O suicídio pode ser definido como um ato determinado executado pelo próprio indivíduo, cuja finalidade seja a morte, de forma consciente e propositada, mesmo que ambivalente, usando um meio que a pessoa acredita ser letal. Tanto os fatores de risco quanto os de proteção para o comportamento suicida e para o suicídio são complexos, com múltiplas determinações, podendo ser prevenidos através de intervenções oportunas embasadas em dados confiáveis (Ministério da Saúde, 2017).
Esse fenômeno acontece em todas as culturas, ganhando status diferente a depender dos valores da época (Gomes, Iglesias, & Constantinidis, 2019). Os estudiosos sobre a temática desenvolveram posições que consideram o suicídio desde um ato mais individual até uma compreensão em decorrência da pressão social. Em um de seus estudos, o sociólogo Durkheim (2011) apontou que as taxas de suicídio cresciam em períodos de crises industriais ou econômicas. Segundo ele:
Toda ruptura de equilíbrio, mesmo que resulte em maior abastança e aumento da vitalidade geral, impele à morte voluntária. Todas as vezes que se produzem graves rearranjos no corpo social, sejam eles devido a um súbito movimento de crescimento ou a um cataclismo inesperado, o homem se mata mais facilmente. (Durkheim, 2011, p. 311)
Um fator que ainda é sinônimo de complicação sobre a temática no Brasil é a subnotificação dos casos (Gomes, Iglesias, & Constantinidis, 2019). Apesar da crescente popularização de discussões sobre o tema da morte no meio acadêmico, na área da saúde e na mídia, ainda não há aceno de ruptura no seu enquadramento como tabu (Veras & Soares, 2016).
Além disso, tendo como ponto de partida o pressuposto citado em alguns estudos de que as altas taxas de suicídio estão relacionadas aos determinantes sociais, é fundamental compreender a relação entre a crescente ocorrência do suicídio e a situação socioeconômica, por exemplo (Fraga, Massuquetti, & Godoy, 2016). Diante da triste realidade dos indicadores de suicídio no Brasil, se faz necessário trazer para o centro do debate um recorte importante e pouco discutido em nossa sociedade e nas políticas de saúde: o suicídio de pessoas LGBTQIA+.
Quando pretendemos discutir sobre as experiências sociais dos sujeitos que não se adequam às normas de gênero e de orientação heterossexual nos espaços, nos apropriamos da discussão de Judith Butler. Segundo a autora, a cópia da norma pelo corpo através de atos, falas e gestos buscam nos enquadrar como masculinos e femininos, conforme a coerência de sexo-gênero-desejo (Butler, 2015). Contudo, esse é um processo que é contingente e imprevisível, pois essa cópia da normatividade não se dá plenamente, o que vai nos permitir reconhecer deslocamentos nas performatividades de gênero desses indivíduos. Assim, o não enquadramento na heterossexualidade e na cisgeneridade nos remete à condição de precariedade nos contextos sociais (Brito & Couto Junior, 2019).
Sobre isso, encontramos também o conceito de vidas precárias, de Butler (2019), a qual, desde sua obra Corpos que Importam (1995), vem debatendo sobre a importância do corpo, os processos de humanização e sobre quais vidas importam e quais sequer serão entendidas como tal. Dessa forma, a autora discorre sobre a vulnerabilidade da qual é impossível escapar pelo ser vitimado. Assim, a vulnerabilidade é distribuída de forma desigual, o que faz com que algumas populações estejam mais suscetíveis à violência do que outras.
No Brasil, poucos estudos relacionam a saúde entre os grupos heteronormativos e LGBTQIA+ aos seus possíveis efeitos sobre o fenômeno do suicídio. Há uma grande dificuldade em descrever a realidade social enfrentada por pessoas LGBTQIA+, principalmente devido à escassez de estatísticas atuais e oficiais sobre o tema.
Desta forma, objetivamos, a partir deste estudo, compreender narrativas de pessoas LGBTQIA+ universitárias acerca do suicídio, buscando identificar os fatores e elementos que atravessam suas experiências. Os objetivos específicos são identificar os fatores/elementos que estão relacionados ao suicídio nas experiências de pessoas LGBTQIA+, compreender as diversas violências inerentes à experiência do suicídio e entender um pouco sobre a acessibilidade aos serviços de saúde em situações de suicídio e/ou tentativa por pessoas LGBTQIA+.
