Os discursos de intolerância e de incitação ao ódio às minorias sociais ganharam força nos últimos anos. Em todo o planeta, diversos grupos são formados em torno das mais diversas modalidades ideológico-reacionárias. No Brasil, o número de adeptos da ala autointitulada de direita conservadora ganhou espaço na política após a eleição de Jair Messias Bolsonaro. Desde o início, a sua gestão foi marcada por polêmicas e por pautas ligadas ao desmonte de políticas públicas - saúde e educação, principalmente - e pelo acirramento dos conflitos sociais pelas vias do preconceito, da violência e da ignorância.
Por meio de uma consulta no Google utilizando os descritores “expressões absurdas de Bolsonaro” encontramos muitos exemplos do tipo de discursividade que o nosso presidente se serve para sustentar o seu lugar de gozo. Elencamos algumas falas a título de ilustração. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. “Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão”. “Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”. “Eu jamais ia estuprar você porque você não merece”. “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele. Tá certo?”. “90% desses meninos adotados [por um casal gay] vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa com toda certeza”. “Fui num quilombo em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”.
Essas falas abrangem um amplo espectro de temas (política, sexualidade, religião) e têm em comum algo que tangencia o grotesco. É inegável que elas geram reações de indignação e de revolta nas pessoas e nos grupos visados. Isso é justificável, evidentemente, já que reforçam estereótipos que ridicularizam e desqualificam modalidades específicas de existência. Nota-se, entretanto, que a mobilização de parte dos setores da sociedade alinhados à defesa dos direitos humanos é insuficiente para frear essa máquina discriminatória. Avaliamos que as dificuldades enfrentadas nesse campo político-ideológico estão relacionadas a uma problemática cuja compreensão envolve a análise de múltiplos fatores interconectados.
O objetivo deste ensaio é mostrar que o bolsonarismo é um dispositivo políticoideológico que atua em consonância com processos sócio-políticos ancorados na subjetividade. Para demonstrar a imbricação entre esses âmbitos, percorremos os territórios da filosofia, da psicanálise e da literatura, articulando-os sistemicamente. Vale ressaltar que a demonstração do problema que aqui delineamos e os argumentos desenvolvidos para levá-la a cabo têm um caráter provisório, conjectural e dialógico. O texto é concebido e elaborado em um estilo ensaístico e, em razão disso, funciona como um exercício crítico preocupado em provocar a reflexão sobre um fenômeno atual e complexo.
Nesse sentido, construímos uma heurística para explicar como processos heterogêneos se organizam de modo a sustentar e a conferir eficácia à ideologia bolsonarista em arregimentar e mobilizar adeptos. Para tanto, inicialmente, apresentamos a temática do grotesco em diferentes modos ao longo da história, sobretudo na literatura, se presentificando nas relações políticas, sociais e nos modos de subjetivação. Articulamos as manifestações do mal e do imoral no campo social como constitutivos deste, de sua manutenção, e como isso se ancora na constituição do gozo nas sociedades capitalistas hipermodernas. Em seguida, trabalhamos como o imperativo do gozo, ancorado na agressividade, colabora para a sustentação do ódio do outro, seja por sua diferença radical, seja por sua semelhança assustadora. A partir daí, analisamos como isso se atualiza no bolsonarismo.
O Terror Acima de Todos, Ubu Acima de Tudo
Na aula inaugural do curso que Foucault (1974-1975/2002) ministrou nos anos de 1974/75 no Collège de France, ele realça a função que o grotesco 1 exerce nos dispositivos constituídos entre as instâncias jurídicas, administrativas e as instituições qualificadas para enunciar a verdade e perpetuar os seus efeitos de poder. Antes de adentrar ao conteúdo da disciplina, Foucault (1974-1975/2002) lê dois relatórios de exames psiquiátricos com o intuito de demonstrar suas inconsistências. Ambos os relatórios estão repletos de elementos textuais que são concebidos à margem das regras do direito e da própria ciência. Nos casos em questão, o que é determinante - e parece ser mais eficaz -, é justamente o fato de esses discursos serem grotescos, isto é, serem discursos que detêm “por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los” (Foucault, 1974-1975/2002, p. 12).
