de sua teoria da significação e da intencionalidade, que se edificou a teoria da compreensão." (Ricoeur, 1978, p. 12). Ele se afasta no que diz respeito a um sujeito idealista fechado em seu sistema de coordenadas imanente a si mesmo (Ricoeur, 1995).
Paul Ricoeur crítica principalmente alguns temas da fenomenologia de Husserl, como: a ausência de pressuposição que aspira a um ideal de cientificidade, o processo de redução eidética, de modo especial a intuição absoluta e a redução transcendental que desemboca no ego transcendental.
O filósofo Edmund Husserl (2010), à semelhança de Descartes ou pretendendo ir além dele, tem como meta uma completa reforma da filosofia numa ciência baseada na fundamentação absoluta. Afirma ele: "todo aquele que queira seriamente tornar-se filósofo deve, ‘uma vez na vida', recolher-se em si próprio e procurar, dentro de si próprio, destruir todas as ciências que, até então, para ele valiam, para de novo as construir." (Husserl, 2010, p. 52).
Husserl se coloca na empreitada de refletir sobre a fundamentação radical para a filosofia, pois o que existia, não é uma filosofia autêntica, mas uma série de ciências autônomas e uma crescente literatura filosófica, sem limites e quase sem coerência. Por isso, ele, assim como realizou Descartes, procurou desenvolver seu pensamento filosófico, voltando-se para o sujeito como polo intencional, portador de visada.
Husserl (2010), em sua obra Meditações Cartesianas, elogia Descartes que, partindo da dúvida, volta para si mesmo descobrindo a subjetividade transcendental, mas o critica por não sido radical ao dar prioridade ao sujeito.
Para ele o radicalismo cartesiano não vai bastante fundo no problema da subjetividade, "não transpôs a porta de entrada que conduz à autêntica Filosofia Transcendental." (Husserl, 2010, p. 72). É aí que Husserl empregará seus esforços para fundar uma filosofia com ausência de pressuposição. Buscará, a partir de como as coisas do mundo se apresentam à consciência, apreender o eidos inteiramente puro de quaisquer posições de fatos (Husserl, 2006). Entretanto, para se chegar à apreensão do eidos ou à justificação última das ciências, é necessário ir além de um conhecimento natural, pois este "começa pela experiência e permanece na experiência." (Husserl, 2006, p. 33).
Seu horizonte de investigação são os fatos do mundo e considera esses como ser verdadeiros, isto é, como ser real, sem mesmo passar por uma crítica reflexiva. Logo, o que gera o conhecimento natural é uma atitude natural que seria uma atitude ingênua que admite que as coisas presentes no mundo existem em si mesmas, como verdade independente do sujeito. É uma atitude que "caracteriza-se, precisamente, pela fé ingênua na realidade e na permanência do mundo percepcionado." (Kelkel & Schérer, 1954, p. 41).
Segundo Ricoeur, a radicalidade reivindicada pela fenomenologia "é uma tese combatente que sempre tem um inimigo em vista: que seja o objectivismo, o naturalismo, a filosofia da vida, a antropologia." (Ricoeur, 1989, p. 51). Seria um combate constante a toda e qualquer relação ingênua com o mundo e as coisas do mundo.
A fenomenologia reivindica uma radicalidade que não procede por uma demonstração ao modo das ciências experimentais, mas em uma fundação última que possa assegurar a equivalência e a convergência das vias, da lógica cartesiana, psicológica, histórico-teleológica etc. A meta husserliana é uma completa reforma da filosofia em busca de uma fundamentação que seja sustento de todas as outras ciências. O caminho para esta fundamentação, como já se afirmou, é suscitado pela ausência absoluta de pressuposição (Ricoeur, 1989).
Para se atingir essa total ausência de pressuposição, torna-se necessário construir uma filosofia que não parta de pré-conceitos, mas da evidência perfeita que consiste no esforço para atingir as coisas mesmas ou o eidos (Husserl, 2010). É importante destacar que, para Husserl, as coisas do mundo, bem como as ciências, em vez de serem um modo natural de crença de ser e de experiência, são apenas uma apreensão do ser, apenas um fenômeno que aparece diante da consciência. "Numa palavra, não apenas a Natureza corpórea, mas também o mundo inteiro circundante concreto da vida será doravante, para mim, em vez de algo que é, apenas fenômeno de ser." (Husserl, 2010, p. 67).
Ele não duvida da existência das coisas do mundo, porém estas coisas são, simplesmente, dados que se dão à consciência que visa, são fenômenos.
