Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.spe Rio de Janeiro 2021
https://doi.org/10.12957/epp.2021.64032
Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. spe. doi:10.12957/epp.2021.64032
ISSN 1808-4281 (online version)
PSICOLOGIA SOCIAL
A Experiência de Formação do Primeiro Grupo de Ouvidores de Vozes de Minas Gerais
Daiana Paula Milani Baroni*; Lucas Felipe dos Santos Barbosa**; Gabriel Silvestre Minucci***; Martha Lages Rodrigues****; Lorena Eduarda Mendes Santos*****; Yandra Oliveira de Sousa******; Igor Tomé Silva Santos*******; Juliana Valeri Simão Trevisan********
Universidade Federal de São João del Rei - UFSJ, São João del Rei, MG, Brasil
Endereço para correspondência
RESUMO
Este artigo busca trazer contribuições em relação à experiência de escuta de vozes a partir da perspectiva de ação da Rede Internacional Intervoice, discutida aqui como uma das abordagens em saúde mental que preconiza a centralidade do sujeito, a importância de sua narrativa em relação ao processo de adoecimento e cura, bem como seu posicionamento ativo em seu percurso de cuidado. O movimento Intervoice, através da formação de grupos de ouvidores de vozes em todo o mundo, busca criar condições para que a experiência de escuta de vozes possa ser ressignificada, contribuindo assim para a construção de um caminho de superação por meio destas novas coletividades, para além da mentalidade até então operante de se instituir o fenômeno da escuta de vozes e seus efeitos secundários como partes do processo de loucura, doença mental ou transtorno. Propõe-se, deste modo, problematizar algumas práticas convencionais em saúde mental que focam no diagnóstico e silenciamento do processo, para que em seguida seja apresentada a proposta dos grupos de ouvidores de vozes e a realidade do grupo Ouvi Falá, criado a partir da experiência de um estágio em psicologia.
Palavras-chave: grupo de ouvidores de vozes, saúde mental, recovery, intervoice.
An Experience of Formation of the fisrt Hearing Voices Group in Minas Gerais
ABSTRACT
This article aims to contribute with regard to the experience of voice hearing from the perspective of the action of The International Hearing Voices Network (Intervoice), discussed here as one of the approaches in mental health which advocates the centrality of the subject, the importance of his narrative in the process of illness and healing, as well as the role of his active positioning in the path of care. The Intervoice Movement, through the formation of groups of voices hearers all over the world, aims at creating conditions for the experience of voice hearing to be re-signified. This way, it contributes to the path of recovery through the groups and goes beyond the mentality hitherto prevailing, which establishes the voice hearing phenomenon and its secondary effects as a symptom of madness, mental disorder or mental illness. We propose, at first, to problematize some conventional mental health practices which focus almost exclusively on diagnosis and on silencing the process of voice hearing. Then we proceed to discussing the alternate proposal of the Hearing Voices Groups through the narration of the experience of creation and the actual functioning of one specific group, "Ouvi Falá", which was born from an internship in Psychology.
Keywords: voice hearing groups, mental health, recovery, intervoice.
Una Experiencia de Creación de un Grupo de Escuchadores de Voces en Minas Gerais
RESUMEN
Este artículo busca aportar contribuciones con relación a la experiencia de escuchar voces desde la perspectiva de acción de la Red Internacional Intervoice, discutida aquí como uno de los enfoques en salud mental que aboga por la centralidad del Sujeto, la importancia de su narrativa en el proceso de enfermedad y cura y su posicionamiento activo en su camino de cuidado. El movimiento Intervoice, con la formación de grupos de oyentes de voces en todo el mundo, busca crear condiciones para que la experiencia de escuchar voces pueda ser resignificada, contribuyendo a la construcción de una forma de superación a través de estos nuevos colectivos, más allá de la mentalidad hasta ahora operativo para instituir el fenómeno de escuchar voces y sus efectos secundarios como parte del proceso de locura, enfermedad mental o trastorno. Por lo tanto, proponemos problematizar algunas prácticas convencionales de salud mental, las cuales se centran en el diagnóstico y en el silenciamiento del proceso, para que enseguida presentemos la propuesta de los grupos de oyentes y la realidad del grupo Ouvi Falá, creado a partir de la experiencia de una pasantía en psicología.
Palabras clave: grupo de oyentes de voz, salud mental, recuperación, intervoice.
Sofrimento Psíquico e a Produção de Práticas e Saberes
As diferentes formas de se realizar um diagnóstico e os inúmeros métodos utilizados como tratamento para determinadas experiências psíquicas foram sendo construídos ao longo da história de acordo com os interesses e percepções que os agentes sociais possuíam das mesmas. Sendo assim, a história do que se denomina "loucura", em suas derivações psicopatológicas, encontra-se atrelada à história das perspectivas e dos valores de uma determinada cultura em um determinado contexto histórico (Caponi, 2003). Nas sociedades modernas ocidentais, a produção de um saber em relação à "loucura" e, posteriormente, em relação à doença mental, tem-se formalizado a partir de discursos e práticas advindas das ciências médicas e psicológicas. Foucault (2006), ao problematizar a experiência da loucura e sua apropriação por determinado grupo associado à produção de um saber socialmente reconhecido a respeito dela, descreve como decorreu paulatinamente o estabelecimento de uma forma quase unívoca de se reconhecer e de se tratar tal experiência. Com o advento da psiquiatria como disciplina científica e, mais tarde, da psicologia, experiências - as quais na antiguidade circulavam soltas e inominadas - bem como modos de vida, não reconhecidos como parte da norma e da razão, passam a ser controlados, medicalizados, farmacologizados, pois são entendidos como tributários do avesso da ordem e do bem viver. Na contramão deste processo, desde a década de 1970, e principalmente da década de 1980, uma gama de intelectuais, trabalhadores da área da saúde mental, familiares e alguns ditos loucos ou doentes mentais, especialmente nas grandes cidades do Brasil, impulsionados pelas transformações mundiais e pelos novos movimentos democráticos e de lutas por direitos de minorias exploradas e excluídas no país, passaram a se organizar crítica e politicamente contra as formas instituídas de controle e exclusão dos sujeitos destas experiências. O Movimento da Reforma Psiquiátrica constitui-se assim em um marco de mudança na forma de se conceber e, principalmente, de se organizar a oferta de cuidados em saúde mental, tendo em vista a inclusão social, a busca pela retomada de direitos, da cidadania, da autonomia e do protagonismo desta parcela da população.