Foucault (1974-1975/2002) faz alusão ao protagonista da peça Ubu rei, de Alfred Jarry (1896/2007), para qualificar a natureza grotesca desses discursos. Ubu é uma sátira do homem burguês, em sua animalesca natureza, caracterizada pelo egoísmo e pela ganância. Nas palavras de Fernandes (2007), ele é “uma espécie de síntese animada de rapacidade, crueldade, estupidez, glutonaria, covardia e vulgaridade” (p. 12). Ubu é um fidalgo bem quisto pela nobreza polonesa. Ganancioso, se junta a amigos para conspirar contra o rei da Polônia, Venceslas, planejando sua morte. Após o assassinato do rei, Ubu se autoproclama rei da Polônia, e passa a realizar tudo o que desejava. Seu reinado transcorre com desprezo aos outros, sabotagem de apoiadores, realização de vontades absurdas, através de subterfúgios inteiramente egoístas (Jarry, 1896/2007).
Um a um, vai se livrando daqueles que a ele se opõem. Primeiro, procede por confiscar os bens dos nobres e matá-los. Em seguida, quer legislar também, e, diante da oposição dos juízes, manda matar a todos. Depois, estabelece uma série de impostos sobre as propriedades, os comércios, os casamentos e os óbitos, aos quais os financistas contestam: alçapão e morte para esses. O filho do rei assassinado, Bougrelas, consegue mobilizar o povo para investir contra o exército de Ubu, com apoio de Bordure, ex-comandante do regimento real, e do czar russo, Alexis. Ubu continua impassível com seu propósito de matar e torturar a todos que estabelecia, sem rodeios, como inimigos. Apesar de sua obstinação, não passava de um covarde, que resmungava sobre tudo e se escondia atrás de outros que pudessem protegêlo. Esse conflito com Bougrelas culminou em seu banimento e de seus apoiadores, e todos fugiram juntos em direção à França (Jarry, 1896/2007).
Foucault (1974-1975/2002) utiliza o adjetivo ubuesco não como mera categoria de injúrias, de difamações ou coisas do gênero. O termo é empregado como analisador históricopolítico de uma forma de terror - a soberania grotesca -, cujos efeitos de poder são mais extensivos quanto mais desqualificados são os agentes que os produzem. Ele é umas das engrenagens dos mecanismos de poder e encontra na política “a origem dos seus efeitos num canto que é manifestamente, explicitamente, voluntariamente desqualificado pelo odioso, pelo infame e pelo ridículo” (Foucault, 1974-1975/2002, p. 15).
O grotesco se desenha pela transgressão, o onírico, o corpóreo e o animalesco. Essa composição múltipla produz estranhamento, horror, nojo. Seu funcionamento alude à catástrofe, como colocam Sodré e Paiva (2002):
Não a mesma dos fenômenos matematicamente ditos “caóticos” ou da geometria fractal, que implica irregularidade de formas, mas dentro dos padrões de uma repetição previsível. Trata-se da mutação brusca, da quebra insólita de uma forma canônica, de uma deformação inesperada. (Sodré & Paiva, 2002, p. 25)
Se o grotesco remete à normalização de uma estética da beleza no campo das artes, no campo da política convoca para um suposto modo de governar que se sustenta na e pela democracia. Nesse sentido, o grotesco faz a dobra entre a idealização de um governo democrático e a denúncia de tal idealização, impossível. “Pelo ridículo ou pela estranheza, pode fazer descer ao chão tudo aquilo que a ideia eleva alto demais” (Sodré & Paiva, 2002, p. 39). Ele representa a ambivalência do cômico e do trágico em formas irresolutas, e se torna uma sátira do que quer que representa, encerrando em si o absurdo, a tensão, a incoerência (Lima, 2016).
Entretanto, se em Foucault o ubuesco é um analisador utilizado para a descrição e para a problematização do funcionamento dos dispositivos disciplinar e de sexualidade, nesse ensaio essa noção serve de mote para a argumentação, não sendo, portanto, um objeto de investigação. Partimos da premissa de que o ubuesco bolsonarista e o tipo de violência reverberada por ele não são expressões exclusivas e/ou inventadas pelo bolsonarismo. Ao longo da história ocidental, vários filósofos, sociólogos e poetas analisaram e/ou problematizaram as suas funções no surgimento, no desenvolvimento e na manutenção/perturbação dos laços sociais. Apresentaremos, a seguir, algumas versões sobre a temática da violência.
