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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.spe Rio de Janeiro  2021

https://doi.org/10.12957/epp.2021.63943 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2021.63943
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

Encarceramento Feminino em Presídio Misto

 

Caroline Cabral Nunes*; João Paulo Sales Macedo**
Universidade Federal do Delta do Parnaíba - UFDPar, Parnaíba, PI, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

O encarceramento feminino tem aumentado de forma alarmante. No entanto, a existência predominante de presídios mistos demonstra uma escassez de investimentos na infraestrutura e em procedimentos institucionais específicos para o confinamento desta população. Este estudo objetivou discutir sobre a realidade do encarceramento feminino em presídios mistos a partir de observações participantes e dos relatos de mulheres presas sobre suas vivências. Sob uma perspectiva de gênero, apresenta as particularidades destes ambientes, os modos de vida e as lutas das mulheres encarceradas frente às dificuldades experienciadas. Observa-se a precariedade do acesso de serviços especializados para a saúde feminina, de espaços adequados para gestantes ou berçários, bem como para visita íntima. A dinâmica institucional é caracterizada por práticas moralistas e sexistas em sustentação de uma ordem patriarcal masculina por parte dos agentes e dos homens presos. Mas há também resistência, de modo que as mulheres experimentam diferentes meios de exercerem suas sexualidades, desejos e insurreições coletivas.

Palavras-chave: encarceramento feminino, presídios mistos, gênero.


 

Women's Imprisonment in Mixed Prison

 

ABSTRACT

Female incarceration has increased alarmingly. However, the predominant existence of mixed prisons demonstrates a lack of investments in infrastructure and in specific institutional procedures for the confinement of this population. This study aimed to discuss the reality of female incarceration in mixed prisons based on participant observations and the reports of women prisoners about their experiences. From a gender perspective, it presents the particularities of these environments, the ways of life and the struggles of women incarcerated in the face of the difficulties experienced. There is a precarious access to specialized services for women's health, suitable spaces for pregnant women or nurseries, as well as for intimate visits. Institutional dynamics are characterized by moralistic and sexist practices in support of a male patriarchal order on the part of prisoners and men. However, there is also resistance, so that women experience different ways of exercising their sexualities, desires and collective insurrections.

Keywords: female incarceration, mixed prisons, genre.


 

Encarcelamiento Femenino en una Prisión Mixta

 

RESUMEN

El encarcelamiento femenino ha aumentado de manera alarmante. Sin embargo, la existencia predominante de las cárceles mixtas demuestra la falta de inversiones en infraestructura y en procedimientos institucionales específicos para el confinamiento de esta población. Este estudio tuvo como objetivo discutir la realidad del encarcelamiento de mujeres en las cárceles mixtas en base a las observaciones participantes y los informes de las reclusas sobre sus experiencias. Desde una perspectiva de género, presenta las particularidades de estos entornos, las formas de vida y las luchas de las mujeres encarceladas frente a las dificultades experimentadas. Existe un acceso precario a servicios especializados para la salud de la mujer, espacios adecuados para mujeres embarazadas o guarderías, así como para visitas íntimas. La dinámica institucional se caracteriza por prácticas moralistas y sexistas en apoyo de un orden patriarcal masculino por parte de prisioneros y hombres. Pero también hay resistencia, de modo que las mujeres experimentan diferentes formas de ejercer sus sexualidades, deseos e insurrecciones colectivas.

Palabras clave: encarcelamiento femenino, prisiones mixtas, género.


 

 

Objetivamos discutir sobre a realidade do encarceramento feminino em presídios mistos com base nos relatos de mulheres presas sobre suas vivências e realização de observações participantes em uma penitenciária mista localizada no Piauí. Sob uma perspectiva de gênero, apresentamos as particularidades destes ambientes, os modos de vida e as lutas que vão sendo empreendidas pelas mulheres encarceradas frente às violações de direitos e relações de poder que incidem sobre seus corpos na prisão.

No Brasil, somente em 1889, com o movimento de reforma das prisões, incorporou-se aos debates penitenciários a situação das mulheres encarceradas (Angotti & Salla, 2018). Contudo, as primeiras preocupações acerca do encarceramento feminino no país foram suscitadas a partir de 1920, com o aumento da criminalidade feminina e o maior ingresso no sistema prisional (Freitas, 2012). A promulgação do Código Penal Brasileiro, em 1940, e o estabelecimento do Código de Processo Penal, em 1941, trouxeram alguns avanços à realidade do encarceramento feminino ao estabelecerem que a prisão de mulheres deveria ser feita em estabelecimento próprio ou, na ausência deste, em ala especial dos presídios comuns (Angotti, 2011). Data dessa época a tomada de providências acerca das primeiras unidades prisionais para mulheres ou de reorganização de prisões masculinas em espaços mistos para atender à legislação (Artur, 2011).

Apesar das mudanças, o sistema prisional brasileiro continua precário, em especial no que tange ao encarceramento de mulheres. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres, 74% dos estabelecimentos prisionais são masculinos (1.067 unidades) e apenas 7% são exclusivamente femininos (107 unidades). Os outros 17% (244 unidades) são caracterizados como de modelo misto, ou seja, que podem contar com alas/celas específicas para o aprisionamento de mulheres em um estabelecimento originalmente masculino (Ministério da Justiça, 2018).

A predominância de presídios mistos expressa, na prática, uma contradição à Lei de Execução Penal (LEP) n.º 7.210/84 e à Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE), de 2014, que estabelecem a separação de homens e mulheres nos estabelecimentos prisionais e a construção de unidades específicas para a população feminina. Tal contradição se agudiza e indica o caráter sexista por parte das instituições governamentais ao não considerarem a necessidade de construção de unidades específicas para mulheres diante do enorme crescimento da população carcerária feminina. Entre os anos de 2000 a 2016 essa população carcerária aumentou 656%, enquanto a de homens cresceu 293%. O relatório indica o quantitativo de 41.087 mulheres presas em todo o país (Ministério da Justiça, 2018).