No entanto, a Reforma Psiquiátrica, ao propor e estabelecer novas estruturas para receber e conduzir os sujeitos que se encontram em situação de sofrimento psíquico intenso (ou simplesmente imersos em experiências da diferença), não conseguiu ainda varrer para o passado as concepções biologistas, essencialistas e medicalizantes que giram em torno destas experiências. Como nos aponta Onocko-Campos e Campos (2006), o ponto frágil da Reforma Psiquiátrica seria justamente a constante medicalização do sofrimento e a busca ainda restrita de soluções que não ultrapassam a interferência física com o uso de psicofármacos. O sofrimento se cola ao corpo e a droga psiquiátrica se torna a única promessa de cura. A manutenção desta perspectiva contribui para a permanência da oferta de poucas intervenções e problematizações em torno dos aspectos psicossociais do sofrimento psíquico. O conhecimento da história do sujeito não é valorizado e a sua narrativa sobre a vida, suas condições de existência, suas percepções em relação a si, ao mundo, ao seu sofrimento e ao seu tratamento não são ouvidas. O sujeito no centro do cuidado continua não sendo ouvido, mas somente falado por tantos discursos teóricos e técnicos que se aperfeiçoam cada vez mais em torno de seu silêncio.
Na tentativa de criar novos espaços e propostas que visassem à produção de saúde e à recuperação de sujeitos psiquiatrizados em condições de isolamento social, silenciamento e identificação total diagnóstica - reconhecendo-se apenas como pacientes psiquiátricos e com a percepção de futuro restrita à ideia de seus infelizes prognósticos médicos (Baroni, Vargas, & Caponi, 2010) - foi que os grupos de Ouvidores de Vozes encontraram contexto para seu surgimento na Holanda, se espalhando pelo mundo a partir da Rede Internacional Intervoice. Os grupos de ouvidores de vozes não são pautados em categorias diagnósticas, fórmulas teóricas ou técnicas para nomear, classificar e direcionar as variadas formas de sofrimento e suas respostas (tidas convencionalmente como sinais e sintomas) ao mal-estar do sujeito em relação ao mundo. Assim, tais grupos têm como proposta a ampliação das narrativas das experiências de audição de vozes, visões e fenômenos afins, assim como o trabalho coletivo realizado por pares no intuito de superação, criação de estratégias e principalmente de redes de apoio em situações não somente de crise, mas também de saúde. A criação de um espaço aberto para o diálogo sobre a experiência das vozes e de vida em toda a sua complexidade e variedade de versões é assim a proposta do Intervoice, compreendendo cada membro como potencialidade de resgate, superação e de auxílio na construção de um novo modo de resposta àquilo que nos aflige.
Soltar a Voz sobre Aquilo que nos Aflige - Para além de Diagnósticos e Psicofármacos
Segundo Safatle, Silva Júnior e Dunker (2018), a psiquiatria atualmente baseia suas práticas predominantemente na prescrição de psicofármacos, partindo de uma visão biológica do processo de adoecimento, visando assim à remissão ou ao controle de certos sintomas e, quase sempre, partindo de uma redução da experiência do sujeito. Seguindo este caminho, os psicofármacos surgem a partir da década de 1950 com a promessa de serem capazes de controlar os efeitos do mal-estar psicológico, abrindo a possibilidade de intervenção no sintoma sem a necessidade de realização de um trabalho mais aprofundado em relação a outros determinantes para além do biológico, como questões sociais, políticas, culturais, psicológicas, ou seja, relacionais, as quais possam estar atreladas ao surgimento e manutenção de uma situação de sofrimento. A psiquiatria, com a adoção dos manuais das séries DSM e CID e a partir de uma reorientação epistemológica na década de 80, abandona os critérios diagnósticos críticos e reflexivos com respeito à singularidade do paciente para adotar um senso convencionalista, genérico e puramente nosográfico (Safatle et al, 2018). Deste modo, a psiquiatria isenta-se de qualquer hipótese que não se fundamente em normas supostamente empíricas e objetivas, partindo da construção de critérios diagnósticos no sentido de validação, legitimação e identificação de sujeitos em relação a doenças sob a ótica de uma psicopatologia puramente descritiva e operacional. Isto resulta no abandono de uma compreensão mais ampla da experiência de sofrimento de cada sujeito. O DSM-III seria a versão destes manuais que melhor representaria o abandono dos pressupostos teóricos na direção de uma visão meramente técnica e estatística. A partir dele, a ideia de uma classificação convencional, normativa e arbitrária do que se denomina transtornos mentais permitiu a exclusão de uma polifonia de linguagens a respeito do sofrimento psíquico, viabilizando uma padronização do tratamento. De acordo com Dunker e Kyrillos Neto (2011), o desenvolvimento do DSM III buscou direcionar a conduta diagnóstica e terapêutica dos profissionais em saúde mental de modo a atender as demandas de ofertas de cuidado dos serviços de saúde mental e de alocação de recursos públicos, bem como as demandas das agências de cobertura de empresas de seguro, tendo como central a prática de prescrição de psicofármacos em uma constante multiplicação de novos diagnósticos e especificação de medicamentos (Dunker & Kyrillos Neto, 2011). De acordo com alguns autores críticos em relação ao processo de psicofarmacologização da sociedade, tratamentos com base na prescrição de psicofármacos constituem uma prática clínica muito mais responsável por processos de adoecimento do que de recuperação (Gotzsche, 2016; Whitaker, 2017). Inúmeras pesquisas na área de saúde mental apontam para a possibilidade de agravamento de uma condição prévia de sofrimento psicológico por meio do uso de psicofármacos por longos períodos, ou seja, o aumento do consumo de medicações psicoativas, ao invés de se demonstrar eficiente nos tratamentos para os ditos transtornos mentais, em muitos casos acabaria por incorrer no efeito contrário, podendo trazer a cronificação dos sujeitos diagnósticos e o aumento do número de casos pela expansão de diagnósticos. Uma consequência disto seria o efeito de iatrogenia, uma vez que os próprios medicamentos causam severas interferências no sistema nervoso e prejuízos por vezes irreversíveis para o usuário. Para Gotzsche, (2016) a psiquiatria seria o paraíso da indústria de medicamentos porque as definições de transtornos psiquiátricos são vagas e fáceis de manipular, o que acarretaria em um alcance altíssimo de seus diagnósticos.
