A promulgação dos direitos da criança e do adolescente na década de 1990, a partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi uma conquista para a sociedade brasileira. O ECA, instituído pela Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, estabeleceu os direitos de cidadania desta população, de modo que se inaugurou um processo de consolidação destes que se estende até os dias de hoje (Barbiani, 2016; Lima, Polli, & José, 2017). Contudo, apesar do progressivo reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes, dados estatísticos ainda mostram uma passividade social em relação à sua violação (Waiselfisz, 2012).
De acordo com a Lei n. 8.069 (1990), todas as crianças e adolescentes devem ser considerados sujeitos em situação de desenvolvimento peculiar, de forma que a família, a comunidade e o poder público têm o dever de assegurar, prioritariamente, que os direitos referentes à vida, saúde, alimentação, educação, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária sejam garantidos. A garantia desses direitos deve ser considerada fundamental, tendo em vista que a violação dos direitos pode levar a riscos ao desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes, acarretando graves prejuízos (Gershoff & Grogan-Kaylor, 2016; Kim, Mennen, & Tricket, 2016).
No tocante ao direito à saúde, o ECA destaca, em seu artigo 11º, que é dever do estado concretizá-lo a partir da efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência (Lei n. 8.069, 1990; Lima et al. 2017). O direito à liberdade, ao respeito e à dignidade também foram assegurados na legislação e incluem ações como brincar, praticar esportes, buscar refúgio, auxílio e orientação, dentre outros aspectos (Lei n. 8.069, 1990). O ECA estabelece, ainda, o direito à convivência familiar e comunitária, o qual refere-se ao direito de toda criança e adolescente de ser criado e educado em seu núcleo familiar e, em casos excepcionais, em família substituta. Tal legislação, ainda, prevê o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, com o intuito de proporcionar a oportunidade de pleno desenvolvimento pessoal, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (Lei n. 8.069, 1990). Por fim, o ECA também preconiza que crianças e adolescentes não devem sofrer nenhuma forma de negligência, violência e/ou discriminação (Lei n. 8.069, 1990). Assim, no sentido de aprimorar essa concepção, a Lei n. 13.010 (2014) apresenta o direito das crianças e adolescentes de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante.
No que se refere aos direitos de crianças e adolescentes no contexto internacional, a “Convenção sobre os Direitos da Criança” é um documento legal ratificado pela maioria dos países do mundo, ainda que exista uma distância entre o que nele está disposto e a sua implementação nos diferentes contextos familiares e na comunidade em geral (Hundeide & Armstrog, 2011; Sacco, Ferreira, & Koller, 2016). Em especial, o uso de castigos físicos no contexto internacional é um tópico que gera diversas controvérsias. No Canadá, por exemplo, a seção 43 oferece defesa legal para os pais que se utilizam de força física, considerada razoável, para corrigir o comportamento inadequado de seus filhos. Nos Estados Unidos, de modo semelhante, 49 estados oferecem defesa legal para o uso de punição corporal pelos pais (Gershoff, 2013). Contudo, de acordo com as Nações Unidas, toda a punição física, independentemente da sua intensidade, viola os direitos das crianças e adolescentes de serem educados sem violência. Além disso, a dicotomia entre punição física e abuso físico é considerada falsa, tendo como consequência a legitimação do uso da violência (Committee on the Rights of the Child, 2007). Nesse sentido, países que mantém distinção entre punição física aceitável e não aceitável estão sofrendo pressão internacional para defender os direitos das crianças à proteção e à dignidade (United Nations Development Program, 2015).