É importante destacar que, para o filósofo alemão, reduzir as coisas do mundo ou o mundo circundante a fenômeno não significa uma abstração, mas uma mudança de atitude da consciência perante o mundo, uma conversão do sujeito. Diz ele, na sua obra Conferências de Paris, que "o ego cogito deve incluir mais um elo: cada cogito tem em si como visado o seu cogitatum." (Husserl, 2010, p. 24). Significa afirmar que a consciência é sempre consciência de algo. A consciência está sempre direcionada para fora e vivência em si mesma o visado. O sujeito se encontra no mundo e se relaciona com este a todo instante e, ao mesmo tempo, as coisas do mundo se oferecem a este sujeito que se encontra mergulhado nele (Husserl, 2006).
O sujeito que tem consciência que é sempre consciência de algo, tendo somente uma atitude natural diante dos fenômenos que se manifestam a ele, acaba apreendendo somente a aparência das coisas e não o que estas coisas são realmente. Daí torna-se necessária a consciência que visa uma forte decisão crítica de apreender a evidência que se dá por meio dos fenômenos, "ela assume o caráter de uma síntese pela recuperação exata da intuição e da evidência correspondente, a intuição evidente de que essa intenção, até então ‘distanciada da coisa', é exata." (Husserl, 2001, p. 28).
A consciência, com sua forte decisão de apreender as coisas do mundo na sua esseidade, quando abandona suas pressuposições, esvaziando-se perante as coisas que se dão a ela naturalmente, tem a possibilidade, pela intenção vazia, de se preencher e se completar pelo eidos que se deixa conhecer pela visão (Husserl, 2001). O eidos não é somente algo que se encontra nas coisas do mundo, mas também depende de uma consciência que possui a intencionalidade de uma evidência adequada, da intencionalidade de apreender a "verdade" da coisa.
Em outras palavras, o modo ou o lugar de apreensão da verdade das essências (eidos) é a intuição, "ela que traz o objeto à doação': como percepção, ela o traz à doação originária, à consciência que apreende ‘originariamente' o objeto em sua ipseidade ‘de carne e osso'." (Husserl, 2006, p. 37). Segundo Husserl, todo este processo de ausência de pressuposição, de redução à essência da coisa por meio da intuição vazia que é preenchida pela essência da coisa é chamado de redução eidética.
Para se realizar a redução eidética, é necessário um certo rigor fenomenológico, uma descrição que se dá pela visão. Diz Ricoeur (1989) "toda a questão principal se decide na visão." (p.52). A descrição dos fenômenos não é uma descrição ingênua como a de um sujeito que simplesmente vive por entre as coisas do mundo, mas uma descrição rigorosa que, segundo Husserl, é "operada" por uma dupla objetivação: primeiro pela intencionalidade que significa considerar, como se afirmou acima, que a consciência é sempre consciência de alguma coisa, ou seja, a consciência só é, quando se dirige para algo fora de si, quando está em relação com as coisas do mundo; e, por sua vez, as coisas do mundo só podem "ser" ou só podem ser descritas na sua relação com a consciência.
É importante destacar que a essência apreendida pela consciência não se encontra nem fora e nem dentro dela, mas se dá pelo fato de a consciência poder visar a apresentação (presença) da coisa em si mesma e poder fazer enunciados, ou melhor, um visar que pode descrever as essências.
Tendo refletido o tema husserliano de ausência de pressuposição, e o tema do processo da redução eidética, no que se refere à intuição, resta aqui refletir a respeito da redução transcendental e a questão do ego transcendental.
Adentrando na questão da redução transcendental, pode-se dizer que consiste em suspender todos os juízos relativos ao mundo circundante, o que significa realizar uma epoché, tirar de circuito, por entre parênteses o mundo real, não admitindo nenhum dado que implique pressuposto ou preconceito. É com a epoché que a existência do mundo é retirada de circuito, encontra-se em suspensão, revelando que as coisas são somente para a consciência. A consciência mencionada aqui não é de um eu psicológico, pois o filósofo alemão é tão radical na redução que a aplica até mesmo ao sujeito que visa e aos seus atos. Segundo ele, a consciência que aparece mediante a suspensão do mundo é uma consciência pura, um eu transcendental (Husserl, 2001).