Neste contexto de constante medicalização e farmacologização da experiência de sofrimento e do fenômeno de escuta de vozes, grupos como os de ouvidores de vozes surgem na contramão do caminho tantas vezes exclusivista de intervenção medicamentosa, como via única para uma possível "cura clínica" - quase sempre inalcançável na realidade do sujeito, assim como na contramão de uma política de "silenciamento" de sintomas. No sentido oposto ao das práticas de apagamento, tanto daquilo tido como sintoma, quanto do sujeito em si por meio dos efeitos das drogas psicotrópicas, os grupos de ouvidores de vozes atuam de forma a propiciar um diálogo entre os detentores desta experiência, buscando o fortalecimento do sujeito ouvidor e oferecendo um lugar de centralidade à multiplicidade de narrativas e versões sobre estas experiências. Pautam suas práticas, assim, no estabelecimento de um sistema de trocas de saberes, na busca pelo enfrentamento coletivo dos efeitos das experiências gerais de sofrimento psíquico, tendo como foco o sujeito e não o sintoma de seu sofrimento ou o nome de seu adoecimento. Por esta via, busca-se construir, coletivamente, um lugar de fala para cada sujeito, um lugar de centralidade, de atenção às experiências de subjetividade correlatas a este processo.
O Movimento Intervoice e sua Chegada no Brasil
O movimento dos ouvidores de vozes teve início na Holanda, na década de 1980, após a paciente Patsy Hage questionar seu psiquiatra, Marius Romme, sobre o fenômeno da audição de vozes. Afinal, se Romme acreditava em Deus mesmo sem vê-lo, por que não acreditar que as vozes que Patsy ouvia poderiam ser reais para ela? A partir desta interrogação, Romme passa a indagar outras pessoas sobre o fenômeno de audição de vozes e compreende que ouvir vozes não se constitui necessariamente em um sintoma de adoecimento mental ou de esquizofrenia ao observar que, para 2∕3 dos ouvidores, ouvir vozes não era incapacitante. Romme, aliado à pesquisadora em psiquiatria social, Sandra Escher, cria assim o Hearing Voices Movement (HVM) - Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes - composto por ouvidores, familiares, trabalhadores e pesquisadores do tema, com o objetivo de questionar, criticar e repensar percepções biomédicas tradicionais a respeito da experiência dos ouvidores, prezando compreender o que as vozes diziam para quem as ouvia e como era para eles ouvi-las (Baker, 2009). A Rede Internacional Intervoice surge posteriormente como uma instituição sem fins lucrativos, com o objetivo de apoiar a consolidação do Movimento dos Ouvidores de Vozes (HVM) no mundo. Atualmente, o HVM está presente em mais de 80 países. O primeiro grupo de Ouvidores de Vozes no Brasil originou-se em Campinas, no ano de 2015, após a visita de Paul Baker, diretor da Rede Intervoice no mundo, que propôs uma rápida formação a fim de estender a rede para a América Latina. Desde então, outros grupos se formaram em diversas cidades, como por exemplo no Rio de Janeiro, Ribeirão Preto e Brasília. Até a primeira metade de 2019 haviam sido registrados 30 grupos pelo país, sendo que dois deles estavam ainda em fase de implementação e, outros dois, inativos, conforme dados informais daquele período do Censo Hearing Voices Brasil. Os grupos criados estabeleceram vínculos com serviços de saúde, tais como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou Hospitais Psiquiátricos; alguns ligados a grupos de pesquisa em Universidades Federais ou a Instituições religiosas. Relata-se, também, a existência de grupos que atuavam de maneira independente, sem relações com serviços de saúde, universidades ou centros religiosos.
Os grupos de ouvidores de vozes constituem-se como grupos de auto e mútua ajuda e prezam principalmente pelo respeito, empatia e horizontalidade, o que suscita a participação democrática de todos, sem que se estabeleçam hierarquias entre o saber teórico e o saber da experiência. O saber da experiência não se trata de um saber formal ou teórico sobre determinado assunto, mas é construído de forma experiencial por cada sujeito, autorizando-se a assumir e compartilhar no momento do grupo a sua versão quanto aos acontecimentos de sua vida, sem procurar ajustá-los dentro daquilo que socialmente pode ser visto como a percepção correta, o pensamento saudável, preconizado e aceito consensualmente. Os encontros são fundamentais para a criação de vínculos, além de abrir a possibilidade de falar com outras pessoas sobre a experiência com as vozes e promover mudanças em relação ao estigma que paira diante do fenômeno. Os grupos valorizam as explicações que cada pessoa atribui à sua própria experiência com as vozes, reconhecendo que todos os membros têm vivência e qualidade para contribuir para o grupo de forma igualitária e que nem todas as estratégias serão efetivas para todos (Baker, 2009). As diretrizes gerais que norteiam as práticas dos grupos Intervoice são: a tentativa de positivação da relação com as vozes, partindo da proposta de aceitação de que as vozes são experiências reais; a concepção de que os ouvidores não são menos que as outras pessoas; o respeito a cada membro como expert e ao grupo como uma comunidade; a utilização de linguagem comum, partindo de uma ética de autodeterminação focada no compartilhamento de experiências; a constituição do grupo como de auto e mútua ajuda e não como um grupo clínico que oferece um tratamento. Dentro do processo grupal, o foco estaria assim na aceitação e enfrentamento das consequências sociais e emotivas dos problemas ligados à experiência das vozes. De acordo com Romme, Escher, Dillon, Corstens e Morris (2009), os grupos abrem espaço para que os ouvidores possam compartilhar abertamente suas vivências, sem receio de se sentirem julgados por relatá-las; possam se sentir aceitos e acolhidos e perceber que não estão isolados, já que existem outras pessoas vivendo e compartilhando essa experiência; possam compreender que são capazes de assumir uma postura ativa diante do fenômeno da audição de vozes, reconhecendo a possibilidade de haver certo controle em relação às vozes, interferindo na sua intensidade e sentido; possam reconhecer que existem aspectos positivos em ouvir vozes e que enfrentá-las pode apresentar uma multiplicidade de novas vias mais interessantes do que o fato de ignorá-las.