Na realidade brasileira, mesmo após inúmeras discussões acerca dos direitos preconizados pelo ECA em sua primeira versão, os altos índices de violência contra crianças e adolescentes sinalizam a necessidade de maiores esclarecimentos no que tange ao direito à educação e ao cuidado dessa população. Aproximadamente 300 milhões de crianças de dois a quatro anos em todo o mundo (três em cada quatro) sofrem, regularmente, disciplina violenta por parte de seus cuidadores. Além disso, 250 milhões (cerca de seis em cada 10) são punidas com castigos físicos (Unicef, 2017). No último Mapa da Violência realizado no Brasil acerca deste fenômeno no contexto da infância e adolescência, foi constatado que os pais são os principais responsáveis pelas notificações, sendo a violência física a causa mais frequente de atendimentos de saúde de crianças e adolescentes (Waiselfisz, 2012).
A punição física é considerada sinônimo de violência física, constituindo-se em um dos tipos de maus-tratos e uma violação dos direitos humanos do indivíduo em desenvolvimento (Lei n. 8.069, 1990). Em termos conceituais, ela consiste em um tipo de estratégia parental coercitiva, juntamente com o uso de castigo, ameaças, privação de amor e afeto, uso de xingamentos depreciativos e humilhantes, entre outros (Bortolini & Andretta, 2017). Uma robusta literatura nacional e internacional tem apresentado evidências científicas sobre os danos que o uso da punição física pode trazer aos indivíduos, como o surgimento de problemas de comportamento, transtornos de ansiedade, baixa autoestima e uso de drogas, além do uso de medicação inapropriada ou precoce (Gershoff, 2013; Gershoff & GroganKaylor, 2016; Kim, Mennen, & Tricket, 2016; Naughton et al., 2017, Sacco et al., 2016).
Além da violência física, a violência sexual contra crianças e adolescentes também tem índices alarmantes e causa danos profundos nas vítimas, atingindo indivíduos em desenvolvimento de todas as condições econômicas, etnias e gêneros (Brancaglioni & Fonseca, 2016; De Antoni, Yunes, Habigzang, & Koller, 2011, Florentino, 2015; Lira et al. 2017). Em todo o mundo, cerca de 15 milhões de meninas adolescentes de 15 a 19 anos tiveram experiência de sexo forçado ao longo da vida, sendo que nove milhões delas foram vitimadas no ano de 2016 (Unicef, 2017). No Brasil, de acordo com o último Mapa da Violência realizado acerca do assunto, foram atendidas um total de 10.425 crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, sendo que em 59% dos casos o tipo de violência se caracterizava como estupro; em 19,2%, como assédio sexual; e 15,1%, como atentado ao pudor (Waiselfisz, 2012). Tais violências dizem respeito a uma relação assimétrica de poder, já que as crianças e os adolescentes não possuem condições maturacionais e psicobiológicas de enfrentamento (De Antoni et al., 2011; Lira et al., 2017). A gravidade e extensão das consequências do abuso sexual depende de diversos fatores, abrangendo desde ferimentos físicos até o desenvolvimento de psicopatologias graves, comportamentos agressivos, dificuldades no âmbito sexual, doenças psicossomáticas e transtorno de pânico. Assim, podem surgir prejuízos ao desenvolvimento físico, psicológico e social, cuja manifestação pode ocorrer em qualquer fase da vida da vítima (Lira et al., 2017). Além disso, vítimas de abuso sexual podem se deparar com distorções e preconceitos por parte da sociedade, bem como com o fenômeno de culpabilização da vítima, o que contribui para a fragilização da constituição de uma rede de assistência e proteção efetiva (Lira et al. 2017; Portes & Senra, 2015).