A Violência entre Nós
Na Grécia de V (a.C.), os excessos, os erros, a arrogância e as incertezas dos grupos sociais eram representadas nos festivais dedicados a Dionísio, especialmente nas tragédias. A encenação trágica era um rito capaz de suscitar em cada assistente um intenso reconhecimento de sua identidade, remetendo-a a um éthos vigente. Exercia, de modo perturbador, um duplo efeito purificador sobre o público: provocava a reflexão sobre os limites da ação moral e, simultaneamente, ampliava os recursos simbólico-discursivos pertinentes à vida coletiva na pólis (Gazolla, 2001).
Na tragédia, a dramatização dos conflitos vividos pelos protagonistas, especialmente pelo herói, exercia um efeito pedagógico na plateia, justamente por cumprir a função semelhante que o sacrifício do bode exercia nas comunidades primitivas. Todavia, ao invés de remover as falhas e promover a redenção grupal, como ocorria nos ritos religiosos precedentes, a kátharsis trágica coroava o embate emotivo-reflexivo representado e cantado dos seus versos (Gazolla, 2001).
A tragédia é, portanto, muito mais que uma forma de arte. Ela é, antes de tudo, uma instituição social tão importante quanto as instâncias políticas e jurídicas da pólis. Consiste em um espetáculo aberto que permite aos cidadãos refletirem sobre os conflitos emergentes na vida pública. A figura do herói cumpre um papel determinante na educação trágica. Em Sófocles, por exemplo, ele aparece em cena como deinós, o “monstro incompreensível e desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lúcido e cego, senhor de toda a natureza através de seu espírito industrioso, mas incapaz de governar-se a si mesmo” (Vernant & Vidal-Naquet, 2005, p. 10). Os infortúnios aos quais o herói trágico é levado a experimentar escancaram ao público os riscos inerentes à condição ambivalente de um homem que, movido pela hýbris, acredita optar pelo bem, quando, na verdade, realiza o mal na sua forma mais abjeta (Vernant & Vidal-Naquet, 2005).
Muitos séculos depois, Thomas Hobbes, na esteira das teorias contratualistas, deu outra formatação à agressividade humana. Ele propôs a existência de um estado de natureza, no qual os seres humanos agiam em conformidade com seus interesses individuais. Fora preciso a celebração de um pacto - abdicação recíproca das liberdades individuais em nome de um poder Soberano (Leviatã) - para que o Estado se instituísse e, consequentemente, pudesse regular a oposição permanente entre as pessoas.
Na versão histórico-mítica freudiana da transição do estado de natureza para a cultura, desenvolvida em Totem e Tabu (1913/1976), a violência assume contornos diferentes. O criador da psicanálise sugere um evento, no qual integrantes de uma horda primeva cometem parricídio e devoram o corpo do pai déspota, com o intuito de adquirir sua força. A partir desse ato, surge um novo estado de coisas. A proibição é suspensa, havendo uma espécie de desorganização, em que todas as mulheres, até então submetidas ao domínio do pai, tornam-se objetos de disputa entre os homens. O estado de anomia, desencadeado pela falta do pai tirânico, dá lugar à busca de restauração, almejada pelos filhos da horda, da ordem social tal como prevalecia anteriormente. As consequências desse acordo entre os machos do bando incluem: a instituição da proibição de os machos acessarem sexualmente as fêmeas de seu próprio grupo; a eleição de uma figura totêmica capaz de fazer uma suplência ao pai morto e de exercer uma função ordenadora; a instituição dos tabus relativos ao incesto e ao parricídio (Freud, 1913/1976).
Bauman (2000), por sua vez, usa uma ficção proposta por René Girard para explicar o papel da discórdia e da hostilidade nos agrupamentos humanos atuais. Segundo a referida ficção, havia uma época na qual os conflitos interpessoais eram acirrados pelo uso da violência e regidos pela prerrogativa da sobrevivência dos mais fortes. O ponto crucial no processo civilizatório dessas populações foi a seleção de uma vítima, cujo assassinato fez com que todos os participantes tornassem membros de uma comunidade de cúmplices. Essa ação coordenada permitiu que inimizades dispersas e agressões difusas fossem direcionadas para um único objeto. Nesse caso, a eleição de um inimigo comum constitui-se em um fator determinante de coesão grupal, pois funciona como operador de solidariedade provisória e de pertencimento a uma comunidade de ódio 2.
Esses são alguns dos muitos esforços teórico-ficcionais construídos com o intuito de simbolizar o lugar do mal, da violência e da agressividade na cultura. Embora essas narrativas sejam diferentes, elas têm pontos de contato. Cada uma, à sua maneira, trata esses fenômenos, não como exceções, mas como fatores inerentes ao devir humano. Logo, embora as aludidas perspectivas sobre a violência tenham contornos distintos, elas - especialmente as desenvolvidas por Hobbes, por Freud e por Bauman - tentam dar conta de problemas que estão na origem da racionalidade moderna.