Pela epoché o mundo é para a consciência e tudo passa a ter sentido na subjetividade do eu transcendental. É justamente aí que Ricoeur (1995) afirma que a fenomenologia, na sua versão idealista, reclama por uma posição radical de princípio último, baseando-se em uma intenção intelectual imanente à consciência. O filósofo alemão, chegando ao radicalismo da redução ou à redução transcendental, em que, após a suspensão do mundo, reduz tudo à consciência ou à consciência intencional, o significado do mundo só passa a ter significado em relação à consciência que sempre visa alguma coisa. Logo, o significado do mundo passa a ser à medida que aparece a consciência que visa.
A "fenomenologia se junta à filosofia reflexiva afirmando que a eminência de si é indubitável." (Dastur, 1991, p. 41). Não se dúvida aqui do eu transcendental. Por isso, ele é indubitável, nem da existência do mundo, entretanto, este último só ganha significado à medida que é na consciência, "o mundo da ‘res' transcendente é inteiramente dependente da consciência, não da consciência pensada logicamente, mas da consciência atual." (Husserl, 2006, p. 115).
Na redução ao ego transcendental, o ego aparece como ser absoluto que não carece de coisa alguma para existir, enquanto que as coisas do mundo são dependentes de uma consciência que o visa, "é esta reflexão que consiste em olhar [...] o cogito transcendentalmente reduzido e o descrevê-lo" (Dastur, 1991, p. 46). Significa apreender as vivências intencionais na sua pureza e descrevê-las tais como aparecem (vivências intencionais) ao ego transcendental. "A consciência fenomenológica encontra, pois como a mônada leibniziana, no interior de si mesma, um acesso ao lado de fora, no transcendental, ela está ao mesmo tempo ‘fechada sobre ela mesma'." (Dastur, 1991, p. 41).
O ego transcendental encontra-se fechado no interior de si mesmo e aí se encontram as vivências intencionais e, na medida em que são consciência de alguma coisa do mundo, se diz ter relação intencional com essas coisas. É por isso, que este ego no interior de si, embora seja fechado, possui um acesso ao lado de "fora", pois, continua a ter experiências com as vivências intencionais. Ele possui em si mesmo uma consciência constitutiva que explicita a totalidade infinita das coisas do mundo visto, conforme realiza suas visadas.
É da pureza do ego transcendental que se podem explicitar as coisas do mundo ou descrever a pureza das vivências intencionais (Dastur, 1991). É na experiência das vivências intencionais, que se dá no ego puro, na total suspensão do eu psicológico e do mundo natural, que este ego pode descrever as coisas do mundo na sua originalidade sem os conceitos dados da vivência natural. Enquanto o ego encontrava-se envolvido com as coisas do mundo em uma atitude natural, ignorava o sentido das coisas na sua essência original.
O ego puro manifestado pela redução transcendental é mais que puro sujeito, pois possui em si mesmo as experiências das vivências intencionais, possui as essências das coisas do mundo que foram visadas, podendo a partir daí descrever o sentido puro dessas coisas. Para melhor compreensão do sentido das coisas que se manifesta no ego transcendental é oportuno aqui aproximar duas importantes noções husserlianas como: noema e noese.
Essas duas noções: "designam respectivamente o correlato da consciência – a visada como tal – a consciência que não é mais parte de um mundo existente absolutamente se revela como uma consciência de...e toda a realidade é ‘reduzida' à condição de ‘objeto' dessa consciência". (Ricoeur, 2009a, p. 59). Elas dizem como se realizam a intencionalidade do ego transcendental, ou seja, como o ego puro,que é sempre consciência de algo, dá sentido ou descreve as experiências vividas das coisas do mundo. "Ele entendia por isso uma reflexão sobre o vivido, (...) uma reflexão sobre o objeto das várias visadas de consciência." (Ricoeur, 2009a, p. 64).
O ego transcendental, pela intuição, capta em sua estrutura imanente o sentido intencional do objeto ou o aspecto objetivo da vivência, estabelecendo dessa forma a relação entre noese e noema na imanência de si mesmo. Diz Husserl (2006) em Ideias, no parágrafo 88, que a doação de sentido dado pelos direcionamentos do olhar do ego puro não lhe sai do sentido. Há "algo" do objeto visado que, após apreendido na sua esseidade, não lhe sai do pensamento e este algo é o noema ou o correlativo intencional da vivência. Aplicando essas noções para compreender como se manifesta o sentido das coisas do mundo no ego transcendental, pode-se afirmar que este ego possui em si uma estrutura imanente com suas vivências (noese) e ao mesmo tempo o correlato intencional dessas vivências, na relação entre essas duas noções que é possível descrever a essência das coisas do mundo, que se dão na subjetividade.