Método
O projeto de pesquisa se desenvolveu no âmbito da Pesquisa Social em Saúde, pois objetivou investigar o fenômeno da saúde por meio das representações a ele atribuídas pelas pessoas usuárias (Minayo, 2014). Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, pois se aplica “melhor a investigações de grupos e segmentos delimitados e focalizados, de histórias sociais sob a ótica dos atores, de relações e para análise de discursos e documentos” (Minayo, 2014, p. 57).
Para produção dos dados, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada. Nesse roteiro, os interlocutores eram questionados sobre o que entendiam sobre o suicídio e tentativas de suicídio, assim como quais as peculiaridades de um estudante universitário LGBTQIA+ com relação ao suicídio, além de como é identificada a relação da temática do suicídio LGBTQIA+ com o sistema de saúde. O processo de concretização da pesquisa ocorreu entre os meses de novembro de 2019 e maio de 2020.
Os critérios para inclusão de interlocutores foram ser uma pessoa LGBTQIA+ e estudar em uma Universidade Federal do litoral do Piauí. A pesquisa contou com a participação de 11 (onze) interlocutores que se autodeclararam LGBTQIA+ (todos se declararam cisgêneros, logo, não foram entrevistadas pessoas trans ou travestis) e que são universitários. Optamos por fazer o recorte de jovens LGBTQIA+ universitários por ter mais facilidade de localizá-los no cotidiano da Universidade e também por observarmos muitas demandas relacionadas ao suicídio na rotina da instituição, seguindo os dados do serviço escolar de psicologia, os quais foram conseguidos a partir de uma conversa com profissionais que trabalham no serviço. Destacamos também que a pesquisa se insere no contexto de um município de médio porte, localizado no nordeste brasileiro, com uma tradição ainda muito conservadora, embora nos últimos anos a universidade tenha mudado bastante o perfil e a diversidade de alunos e classes sociais, seja pela expansão do ensino superior, seja pelas possibilidades das políticas inclusivas e da possível democratização do ensino superior público.
A seleção dos interlocutores aconteceu a partir de uma postagem na rede social Instagram, via opção Stories, convidando aqueles que preenchiam os critérios de inclusão na pesquisa. No decorrer dos dias, a postagem foi compartilhada no aplicativo WhatsApp e muitos acabaram indicando conhecidos que também se adequavam ao estudo. Os interlocutores da pesquisa são todos maiores de 18 anos que consentiram em participar da pesquisa assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, obedecendo à Resolução nº 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde. Aconteceu uma entrevista presencialmente e as demais foram realizadas via áudio no aplicativo WhatsApp. Cada entrevista teve a duração em torno de 20 minutos.
Os resultados foram analisados por meio da Análise do Discurso, que tem como “eixo central de análise a relação entre a linguagem e o seu contexto de produção” (Minayo, 2014, p. 320). Pretendeu-se, portanto, analisar a construção das relações sociais de poder no plano discursivo dos sujeitos da pesquisa a partir da concepção de linguagem como ação no mundo, compreendendo na materialidade do discurso o modo de agir dos sujeitos e concebendo a ciência como construção de olhares sobre a realidade.
Uma das entrevistas foi realizada de forma presencial em março de 2020 e as demais em formato online, de abril a maio de 2020, devido ao período de pandemia que assolou o país. Como forma de garantir o anonimato dos interlocutores, optamos por utilizar nomes fictícios. Para a devolutiva dos resultados da pesquisa, os interlocutores participantes das entrevistas serão contactados e os resultados, por meio da exposição do artigo já finalizado e aprovado, serão destacados.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, Campus Ministro Petrônio Portella, com o número de registro 3.830.387 e CAAE de número 26698619.6.0000.5214.
Resultados e Discussão
Para melhor caracterizar os interlocutores participantes do presente estudo, foi elaborado um quadro informativo com características coletadas durante as entrevistas, como pode se verificar na Figura 1.