Devaneios da Razão
René Descartes teve um papel crucial neste processo. Ao fundar sua certeza no sujeito cognoscente, ele instaurou os parâmetros da ciência na modernidade. O sujeito universalizado pelo cogito cartesiano se converteu em uma forma concreta de homem que, a partir de então, se transformou no núcleo para onde convergem as atenções e as intervenções técnicocientíficas.
Segundo Oliveira (2001), o homem moderno tornou-se o fundamento do ser e da verdade, o ponto central de uma consciência tecnológica. A técnica, enquanto autorrealização do sujeito, passou a dar sentido a tudo o que existe, ao mesmo tempo em que o mundo foi esvaziado de sua consistência ontológica. Em decorrência disto, a natureza adquiriu o estatuto de objeto empírico passível de intervenção por um sujeito manipulador de variáveis controláveis. A valorização do domínio da natureza, por sua vez, trouxe à tona um tipo de mentalidade reducionista sem precedentes. Essa nova visão de mundo viabilizou a construção de um projeto de sociedade inspirado nas realizações das jovens ciências, sobretudo, a física newtoniana.
O otimismo com o progresso do gênero humano e o sonho de uma paz perpétua entre os povos - postulados notadamente kantianos - não sobreviveram às sucessivas guerras que a Europa conheceu e, em especial, às atrocidades cometidas pelos nazistas. O extermínio de milhares de judeus nos campos de concentração marcou não somente os limites da razão no âmbito da ética. Ele trouxe à tona a faceta do mal que nos habita.
Arendt (1963/2013, p. 152) cobriu o julgamento de Eichmann em Jerusalém no pósguerra. Referiu-se ao acusado como um “cidadão respeitador das leis”, possuidor de “dotes mentais bastantes modestos”, “o último homem na sala de quem se podia esperar desobediência das leis e autonomia sobre suas próprias ações”.
No julgamento, Eichmann alegou que sempre vivera em conformidade com os princípios morais kantianos, isto é, que o princípio de sua vontade era vivido de tal forma que pudesse “se transformar no princípio de leis gerais” (Arendt, 1963/2013, p. 153). Nessa versão da Crítica da razão pura, o imperativo categórico kantiano foi subordinado às prerrogativas do Terceiro Reich. Serviu para justificar a racionalidade prática de um homem comum e conformá-la à vontade do Füher. Nessa operação, o Mal foi banalizado, pois perdera a qualidade da tentação, isto é, a característica que faz com que ele seja reconhecido enquanto tal. Em um trecho desconcertante, Arendt (1963/2013) escreve:
No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem - a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição, (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação. (p. 167)
Arendt (1963/2013) chama a atenção para o fato de que, embora os envolvidos no extermínio dos judeus tivessem consciência de que estavam fazendo algo de errado, essa percepção não foi suficiente para frear as suas ações. Muito pelo contrário, eles se fiaram em uma normatividade, senão alheia ao mal, ao menos dedicada à sua banalização. Achamos essa hipótese plausível, mas queremos enfatizar um aspecto que ela deixa de lado, mas que parece ser factível. Sugerimos que muitos desses atos foram cometidos não somente porque o agente avaliou sua ação como correta, a partir de um cálculo moral simplista-pragmático. Avaliamos que esses atos de violência extrema atendiam a outra lógica de interesses, ou melhor, às modalidades inconscientes de gozo. Tomaremos a literatura sadeana como referência para demonstrar essa tese.
O Imperativo Sadeano do Gozo
Em suas obras, Sade faz do consentimento ao desejo de consumação dos corpos um fim em si mesmo, regido pelo imperativo categórico do mais de gozar. O desejo de usar e de arruinar o outro é justificado pela máxima que tem o mal como princípio soberano. A agressividade é uma força irresistível e deve, por isso, ser vivenciada como um ato gratuito. Com Sade, o imperativo do gozo - tratar o outro como objeto e leva-lo à ruina - contrai uma estrutura formal análoga à preconizada na filosofia moral kantiana. Sua máxima, singularizada nas palavras de Lacan (1963/1998, p. 780), assume a seguinte dicção: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode-me dizer qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar”.