Quanto ao panorama geral da condição feminina no sistema penitenciário brasileiro, o relatório do INFOPEN-Mulheres no ano de 2014 apontou que somente 34% dos estabelecimentos femininos e 6% dos mistos contavam com cela ou dormitório adequado para gestantes; 32% das unidades femininas contavam com berçário ou centro de referência materno infantil, enquanto no caso das mistas esse percentual era apenas 3%; além disso, somente 5% das unidades femininas possuíam creches, sendo que não havia registro dessa estrutura em unidades mistas (Ministério da Justiça, 2014). Assim, percebe-se que a falta/ineficiência de estrutura e serviços que atendam à necessidade da população carcerária brasileira, o que inclui inclusive a ausência de locais apropriados para visita familiar e íntima, são problemas que acarretam desdobramentos mais complexos, especialmente no caso dos presídios mistos, pois intensificam-se as negligências com que são tratadas as demandas femininas nestes espaços (Ministério da Justiça, 2014).

Nesta perspectiva, Colares e Chies (2010) consideram que os improvisos institucionais que são históricos no sistema prisional brasileiro evidenciam a ineficiência do Estado em promover condições dignas especialmente para mulheres em condições de encarceramento. Pesquisas que tratam sobre o tema acabam concentrando-se em estabelecimentos exclusivamente femininos, deixando uma vasta lacuna na literatura acadêmica sobre os presídios mistos, visto que esta forma de encarceramento permanece, desde o início das prisões, como ocorria em casas que confinavam homens e mulheres simultaneamente (Artur, 2011).

Ademais, aproximar o debate sobre o encarceramento de mulheres em presídios mistos com as questões de gênero auxilia reconhecer que a instituição prisional é sustentada por uma lógica "masculina e masculinizante" (Barcinski & Cúnico, 2014, p. 65). Nesse sentido, entendemos que a analítica proposta pelos estudos de gênero é uma importante ferramenta teórico-conceitual para auxiliar no desvelamento das invisibilidades que pairam sob o conjunto de violações e assujeitamentos de mulheres nos presídios mistos brasileiros.

Por gênero nos referimos ao produto das relações sociais, culturais e históricas que, com base nas diferenças biológicas entre os sexos, conformam papéis e representações sociais atribuídos a homens e mulheres, resultando em significações distintas nas relações de poder (Scott, 1995). Dessa forma, os papéis sociais que reforçam as diferenças de gênero contribuem para um sistema de dominação e exploração do masculino sobre o feminino em diferentes espaços sociais, sendo que nas prisões esse sistema apresenta-se com maior intensidade, ampliando o quadro de desigualdades e violações de direito sobre os corpos femininos no cárcere (Miyamoto & Krohling, 2012).

Diante disso, compreendemos que a realidade de mulheres presas em presídios mistos merece destaque nos debates sobre as questões prisionais, considerando a pequena literatura existente. A urgência de discussões que retirem das sombras as histórias das mulheres nesses locais e a importância de tornar visível suas mobilizações cotidianas no enfrentamento à dominação masculina e aos diversos poderes que ali circulam, é o que justifica o presente estudo.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa-intervenção, que nas palavras de Rocha e Aguiar (2003), é "uma tendência das pesquisas participativas que busca investigar a vida de coletividades na sua diversidade qualitativa" (p. 66). O presente estudo, que é um recorte da pesquisa de mestrado "Corpos Encaliçados de Prisão: mulheres e subjetividades em exceção" 1, foi realizado com mulheres em cumprimento de pena de privação de liberdade na Penitenciária Juiz Fontes Ibiapina, no município de Parnaíba-PI, popularmente conhecida como "Penitenciária Mista de Parnaíba".

A penitenciária foi construída em um antigo mercado público cedido ao Governo do Estado, o que contribui para a precária estrutura da instituição. Contava à época com 613 detentos, embora a capacidade fosse para 180 vagas. Cerca de 56 mulheres ficavam alojadas em um único pavilhão, distribuídas em 17 celas, com acesso de um único corredor para um pequeno pátio aos fundos para o banho de sol. A penitenciária não conta com berçários ou espaços específicos para alojamento de presas gestantes ou que estejam com seus filhos dentro da unidade. À época da pesquisa uma brinquedoteca havia sido recém inaugurada, espaço utilizado para a visita das(os) filhas(os) tanto das presas quanto dos presos.

Para a produção de dados, fizemos uso de diários de campo e entrevistas coletivas. Nos diários registramos as observações das cenas vividas e conversas realizadas ao longo de dez meses de inserção no campo, no ano de 2019. No caso das entrevistas coletivas, estas foram realizadas em seis encontros, tendo como ponto de partida temas pensados a partir das observações e releitura dos diários: entrada no crime/na prisão, saúde, maternidade, sexualidade, relacionamentos e "ser mulher". Os instrumentos utilizados se mostraram potentes vias de trabalho na realidade investigada ao possibilitarem maior aproximação com as participantes. No caso das entrevistas coletivas, assim como na experiência descrita por Sade, Barros, Melo e Passos (2013), diferentemente da forma individualizada, acompanhamos as modulações das narrativas e experiências que, ao serem coletivizadas, intercruzaram relações, criaram novas perspectivas para as participantes, constituindo um plano comum de participação e responsabilização umas com as outras. Como desafios, tivemos que lidar com encontros de caráter aberto, devido à dinâmica institucional, havendo a flutuação do número de participantes (10 a 12 mulheres) por encontro; e algumas vezes foi necessário mediar conflitos e o cuidado para que nenhuma fala fosse desprezada ou desqualificada por qualquer uma das participantes, caso apresentassem ideias fluídas, vagas, desfocadas do tema tratado em cada encontro.