Após a análise das entrevistas, percebemos que há em comum nos discursos o relato com as impressões a respeito do suicídio trazendo à tona quatro categorias a serem exploradas: a invisibilidade, o preconceito, a violência e o acesso ao serviço de saúde. A partir disso, diante de todos os relatos, buscamos compreender a narrativa dos estudantes LGBTQIA+ universitários quando afrontados com as questões em volta do suicídio.
Todos os interlocutores disseram já ter tido contato com alguém que já tentou suicídio ou que apresenta ideação. Quando perguntados sobre a percepção a respeito, indicaram muitas causas para a realização do ato. A primeira questão levantada pelos interlocutores diz respeito invisibilidade sofrida pela comunidade. Ao especificar sobre o ato cometido dentro da comunidade LGBTQIA+, a interlocutora Fernanda detalhou:
Eu acho que é a invisibilidade de uma forma geral, não só na sociedade, ou seja, pra fora, mas principalmente a que começa dentro de casa, né? Então, eu acho que se sentir invisível e não se sentir potente pra ser o que se é perto das pessoas e para as pessoas que mais se ama, que de certa forma a pessoa depende dela, dependência tanto financeira quanto emocional. Eu acho que isso é um elemento muito forte, assim como a invisibilidade para a sociedade, e aqui eu acho que não é só nos casos de sofrer algum preconceito explicito, mas é não se sentir representado, é não se sentir que pode ser o que se é, ou ter que lidar com a realidade de violência sobre a comunidade LGBT e uma violência exclusivamente ligada ao fato de ser da comunidade LGBT. Enfim, então... Acho que essa invisibilidade, essa falta de representatividade... É como essa não permissão de ser quem se é, e a punição que é vista, né? Esse caso da violência que eu falei, de assumir isso que você é, são elementos muito fortes para levar uma pessoa da comunidade LGBT a pensar em suicídio, tentar ou de fato cometer. (Fernanda, comunicação pessoal, Abril, 2020)
Assim, o LGBTQIA+ precisa se sentir visível para que se sinta um componente potente e vivo dentro das instituições e locais que adentra.
Nesse sentido, o interlocutor Pedro discorre:
Acho que é devido à comunidade LGBT estar num grupo de minorias que sofrem uma pressão estrutural e invisibilidade por essa estrutura patriarcal e heteronormativa que a gente está inserida, então é meio inevitável à pessoa já ter pensamentos distorcidos sobre sua própria imagem, de não conseguir se entender e de ter poucas referências para saber que aquilo é normal... Passa até mesmo por questões como bullying desde criança... Acho que o principal é o caso da autoaceitação, a parte mais difícil. (Pedro, comunicação pessoal, Maio, 2020)
Essa invisibilidade pode ser devido a uma biopolítica, ou melhor, se falarmos como o filósofo Mbembe (2018), não se trata apenas de uma biopolítica, mas, sobretudo, de uma necropolítica, em que o foco das tecnologias de poder encontra-se na “submissão da vida ao poder da morte” (p. 22). Portanto, o necropoder envolve “a capacidade de definir quem tem importância e quem não a tem, quem está desprovido de valor e pode ser facilmente substituído e quem não” (Mbembe, 2018, p. 135). Assim, quando se nega a humanidade do outro, qualquer violência se torna possível. Dessa forma, quando não se suporta corpos divergentes, mata-se pela omissão da assistência e pela subtração de cuidado.
Não podemos esquecer que essa sociedade, que tem uma governamentalização do Estado e que atende aos desígnios do biopoder, é abrangida como um conjunto de discursos, com estratégias e práticas que se voltam tanto para o corpo individual, através de formas disciplinares, quanto para o corpo social, em forma de regulamentação da população (Butturi Junior & Lara, 2018). Assim, esse governo atua sobre o indivíduo e estabelece um poder sobre as vidas. Para Foucault (1999), há uma produção de certas formas de subjetividade “matáveis”: anormais, perigosos, degenerados. Então, em nome da segurança da população, novas tecnologias de manutenção da saúde e da expulsão são criadas.