Sade, ao abrir as comportas do inconsciente, situa a dor do outro no horizonte do desejo. O que é revelador no acoplamento de Kant com Sade é o fato de o libertino explicitar o que em Kant permanece velado. Sade introduz na consciência exatamente aquilo que a revolta, ou seja, um jeito de provocar prazer pela via do excesso que a consciência não pode suportar (Bataille, 1957/2014).
Seus temas não são meras depravações, nem dizem respeito a um tipo de experiência degenerada passível de domesticação pela força de vontade. “A negação racional da violência, considerada inútil e perigosa, não pode suprimir o que nega, não mais do que a negação irracional da morte” (Bataille, 1957/2014, p. 215). Eles são, ao contrário, partes constitutivas dos seres humanos, o irresistível que o arrasta rumo à destruição e o “coloca de acordo com a ruína incessante e inevitável de tudo o que nasce, cresce e se esforça por durar” (Bataille, 1957/2014, p. 211).
O pensamento de Sade é, nesse sentido, um excesso vertiginoso, a realização plena daquilo que nos esforçamos ao máximo para manter nas sombras da ignorância. Nele, a razão analítica é posta a serviço de uma narrativa que julga ser capaz de tudo dizer. Trata-se de um movimento ilimitado de descrição e categorização que, na análise de Blanchot (1986/2007), constitui a própria loucura da razão. Em 120 dias de Sodoma (Sade, 1785/2009), esse ímpeto descritivo, sua abrangência e a sua capacidade de especiação são justificadas assim:
Esta é a história de uma magnífica refeição em que seiscentos pratos diversos serão oferecidos a teu apetite. Apreciarás todos? Não, sem dúvida! Mas esse número prodigioso ampliará os limites de tua escolha, e, encantado por esse aumento de faculdades, não te atrevas a repreender o anfitrião que te presenteia. Faze o mesmo aqui: escolhe e deixa o resto, sem vituperar contra esse resto sob o pretexto que não tem o talento de te agradar. Lembra-te que agradará a outros, e sejas filósofo. (p. 63)
De acordo com Foucault (ano/1994), isso só é possível porque Sade tem a pretensão de fazer a revisão de todas as dimensões da atividade sexual. Ele lança mão de uma análise escrupulosa para produzir um inventário exaustivo e prodigioso dos corpos máquinas (Teixeira, Mattos & Safatle, 2008). Podemos dizer que, em certo sentido, Sade antecipa a função que o corpo ocupa, senão na modernidade, certamente na hipermodernidade 3.
Goza como Eu, senão Eu te Mato!
No modo de funcionamento das sociedades capitalistas atuais, os indivíduos se submetem ao consumo vertiginoso de produtos renováveis. Nesse processo de mercantilização da vida, as pessoas e as mercadorias possuem o mesmo estatuto, já que ambas estão subordinadas à lógica do capital. Vivemos em uma era na qual o imperativo do gozo transforma-se no princípio de reificação das relações interpessoais (Melman, 2008; Laurent, 2019).
Podemos dizer que nos encontramos diante de uma nova sofística que faz do eu a medida de todas as coisas (Vattimo, 2002). Na sofística hipermoderna, o interesse geral da massa transformou-se na cacofonia de vozes “agrupelhadas”. Isto se deve, em parte, à pulverização dos parâmetros éticos e à desconstrução das grandes narrativas. Em um mundo no qual, retomando uma expressão de Karl Marx, tudo que é sólido se desmancha no ar, os ideais se dissipam para dar lugar ao coroamento do objeto. Nota-se uma vertiginosa transformação dos laços sociais, especialmente no que se refere, senão ao esvaziamento, ao menos à precarização da função simbólica (Laurent, 2019).
Baudrillard (1990/1996) considera estarmos vivendo em um mundo pós-orgiástico, no qual tudo foi liberado e realizado, desde as utopias às distopias. “Estamos no transpolítico, isto é, no grau zero do político, que é também o de sua reprodução e de sua simulação indefinida” (Baudrillard, 1990/1996, p. 17). Não temos mais ideal assumido e, em razão disso, formatamos nossa subjetividade conforme as conveniências. Diante da oferta de múltiplos experimentos de gozo, se desenvolve um verdadeiro liberalismo psíquico, isto é, a fantasia de que cada indivíduo é dotado de uma subjetividade fluida e performática (Melman, 2008).