Percebe-se que Husserl na sua proposta filosófica busca constituir, descrever a essência das coisas do mundo, a partir do ego transcendental ou da subjetividade. Ele propõe abandonar todas as relações ingênuas, tanto exteriormente quanto interiormente, para atingir a completa ausência de pressupostos, acreditando encontrar algum resíduo verdadeiro das coisas, porém, não nas próprias coisas em si mesmas, mas na percepção pura praticando a epoché. É aí que nasce uma nova possibilidade de conhecimento das coisas, um conhecimento que surge na sua originalidade ou na sua transcendência. Nasce um conhecimento das coisas do mundo originadas em um ego puro que já não é um ego que se conhece na imediaticidade do cogito como no cartesianismo, pois, para ele, a consciência é sempre consciência de algo, ou seja, a consciência só é porque é consciência de algo, e reciprocamente as coisas só são porque aparecem na sua originalidade à consciência.
Uma vez apresentada, partindo de Ricoeur, a proposta husserliana do ego transcendental cabe adentrar na proximidade e distanciamento de sua perspectiva. Greisch (2001) afirma que Ricoeur coloca um fim irrevogável ao conjunto das pressuposições do idealismo husserliano, que se destacam como: o ideal da justificação última, o intuitivismo, a imanência da consciência, a prioridade do sujeito transcendental e a responsabilidade radical de si mesmo.
A essas teses husserlianas, a filosofia ricoeuriana opõe: a prioridade ontológica da pertença, a mediação da interpretação, a procura do sentido das coisas do mundo fora de si mesmo e o convite que a hermenêutica faz à subjetividade para ser o lugar último da compreensão (Ricoeur, 1989).
O Risco do Psicoterapeuta ao Imediatismo da Consciência: A Hermenêutica como um Caminho
Ricoeur se aproxima da fenomenologia de Husserl, principalmente no que diz respeito ao seu método, a descrição fenomenológica, mas se afasta da relação à redução transcendental.
"Ver-se-á, ao contrário, que tudo nos afasta da famosa e obscura redução transcendental na qual fracassou, segundo nós, uma compreensão verdadeira do corpo. Este estudo é então, de alguma maneira, uma teoria eidética" (Ricoeur, 2009b, p. 20).
É delimitando as questões husserlianas até aqui desenvolvidas como: a ausência absoluta de pressuposição, a justificação última, a intuição, a imanência da consciência e o ego transcendental que Ricoeur fará seu "corte" contra a fenomenologia.
Ricoeur (1968) afirma que a fenomenologia falha na tentativa de ser uma reflexão com total ausência de pressuposição, ela falha, pois a filosofia é protegida contra si mesma, contra a pretensão de ser fundamento último e sem pressuposições, não existe uma filosofia sem tais pressupostos, pois geralmente ela parte de motivações advindas da não filosofia. É independente em suas reflexões, mas é dependente de fontes não filosóficas. "A filosofia tem seu ponto de partida diante dela. Mas, se ela busca seu ponto partida, ela recebe de suas fontes". (Ricoeur, 1996, p. 34).
Para ele, a filosofia tem próprio seu ponto de partida, seu método, seu acabamento, porém sua base é motivada pelas diversas experiências que se encontram no mundo. Não se pode construir uma filosofia ou a fenomenologia na total ausência de pressuposição, pois na apreensão do fenômeno não é possível descolar de si mesmo e de suas formações ou bases. Cada sujeito é perpassado por muitas fontes que podem advir das artes, dos símbolos, dos mitos, das religiões e muitas outras possibilidades. Talvez, negar a ausência de pressuposição é ser ingênuo perante a própria história de vida. Sem o reconhecimento da própria história não se é possível experimentar a si mesmo e ir para além si (Ricoeur, 1968). Anterior a qualquer tipo de fundamento último, existe uma relação de pertencimento, pois tanto o sujeito quanto o objeto já pertencem a algum lugar.
Relacionando a perspectiva ricoeuriana com a psicoterapia, pode-se dizer que o psicoterapeuta já pertence ao mundo antes mesmo do seu próprio pensar. Logo, sua visada ou tentativa de apreender o fenômeno já vêm imbuída de uma maneira de ver o mundo, uma cosmovisão.