Ao problematizar o conceito de necropolítica, Mbembe (2018) se apoia na obra de Foucault (1999) para sua análise das formas de controle sobre a vida humana na sociedade contemporânea. Com isso, o autor afirma que “a expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Mbembe, 2018, p. 123). Dessa forma, a morte está relacionada não necessariamente ao corpo, mas à impossibilidade de poder viver com um mínimo de dignidade, resultando em uma precarização da vida.
A partir dessa perspectiva, a filósofa Judith Butler entende que as concepções do humano não apenas ditam estruturas de inteligibilidade, mas estruturas de realidade - elas discriminam entre as vidas que merecem ser vividas e lamentadas e aquelas consideradas insignificantes. A conquista desses quadros representa uma batalha ético-política fundamental. Quando publicou as primeiras versões dos ensaios coletados em Vida Precária, a autora começou a pensar nos corpos como, em geral, precários e vulneráveis.
E é precisamente nessa abordagem sobre a definição de quem é considerado um sujeito e quem não é que Butler aponta uma ligação entre performatividade e precariedade. A performatividade de gênero está completamente relacionada a quem é considerado bom para os propósitos da vida, quem pode ser entendido como um ser vivo e quem vive ou tenta viver do outro lado dos modos estabelecidos pela inteligibilidade (Butler, 2009).
A vida precária caracteriza aquelas pessoas que não são qualificadas como reconhecíveis, legíveis ou dignas de despertar sentimento. E, dessa forma, a precariedade é a marca que une pessoas LGBTQIA+, mulheres, pobres e apátridas (Butler, 2009). Os corpos que importam e as vidas que importam, as perdas que podem ser lamentadas, se cruzam nas noções de performatividade e precariedade. Assim, essa discussão nos leva a um escopo mais amplo, no qual vidas LGBTQIA+ encontram um terreno comum com as chamadas vidas precárias, vidas que são de certa forma invisibilizadas.
No decorrer das entrevistas, cada interlocutor foi perguntado se já havia tentado ou pensado em suicídio. Todos relataram já ter pensado ou tentado algo. Fernanda disse: “hoje eu vejo que tinha a ver também com não entender a minha sexualidade, demorou muito para isso acontecer e eu realmente comecei a não ver sentido em fazer mais nada...”.
Em relação à temática do preconceito, cada interlocutor relatou que, hoje em dia, a aceitação da comunidade LGBTQIA+ na Universidade é maior, principalmente pelo fato de na Universidade ter pessoas que têm cada vez mais se assumido como são. No entanto, ainda há “preconceito, principalmente por alunos e professores homofóbicos... Fofocas, exclusão, olhares tortos...”, como disse Pedro. E Isadora (comunicação pessoal, Maio, 2020) disse: “sem dúvida, a questão do preconceito é um forte fator que pode atenuar um sofrimento, porque cada pessoa tem essa necessidade de se sentir amado e eu vejo que em muitas situações os pais e a sociedade negam isso”.
Foucault (1999), em seus estudos genealógicos, mostra a ascensão dos dispositivos disciplinares, a partir dos quais as instituições fixam nos corpos os elementos de identidade, com a finalidade de os controlarem por meio das sujeições dos indivíduos a uma norma social. Trata-se de um processo de disciplinarização do corpo. Esse tipo de disciplina das instituições é concebido como um dos braços do biopoder. Esse é um problema social que tem tido um crescimento no que diz respeito ao pensamento LGBTQIA+fóbico, que é legitimado por setores de considerável poder na sociedade, como: a Universidade, a política, a medicina e os discursos religiosos. Logo, seguindo a lógica foucaultiana, essas questões serão desenvolvidas a partir das noções de relação de poder e de disciplinarização dos corpos como eixo principal para se pensar e construir a temática (Ribeiro, Moraes, & Kruger, 2019).
Aliado a isso, os interlocutores destacam que ainda há preconceito entre as pessoas que compõem alguns grupos, além de uma cobrança para seguir os padrões, principalmente aqueles requeridos para se adequar às regras heteronormativas. Destaca-se, também, que se sofre por estar ligado aos estereótipos e que isso pode potencializar o suicídio entre jovens LGBTQIA+. Nesse sentido, sobre as formas de performatividade, Giovanni (comunicação pessoal, Abril, 2020) discorre: “Homofóbicos geralmente pedem por comportamentos mais discretos, enquanto a comunidade LGBT espera um comportamento mais explícito e militante. Deixam-se de lado as singularidades”.