O maremoto do niilismo parece invadir todas as produções culturais - a arte, a ética, a política -, alimentando uma atmosfera de insegurança e desesperança. Diante das dificuldades de fundamentação dos juízos, a ciência urge como instância privilegiada de regulação da vida. Através de seus representantes, os especialistas, ela oferece critérios para o discernimento da realidade e para a organização da existência (Jaspers, 1968).
O discurso da ciência é um dispositivo ao serviço do capitalismo e preconiza a existência de um sujeito universal. Derivado da matriz cartesiana, o sujeito da ciência instaura um novo laço social estruturado na quantificação e na segregação da subjetividade (Reido, 2017).
A hipermodernidade é caracterizada, segundo as palavras de Lacan, pela ascensão ao zênite do objeto a 4. O imperativo de gozo aparece na cena da civilização como a sua face mais feroz e obscena. O cientificismo é uma de suas doutrinas mais eficientes, pois ele não somente promove a degradação do sujeito, como também confere à sua palavra o status de mero dejeto. O cientificismo apresenta-se, então, como um importante operador de desumanização, uma vez que outorga ao discurso da ciência um estatuto que ele, em tese, não possui. Tudo ocorre como se os enunciados científicos deixassem de ser falsificáveis para contrair um valor dogmático. Imbuídos desse espirito, os operadores da ciência, os especialistas, promovem a anulação das particularidades subjetivas. Eles enunciam um tipo de discurso alicerçado num esquema Ur de gozar (Cunha, Arenas, & Machin, 2019).
No entanto, sempre haverá sintomas sociais que escapam aos aparelhos socioculturais de captura. Apresentamos, ao longo desse texto, diferentes ficções teóricas e literárias construídas para delimitar as funções que parte dessas experiências exercem no processo civilizatório. Tentamos demonstrar que o grotesco, a violência e as suas variações são fenômenos resistentes à domesticação, justamente por serem elementos inerentes à condição humana.
Laurent (2019) qualifica essas experiências de paixões e enfatiza que elas não são atributos exclusivos dos discursos que matam 5. Ele sugere que até as modalidades discursivas autodeclaradas crítico-filosóficas, ligadas aos movimentos de defesa dos direitos humanos e ao respeito às diferenças grupais e individuais, não escapam à sua lógica de funcionamento. De certo modo, esses movimentos não só são incapazes de impedir a formação e perpetuação de estados de exceção permanentes, como também, por vezes, fomentam espaços de intolerância e de oposição belicosa. Eles são discursos de resistência, pretensamente subversivos, mas que não necessariamente implicam um liame com o amor. Afinal, o que parece ser a última moda nas passarelas da sociedade de consumo segue, justamente, a tendência dos discursos que incitam as paixões da segregação, do ódio e da ignorância (Cunha, Arenas, & Machin, 2019).
Por conseguinte, ao invés de elaborar conflitos, construir alternativas de manejo e trânsito pelas diferenças, opta-se, preferencialmente, pelas vias da satisfação imediata das necessidades e da evitação do mal-estar. O homem sem gravidade faz de tudo para expulsar para fora aquilo que ele não suporta em si, porque isso lhe causa sofrimento. Ele evita entrar em contato com as suas dificuldades e falhas pessoais e fará de tudo para negá-las, bloqueálas, destruí-las. Para isso, fará do outro, que não goza na mesma posição, o avatar de suas próprias desgraças (Cunha, Arenas, & Machin, 2019). Tomemos a paixão do ódio como analisador dessa problemática.
Odeio Você Além…
O ódio é a consistência da agressividade e é endereçado ao real no Outro. Ele é suscitado por algo que no Outro é interpretado como potencial ameaça, justamente por funcionar como índice de uma diferença radical. Sob a perspectiva lacaniana, o ódio é uma paixão que não se detém na aniquilação do objeto tido como ameaça, pois ele é capaz de persegui-lo mais além da morte, pela eternidade.
Esse processo envolve, ao menos, dois estados de coisas interligados. No primeiro caso, o ódio que o sujeito endereça ao Outro é reativo. Decorre da constatação de que há entre o seu gozo e do Outro uma diferença irredutível que deve, por isso, ser anulada. Em uma segunda perspectiva, é a semelhança que suscita o ódio, já que o gozo do Outro remete a certos aspectos que dizem respeito ao sujeito, mas que ele se esforça a todo custo para negálos, ignorá-los, rechaçá-los, descartá-los. Ambos os casos convergem para o núcleo da insondável agressividade da qual não ousamos aproximar. Trata-se do mal radical que nos impele a tentar transformar o outro no anteparo no qual projetamos o gozo maligno (Mandil, 2019).