Para Ricoeur (1978) "após a redução, todo ser é um sentido para a consciência e, a esse título, relativo à consciência. A redução coloca assim o Cogito husserliano no âmago da tradição idealista". (p. 215). Significa dizer que após a redução, a consciência daquele que visa o fenômeno torna-se absoluta em relação ao objeto visado. O mesmo pode-se afirmar para o psicoterapeuta, pois se abstendo-se do mundo como absoluto, conquista-o como mundo percebido na vida de suas reflexões, e o mundo passa a existir e valer conforme suas visadas, "o mundo ‘encontra em mim e aufere de mim o seu sentido e sua validade [...]'. ‘Seu sentido total, ao mesmo tempo universal e especial, e sua validade ontológica, o mundo os aufere exclusivamente dessas cogitationes." (Ricoeur, 2009a, p. 276).
Eis que o mundo só passa a ter validade ontológica para aquela consciência que visa e em tal cogito, ou no em mim. É justamente aí, na fenomenologia husserliana, a imanência da consciência não é duvidosa, pois, para ele, esta parte sempre de perfis e esboços da relação natural com as coisas do mundo (Ricoeur, 1989). Na imanência da consciência, que tem como lugar a subjetividade, a evidência é verdadeiramente originária. O sujeito duvida do objeto apreendido, mas não coloca em dúvida suas próprias apreensões. O fenômeno passa a ser o que se encontrar na imanência pura da consciência, existindo uma coincidência absoluta entre o ser e o parecer. É na imanência da consciência pura que ocorre uma traducibilidade total do ser do fenômeno, não existindo mais nenhuma opacidade.
Ricoeur (1989) destaca que, assim como as coisas do mundo podem serem ser duvidosas, a imanência da consciência que apreendeu o objeto também pode ser colocada em suspeita, pois embora tenha ocorrido a redução, em que o objeto agora pertença a si mesmo, isso não significa que a essência das coisas do mundo apreendida, suas experiências de vivências, não venham de uma objetividade advinda das comunidades históricas intersubjetivas.
Logo, não é possível uma apreensão pura das vivências, pois esta já parte de um mundo aí constituído, de algo que escapa da imanência pura. A imanência da consciência também pode ser duvidosa, pois não é possível uma apoditicidade que precede o mundo e as coisas do mundo. Não há uma linguagem suficiente para apreender e traduzir a essências das coisas. E também aquele que apreende o fenômeno, pode ser posto em dúvida, no caso o psicoterapeuta, pois não é possível uma apoditicidade que preceda a si mesmo e muito menos as coisas do mundo.
Para Ricoeur (1989) o que o ego apreende com a redução transcendental é o pré-dado, o mesmo, embora em outra atitude, o sentido do existente, que não depende de si mesmo. O ego,mesmo mudando de uma atitude natural para uma atitude transcendental, não deixa de pertencer ao mundo, mostrando assim que a subjetividade não pode ser o lugar de fundação última.
Associando ao universo do psicoterapeuta, por ele pertencer ao mundo, com sua subjetividade, já possuindo sua maneira de compreender e ver esse mundo, enfrentará duas grandes dificuldades: desligar-se de si mesmo e afastar-se da presunção de apreender o horizonte do cliente em sua fundação última.
É lógico que nas sessões, o psicoterapeuta, como afirmou Sapienza (2015), saberá ou, pelo menos, deveria saber esperar com paciência antes do levantamento de qualquer hipótese. Como ela afirma, o psicoterapeuta na espera, em princípio, se sentirá desamparado, mas este sentimento será substituído pela surpresa, por uma compreensão que preencherá o vazio. Aqui é importante ressaltar, mais uma vez, que Ricoeur não nega o método husserliano, a redução eidética, a suspensão dos juízos para a apreensão do eidos, mas a ilusão de uma total ausência de pressuposição, e, ainda, o esquecimento de que todo sujeito já pertence ao mundo, pode gerar uma consciência falsa, pois o que possui é apenas uma visão de mundo, uma perspectiva. O mesmo pode ser estendido para o psicoterapeuta, embora, como afirmou Sapienza, ele não abandone suas referências ou sua formação, o esquecimento de que tanto ele quanto o outro já pertencem ao mundo, pode colocar em risco a apreensão do fenômeno visto que levantará suas hipóteses partindo da imanência de sua consciência. Uma confiança indubitável nas suas interpretações.
Por isso, Ricoeur afirma ser "necessário distinguir, em Husserl, o método, tal qual ele efetivamente o praticou, e a interpretação filosófica desse método" (Ricoeur, 2009a, p. 254).