Alguns interlocutores responderam que poderia ser o sentimento de ocupar o espaço do diferente e não se sentir acolhido ou até mesmo atos preconceituosos praticados por pessoas conservadoras que estão em todos os lugares, até na universidade, ou seja, a LGBTQIA+fobia enraizada nos discursos e nas ações. Como disse Milena (comunicação pessoal, Abril, 2020): “Preconceito nos grupos, apesar da universidade ser algo aberto e livre, tem uma cobrança para você provar o quão livre você é, ou de discriminação com pessoas conservadoras que estão dentro da universidade”.
Ademais, entendemos como o ser LGBTQIA+ está cercado por concepções, pensamentos e julgamentos preconceituosos. Ainda nesse sentido, recobramos a lembrança de uma sociedade que é hoje alarmada com uma apologia ao suicídio, principalmente entre jovens, graças à mídia e algumas obras e artistas que trazem essas questões. Não podemos esquecer que o suicídio é um fenômeno multifatorial, no entanto, dentro da vida de um LGBTQIA+, muito se pode relatar e apontar para a razão de fazer acontecer essa escolha por findar a própria vida.
Outra categoria a ser destacada é a violência contra uma pessoa LGBTQIA+, que pode ser praticada por uma pessoa, por um grupo ou por uma instituição. A homofobia, a lesbofobia, a bifobia e a transfobia buscam inviabilizar a luta por direitos ou até mesmo por ter a liberdade de poder se afirmar como uma pessoa que é tão pessoa como as outras, já que o sujeito LGBTQIA+ precisa lutar contra todos os tipos de violência todos os dias.
Foucault (1988) não se exausta em dizer sobre a sexualidade se constituir em um dispositivo de poder que é designado com um intenso discurso. Discurso este que é constituído pela evidência de que o sexo é reprimido, através do qual o regime burguês tem o poder de se apoderar sobre a sexualidade das pessoas.
Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, devido à LGBTQIA+fobia, têm seis vezes mais chance de tirar a própria vida em relação a heterossexuais, com risco 20% maior de suicídio quando convivendo em ambientes hostis à sua orientação sexual ou identidade de gênero, segundo o Ministério da Saúde e a revista científica Pediatrics, conforme o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (2018). Ou seja, as pessoas que se declaram pertencentes à comunidade LGBTQIA+ estão sujeitas à violência por assumirem ser quem são.
Essa violência mancha a vida e a morte, mostrando uma política identitária da morte. Nas palavras de Mbembe (2017):
Regra geral trata-se de uma morte à qual ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem qualquer sentimento de responsabilidade ou de justiça no que diz respeito a esta espécie de vida ou a esta espécie de morte. O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre a vida e a morte, como se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a distinção entre os meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos de crueldade. Aos seus olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos, em princípio não possui qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de trágico e, por isso, o poder necropolítico pode multiplicá-la infinitamente. (Mbembe, 2017, p. 65)
Segundo Teixeira-Filho e Rondini (2012), a homofobia é fruto legitimado do sexismo, que pode se desdobrar, por exemplo, no machismo. Desse modo, a homofobia é tida como o medo ou o descrédito em relação às pessoas homossexuais ou àqueles que presumidamente o são.
A discriminação e o estigma sofridos devido à orientação sexual e à identidade de gênero afetam o processo de adoecimento, sofrimento e dificultam o acesso à saúde, à educação, ao lazer, ao trabalho, dentre outros. Para Santos et al. (2015) “qualquer forma de discriminação é fator limitante da saúde e promotor do adoecimento, inclusive a própria homofobia” (p. 405).
A homofobia pode ser considerada um dispositivo de controle, no sentido foucaultiano, que busca afastar toda e qualquer indagação ou desestabilização da naturalização da normalidade da conduta heterossexual. Tal dispositivo gera discursos cuja finalidade é oprimir todo(a)s aquele(a)s que ousam sentir, experimentar ou dizer a respeito de suas orientações ou identidades sexuais diversas da heterossexualidade, de modo que essas pessoas passam a ser estigmatizadas (Teixeira-Filho & Rondini, 2012).