Os resultados trazidos são trechos dos diários de campo e das entrevistas coletivas, cujas análises comportaram três vetores de discussão: a) relações de gênero e as opressões sofridas na prisão; b) formas de assujeitamento e de controle do corpo, saúde e sexualidade das mulheres; c) meios de resistência e estratégias de grupo. A pesquisa respeitou os aspectos éticos, com a preservação das identidades com o uso de nomes fictícios e contou com aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal do Piauí (CAAE: 18830119.9.0000.5214).

 

Resultados e Discussões

O Homem é a Medida: O que Resta à Mulher na Prisão Mista?

De forma geral, a prisão é um espaço de múltiplas segregações, incidindo com maior força sobre os corpos femininos, cujo aprisionamento vem acompanhado de sentenças sociais e morais das quais o sistema penal se apropria em sustentação da ordem patriarcal (Martins & Chitó Gauer, 2019). Nas penitenciárias mistas esse sistema de dominação e exploração que organiza e estrutura a sociedade com base nos interesses e concepções masculinos é exercido mais acintosamente na distribuição dos espaços, na definição da oferta de trabalho/ocupação e cursos na prisão, no tratamento dado pelas(os) agentes penitenciárias(os) ou mesmo nos relacionamentos estabelecidos.

No art.77, § 2º da LEP é previsto que em estabelecimentos para mulheres somente se permitirá pessoal administrativo, especializado e de vigilância do sexo feminino. Porém, isto costuma ocorrer em penitenciárias que são exclusivas para mulheres. Na unidade investigada, o quadro é quase que totalmente masculino: são sete agentes mulheres para mais de 50 agentes homens. Isso faz com que nem sempre se conte com agentes mulheres no pavilhão feminino, mesmo nos dias em que estejam de plantão na penitenciária. Não raro, a ação de vigilância dos agentes homens (e também por parte das mulheres) nas celas do pavilhão feminino resultam em práticas violentas, sejam físicas ou simbólicas, a exemplo do dia em que tiveram suas celas reviradas, com a exposição de seus pertences mais íntimos. Esse tipo de abordagem era comum na penitenciária, enquanto procedimento de segurança devido à superlotação. Porém, no caso do pavilhão feminino a revista era acompanhada de práticas vexatórias e invasivas por parte dos agentes intensificando as formas opressão e subjugação no cárcere.

Colares e Chies (2010) utilizam a expressão "presídios masculinamente mistos" para denunciar que, apesar de encarcerarem presos de ambos os sexos, os homens ocupam lugar central em todas as relações nesses espaços. Isto inclui, dentre outros exemplos, as atividades e oportunidades de trabalho voltados quase exclusivamente para homens: no caso, estes ficam com serviços de cozinheiro, eletricista, padeiro, estoquista, marceneiro, enquanto para algumas poucas mulheres ficam restritos os serviços de limpeza e, no máximo, as atividades auxiliares da cozinha, sendo que a maioria permanece a maior parte do tempo nas celas. "Seria bem melhor que ficar aqui olhando pro teto, sem nada pra fazer"(Diário de Campo, 13.02.2019).

No caso dos projetos ou cursos ofertados na unidade com fins de "ressocialização", enquanto para os homens tinha-se disponível cursos de profissionalização diversos e de empreendedorismo, para as mulheres restava-lhes cursos de cozinha, costura e estética. Assim, as atividades ofertadas e as formas de organização dos presídios mistos tornam visíveis os caminhos da normalização social feminina como forma de garantir a ordem e o controle sobre os corpos destas com a manutenção dos papéis sociais hegemônicos da sociedade (Colares, 2008).

Ao analisarmos as condições mais específicas às que as mulheres estão sujeitas na prisão, visualizamos diferentes situações de sujeição sexual na qual acabam sendo submetidas aos desejos sexuais masculinos, até mesmo por sobrevivência, para conseguirem certas "proteções" e "provimentos" diante da dura realidade das prisões brasileiras. Diante do abandono dos companheiros e demais familiares e parentes, acabam dependendo de favores ou da solidariedade das demais companheiras da prisão, ou, de forma mais concreta, são reféns dos poderes masculinos dentro da unidade prisional.

Lourdes havia relatado que estava de planos de se casar com um conhecido de 70 anos e que estava preso há mais de 18 anos. Lourdes, mulher jovem, dizia que queria casar com ele porque, como não recebia visitas, lhe dava alimentos, biscoitos e outras seguranças na prisão. "Sei que ali não levanta mais nada, mas ele me dá biscoito", dizia Lourdes ao explicar que não queria casar para se envolver sexualmente com o preso, mas sim porque receberia benefícios. (Diário de Campo, 01.02.2019).

A cultura patriarcal impõe à educação feminina a reprodução de valores e a ideia de que as mulheres são submissas e frágeis, portanto, necessitam da proteção masculina. Se fora do cárcere tal lógica faz com que muitas mulheres percebam o casamento como meio de proteção e melhores condições de vida, na prisão, especialmente nas unidades mistas, essas relações de poder ficam mais evidenciadas (Oliveira, 2017). No caso das prisões mistas, em que a ordem do patriarcado coloca o homem como medida, tal lógica produz certo campo de visibilidade e dizibilidade que faz com que certas mulheres se percebam e se afetem muito mais com a condição masculina no cárcere do que consigo mesmas. Para algumas entrevistadas, a vida na prisão é "bem menos problemática e cruel" se comparada a dos homens.