Ricoeur, em suas reflexões filosóficas, decide pelo método, mas não pela interpretação filosófica husserliana. Ele afirma que a consciência, pela sua forte decisão de apreender as coisas do mundo na sua esseidade, quando abandona suas pressuposições, esvaziando-se perante as coisas, tem a possibilidade, pela intenção vazia, de completar-se pelo eidos. Diz ele: "a intenção significante ‘vazia' é substituída pelo ‘cheio' de uma evidência quer empírica quer essencial [...]" (Ricoeur, 2009a, p. 179). A consciência é sempre consciência de algo na imanência de si atual, tendo a experiência das coisas do mundo ou do objeto individual tal como são.
O único problema é que, ao apreender o eidos,a apreensão pertencerá a uma subjetividade, como o outro apreendido pertence ao mundo circundante. Sendo assim, se aquele que apreendeu não colocar em questão sua própria maneira de ver e apreender o mundo, o outro, correrá o risco de ser apenas um espelho de suas hipóteses. O mesmo pode ser estendido para a compreensão do psicoterapeuta no atendimento. Ele pode até conseguir apreender as vivências do seu cliente conforme suas narrativas, pode até saber esperar para preencher a intenção vazia, mas se não colocar em questão suas próprias hipóteses, poderá colocar em risco sua análise, enquadrando na imanência de sua consciência o cliente e o pior podendo induzi-lo ao erro. Daí faz sentido pensar a necessidade do psicoterapeuta fazer terapia e também discutir seus casos em supervisões, pois com a ajuda de um outro, além de poder se conhecer melhor, não se confundindo com seu cliente, também não correrá o risco de enquadrar o cliente em suas próprias convicções. Diz Ricoeur (2009c) "minha existência para mim mesmo é tributária dessa constituição na opinião de outrem; meu Si [...] eu a recebo da opinião de outrem que o consagra" (p. 170).
Percebe-se que, para Ricoeur, a opinião dos outros ajuda a constituir o sujeito, ou seja, a valorização, a estima mútua de opiniões também forma o sujeito. O contrário, é uma confusão, como se salientou, entre apoditicidade e adequação, a certeza do pensar confundido com a adequação de si mesmo ou de um outro.
Nesse sentido, a consciência é falsa, como afirma Ricoeur, é falsa, pois acaba confiando na descrição do seu próprio pensar. Diz ele: "o ‘eu' que leva a dúvida e se reflete no Cogito é tão metafísico e hiperbólico quanto a própria dúvida o é em relação a todos os seus conteúdos" (Ricoeur, 1990, p. 16). O eu, que se posiciona perante o outro, e na imanência da própria consciência, desancora-se das relações com as obras que o objetivam e dizem de si mesmo e do objeto. O eu esquece seu pertencimento no mundo e se volta para suas próprias interpretações. É um si mesmo desancorado da história e por isso é duvidoso.
É nesse sentido que o psicoterapeuta, acreditando estar realizando a apreensão do fenômeno, pode, ao contrário, estar se fechando na imanência de sua própria consciência. Sendo assim, ele se fechando nas evidências imediatas não conseguirá ir além da postura natural tão criticada pela própria fenomenologia. Fechado em si mesmo poderá preencher o vazio realizado pela epoché por um falso cogito. Desta forma sua postura pode ser no mínimo duvidosa ou até mesmo falsa. Por isso, para Paul Ricoeur, a reflexão deve se tornar hermenêutica, pois somente pelo trabalho de interpretação é possível sair "da má compreensão à compreensão." (Ricoeur, 1978, p. 19). O sujeito ou o psicoterapeuta é convidado a abandonar a posição mais imediata, voltada para o próprio ego, e ir em direção ao outro, no seu modo de compreensão do mundo.
É justamente aqui, partindo da filosofia reflexiva e hermenêutica de Paul Ricoeur, que o psicoterapeuta é convidado a se aproximar da hermenêutica e ir além do primado da subjetividade encontrado na fenomenologia. Para ele, um sujeito, só pode conhecer a si mesmo e outro, não apenas com as descrições e voltado para imanência da própria consciência, mas pelas obras que se objetivam. Ele afirma que a reflexão "é o esforço para retomar o ego do ego Cogito no espelho de seus objetos, de suas obras e finalmente de seus atos." (Ricoeur, 1978, p. 275). A posição do ego deve ser retomada pelos seus atos, porque ela não se dá, em uma evidência imediata ou na imanência da consciência, mas pelas expressões da vida que se objetiva.