Isso espelha a atual conjuntura do Brasil, que se utiliza da bandeira do conservadorismo para justificar suas práticas racistas e homofóbicas de forma nada sutil. Além disso, Teixeira, Marretto, Mendes e Santos (2012) apontam em seu estudo que, principalmente em uma sociedade homofóbica, as pessoas tendem a se declarar heterossexuais, mas manter relações afetivo/sexuais às escondidas com pessoas do mesmo sexo biológico como uma forma de gerar o que chamam de discursos de resistência, uma espécie de contrapoder apontado por Foucault em 1981. Estudiosos da temática dizem que o racismo e a homofobia estruturais e institucionais fazem parte da realidade brasileira, pois é possível ver que políticos e autoridades religiosas preconceituosas usam o conservadorismo para expor suas opiniões.
Apesar de muitas mudanças no cenário contemporâneo, ainda são presentes discursos condenatórios referentes à população LGBTQIA+, que buscam privá-la da estrutura social. Desta forma, a população LGBTQIA+ ainda é associada aos conceitos de pecado, asco, vergonha, imoralidade, degeneração e patologia. Assim, a sexualidade humana acaba sendo vista como uma forma de controle social que tem como maior finalidade a regulação dos corpos, dando à população LGBTQIA+ um lugar de opressão e intolerância (Ribeiro, Moraes, & Kruger, 2019).
Assim, podemos referenciar Mbembe (2018) ao afirmar que não há necessidade, na contemporaneidade, de armamentos robustos e tecnológicos de guerra para matar aquele que se considera ser o inimigo. As formas atuais de matar o outro se configuram em práticas sutis de precarização e desassistência: “deixar morrer”. A necropolítica também pode ser relacionada ao não reconhecimento dos sujeitos LGBTQIA+ como sujeitos de direito. É possível ver, através da cisgeneridade e heteronormatividade compulsória que orienta a lógica e o valor moral sexual hegemônico, o lugar de desumanização, exclusão, violência e morte, enfim, a expressão da LGBTQIA+fobia. Assim, em particular os gays femininos, as lésbicas masculinas, as pessoas não-binárias, travestis e transexuais são cada vez mais postos em relações precárias de trabalho, excluídos nos serviços de saúde, nas escolas etc. em virtude da discriminação, do preconceito e da inconformidade face aos padrões hegemônicos binários impostos pelas normas socialmente estabelecidas para os gêneros e as sexualidades (Duarte, 2020).
Além disso, ainda sobre a violência dentro de instituições (como a Universidade, por exemplo), além de serem ambientes de transformação sociocultural e política, são também locais onde grupos sociais são inscritos através de relações de poder (Ribeiro, Moraes, & Kruger, 2019). Assim, a sexualidade e a moralidade são colocadas em xeque, sujeitas a julgamentos e preconceitos. Desse modo, aqueles que não são pertencentes às configurações padronizadas socialmente passam a ser sujeitos excluídos e passíveis de violência. Nessa perspectiva, a interlocutora Bianca discorre:
Jovens LGBT são tratados como pessoas com desvio de caráter, pois não entram em conceitos universais. A pauta de como o jovem se relaciona sempre é levantada por estereótipos de todas as naturezas. Portanto, o único escape é ser o melhor em algo que todos os ditos normativos heterossexuais não são. Como se os jovens LGBT tivessem que provar o respeito, ao que tem direito. (Bianca, comunicação pessoal, Maio, 2020)
Essas vidas, que são precárias, são vidas que historicamente são ignoradas ou silenciadas e essa é uma forma de violência. Assim, é interessante reiterar que a dissidência se caracteriza como práticas políticas e culturais que escapam aos movimentos de captura hegemônicos (Brito & Couto Junior, 2019).