Maria Célia: Os homens tão sofrendo demais. A gente também tá sofrendo, mas não é como eles lá dentro (Diário de Campo, 13.08.2019).
Labibe: Deus me defenda ser tratada igual eles, porque a gente pelo menos tem como ir no médico e eles não podem. Porque muitas coisas que a gente tem aqui, por mais que sejam ruins pra nós, pra eles é pior (Entrevista, 11.10.2019).

A partir do exposto, pondera-se que o foco não seja estabelecer uma comparação entre o sofrimento vivenciado entre homens e mulheres, posto que as situações de violência, precariedade e insalubridade são vivenciadas por ambos. Por isso, é importante na análise tomar em consideração as relações de poder que incidem sobre os corpos na prisão sob a perspectiva de gênero, até mesmo para compreender os diferentes pesos e relações de poder que o dispositivo da prisão exerce sobre pessoas do sexo masculino e feminino nos regimes do cárcere em articulação com a manutenção dos estereótipos de gênero.

Na realidade investigada, as disciplinas e sujeições sofridas por mulheres à lógica masculina dão visibilidade às práticas sexistas e discriminatórias que se fundamentam no sexo e que são amplamente naturalizadas na prisão. Isto faz com que, algumas vezes, mulheres sofram despercebidamente inúmeras formas de violência que, de tão instituídas, ficam invisibilizadas (Zanello, Fiuza, & Costa, 2015), considerando que as que são reconhecidas na prisão enquanto tais são as que prefixam marcas nos corpos masculinos. Além disso, demonstram o quanto o sexo feminino é sobreposto por uma ordem masculina e moralista pela dinâmica institucional nas prisões mistas. Então, se o homem é a medida para as decisões e práticas realizadas nestes espaços, além de estar confinada, a mulher precisa ajustar-se a uma condição secundária, exposta a sujeições diárias, durante o cumprimento da pena.

Limitações do Corpo: A Disciplinarização Feminina em Manutenção da Ordem

A instituição prisional investe e exerce o seu controle principalmente sobre o corpo feminino. No caso dos presídios mistos, de acordo com Barcinski e Cúnico (2014), pretende-se anular a feminilidade das presas ao submeter seus corpos às mais diversas interdições, como a proibição de vestimentas e adereços, uso de maquiagens e a própria sexualidade. Esse domínio sobre o corpo é compreendido pelas entrevistadas ora como injusto e que viola suas liberdades mesmo na condição do cárcere; e ora como regra para manter a ordem e a "garantia" de sua proteção.

Labibe: Lá em Teresina, as mulheres só andam de short, o fardamento delas é short. E aqui é calça. As vezes até quando é uma calça mais colada, uma legging, a agente manda a gente abaixar a blusa. E quando a blusa tá transparente, manda trocar. Acho que eles têm ciúmes do nosso priquito 2. [Todas riem]
Maria Célia: Acho que pra eles é uma forma de proteger a gente do assédio, porque se a gente andasse de short, já tava chamando a atenção daquele ali, e eles tão na seca 3, alguns...
Jana: O pessoal da intervenção quando vai entrar, avisa logo: "quem estiver de calcinha ou sutiã vai pra triagem!"
Maria Célia: Mas eles avisam! Então, quem estiver é porque tá querendo ir pra triagem. Aqui, eles que têm a chave, eles que mandam. A gente só tem que obedecer! (Entrevista, 30/10/2019).

O domínio sobre corpos femininos na prisão reflete em processos de assujeitamento e perda de identidade por meio de técnicas instrumentalizadas de "mortificação do eu", tal qual se referiu Goffman (2010), ao analisar instituições de confinamento. Sabemos que o regramento e a rotina impostos na prisão, por meio de disciplina, controle e vigilância, produzem a uniformização dos indivíduos e a anulação de subjetividades, acompanhada da suspensão e a violação de direitos, com nuances mais microfísicas para o caso das mulheres, ao serem disciplinadas em como devem se comportar, que vestimenta usar inclusive nas celas, e em que condições e formas devem exercer suas sexualidades (Foucault, 2014).

Em relação às visitas que recebem, muito do que acompanhamos dialoga com o que traz a literatura e os relatórios produzidos sobre o encarceramento feminino em penitenciárias mistas. O INFOPEN-Mulheres constatou que, enquanto nos presídios femininos uma em cada duas unidades contam com estrutura adequada para visita de familiares, nos presídios mistos apenas três em cada dez contam com espaços apropriados para tais. No caso da visita íntima, apenas 34% dos presídios mistos fornecem espaços reservados para que elas tenham garantido esse direito de forma respeitosa (Ministério da Saúde, 2018). Não obstante, há ainda o fato de que, para os presos, é enorme a quantidade de mulheres que os visitam durante o cumprimento da pena, como mães, irmãs ou esposas, o que não ocorre da mesma forma para as mulheres quando estão presas. Elas frequentemente são abandonadas, principalmente por seus parceiros (Cúnico, Strey, & Costa, 2019).