No estudo realizado por Monteiro, Fernandes, Oliveira, Peixoto e Pamplona (2018) sobre o olhar materno acerca da violência contra a criança, as mães diferenciaram a agressão física da disciplina, refletindo que a primeira não era a melhor forma de educação. No que se refere à violência sexual, foi identificada uma preocupação materna sobre deixar as crianças sozinhas ou com pessoas que não consideravam de confiança. Contudo, as participantes apresentaram a compreensão que esse tipo de violência, na maioria das vezes, é cometido por pessoas próximas da família e que possuem a confiança da criança. Além disso, foi identificada a percepção das mães de que a violência sexual difere dos outros tipos de violência devido à “síndrome do segredo”, sendo a criança muitas vezes ameaçada para não revelar a situação de abuso sexual. Ademais, na percepção das mães que participaram do referido estudo, o diálogo com os filhos é considerado uma forma de prevenção da violência. Já o estudo desenvolvido por De Antoni et al. (2011), com mães de adolescentes, encontrou que as genitoras minimizaram, banalizaram ou naturalizaram a violência sexual vivida pelas filhas adolescentes. Mostrou que as mães desconheciam que algumas situações, entre elas, voyeurismo, exibicionismo ou toques, constituem violência sexual, considerando que o abuso sexual só ocorre quando há intercurso genital. Além disso, neste estudo, as mães construíram um discurso que culpa as adolescentes, desconsiderando-as como sujeitos em desenvolvimento e em processo de formação de identidade.
Estudos nacionais e internacionais sobre conhecimento, reconhecimento e efetivação dos direitos das crianças e adolescentes ainda são escassos. Em estudo que objetivou compreender a percepção de professores brasileiros quanto à violação dos direitos das crianças e adolescentes, destaca-se, dentre os resultados, que para estes profissionais a efetivação dos direitos estava relacionada a garantir à criança e ao adolescente o direito à alimentação, à moradia e ao acesso à escola. A situação mais frequente de violação dos direitos da população infanto-juvenil referenciada pelos profissionais da educação foi a violência física, seguida por negligência e violência sexual (Siqueira, Alves, & Leão, 2012).
Outro estudo nacional sobre o conhecimento dos direitos da população infanto-juvenil realizado com adolescentes de contextos urbano e rural no Brasil apontou que os participantes demonstravam conhecimento sobre alguns direitos, destacando o direito de ficar na família, não trabalhar e ter a sua opinião solicitada e considerada (Alves & Siqueira, 2013). No contexto internacional, destaca-se a pesquisa realizada com adolescentes na Irlanda do Norte acerca do conhecimento da Convenção dos Direitos da Criança (CRC), a qual revelou que menos da metade da amostra (43%) tinha ouvido falar da CRC. Dentre aqueles que ouviram falar da Convenção, mais de um terço (35%) considerou sua existência importante, visto que preconiza o direito à educação, saúde, respeito, apoio e proteção. Entretanto, 29% dos jovens afirmaram que a CRC possuía pouco efeito sobre eles. Destaca-se que não foram encontrados dados específicos acerca da atitude dos pais em relação aos direitos da criança na Irlanda do Norte (Northern Ireland Statistics & Research Agency, 2013).
Não foram encontrados estudos na literatura nacional e internacional a respeito do conhecimento de mães, pais e/ou cuidadores sobre os direitos das crianças e adolescentes, os quais ocupariam importante papel no embasamento da elaboração de políticas públicas e estratégias que visassem o alcance e a conscientização desta população acerca da temática. Ademais, compreende-se que a lacuna de estudos desse tipo reflete a já destacada incipiência da efetivação dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil (Lima et al., 2017).
No tocante aos órgãos responsáveis pela proteção dos direitos preconizados no ECA, bem como pelo enfrentamento da violência, destaca-se o conselho tutelar (Lei n. 8.069, 1990). Esta instância é componente do Sistema de Garantia de Direitos, sendo responsável por zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (Lei n. 8.069, 1990). Assim, recebe e encaminha para averiguação as notificações da comunidade e informações que relatam maus-tratos, abuso, infrequência e evasão escolar, negligência, entre outras situações importantes envolvendo a população infantil e adolescente (Lei n. 8.069, 1990). Cabe ressaltar que em casos de maus-tratos e violação dos direitos da criança e do adolescente, é previsto por lei (Lei n. 13.010, 2014) que os pais ou responsáveis pela criança e/ou adolescente sejam encaminhados para tratamento psicológico ou psiquiátrico, bem como para cursos e programas de orientação (Lei n. 13.010, 2014). No contexto internacional, nessa mesma perspectiva, o Comitê dos Direitos da Criança sinaliza a importância de reforçar o treinamento adequado e sistemático de todos os grupos profissionais que trabalhem com e para crianças, em especial agentes policiais, professores, trabalhadores da área da saúde, assistentes sociais e pessoas que trabalham em instituições de cuidados infantis. Além disso, o treinamento acerca dos direitos das crianças deve ir além da conscientização acerca da existência de leis internacionais, devendo desenvolver uma cultura de respeito aos direitos das crianças (Lundy, Marshall, & Orr, 2015).