Aliado às questões referentes à sexualidade e ao gênero, é possível ver que há um incremento sobre a saúde das pessoas LGBTQIA+. No estudo de Santos et al. (2017) sobre estudantes universitários LGBTQIA+, os autores destacam que existem diferentes e possíveis fatores associados à ideação suicida, principalmente pelo fato de se configurar um momento ímpar da vida em que diversas transformações estão ocorrendo, com desafios no processo de desenvolvimento pessoal, social e acadêmico que demandam maturidade e autonomia para tomada de decisões. No entanto, foi constatado que, em relação à orientação sexual, os estudantes que assumiram ser homossexuais ou bissexuais apresentaram mais ideação suicida em relação aos que se declararam heterossexuais (Santos, Marcon, Espinosa, Baptista, & Paulo, 2017). E, nesse sentido, é possível ver a violência presente em várias formas de se agir com as pessoas LGBTQIA+. A interlocutora Caroline (comunicação pessoal, Maio, 2020) disse: “Não especificamente por ser eu, mas violências que todos os LGBT habitualmente enfrentam, como ausência de empatia, enfim, violências rotineiras de ordem comum”.
Ademais, sobre a temática dos serviços de saúde frente ao público LGBTQIA+, os interlocutores declararam que percebiam ainda muitas falhas. Guilherme disse:
Os serviços de saúde devem sim receber a pessoa LGBT, primeiro que se a rede do SUS funcionar, como deve funcionar, ela deve receber sim, e pelo fato do LGBT ter uma política de saúde especifica ajuda os profissionais a ter uma diretiva de como seguir aquilo, porém acredito que nem todos os serviços recebem esse público com essa demanda de forma eficiente, pelo fato da formação... Não ter profissionais com formação humanizada, não conhecerem a política de saúde LGBT, então acredito que nem todo o serviço que recebe essa demanda oferece um serviço de saúde de qualidade. (Guilherme, comunicação pessoal, Maio, 2020)
A interlocutora Marina afirma:
Eu acho que o serviço de saúde ainda é muito despreparado, a partir do momento que esses serviços associarem que é uma pessoa LGBT, acho que ainda pode sim gerar alguns problemas que vêm de julgamentos mesmo, então eu não sei se diretamente na ação do cuidado em saúde algo vai ser feito, acredito que não, acho que vai muito mais de um julgamento que pode reverberar na comunicação, não que ele vai ser negligenciado, mas em relação à comunicação do profissional com essa pessoa, pode ser atravessada pelo julgamento. (Marina, comunicação pessoal, Abril, 2020)
Nesse sentido, as políticas públicas criadas para a comunidade LGBTQIA+, no intuito de combater o preconceito ou para garantir atendimento especificado a esse grupo social no Brasil, são ainda marcadas por imensa instabilidade, com fragilidade diante de um avanço do conservadorismo, do fundamentalismo religioso nas instituições públicas, além dos movimentos de extrema-direita que vão diretamente contra as questões LGBTQIA+. Assim, o atual cenário político é de estreitamento da agenda política LGBTQIA+.
Dessa forma, as políticas públicas LGBTQIA+ no Brasil, infelizmente, estão à mercê da vontade dos governantes e das negociatas políticas, executadas a partir de frágeis ações do poder executivo e contando com pouquíssimo apoio sociopolítico (Aragusuku & Lopes, 2016). Nesse interim, fica difícil que as pessoas da comunidade reconheçam e cobrem os seus direitos, tornando-se cada vez mais suscetíveis e frágeis frente aos acontecimentos que assolam a vida de uma pessoa LGBTQIA+.