Na penitenciária investigada não existe local específico para visitas, sejam elas sociais ou íntimas, quer sejam para homens ou para mulheres. Ambas ocorrem na própria cela. Quando uma presa recebe um marido, as demais cedem a cela para o encontro, que possui apenas uma cortina improvisada com lençol nas grades como "garantia" de privacidade. Aquelas que são casadas com homens que se encontram presos na unidade se deslocam para as celas deles, juntamente com as demais visitas externas. Esse procedimento, no entanto, esconde um constrangimento e exposição, acompanhados do sentimento de vergonha que algumas presas relatam vivenciar:

Labibe: Quando eu fui a primeira vez, saí com tanta vergonha! Os agentes olhando. Eles sabem o que a gente tava fazendo ali. Alguns são desrespeitosos, como a gente vê alguns tirando brincadeira com a visita, brincadeiras de mau gosto. [...] No caso dos presos, estes não falam, fazem é respeitar, baixam a cabeça quando você passa. Sabe aquele ditado de que você fica com vergonha alheia? [...] Às vezes, na vistoria das coisas da gente, pegavam calcinha na bolsa ou lubrificante e diziam: "Eita, que hoje vai rolar é tudo!". Ou quando a pessoa vinha com cara de sono: "Eita, que essa daí hoje não fez nada". E não é um comentário reservado pra pessoa, é na frente de todo mundo (Entrevista, 30/10/2019).

Para obter o direito à visita íntima é necessário que seja comprovada a relação de matrimônio ou união estável entre o casal. Devido a isso, nas unidades mistas, não é raro mulheres e homens presas(os) encontrarem outras formas de se comunicar, paquerar e se relacionar. Assim buscam estratégias para estabelecerem um namoro ou relação mais estável, mesmo que tenham que oficializar a união para conseguirem o direito à visita íntima.

Helenira estava esperando a assistente social chamá-la para tratar sobre assuntos do seu possível casamento. Quando perguntada se iria casar novamente, ela responde "-De novo? Eu já tentei duas vezes e não deu certo". E logo após, disparou "- Quem tem fome quer comer". E Ana Rosa complementou: "- Aqui, é assim! Só pode se casar, então é o jeito!" (Diário de Campo, 30.04.2019).

As narrativas sobre os relacionamentos entre mulheres e homens presos nos fizeram ver quanto as práticas de sujeição e dominação vão se estruturando como formas, também, de manutenção das lógicas patriarcais na prisão. Tais práticas são ainda mais discriminadoras no caso das visitas íntimas homossexuais, pois nem sempre têm o direito de visita reconhecido (Padovani, 2011). Vê-se o quanto a sexualidade é, historicamente, utilizada como um elemento de disciplinamento e instrumentalização das relações de poder, em articulação com os mais variados objetivos que impõem normalizações e condutas, que ocorrem com maior intensidade nas prisões (Foucault, 1988).

Para aquelas que ainda não haviam optado por oficializar a relação com seus parceiros, havia o controle intenso da administração para que não acontecesse contato íntimo entre presos como, por exemplo, exigir que as mulheres não conversassem com homens durante o percurso para algum serviço médico, assistencial ou escolar. Tal realidade se diferenciava daquela vivida pelos próprios homens presos, pois havia muitos casos em que estes aproveitavam as visitas familiares (de irmãs, mães...) de outros para visita íntima, sem que necessariamente comprovassem ser casados. A equipe de agentes provavelmente tinha conhecimento dos fatos ao facilitar, mesmo que não oficialmente, tais visitas para uns, mas para as mulheres presas não.

Os domínios sobre os comportamentos sexuais das mulheres muitas vezes se davam sob a justificativa de evitar que a prisão se tornasse "bagunça" ou, quem sabe, sob a tentativa, geralmente não dita, de evitar a prática de prostituição ou que as mulheres viessem a engravidar dentro da penitenciária, o que desencadearia mais responsabilidades para o Estado. Porém, mesmo sob a possibilidade de serem punidas, haviam diversas estratégias que as mulheres utilizavam para exercerem sua sexualidade e desejos, como beijos, abraços, ou outros encontros entre os corpos nos momentos em que se encontravam nas aulas, eventos, etc. Essas artimanhas vão dando pistas de como a vida encontra meios criativos para responder às imposições de um crivo carregado de uma moral masculinizada.

Ademais, aspectos relacionados à saúde, cujas necessidades específicas das mulheres são frequentemente ignoradas pelas administrações prisionais, as tornam vítimas permanente da negligência e da violação de direitos por parte do Estado (Audi, Santiago, Andrade, & Francisco, 2016). Importa ressaltar que a PNAMPE e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) preconizam direitos como alimentação adequada, vestuário e instalações higiênicas, incluindo itens básicos e de higiene pessoal, além da exigência de que as instituições prisionais contem com Unidades Básicas de Saúde Prisional, Equipes de Atenção Básica Prisional, Equipes de Saúde Materno-Infantil, nas unidades que custodiam mulheres, e Equipes de Saúde Mental que se responsabilizem pelo sofrimento gerado pelo confinamento e/ou pelo uso de substâncias psicoativas.

Tais serviços e a oferta de atenção devem ser orientados por uma compreensão ampliada e integral de saúde, a partir do entendimento da determinação social do processo saúde-doença, voltando-se não apenas às ações curativas, mas promocionais e preventivas em saúde. No entanto, a oferta de serviços precários para vidas precárias permanece como regra no país, ganhando traços mais significativos nos espaços prisionais. No caso das ações de saúde observadas e denunciadas pelas entrevistas, estas ocorrem de forma fragmentada, pontual, espaçada, resultando em situações indignas e de violação de direitos, especialmente para as mulheres em presídios mistos.