De acordo com as concepções do Movimento Intervoice, as vozes são consideradas mensageiras (Baker, 2009), trazendo algo da realidade do sujeito, como por exemplo situações traumáticas que ocorreram ao longo de sua vida ou as formas como o sujeito lida com suas emoções. Muñoz, Serpa, Leal, Dahal e Oliveira (2011) relatam que a maior dificuldade reside nas relações que os ouvidores têm com as vozes, e não na audição propriamente dita. Apesar da procura por distrações para ignorá-las ou ouvi-las seletivamente serem estratégias adotadas, Baker (2009) aponta que este tipo de conduta apresenta pouco sucesso, principalmente porque pode elevar o tom de hostilidade com que as vozes se manifestam. A superação do medo e a aceitação em relação ao fenômeno são passos importantes para o enfrentamento, e este requer que o ouvidor esteja aberto ao diálogo, buscando compreender o que suas vozes querem dizer. Muñoz et. al. (2011) ressaltam a importância das narrativas individuais e das trocas de saberes dentro dos grupos de ouvidores como ferramentas para a compreensão das vivências e a transformação da visão sobre o fenômeno. Para Barros e Serpa Jr (2017), contar suas histórias e falar sobre os sentidos que as vozes têm para cada um "é um meio de criar diálogos, promover autoconhecimento e permitir o compartilhamento de experiências atravessadas por traumas, medos, dúvidas de pessoas que enfrentam uma situação dramática" (Barros & Serpa Jr, 2017, p. 882).
O Grupo de Ouvidores de Vozes como Espaço de Encontros
Tendo em vista o caráter social e histórico do homem, os grupos, em suas diversas configurações e singularidades, têm sido os espaços fundamentais para que os sujeitos se inter-relacionem na produção de formas de estar no mundo. Podemos assim compreender que estar diante de pessoas que compartilhem experiências semelhantes em um processo grupal pode viabilizar a troca de vivências, o estabelecimento de relações e a criação de vínculos, propiciando espaços e formas de criação de sentidos para si e para o mundo em que habita e produzindo, com isto, importantes efeitos de subjetividade.
De acordo com Martín-Baró (1989), um grupo se define a partir de "uma estrutura de vínculos e relações entre pessoas que canaliza em cada circunstância suas necessidades individuais e/ou interesses coletivos" (p. 206). Desta forma, os grupos não devem ser vistos como a soma dos indivíduos e sim como um processo em que há uma relação de interdependência estabelecida entre os seus membros, sentidos comuns e uma atividade a ser desenvolvida. Alguns dos aspectos que o autor julga primordiais na construção da identidade de um grupo são: a formalização organizativa, as relações com outros grupos e a consciência de pertencer a um grupo. Este último aspecto é caracterizado como sentimento de pertença subjetiva do indivíduo dentro do coletivo e o referencial que o grupo ocupa na formação de sua identidade.
A capacidade de ouvir vozes, ver pessoas ou cenas, ou mesmo de sentir sensações de toque - capacidades convencionalmente compreendidas pela medicina e pela sociedade em geral como alucinações por não serem passíveis de compartilhamento, a não ser por meio das narrativas daqueles os quais as vivenciam - pode conduzir o sujeito a um caminho de extrema solidão, isolamento social e estigma. Os Grupos de Ouvidores de Vozes, no intuito de acolher e apoiar as diversas experiências e sentimentos que abarcam esses fenômenos, buscam auxiliar neste processo de saída do isolamento e no combate ao estigma, oferecendo um espaço de escuta e diálogo que tem como princípios o respeito, a empatia e a valorização dos sentidos dados às vivências particulares de cada um, como nos apresenta Baker (2009) no manual para a formação de grupos de Ouvidores de Vozes. O grupo possibilita, assim, o encontro com o outro, com a experiência que lhe é similar e com a experiência própria, favorecendo, com isto, a produção de narrativas individuais. Deste modo, as relações que vão se estabelecendo dentro dos grupos de ouvidores se constroem a partir do compartilhamento de vivências, informações e variadas estratégias que possibilitem uma melhor convivência com os fenômenos, com os outros, com a sociedade e consigo mesmo.
O Caminho de Formação do Grupo de Ouvidores de Vozes "Ouvi Falá"
O grupo de Ouvidores de Vozes "Ouvi Falá" surge como uma proposta de estágio a partir da experiência da coordenadora do projeto em grupos de ouvidores de vozes na Itália. Trata-se do primeiro grupo de ouvidores de vozes de Minas Gerais e contou com o apoio de uma Universidade Federal e da rede Intervoice para ser formado. O projeto teve início em novembro de 2017 e exigiu, a princípio, um trabalho de formação dos alunos estagiários para compor a equipe na montagem, organização, planejamento e execução do projeto. Entre os meses de novembro de 2017 e março de 2018 foram realizados estudos sobre a literatura do Movimento dos Ouvidores de Vozes, a Rede Internacional Intervoice e outros temas em saúde mental e em relação ao fenômeno de escuta de vozes. Os estudos foram desenvolvidos tanto individualmente quanto em reuniões coletivas, com os objetivos de leitura, discussão e contato com os materiais.
Grande parte da experiência prática adquirida para a criação do grupo adveio da experiência da coordenadora do projeto, a qual esteve em contato com cerca de 7 grupos de ouvidores de vozes ou com seus facilitadores na Itália por cerca de 2 anos. A partir desta fase de preparação, os estagiários foram conhecendo mais sobre o Hearing Voice Movement (HVM) e sobre o fenômeno de ouvir vozes, Além disso puderam, através da participação em estágios relacionados, já irem se aproximando de ouvidores de vozes, os quais viriam depois a compor o grupo. A formação do grupo de participantes ouvidores de vozes se deu em parte pelo contato da equipe de estagiários com os usuários dos serviços de saúde mental da cidade, em parte pela indicação de alguns poucos profissionais, assim como por meio de visitas ao CAPS II, ao Núcleo de Saúde Mental e a um Centro de Convivência ligado a um projeto da Universidade. Somaram-se a estes esforços conversas com profissionais e usuários, que eram convidados a participar do grupo, dando início às conversas sobre as vozes. Houve também a divulgação do projeto por meio de um programa de rádio local e por meio de outras fontes de disseminação de informação via redes sociais ou cartazes, assim como por meio da realização de palestras.