A maioria dos interlocutores respondeu que há, de fato, um despreparo do serviço para atender ao público que chega com uma demanda relacionada ao suicídio, principalmente quando percebem que é uma pessoa LGBTQIA+. Logo, nesse atendimento, pode acontecer algum problema que vem da ordem do julgamento moral. Sobre isso, discorre Laura:
A enfermeira me perguntou por que eu tentei me matar... Eu me senti muito desconfortável, me senti na inquisição, estava sendo observada, interrogada. [...] Mas eu acho que é algo que faz afastar ainda mais a pessoa LGBT dos dispositivos de saúde, das instituições, porque é só mais um lugar que as pessoas reproduzem discursos que a pessoa diariamente tá ouvindo, não tem nada de diferente. (Laura, comunicação pessoal, Março, 2020)
Nesse sentido, foi questionado se os interlocutores já haviam sofrido algum tipo de violência, discriminação e/ou preconceito no Sistema Único de Saúde. Algumas apontaram ter alguns problemas em consultas ginecológicas, como a interlocutora Bárbara, que se sentiu desconfortável ao perguntar questões como o uso de preservativos, pois se sentia receosa de ouvir algo que fosse ofensivo ou que ridicularizaria sua prática sexual. Ou, por exemplo, Fernanda, que por muito tempo não falou sobre sua prática sexual com uma pessoa do mesmo sexo também por receio do que ia escutar: “Eu por muito tempo nas consultas ginecológicas não falei do meu relacionamento com mulher, então eu acho que só não aconteceu porque eu não falei”.
Uma vez, eu fui fazer prevenção porque eu estava com uma alergia e aí a moça tinha me visto com a minha namorada no lado de fora e, quando eu entrei na sala, ela falou: “cê vai fazer prevenção?”. Aí expliquei para ela sobre a alergia, que na época eu não sabia que era por conta do absorvente... Aí eu falei pra ela e ela disse “pessoas como você acabam tendo muitas doenças sexualmente transmissíveis e tal” e eu fiquei tipo “pessoas como eu... Como assim?” (Bárbara, comunicação pessoal, Abril, 2020)
A partir disso, foi perguntado sobre o uso de tratamento psicoterápico e alguns interlocutores responderam que realizaram acompanhamento e que este muito contribui para compreender questões em volta da sexualidade e todos os atravessamentos. Reportaram ser um benefício muito grande e de valiosa contribuição para se entender dentro desse espaço atual.
Quanto à rede de saúde e ao manejo com demandas do público LGBTQIA+, é preciso que aconteça o atendimento humanizado e livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, presente na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, um avanço concreto que deve ser amplamente divulgado, considerada um instrumento legal na luta pela efetivação do direito à saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
De fato, ainda está presente o medo e o desconforto da pessoa LGBTQIA+ dentro do sistema de saúde, a ponto de omitir suas dúvidas e questionamentos por medo de receber algum tipo de reprovação ou discurso julgador. Aliado a isso, cabe destacar que talvez, durante o atendimento à pessoa LGBTQIA+, haja um desconhecimento da Política Nacional de Saúde Integral LGBT pelo profissional de saúde que entra em contato com essa população. As diretrizes e os objetivos dessa política dizem respeito às mudanças nos determinantes sociais da saúde que afetam a população LGBTQIA+. Esta Política reconhece que a identidade de gênero e a orientação sexual são fatores de vulnerabilidade para a saúde por exporem a referida população a agravos decorrentes do estigma, da discriminação e da exclusão social.
No fim, algumas limitações foram percebidas durante a produção deste estudo, seja pelos poucos trabalhos que tratam sobre a mesma temática, seja pelo contato com mais interlocutores de outros gêneros e raças, elementos relevantes para a melhora do trabalho. No entanto, as limitações não se esgotam, mas o trabalho tem sua legitimidade para fomentar novas pesquisas dentro dessa temática.
Considerações Finais
Podemos entender que o ser LGBTQIA+ passa por inúmeros tipos de violência todos os dias e que isso prejudica sua saúde mental, podendo ser indutor de suicídio. Nesse sentido, entendemos que a necropolítica se confirmou no contexto apresentado quando foram expostos episódios que acabaram por decretar uma indisposição e um distanciamento dos sujeitos com relação aos serviços de saúde e outros setores.
Além disso, é possível observar que todo aquele que está em contraposição às configurações sexuais heteronormativas estaria sujeito a uma inferiorização que o invisibiliza como sujeito potente. Sendo assim, a LGBTQIA+fobia se mostra como uma questão que ultrapassa as relações interpessoais, vindo a ocupar espaços institucionais como as universidades, por exemplo, gerando inclusive adoecimento e situações alarmantes para as quais somente o suicídio passa ser uma opção. No mais, este artigo não esgota o tema, mas abre portas para novas pesquisas e estudos nessa área.