Helenira: Eu só tô aqui mesmo porque é mais perto da família, porque senão já tinha pedido pra ir pra Penitenciária Feminina de Teresina. Lá é diferente. Quando cheguei, fizeram os exames tudo, sífilis, doenças, tudo. Aqui ninguém faz nada. Se a gente paga, diz que não tem carro pra levar pros exames e a gente perde o dinheiro. Eu tenho ovário policístico e nunca me levaram pra fazer os exames " (Diário de Campo, 13.02.2019).
Marilena: A consulta da gente aqui, do ginecologista, só aparece um ano sim, dois anos não.  Só quando tem aquelas campanhas de prevenção, essas coisas. Mas, assim, de vir um ginecologista examinar cada uma, não.
Jana:  ­A mulher menstrua de mês em mês. Recebe dois pacotes de absorvente por mês. Você acha que dá? Não dá. Dois pacotes pra você se virar. Aí se dá um jeito de se virar, rasga nossas roupas pra usar.
Dinalva: Quando uma parceira não tem, a gente pergunta se tem alguém pra doar. A gente tem que dar um jeito. Não aconteceu essa situação comigo ainda, não. Desde a época que eu já fui presa, ainda não aconteceu nada de eu menstruar e não ter absorvente. Mas até hoje não aconteceu de eu ver alguém pedindo às agentes e elas não dar. Elas sempre dão. Dar, elas dão. Não é porque a gente é presidiária que a gente também não pode ter direitos humanos. A gente tem que ter direito como qualquer um.
Labibe: Já começa que aqui não era nem pra ser mista, era pra ser só masculina. É a realidade, né? Ai a demanda é masculina. Como vão atender a feminina? (Entrevista, 11/10/2019)

As falas retratam o quanto o acesso à saúde é dificultado no cárcere, tanto no que se refere aos serviços médicos prestados quanto aos materiais de higiene pessoal disponibilizados, como no caso de absorventes que, de acordo com a PNAMPE, deveriam ser disponibilizados em quantidade suficiente com as necessidades apresentadas. No caso das mulheres, os agravos em saúde mais frequentes estão relacionados à saúde ginecológica, à saúde sexual e às necessidades de acompanhamento da gravidez, aspectos comumente ignorados em sistema masculinizado. Ao concluir que "a demanda é masculina", Labibe compreende que elas estão ali como anexos de um presídio cujas estruturas e serviços foram pensadas para o público do sexo oposto, apesar de isso não implicar em um abrandamento do sofrimento vivido pelos homens na prisão.

Uma outra particularidade do encarceramento feminino diz respeito à vivência da maternidade dentro das prisões. As mães presas vivem em um dilema: por um lado devido à convivência com o bebê durante os seis meses permitidos pelo o artigo 83 da Lei de Execução Penal 4; por outro devido à culpa de estar colocando sua criança em um local inadequado para infância e crescimento, além de ter que se separar dele após o prazo estipulado (Diuana, Correa, & Ventura, 2017). Além disso, quando as(os) filhas(os) estão fora da prisão, as mulheres sentem-se irresponsáveis ou negligentes por, mesmo sendo mães, terem se envolvido com o crime (Mello & Gauer, 2011).

Solange: Eu deixei meus filhos lá fora sem mãe, porque eu vim pro lugar errado. Fiz o que não devia, me envolvi com droga e poderia ter evitado o pior, não teria acontecido o que aconteceu. Me sinto culpada por eles estarem lá fora e eu estar aqui. Eles são três. E hoje em dia, tá dois pr'um lado e um pro outro, enquanto eu deveria estar lá fora cuidando deles e não tô. (Entrevista, 16/10/2019)

Em uma penitenciária mista, onde não existem espaços específicos para o cuidado dos filhos e a permanência na prisão, o conflito emocional é ainda mais intenso, gerando demandas de acompanhamento pela equipe de saúde mental:

Neide: A gente já adoece do jeito que adoece nessas celas úmidas e malcheirosas. E ainda mais um bebezinho?
Labibe: Eu não sei qual é o pior, se é vir pra um lugar desse com o filho, ou se é chegar os seis meses e ter que se separar. Porque tava chegando os seis meses e ela [uma presa que esteve com o filho na prisão] tava desesperada, porque sabia que quando chegasse os seis meses, iam levar. Até a gente que não era mãe e tava convivendo com a criança já tava apegada.
Dinalva: Acho que é pior ter que se separar. Foi o caso que eu vivi com um meninozinho que não era meu. Com oito meses, a juíza mandou recolher. Não foi fácil eu me separar dele, não. Chorei foi muito na Central de Flagrantes. Você adoece e a criança adoece também. E é porque nem nasceu de dentro de mim, eu só criava, mas eu sinto muita falta dele. (Entrevista, 16/10/2019)

O encarceramento feminino é, portanto, marcado pelo não atendimento das necessidades das mulheres no cárcere de modo que desenvolvam condições dignas ou menos desumanas de vida. Isso indica a urgência em se pensar o sistema prisional a partir da perspectiva de gênero, visto que a mulher em situação de cárcere, em meio aos assujeitamentos e violações que sofre, ainda é exigida e culpabilizada por não ter cumprido com suas responsabilidades e deveres femininos, portanto, uma desviante moral da compreensão do "ser mulher" imposta pelos modelos sociais dominantes (Carvalho & Mayorga, 2017).

Todos esses fatores apontam para uma urgência em debater os impactos do encarceramento na saúde mental de mulheres presas. Um debate que não esteja voltado para o modelo biomédico e psiquiátrico ofertado por consultas esporádicas com o médico psiquiatra e psicólogo, mas que atente para os múltiplos elementos que se agenciam nas subjetividades femininas, a exemplo da separação dos filhos, culpabilização, abandono por parte do companheiro e familiares, controle da sexualidade e sujeições que passam na prisão.