Os encontros passaram a ocorrer semanalmente a partir de março de 2018 com 2 hs de duração, em uma sala da universidade (local escolhido por possibilitar o acesso livre da comunidade, incentivar a neutralidade na exposição de diferentes visões, além de ampliar o espaço de circulação dos ouvidores). Contava-se com a presença de ouvidores, facilitadores, estagiários e, esporadicamente, de algum familiar, pesquisador ou profissional interessado em conhecer o projeto. A participação de familiares e observadores, assim como a presença de novos ouvidores, passou a ser discutida entre os participantes do grupo com pelo menos uma semana de antecedência. Avaliamos como importante a participação esporádica de familiares no grupo pelo fato da família ser um importante referencial para muitos dos ouvidores. Isto permitia que sua presença, quando requisitada, contribuísse para o aumento do sentimento de integração no grupo. Permitia também ao familiar presente a expansão de sua compreensão a respeito do fenômeno vivenciado pelo ouvidor. Esta implicação da família no processo de mudança de percepção do fenômeno de escuta de vozes expressa uma forma de olhar a experiência do ouvidor de maneira diferente da comumente encontrada pelos usuais manuais de diagnóstico psiquiátrico, que a percebem como uma patologia degenerativa ou como uma doença que precisa ser medicalizada.
Os encontros do grupo começavam com a facilitadora dando as boas vindas às pessoas e às vozes. A princípio, esta função era assumida pela coordenadora do projeto e, mais tarde, estagiários e ouvidores também ocuparam esta posição. Em seguida, os encontros passavam para comentários sobre a semana, trocas de experiências, dinâmicas, práticas de consciência corporal e relaxamento, além de um café da manhã coletivo. Como a horizontalidade é um dos pontos mais importante do processo e da proposta do grupo, o papel do facilitador era apenas o de fazer a fala circular de maneira democrática e sempre respeitando o conteúdo do que era dito, relembrando os preceitos do grupo e a motivação de estarem alí reunidos. A função de facilitação como processo de mediação, no qual o facilitador propõe temas, provoca reflexões e intervém quando necessário, constituiu-se assim como instrumento de incitação do diálogo aberto em referência a temas importantes e pertinentes ao grupo. Almejava-se que esta função fosse sempre rotativa entre todos os membros do grupo e, de preferência, que os próprios ouvidores assumissem a facilitação. No entanto, muitos dos ouvidores e estagiários disseram não se sentir confortáveis em exercer tal função, sendo então assumida predominantemente pela coordenadora ou pelos mesmos estagiários, sem muita rotatividade. Cabe ressaltar a importância de se respeitar a forma de participação que cada membro considera mais adequada para si, tendo em vista também o próprio tempo de formação do grupo, que ainda se encontra em processo de construção de vínculos e de confiança nas próprias potencialidades. É interessante pontuar, no entanto, que alguns ouvidores, ao longo dos meses, passaram a tomar para si o papel de facilitação com maior frequência, passando a contribuir também com a elaboração de dinâmicas.
Conversas Sobre as Vozes - Encontros para Além do Grupo
O grupo foi se constituindo como lugar de expressão de si e de suas vozes, lugar para dar vazão a sentimentos e emoções sem o medo de julgamentos e de punições, lugar de reconhecimento de afinidades e de construção de vínculos de apoio. Deste modo, cada sujeito foi sendo convidado através do trabalho narrativo a se posicionar como sujeito, não apenas como sujeito louco ou doente mental como estava sendo o mais frequente em suas experiências desde o diagnóstico, mas estimulando a emergência de novas formas de subjetividade, novas percepções de si, outros ethos, na perspectiva de Michael Foucault (1984), ou seja, outras formas de estar no mundo e de se reconhecer enquanto sujeito. Muitas narrativas puderam ser compartilhadas, trazendo versões de mundo muito coerentes. Neste artigo priorizamos a descrição do processo de construção do grupo e de consolidação de suas práticas, ou seja, o percurso realizado entre ouvidores e profissionais aprendizes na troca de experiências. Em um próximo artigo nos ocuparemos exclusivamente da descrição de algumas das narrativas apresentados pelos integrantes do grupo, trazendo mais diretamente as vozes dos ouvidores e realçando a importância de cada uma delas.
Um outro ponto característico em relação ao grupo "Ouvi Falá", que o diferencia dos demais grupos de ouvidores é o fato de que alguns ouvidores recebiam acompanhamento individual, para além dos encontros no grupo. Os primeiros contatos individuais se deram visando uma conversa inicial sobre a experiência com as vozes, utilizando como guia o questionário de Maastrich e exercícios propostos por Coleman e Smith (2007), os quais possibilitaram uma melhor compreensão e conscientização em relação ao fenômeno das vozes. Tanto o questionário quanto os exercícios utilizados como norteadores propõem ao ouvidor uma maior percepção das diversas dimensões relacionadas à experiência de audição de vozes, tais como: reflexões em relação aos momentos em que as vozes apareciam, as situações do cotidiano relacionadas às vozes, as primeiras ocasiões de escuta, a localização destas vozes, o timbre, a origem, seus conteúdos, assim como a quantidade delas e suas características. Buscava-se ainda reconhecer a existência ou não de qualquer tentativa de diálogo com elas, dentre outros pontos importantes no processo de escuta.
De maneira complementar aos encontros semanais do Grupo de Ouvidores "Ouvi Falá", um horário semanal de reunião (supervisão) foi disponibilizado aos participantes não ouvidores - alunos dos cursos e Psicologia e Medicina ligados ao projeto por meio de um estágio - para que pudessem discutir, junto à coordenadora do projeto, textos, documentários, entrevistas, e demais materiais relacionados ao grupo de ouvidores e à experiência de ouvir vozes. Nestes encontros eram realizados feedbacks em relação aos encontros grupais anteriores dos ouvidores, discussões para o planejamento das atividades para a semana seguinte e para a organização de eventos relacionados. Buscava-se, ainda, destinar um momento da reunião à supervisão dos encontros individuais, bem como à supervisão de toda a dinâmica de contato com os ouvidores.