Em termos freudianos, a agressividade é um poderoso derivado pulsional, que impele as pessoas a tratarem o seu próximo não somente como:
... um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhálo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo (Freud, 1929/2010, p. 49).
Todavia, a compreensão de que a agressividade funciona como um poderoso vetor de discórdia e de segregação social deixa de lado a sua outra face. Paradoxalmente, a agressividade, como observamos no início desse ensaio, serve também como vetor de coesão grupal. Isso é o que parece unir tanto um grupo de linchadores, quanto uma comunidade de religiosos radicais impelidos a perseguir e/ou a expulsar indivíduos desviantes.
No caso da religião, essa moção coletiva pelo ódio a um inimigo comum sobrepõe, por vezes, à inclinação ao amor e à solidariedade ao próximo. Conforme nos explica Laurent (2017), a partir do ensino de Lacan, a religião é um fenômeno do um por um que comporta uma dimensão sacrificial. Trata-se de uma experiência na qual cada crente sacrifica seu próprio gozo em nome de uma coletividade. Nesse intercâmbio sacrificial, o crente renuncia a sua singularidade e, em troca, acessa um tipo de saber particular do gozo vivenciado em uma unidade constituída pelo grupo.
As religiões constituídas nesses moldes mantêm, frequentemente, estrita relação com o capitalismo. Elas oferecem aos consumistas fiéis toda a sorte de gadgets espirituais que prometem apaziguar, momentaneamente, suas frustrações, pelo fortalecimento e o incremento das suas certezas. São capazes de convergir para um objeto comum sentimentos de adoração, atos de solidariedade, mas também de agressividade. É, pois, essa vertente que parece alinharse ao populismo messiânico em voga em muitas partes do mundo.
A versão messiânico-populista brasileira, representada pelo bolsonarismo, é resultante de uma complexa e eficaz operação. Esse discurso tem características que o aproximam do dispositivo ubuesco analisado por Foucault (1974-1975/2002). No entanto, a visão de mundo bolsonarista, diferentemente dos relatos e exames psiquiátricos, não subverte as premissas da ciência para adequá-las à uma pseudociência jurídico-psiquiátrica. No paradigma ububolsonarista, a ciência não é sequer subvertida. Ela é rechaçada, desvalorizada, foracluída do horizonte ideológico, em prol da difusão de um tipo de doutrina de Estado avessa às singularidades. Na verdade, isso não quer dizer que a ciência seja totalmente descartada. Certos elementos são pervertidos e/ou descontextualizados e agenciados estrategicamente para fazer funcionar a máquina de guerra cultural. O bolsonarismo constrói, nesse sentido, a sua própria visão da realidade. Ele captura e agencia os componentes que lhe convêm para sustentar e propagar narrativas que são a expressão aterrorizante da ignorância, do ódio, do racismo e da segregação.
Ubusonarismo
O bolsonarismo enquanto prática político-discursiva emergiu dentro de condições históricas e sociais que favoreceram sua disseminação. Entre os fatores sócio-históricos relacionados à sua gênese e consolidação destacamos, primeiramente, o caos institucional, real e imaginário, que se instaurou no Brasil desde pouco antes do impeachment da expresidenta Dilma Rouseff. Aliado a isso, chamamos a atenção, também, para a ascensão de políticas de direita e extrema-direita nos Estados Unidos, na Espanha, na Bolívia, na Suécia, para citar alguns exemplos. Esse tornou-se o cenário favorável para o retorno do ideal. Quer dizer, parece que requisitamos a lei, o pai, a ordem, sempre que nos encontramos em circunstâncias desoladoras, nas quais não nos vemos abandonados à mercê de outrem. A lei instaura uma segurança primária de estabilidade e conforto e por ela nada passa, apenas o que ela permite.
Esse efeito não é senão o da moral sexual civilizada, como aponta Freud (1908/1976), cujas consequências certamente se fazem sentir na própria cultura. A supressão dos instintos como critério civilizatório requer dos sujeitos que rechacem suas paixões, sejam elas de ordem sexual ou agressiva, para viver o comum.
Aquele que em consequência de sua constituição indomável não consegue concordar com a repressão da pulsão, é visto pela sociedade como “criminoso”, um outlaw - a menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam imporse como um grande homem, como um “herói”. (Freud, 1908/1976, p. 192).