Essa visão geral nesse tópico permitiu a compreensão de que o sistema penal e as dinâmicas no cotidiano de mulheres em privação de liberdade representam, de forma mais acintosa, mais uma das violências em um sistema de múltiplas violências que as mulheres sofrem desde a infância (França, 2014). Violências estruturadas e institucionalizadas por redes de poder que traduzem uma série de aprisionamentos e punições que repousam sobre a condição da existência feminina, promovendo seu silenciamento e o disciplinamento dos seus corpos (Oliveira, 2017).

É Preciso Saber "Tirar Cadeia": Lutas e Resistências Cotidianas

As relações de poder na prisão são atravessadas não apenas por uma hierarquia entre equipe dirigente, agentes, presos e presas, mas também por uma reprodução da estrutura social em que um dos marcadores de produção de desigualdades é o gênero. Todavia, para pensar os mecanismos do poder, Foucault (2014) indica que este não opera em uma direção unilateral, mas consiste em um emaranhado de forças, fluxos de trocas, que se dá por meio de uma estratégia e não de uma posse e que transita tanto por entre as forças dominadas quanto pelas dominantes. Assim, a análise das correlações de forças existentes no território habitado pelas mulheres presas passa pela fundamental visibilidade das resistências, que nunca se encontram em exterioridade ao poder (Foucault, 1988).

As resistências são produzidas mesmo sob o grande risco de serem punidas. Nestas situações, as mulheres presas rebelam-se e organizam movimentos insurgentes diariamente.

Maria Célia: A gente age sem pensar. Se for punida, vai punida todo mundo.
Marilena: A gente se põe também no lugar, porque se uma de nós passar mal, com certeza todas as outras vão fazer a mesma coisa que eu fiz: de bater na grade, de chamar... (Entrevista, 02/10/2019)

Insurgir-se contra a ordem imposta e ao descaso com que eram tratadas, seja em face aos discursos e práticas normalizadoras que engendram o corpo feminino na prisão, seja diante das violências e violações a que eram submetidas cotidianamente, diz da "luta contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão" que essas mulheres enfrentam no cárcere (Gabrois, 2011, p. 22). São lutas que recusam tanto a violência do Estado quanto as normalizações sociais a que são submetidas. Neste caso, são tecidas no cotidiano e nem sempre tratam de grandes rupturas radicais, mas de ações micropolíticas, "pontos de resistências móveis e transitórios" (Foucault, 1988, p. 92). Deste modo, inventam possíveis para escapar ou desviar das dominações impostas no cárcere: "ao poder sobre a vida responde a potência de vida" (Pál Pelbart, 2007, p. 58).

Labibe: A Mônica passa essas sombras dela, esses batons... Aí molha o cabelo dela, joga de lado, e bota um shortinho lá em cima. [Todas riem]. Aí fica só de topinho. Depois, por onde ela acha que passa que tem as mulheres olhando, ela passa se rebolando. [Todas caem no riso novamente]
Solange: Ah, eu dou só um sorrisinho assim e jogo um "olhar 43".
Maria Célia: Dona Lyda se arruma toda para os novinhos olhar. Batonzinho, perfume, fica mais de meia hora se olhando no espelho. Ela diz "meu marido tá lá fora, mas os daqui podem ao menos olhar". (Entrevista, 30/10/2019)

Esses pequenos desvios eram os meios que encontravam para se sentirem mulheres ou, até mesmo, mais vivas. Formas de escaparem das malhas dos poderes mostrando-se atraentes, desejadas e de satisfazerem a si mesmas, sentindo a vida de seus corpos. Ao utilizarem brincos, maquiagens ou certos tipos de roupas, elas conseguem, pelo menos em alguma parte do dia, terem autonomia sobre si mesmas. Provavelmente, é uma forma de "saber tirar cadeia", como dizem. Ou seja, uma forma de sobreviver na prisão.

Percebe-se que tão mais a prisão impõe sobre as mulheres limites e proibições, principalmente no que se refere a suas sexualidades, igualmente inventam meios de transgredir as normas ou tomar atalhos que as levem para um destino menos cruel e despersonalizante na prisão. Além disso, as mulheres vão descobrindo meios de se realizarem sexualmente e de se oporem às formas como as relações de poder que circulam na prisão tentam conduzi-las em seus comportamentos, desejos e sonhos diante do poder masculino socialmente legitimado.

Ana Maria: Se eu tô aqui dentro e se ele me trair, eu traio ele. Eu amo ele de verdade, mas se ele me trair, eu traio ele. Ele tá aqui dentro também, mas se ele me trair, eu meto dois, três, quatro chifres nele. A gente ainda não se visitou, porque ele chegou agora, não tem um mês. Só quando eu sair daqui que eu vou ver se visito ele. Eu posso esperar por ele, mas não quer dizer que a gente não dá umas curtidinhas também, né? (Entrevista, 30.10.2019).

Nesse tópico percebemos que não somente de subordinação vivem as mulheres entrevistadas, pois são elas mesmas criadoras de novas experiências e sociabilidades que as possibilitam tomar, mesmo que momentaneamente, para si a gestão de suas vidas, como em um jogo contínuo que ora são assujeitadas e dominadas e ora se desviam das regras e inventam a si mesmas na prisão. É o caso das con­jugalidades, que são configuradas no cárcere para enfrentarem o isolamento diante do abandono dos parceiros e familiares, e que permitem "poten­cializar suas experiências sexuais enquanto estraté­gias de vida" (D'Angelo et al, 2018, p. 54).

Mônica: Eu já me envolvi com mulher aqui dentro, tá entendendo? É bom [risos], mas por outro lado é ruim. Porque a gente sofre. Eu sofri, aí não tô mais vivendo esse mundo de ficar com mulher. Deixei pra lá... Foi só aqui dentro. É completamente diferente, né? Mas eu me sentia bem, me sentia realizada. Me sentia feliz. [...] Aqui é completamente diferente lá de fora. Aqui você se sente só, mal, triste...e quer fazer alguma coisa pra distrair a cabeça. Lá fora a gente tem tudo (Entrevista, 30/10/2019).