Em determinado momento, como maneira de fazer com que os participantes do grupo de ouvidores se implicassem também nestas discussões, foi proposta a participação deles nas reuniões de supervisão, concebendo-as também como espaço de formação e de troca de saberes para além das hierarquias de saberes previamente estabelecidas entre cientistas estudiosos e experts por experiência. Assim, um ou dois ouvidores do grupo passaram a participar quinzenalmente destas reuniões, o que levou, inclusive, os ouvidores a contribuírem no planejamento dos encontros e a participarem das discussões, leitura e apresentação de textos.
Aos participantes ouvidores que se manifestavam poucas vezes durante os encontros do grupo - quer seja por timidez ou por não se sentirem ainda à vontade em meio aos demais - assim como aos participantes que demandavam um espaço mais reservado para tratar do tema das vozes e questões afins, era oferecido um acompanhamento individual que denominávamos "conversa sobre as vozes", com a presença de um ou dois estagiários. Isto permitia, de certo modo, a continuidade do processo inicial de ampliação e reconhecimento da experiência das vozes que haviam sido realizados por meio dos questionários. Todavia, os encontros individuais tratavam de tematizações mais pontuais e particulares sobre problemas, soluções e indagações a respeito do próprio processo de relação com as vozes, bem como do aprofundamento de questões pessoais nem sempre relacionadas diretamente às vozes. Nestas conversas, além de se tratar do cotidiano do ouvidor, também se buscava refletir sobre situações ocorridas no grupo, provocando reflexões, sentimentos e sensações despertas naquele contexto. Visava-se, assim, favorecer a integração do sujeito, seu pertencimento ao grupo, além de avaliar as repercussões das discussões na individualidade daquele sujeito. A proposta de acompanhamento individual pelos estagiários tinha, portanto, como foco, o estabelecimento de vínculo, a escuta qualificada da história do ouvidor e o suporte aos conteúdos trabalhados nos encontros grupais. Importante frisar que as conversas individuais não possuíam caráter psicoterápico, apesar de trazerem importantes efeitos terapêuticos.
Para além da aplicação do questionário e de exercícios, as conversas individuais se estabeleceram como momentos em que os ouvidores poderiam expor questões as quais ainda não se sentiam preparados para compartilhar no grupo. Embora todos os participantes tenham passado por este momento de acompanhamento individual de início, nem todos continuaram neste processo, seja pelo ouvidor não ter demonstrado a necessidade de continuidade da conversa naquele momento, seja por parecer necessário um cuidado psicoterápico, que ultrapassava o propósito do acompanhamento individual sobre as vozes. Participantes que apresentavam demanda por terapia, mas não dispunham de recursos financeiros para isto, eram direcionados ao Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) para serem atendidos por estagiários da área clínica, não diretamente relacionados ao Grupo de Ouvidores. Sendo assim, por um lado os estagiários participantes do grupo de ouvidores realizavam um trabalho de escuta qualificada das vivências relacionadas mais diretamente à escuta de vozes, tanto no grupo, quanto em momentos individuais específicos; por outro lado, aos estagiários de outros projetos psicoterapêuticos do SPA eram encaminhados aqueles ouvidores que possuíam questões que precisavam ser trabalhadas através da psicoterapia, para além de uma conversa sobre as vozes.
Em relação ao estabelecimento de vínculos a partir das conversas individuais, de acordo com o ativista Coleman (2011), em seu livro "Recovery: an Alien Concept?", este seria um importante ponto de apoio na rede de cuidados. Para Coleman o processo de recuperação de uma condição de adoecimento mental se daria através do contato com diversas pessoas capazes de oferecer apoio e acompanhamento, assistência e encorajamento, auxiliando a traçar possíveis rotas e a manter o caminho de recuperação seguro. O acompanhamento e a escuta qualificada, para o autor, dariam suporte aos ouvidores nos momentos de início da crise ou de angústia. Utilizando o conceito de ritornelo, de Deleuze, tal como discutido por Marques, Palombini, Passos e Campos (2013), pode-se dizer que, diante do início do sofrimento ou da crise - em que há o isolamento, seguido de um movimento de organização interna e depois da abertura ao externo e a possibilidades de saída de um "caos" - a escuta qualificada e o estreitamento do vínculo poderiam inserir o sujeito (no caso, aquele que escuta individualmente o ouvidor) como fonte de cuidado, no intuito de favorecer a ordenação interna por meio da fala e a ressignificação daquele momento para o ouvidor, favorecendo também a sua abertura ao exterior por meio do reconhecimento de uma relação de acolhimento e de afeto (Marques et al, 2013).
Como mencionado, havia um esforço na direção da formação e fortalecimento de vínculos grupais também através dos encontros individuais. O grupo até mesmo ganhou um nome após alguns meses: a partir de um nome sugerido por uma ouvidora e aprovado em votação pelos presentes, o grupo de ouvidores de vozes passou a se chamar "Ouvi Falá". Cabe ainda mencionar que, ao final do primeiro ano de trabalho houve a incorporação no grupo de novos estagiários, professores e pesquisadores participantes, assim como novos ouvidores, em uma constante dinâmica de manutenção e, ao mesmo tempo, de renovação.
Discussão
Grupo de Ouvidores "Ouvi Falá" - Recompondo Modos de Estar no Mundo
O grupo "Ouvi Falá", assim como os demais grupos de ouvidores de vozes, baseia suas reuniões no encontro de pessoas que convivem com a experiência de escuta de vozes, prezando pela horizontalidade, pela valorização das explicações que cada pessoa apresenta em relação ao fenômeno e pela consideração de que nem todas as estratégias serão úteis para todos. O grupo "Ouvi Falá", tendo como objetivo a auto e mútua ajuda entre ouvidores, visa contribuir para a criação de vínculos e para a possibilidade de manutenção de um espaço para se falar da experiência das vozes aos seus pares, ou seja, pessoas que também compartilham desta experiência, almejando proporcionar assim uma ampliação de narrativas sobre ela e possíveis mudanças em relação ao estigma.