A crítica ricoeuriana é a redução da significação do mundo a um sistema de coordenadas no modo subjetivo da consciência que visa. É o enquadramento do sentido do existente na própria na visão do sujeito. Segundo Ricoeur, a subjetividade não pode ser a categoria fundamental da compreensão, ou seja, para que um sujeito realmente compreenda um outro ou um objeto é fundamental que perca sua pretensão de origem para se encontrar.
Enquanto, um sujeito que vai em direção ao outro não colocar em questão suas próprias visadas, não se permitir se perder e mergulhar no modo de compreensão do outro, do objeto e da própria cultura, suas elucubrações serão meras hipóteses advindas da sua própria imanência ou descrições insuficientes. Paralelamente, o mesmo vale para o psicoterapeuta, mas como um questionamento, pois enquanto ele não abandonar suas convicções, suas referências, teorias, será capaz de mergulhar na compreensão do seu cliente?
O psicoterapeuta, enquanto não se abrir para mais diversas formas de interpretações, correrá o risco de permanecer fundado na imanência da sua própria consciência ou de suas próprias convicções e, consequentemente, suas descrições serão sempre insuficientes, "embora revele as vivências. [...] ela é efetuada mediante a linguagem, em quaisquer que sejam suas modalidades de expressão. Essa facticidade solicita um trabalho interpretativo e hermenêutico, visando compreender sentido, significação e significado apontado na descrição." (Bicudo, 2011, p. 46).
Para Ricoeur, a fenomenologia de Husserl, na busca do objetivismo, acabou minimizando os fenômenos, tornando-os correlatos da vida intencional, as unidades de significação, provindas da vida intencional ou do sujeito que visa, criou uma nova forma de idealismo. Por isso, ele afirma que o projeto da fenomenologia husserliana fracassou no seu resultado final, pois o sujeito que vai em direção ao outro, descobre através de suas visadas que pertence ao mundo. Pela via regressiva, esse mesmo sujeito se defronta com camadas de sínteses passivas sempre mais radicais e nunca conseguirá apreender o fenômeno/cliente na sua totalidade. Por isso, para Paul Ricoeur, o sujeito deve se perder para se encontrar, deve aprender pela mediações outros modos de compreender o fenômeno. Nesse sentido, hermenêutica e fenomenologia caminham juntas, pois é um processo constante de renovação. Diz Heidegger (1983): "a fenomenologia [...] é a possibilidade do pensamento – que periodicamente se transforma e somente permanece – de compreender ao apelo do que deve ser pensado." (p. 301).
Ricoeur afirma que a reflexão é uma tarefa, um esforço constante em ligar a experiência concreta com a afirmação existo ou, em outras palavras, a reflexão se dá na dimensão ética. O sujeito vai existindo pelas suas ações ou perpassado pela experiência concreta, pelas histórias e pelas representações que o objetiva. Aqui, mais uma vez, o psicoterapeuta, abandonando suas convicções mais imediatas, terá a oportunidade de assumir a tarefa de ir aprendendo com outras maneiras de compreender o ser humano, e, consequentemente, o seu cliente. Ele poderá apreender com outras teorias que podem até conflitar, mas, uma vez perpassada pela crítica, poderá ampliar sua maneira de compreender aplicá-las sua prática psicoterapêutica.
Para Ricoeur (1978), o objetivo da reflexão "é apreender o ego em seu esforço para existir, em seu desejo para ser. É nesse ponto que uma filosofia reflexiva [...] é conatus, esforço." (Ricoeur, 1978, p. 47). O esforço aqui, fazendo referência Spinoza, é desejo ou a posição de um si que se exprime pelo esforço para existir e pelo desejo de ser por meio das obras que testemunham suas ações. A reflexão procura apreender a si mesmo no ínterim do seu esforço e do seu desejo de aproximar sua experiência daquilo que ele pensa ser.
Enfim, o trabalho de hermenêutica exige daquele que se propõe a compreender uma tarefa constante de mostrar que a existência passa a ter um pouco mais de sentido pelo contínuo trabalho de exegese de todas as significações que se manifestam na cultura, é, pois pelo constante processo interpretativo de si mesmo e do outro que um psicoterapeuta poderá ajudar o cliente a lidar com seu modo de compreender o mundo.
A mediação é parte constitutiva do sujeito da reflexão. Esse possui em si mesmo a característica ontológica de ser intermediário de tal maneira que seu ato de existir é de operar pelas mediações. Ele é capaz de operar pelas polaridades, embora seja incapaz de abarcá-las. Diz ele: "o homem encontra-se situado entre o fim e o começo, em um sentido, ao mesmo tempo, causal e teleológico. E sua desproporção consiste em que ele não tem a ‘capacidade infinita' para compreender, para englobar o princípio e o fim." (Ricoeur, 2009c, p. 50).