As relações de afeto e de poder vão definindo como a sexualidade é exercitada na prisão e como os relacionamentos e os desejos vão sendo atravessados por disputas e negociações, seja na tentativa de encontrar um parceiro ou no ato de se permitirem outras performances de gênero. Então, as narrativas das mulheres manifestam como "nas prisões femininas, gênero e sexualidade são pro­duzidos a partir e através de repertórios que consti­tuem contornos, aberturas e fechamentos nos cor­pos, nas instituições, nas relações de erotismo, poder, afeto e violência" (D'Angelo et al., 2018, p. 45).

 

Considerações Finais

Os desafios de um estudo em uma instituição prisional, inicialmente, estão postos diante de uma dinâmica institucional operada por procedimentos rígidos e cuja flexibilidade não é uma possibilidade da qual podemos lançar mão. São diversas práticas e protocolos operacionais que, durante a realização da pesquisa, criaram de forma sistemática uma série de limitações e burocracias que interferiram no desenho e nos caminhos da pesquisa, seja com mudanças nas regras da qual não tomávamos conhecimento, seja na interferência para desenvolver atividades, na influência direta ou indireta da presença dos agentes durante os encontros, ou mesmo na insegurança proporcionada tanto pela própria representação do ambiente prisional e sua estrutura precária. Contudo, as possibilidades se colocavam na experimentação do ato de pesquisar que se dava no próprio processo investigativo e cujas surpresas e aprendizados emergiam de um fazer que se aproximasse das experiências particulares aos modos de vida das mulheres presas, permitindo a abertura para o novo: diálogos, tensionamentos, reflexões, amizades, dentre outros possíveis.

O trabalho realizado junto às mulheres encarceradas numa unidade mista, a partir da perspectiva de gênero, se mostrou fundamental para um conhecimento mais próximo das realidades vivenciadas por mulheres presas e as lutas que empreendem em seus cotidianos na prisão. Destacamos com a pesquisa o desinteresse do Estado às especificidades da população carcerária feminina e o quanto a ordem patriarcal atravessa o sistema prisional, reproduzindo seu sistema de dominação e exploração com base em concepções e interesses masculinos. Isto é constatado pela falta de estrutura e organização da unidade prisional investigada no sentido de garantir os direitos e a dignidade de mulheres privadas de liberdade; e pelas relações de poder e dominação que incidem sobre os corpos femininos em prisões mistas a partir de práticas normalizadoras e sexistas impostas sobre elas. Se para as prisões exclusivamente femininas esses elementos já possuem certo peso, para mulheres confinadas em estabelecimentos mistos produzem mais opressão e sofrimento.

Pelo exposto, não resta dúvida de que o cárcere feminino, sobretudo nos presídios mistos, é uma realidade pouco conhecida da sociedade brasileira em geral, ainda que as mulheres sejam alvo constante das mais duras violações e que as taxas de encarceramento tenham aumentado de forma alarmante. Para a mulher, a prisão é uma forma de punição ampliada, visto que sua presença é obscurecida pelas ações governamentais e que a dinâmica institucional é estruturalmente moralista e masculinizada.

Mas as ações femininas no cárcere não se tratam apenas de assujeitamento, dominação e desvalorização feminina diante do poder patriarcal sexista presente na sociedade brasileira e fortemente entranhando nas malhas do poder do sistema prisional. Por meio das lutas e resistências cotidianas que empreendem, as mulheres, mesmo na situação de cárcere, encontram potência de vidas que transbordam e fazem penetrar outros caminhos na contramão de uma existência submissa, dominada e anulada. Ali navegam por entre devires e experimentam outras possibilidades de si, inventando outras existências e resistindo a própria condição feminina na prisão.

 

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Endereço para correspondência
Caroline Cabral Nunes
Universidade Federal do Delta do Parnaíba
Programa de Pós-graduação em Psicologia
Avenida São Sebastião, 2819, Nossa Sra. de Fátima, Parnaíba - PI, Brasil. CEP 64202-020
Endereço eletrônico: carolcabral_n@hotmail.com
João Paulo Sales Macedo
Universidade Federal do Delta do Parnaíba
Programa de Pós-graduação em Psicologia
Avenida São Sebastião, 2819, Nossa Sra. de Fátima, Parnaíba - PI, Brasil. CEP 64202-020
Endereço eletrônico: jpmacedo@ufpi.edu.br

Recebido em: 29/03/2020
Reformulado em: 18/05/2020
Aceito em: 31/05/2020

 

 

Notas

* Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí; Membra do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Psicologia Crítica e Subjetivação Política -Nupolis.
** Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba; Coordenador do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Psicologia Crítica e Subjetivação Política –Nupolis; Bolsista Produtividade do CNPQ.
1 A pesquisa contou com apoio de bolsa de estudos CAPES para a primeira autora do estudo.
2 Expressão corriqueiramente utilizada em referência ao órgão genital feminino.
3 Expressão utilizada para referir-se a uma situação de abstinência sexual.
4 Algumas leis são especificas à condição de maternidade de mulheres em situação de privação de liberdade. Como exemplo, tem-se o art. 83 da LEP, que estabelece a disponibilização de berçário nos estabelecimentos prisionais femininos, onde as mães podem amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade. O art. 89 menciona a obrigatoriedade de seção para gestantes e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos.

 

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CAPES, No. Processo 88882.446313/2019-01) e pela bolsa de produtividade em pesquisa do segundo autor (CNPq Nível 2)

 

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