Considerando o conhecimento científico acerca do fenômeno da violência, das leis de proteção à criança e ao adolescente e dos desafios sociais à sua efetivação, esse estudo teve como objetivo analisar o conhecimento de mães de crianças de dois a oito anos sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, especificamente sobre situações de violação dos direitos.
Método
Delineamento e participantes
Um desenho de abordagem mista foi utilizado, no qual dados qualitativos e quantitativos foram coletados. A perspectiva multimétodo possibilitou a triangulação dos dados, uma vez que os dados quantitativos forneceram informações objetivas sobre o conhecimento da legislação e da violação dos direitos, e os dados qualitativos permitiram compreensão da singularidade desses tópicos. Participaram 56 mães, com idade entre 22 e 50 anos (M=32,28 anos; DP=6,53), tendo uma média de 1,7 filhos. Eram mães do contexto urbano, residentes de uma cidade de cerca de 300 mil habitantes do interior do Rio Grande do Sul. O critério de inclusão consistia em ser mãe de crianças com idade entre dois e oito anos, matriculadas na educação infantil ou no ensino fundamental das escolas públicas e privadas.
Instrumentos
Foram utilizados como instrumentos de pesquisa um questionário sociodemográfico e laboral e questionário sobre os direitos da criança e do adolescente, produzido pelas autoras dessa pesquisa. A partir do questionário sociodemográfico, foi possível obter informações a respeito do sexo, idade, estado civil, religião, escolaridade, cidade, vínculo empregatício e formação específica dos participantes. O questionário sobre os direitos da criança e do adolescente continha 13 questões, algumas de múltipla escolha e outras abertas, e teve como objetivo avaliar o conhecimento dos pais e/ou cuidadores quanto aos direitos da criança e do adolescente e as situações de violação dos mesmos, tais como: “A criança tem direito à...”, “A ação de bater no filho é uma...”, “Diante de uma situação de violência testemunhada entre um pai e um filho, como presenciar o pai ou a mãe dar um tapa no rosto de uma criança, devese...”, “Qual é a principal função do conselho tutelar?”, dentre outras. Ambos os instrumentos foram criados pelas autoras com base no que preconiza o ECA (Lei n. 8.069, 1990).
Procedimentos e Considerações Éticas
Essa pesquisa faz parte de um projeto guarda-chuva aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde foi realizada (registro número 2.048.714) e atende aos princípios éticos da pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução Nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (Ministério da Saúde, 2016). Participaram desse projeto maior 67 indivíduos, sendo que 56 eram mães, nove pais e duas eram avós da criança. Nesse estudo, optou-se por contemplar somente as mães por dois motivos: garantir a homogeneidade dos dados e privilegiar o membro da família que tem sido apontado como o principal cuidador e educador das crianças.