O sujeito ou psicoterapeuta ou o cliente não são seres unilaterais ou determinados em posições ou teorias fechadas, pelo menos não deveriam ser, mas, ao contrário, suas riquezas se encontram no poder-ser entre as diversas possibilidades. Por isso, tanto o psicoterapeuta quanto o cliente possuem muitas possiblidades de serem compreendidos, não precisando necessariamente se fecharem em antagonismos ou oposições estéreis, mas ao contrário, se abrindo às riquezas de possibilidades.
Considerações Finais
O presente artigo procurou, em sua trajetória na obra Paul Ricoeur, apresentar a perspectiva fenomenológico-hermenêutica aplicada a psicoterapia e mais precisamente, uma possibilidade de compreensão para o psicoterapeuta. Para ele, entre fenomenologia e hermenêutica há certa complementariedade, pois assim como a fenomenologia é sempre uma possibilidade de pensamento possível pelas suas várias visadas no objeto ou no outro, o mesmo é possível afirmar para a hermenêutica, pois pelo processo interpretativo é sempre possível encontrar novas significados e sentidos na existência. Daí é passível de afirmação que tanto a fenomenologia quanto a hermenêutica passam por um constante caminho de renovação e possibilidades. No entanto, o sujeito que se põe a compreender deve-se se permitir perpassar pelas possibilidades de interpretações que se objetivam no mundo da cultura.
Nesse sentido, o psicoterapeuta é convidado impreterivelmente a abandonar as evidências na imanência de sua própria consciência, ou pelo menos, deve suspeitar da apreensão na imanência de sua consciência via o correlato intencional de suas vivências o objeto.
Para Ricoeur, tanto o objeto quanto o sujeito já pertence ao mundo, são seres que habitam no mundo e, por isso, são impossíveis de serem apreendidos na sua esseidade. Por isso, a busca por qualquer possibilidade de essência das coisas não se dá de forma imediata ou ainda na imanência da consciência, mas como uma tarefa, um caminho a ser percorrido e talvez um horizonte visto, mas nunca alcançável.
Sabe-se que o psicoterapeuta, formado na escola fenomenológica, nas sessões com os clientes, tem como foco a apreensão do fenômeno e não os fatos. Ele, realizando a epoché, também procura apreender o vivido intencional do seu cliente. No entanto, partindo da perspectiva de Ricoeur, como se discutiu, a descrição do fenômeno não é suficiente para apreender a coisa, o outro ou o cliente. Ela ajuda num primeiro passo, mas é insuficiente. O risco do fenômeno enquadrar-se na imanência da consciência é muito grande. Uma vez realizada a epoché, a regressão às coisas mesmas do objeto/do outro ou cliente e também a suspensão do eu psicológico, agora, se encontra na subjetividade daquele que apreendeu; logo, é esse que fará às conjecturas do apreendido. Sendo assim, quem poderá garantir que o apreendido pelo sujeito, nesse caso, o psicoterapeuta, não é fruto de sua própria estrutura ou da imanência da sua consciência?
Por isso, é um risco muito grande para o psicoterapeuta acreditar nas suas próprias interpretações, pois pode estar acreditando fazer uma descrição pura, mas, no fundo, pode estar mantendo tudo no nível da sua consciência imediata. É nesse sentido que, talvez, as descrições dos fenômenos não são suficientes para poder dar conta do objeto ou do outro. A descrição do psicoterapeuta não é suficiente para dar conta do seu cliente. Por isso, é impossível descolar de si mesmo para apreender o cliente sem pressuposição.
É por isso que a proposta de Paul Ricoeur faz sentido, pois enquanto o sujeito e, no caso, o psicoterapeuta, não se perder não poderá se encontrar, enquanto não colocar em dúvidas sua própria interpretação, sua reflexão não poderá se abrir para novas possibilidades. Por isso, faz sentido o enxerto da hermenêutica na fenomenologia. É pela mediação das obras da cultura, teorias, monumentos, literatura, cotidiano que é possível, pelo esforço de existir e desejo ser, ir se compreendo e podendo compreender o outro.
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Endereço para correspondência
Jefferson da Silva
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Endereço eletrônico: je.filos@hotmail.com
Recebido em: 23/06/2020
Aceito em: 04/09/2020
Notas
* Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor do UNISAL - Lorena e da Faculdade CN.
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