O Grupo de Ouvidores de Vozes "Ouvi Falá", por ter sido criado no contexto de um estágio oferecido dentro do curso de Psicologia, poderia equivocadamente ter se estabelecido desde o início a partir de uma separação entre estagiários e professores (profissionais e estudantes da área da saúde), de um lado, e ouvidores e familiares (usuários do serviço público ou pacientes), de outro - pois trata-se de uma separação muito recorrente entre usuários e prestadores de serviços em saúde mental. No entanto, visou-se sempre o desenvolvimento de uma perpsepctiva de horizontalidade e de ajuda mútua envolvendo todos os participantes dos encontros, ouvidores e não ouvidores, cooperando para a flexibilização das barreiras existentes entre o saber formal e o informal em relação ao fenômeno da escuta de vozes. Buscou-se assim estimular a saída dos lugares convencionais de expert e paciente, estreitar laços, aproximar histórias de vida, trocar estratégias de enfrentamento, assim como cooperar na formação de futuros profissionais psicólogos ou médicos interessados de fato nos sujeitos os quais tem diante de si, para além de uma percepção de "sujeito-objeto". Com isto, buscou-se estar atento a não institucionalização do grupo e de suas práticas como atividades da Universidade ou de profissionais da psicologia, tendo sempre em vista que a função de coordenação e facilitação não é restrita a uma área de saber, priorizando a promoção de autonomia, a valorização das diferenças, a não separação entre tipos de saberes, o diálogo sobre possibilidades e potencialidades.
Cabe lembrar que, os grupos de ouvidores de vozes, tal como preconizado no movimento mundial de ouvidores, devem basear suas ações no compartilhamento de experiência, e não se pautarem necessariamente em saberes científicos em relação ao tema da escuta de vozes. Devem também basear suas ações em relações horizontais, em protagonismo e na não adoção de posturas de tutela em relação aos membros do grupo (Vasconcelos, 2000). Devem assim caminhar na direção de obter autonomia, enquanto grupo, em relação a serviços especializados; assim como criar condições para o ouvidor fortalecer sua própria autonomia, tendo em vista uma perspectiva de autonomia como "a capacidade do sujeito de ligar com sua rede de dependências" (Onocko-Campos & Campos, 2006, p. 670), o que implicaria na ampliação do poder de agir e de escolher do sujeito diante de sua rede de apoio. Cabe ainda ressaltar que a maior parte dos ouvidores do grupo "Ouvi Falá" trazia fortemente em sua narrativa uma condição de patologização (psiquiatrização) da experiência de escuta de vozes e do sofrimento psíquico, imersos, quase que unanimemente, em um processo de medicalização que reduz a experiência de ouvir vozes a uma única explicação: ouvir vozes como sintoma de diagnósticos de doença mental (depressão, bipolaridade e, sobretudo, esquizofrenia). A reflexão crítica em relação a esta tendência de modelo único de narrativa que empodera os detentores do saber psiquiátrico e assujeita a clientela a estes dispositivos de controle é de extrema importância para que a rica experiência de ouvir vozes possa ser apresentada, articulada e ressignificada pelos próprios sujeitos no grupo. Deste modo, trabalhou-se no grupo para que o discurso psiquiátrico aparecesse apenas como uma das possibilidades dentre as muitas versões possíveis das narrativas dos ouvidores, e não como o único discurso possível de verdade. Reconhece-se, portanto, a importância de se instaurar um processo gradual e constante de transformação dos padrões preestabelecidos em relação a esta experiência.
O papel de facilitação no grupo "Ouvi Falá" foi fundamental para que a fala circulasse entre todos os participantes e as experiências mais diversas relativas às vozes pudessem despontar e serem desenvolvidas de forma a favorecer as relações, o trabalho de identificação e de pertencimento no grupo. Tornou-se também importante no grupo o uso de outros meios e mídias para além da narrativa em primeira pessoa, para que diferentes modos de expressão pudessem emergir. Deste modo, o trabalho no grupo acabou cumprindo também a função de fomentar o desenvolvimento de potencialidades dos integrantes do grupo. Pessoas não-verbais, ou seja, integrantes do grupo que por diversos motivos não traziam muito as suas contribuições na forma de narrativa, podiam assim desenhar, fotografar e trazer fotografias, escrever poesias, trazer canções ou histórias que considerassem interessantes, enfim, apresentando ao grupo suas perspectivas, seus olhares, suas vidas. Pessoas que inicialmente não se sentiam à vontade para falar nos encontros, uma vez incumbidos de apresentar algumas fotografias através das quais pudessem narrar um pouco de suas experiências cotidianas, aos poucos iam se tornando mais confiantes em compartilhar suas experiências junto aos demais. Práticas corporais também foram de grande importância na dinâmica do grupo, oferecidas semanalmente por uma estagiária, visando uma maior consciência corporal e contato com a realidade presente por meio do corpo e dos sentidos. Outras atividades também foram conduzidas no grupo por estagiários, ouvidores e voluntários, tais como oficina de mandalas com colagens, uma sessão de psicodrama, dinâmicas grupais de interação, de sensibilização, oficinas artísticas, assim como propostas de escrita poética e livre. Tais experimentações visavam ampliar as possibilidades de manifestações subjetivas, sem que se abandonasse a moldura geral de sustentação do grupo, a saber, a troca de experiências através de um grupo de fala.
A princípio, a iniciativa de levar atividades e dinâmicas se restringia aos estagiários ou a pessoas especializadas relacionadas ao campo acadêmico. No entanto, no decorrer do tempo, percebeu-se que, se a busca era por protagonismo e autonomia, caberia aos próprios ouvidores a tarefa de propor, levar e conduzir as dinâmicas, o que cada vez mais passou a acontecer por iniciativa própria. Sendo assim, podemos considerar que outra importante estratégia utilizada visando diluir as fronteiras dos lugares de saber (embora não apagando as diferenças entre equipe e ouvidores) foi convidar os ouvidores a assumir uma postura cada vez mais ativa, relativamente à sugestão de temas a serem discutidos, de músicas a serem ouvidas e de dinâmicas a serem vivenciadas no grupo. Alguns dos ouvidores passaram a assumir esporadicamente o papel de levar e conduzir dinâmicas ou mesmo de conduzir a facilitação do grupo. Mas a equipe deveria estar sempre atenta no sentido de evitar um contexto de cobrança, criando para isto espaços convidativos para que os ouvidores pudessem se arriscar na mudança de uma posição mais passiva para uma posição de maior atividade junto ao grupo.