Ora se não se trata justamente do caso de Jair Bolsonaro. Sua posição de “mito” comporta também sua “incapacidade” de conter suas pulsões. Se torna mito por simbolizar aquilo que uma parte significativa da população brasileira crê, que é uma posição de poder que joga com os limites, instituindo suas próprias fronteiras e instaurando sua verdade.
Concomitantemente à emergência da figura do “mito”, o bolsonarismo é, talvez, a versão brasileira de um modelo de gestão neoliberal, cuja face terminal Safatle (2020) designa de Estado Suicidário. De acordo com esse autor, o Estado suicidário é um tipo de formação fascista resultante “da administração da morte de setores de sua própria população e do flerte contínuo e arriscado com sua própria destruição” (Safatle, 2020).
No modus operandi suicidário, o Estado volta-se contra seu próprio povo, com táticas de aniquilação, chantagem, descaso, destruição, perseguição e precarização da vida de grupos sociais. Trata-se de um sistema que se retroalimenta pela invenção de uma política do desafeto e da indiferença, que visa “desesperar categorias inteiras da população até levá-las a uma situação quase suicida” (Baudrillard, 1990/1996, p. 86). Ele se perpetua, sobretudo, pela sedução das massas com a promessa de criação de um jogo transpolítico e antidemocrático intolerante às diferenças, ao diálogo e ao dissenso. O objetivo parece ser o de desqualificar a práxis política de modo a torná-la algo abjeto. De acordo com Baudrillard (1990/1996):
O próprio poder fundamenta-se muito na aversão. Toda a publicidade e o discurso político são um insulto público à inteligência e à razão, mas insulto do qual você faz parte, empresa abjeta de interação silenciosa. Acabaram-se as táticas de dissimulação; hoje é em termos de chantagem aberta que nos governam. (p. 81)
Tal procedimento é bastante eficaz, pois suscita reações de aversão nas massas que, por sua vez, ao invés de afastarem-se da vida política, aderem ao jogo como partícipes, cúmplices ou coniventes. É exatamente essa força aversiva presente nas massas que sustenta o grotesco no plano político. Governo de emoções, ações, contrarreações. O discurso de Bolsonaro se prestou a essa sedução ignorante da possibilidade de destruir e eliminar do cenário político a própria possibilidade da política democrática, que são as diferenças, o diálogo e o dissenso. Seu apelo tocou as massas e sua potencialidade destrutiva.
Ao mesmo tempo que cultivamos a aversão, tomamos tudo com grande indiferença, o que é um outro fator que explica o bolsonarismo no Brasil. “Em nossa cultura eclética, que corresponde à decomposição e à promiscuidade de todas as outras, nada é inaceitável; por isso, cresce a aversão, a vontade de vomitar essa promiscuidade, essa indiferença do pior, essa viscosidade dos contrários” (Baudrillard, 1990/1996, p. 81). Dessa forma, a indiferença associa-se ao gozo inescrupuloso do que tudo pode, desvelando sua potencialidade destrutiva, sendo aliada da força de repulsa pelas diferenças, remetendo-nos às paixões como vetores de composição de campos políticos autofágicos/suicidários.
No Brasil, o programa suicidário é agenciado por alguém que, por muito tempo, figurava como personagem anedótica da vida política do Rio de Janeiro e dos programas sensacionalistas da televisão aberta. Todavia, aquilo que era explorado, preferencialmente, como recurso grotesco-apelativo à guerra de audiência, contraiu um novo valor na economia das relações de poder no jogo político nacional. O discurso público de Bolsonaro passou a ser lido como franqueza, firmeza e oposição, funcionando, assim, como vetor da máquina ideológica da sua campanha presidencial de 2018. A imagem do palhaço de programa de auditório deu lugar à do mito.
Vários aspectos retóricos de seus pronunciamentos, como a cadência e a entonação da voz, a pronúncia enfática e enérgica, foram incorporados à uma discursividade artificial e superficial, mas extremamente potente (Piovezani, 2019). Sua estratégia messiânica consistia em se apresentar em cenários do cotidiano, adotando um tom confessional pelo qual publicizava as suas intenções relativas à pátria e ao combate à corrupção. Agia em nome de Deus e em defesa dos valores da família e do direito ao porte de armas. Essa estratégia mostrou-se eficaz e o mito foi eleito, tornando-se a própria sátira da democracia brasileira, tragicomédia anunciada. Enfim, temos um Ubu pra chamar de nosso.