Durante os encontros, tanto estagiários quanto ouvidores eram constantemente estimulados a compartilhar suas experiências relativas a temas que eram trazidos ao grupo. Vale ressaltar que os estagiários não eram imunes à medicalização da vida e alguns deles haviam passado ou passavam por experiências psiquiátricas, talvez não na mesma proporção ou intensidade de quem já sofreu uma internação psiquiátrica involuntária, como era o caso de vários dos ouvidores. Além disso, o contexto geral de discussão em relação a temas mais gerais como confiança, medo, morte, relacionamentos, permitiram aproximações de experiências entre equipe e ouvidores, diluindo estigmas e sensações de isolamento experiencial. Em algumas ocasiões, emergiram relatos de experiências análogas ou semelhantes à de escuta de vozes por parte da equipe de trabalho, professores ou convidados, levando a uma maior porosidade das fronteiras que separam ouvidores de vozes e não ouvidores, diluindo as fronteiras do estigma da loucura. Isto era possível também porque a experiência de ouvir vozes era apresentada de forma potencializadora e não mais unicamente como sintoma de adoecimento mental.
Considerações Finais
Muito embora esteja-se ainda longe de um contexto sócio histórico que permita e estimule largamente a invenção de outras formas de enfrentamento diante do mal-estar no mundo, o grupo de ouvidores de vozes "Ouvi Falá", permitindo um trabalho de superação de um estado de angústia e isolamento social - estado este em que se escutam os ecos e rumores de dores, culpas, cobranças e acertos de contas por meio de muitas vozes - impeliu a uma condição de questionamento, reflexão, ponderação e escuta sensível em relação ao processo de sofrimento psíquico. As vivências relatadas por cada ouvidor dentro do grupo vão se tornando elementos que possibilitam o trabalho de identificação com os demais, enredando histórias de vida para além da experiência das vozes em um contexto seguro para compartilhar angústias e outros sentimentos que abarcam a complexa experiência de ouvir vozes, expandindo, com isto, os laços para outros locais e facilitando a criação de vínculos. Falar sobre as vozes pode trazer uma ressignificação do sentido atribuído a elas e, dessa forma, propiciar alguma mudança nesta relação.
Sem perder de vista as relações de poder que tanto podem nos adoecer quanto restabelecer a saúde, os grupos de ouvidores de vozes se apresentam como espaços propiciadores de diálogos para novas formas de subjetividade e novas formas de coletividades, possibilitando lugares de fala, de resgate da saúde, de criação de vínculos, de fortalecimento da esperança, confiança e sociabilidade. Tendo em vista que não só de lamúrias vivem estas vozes, o reposicionamento do sujeito diante das vozes pode então transformar um rumor de guerra em um sereno cantar de vozes que aconselham e que convidam à paz, assim como temos testemunhado no grupo "Ouvi Falá". Cabe ao grupo possibilitar que estas vozes (vozes dos ouvidores, vozes ouvidas pelos ouvidores, vozes que falam dos ouvidores) se articulem, negociem e se reposicionem, a partir do próprio grupo e na vida de cada sujeito. Esta seria a potência do grupo: a realocação dos lugares destas tantas vozes e dos sujeitos nestes discursos. Ao ampliar o foco de uma perspectiva estritamente psiquiátrica da experiência das vozes para tantas outras versões vividas pelos membros do grupo, é possível construir outros caminhos de "cura", para além da ideia do prognóstico e de uma visão de si a partir de uma identificação diagnóstica. Criar possibilidades para outras narrativas em torno do sofrimento, em relação a si e ao mundo pode ser condição para que o sujeito reveja sua posição diante do mal-estar, construindo, por meio de outras vias que não apenas a prescrição da medicação, um espaço de cuidado e saúde. Ao partilhar estas experiências e vinculá-las a um coletivo, se constrói assim um espaço de afetividade, uma rede de cuidado, revitalizando a sensação de autoconfiança e de autonomia e construindo um lugar social para estes sujeitos, tantas vezes excluídos em suas comunidades e da escolha e discussão de seu próprio processo de cura. Assim o sujeito pode então criar condições para ocupar outras formas de subjetividade, de ser sujeito, para além de uma subjetividade associada exclusivamente pela identificação com a doença mental.
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Recebido em: 14/05/2020
Reformulado em: 10/05/2021
Aceito em: 10/06/2021
Notas
* Psicóloga pela UFSJ, especialista e mestre em Psicologia pela UFSC, doutora em Psicologia pela UFRJ, pós-doutoranda em Psicologia pela UFSJ.
** Graduando em Psicologia pela UFSJ, desenvolve pesquisa sobre o tema da psicose, atuou na formação do Grupo de Ouvidores de Vozes como estagiário.
*** Graduando em Medicina pela UFSJ, atuou como bolsista e monitor nos cursos de Medicina e Psicologia, estagiou nos Grupos de Ouvidores de Vozes e GAM.
**** Graduanda em Psicologia pela UFSJ, estagiária nos Grupos de Ouvidores de Vozes e de Gestão Autônoma de Medicação na UFSJ.
***** Graduanda em Psicologia pela UFSJ, atuou como estagiária no Centro de Convivência Fortim dos Emboabas e no Grupo de Ouvidores de Vozes.
****** Graduada em Psicologia pela UFSJ, atuou nos estágios de Acompanhamento Terapêutico, Oficinas Terapêuticas e Grupo de Ouvidores de Vozes.
******* Graduando em Psicologia pela UFSJ, atua como pesquisador, atuou como estagiário no Grupo Ouvidores de Vozes e no SPA da UFSJ.
******** Graduanda em Psicologia pela UFSJ, atuou como pesquisadora de iniciação científica, estagiou no CAPS Del Rei, Fortim e no Grupo de Ouvidores de Vozes.
Financiamento: Capes - A proponente do estágio do grupo de Ouvidores de Vozes (Daiana Paula Milani Baroni) é bolsista de pós-doutorado PNPD no Departamento de Psicologia da UFSJ e o presente projeto faz parte do conjunto de suas atividades.
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