Para acessar as participantes, inicialmente, entrou-se em contato com escolas públicas e privadas de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. A partir da autorização dos diretores, bilhetes foram deixados nas turmas de alunos da educação infantil e do ensino fundamental (1os e 2os anos), convidando as mães, pais e/ou responsáveis para participar da pesquisa. Com aquelas que retornavam o contato, foram agendados os encontros para coleta de dados. No primeiro contato com as mães, foram explicados os objetivos do estudo e apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após a assinatura do TCLE, foram aplicados os instrumentos. A coleta de dados foi realizada em 2016 em uma sala cedida pela diretora de uma das escolas e, em alguns casos, em uma sala na instituição de ensino superior das pesquisadoras. O tempo médio de coleta de dados foi de uma hora, tendo sido realizada por estudantes de graduação e pós-graduação em Psicologia. A fim de manter o sigilo e proteger a identidade das participantes, foram atribuídos códigos às mães, utilizandose a letra “M” para “mãe”, seguida de um número que representa a ordem de inclusão no estudo.
Análise dos dados
Os dados qualitativos advindos das questões abertas do questionário sobre os direitos das crianças e dos adolescentes foram analisados a partir da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011), que se refere a um conjunto de passos metodológicos aplicados aos discursos, através da qual se analisa as comunicações, decompondo-as e elencando categorias. A partir da análise foram elencadas, a posteriori, duas categorias intituladas: “Os direitos fundamentais da criança e do adolescente” e “As diversas faces da violência e da violação dos direitos da criança e do adolescente”, que foram construídas por concordância. Já os dados quantitativos foram avaliados de forma quantitativa, a partir do levantamento de percentuais, frequências e médias.
Resultados
A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas das participantes. As categorias advindas da análise qualitativa estão apresentadas a seguir.
Percentual (n=56) | ||
---|---|---|
Escolaridade | Ensino Fundamental incompleto e completo | 19,65%(n=11) |
Ensino Médio incompleto ou completo | 21,42% (n=12) | |
Ensino Superior incompleto ou completo | 33,92% (n=19) | |
Pós-graduação incompleta e completa | 26,78% (n=15) | |
Renda familiar | Até um salário mínimo | 12,52% (n=7) |
2 a 3 salários mínimos | 32,14% (n=l8) | |
4 a 5 salários mínimos | 21,42% (n=12) | |
Mais de 6 salários mínimos | 33,92% (n=19) | |
Tipo de escola | Pública | 58,92% (n=33) |
Privada | 41,07% (n=23) | |
Estado civil | Solteira | 19,64% (n= 13) |
Casada | 75% (n=42) | |
Viúva | 1,78% (n=l) |
Os Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente
As participantes demonstraram ter conhecimento sobre os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, uma vez que todas as mães afirmaram que são direitos da criança e do adolescente: brincar, educação, ficar na família, ter amigos, saúde, saber de sua história, dentre outros. Contudo, quando perguntadas sobre qual seria a principal lei de proteção à criança e ao adolescente, 60,71% das entrevistadas desconheciam o Estatuto da Criança e do Adolescente. Quando indagadas sobre se conheciam a Lei 13.010 (2014), popularmente conhecida como “Lei da Palmada”, 87,5% afirmaram que sim, contudo apenas 25% das participantes concordavam com esta legislação.
Cerca de 94,64% das mães conheciam as principais atribuições do conselho tutelar: “zelar pela integridade dos direitos básicos das crianças e adolescentes, como saúde, educação, alimentação e moradia, e tentar garantir isso” (M7); “proteger as crianças de um desenvolvimento hostil ao seu desenvolvimento social, como exemplo maus-tratos físicos” (M35), entre outros. Como violação, 96,42% das mães apontaram a falta de acesso à saúde, 89,28% o recebimento de castigos físicos, 94,64% a falta alimentação e higiene, 91,07% a falta de oportunidade de entrar na escola e, por fim, 87,50% apontaram a falta de carinho.
As Diversas Faces da Violência e a Violação dos Direitos da Criança e do Adolescente
Quanto ao uso da punição física como método educativo, para 37,50% das participantes bater no filho era uma violência física, ao passo que para 26,78%, era uma forma de educar e para 14,28%, era tanto uma forma de educar quanto uma violência física. O restante consistiu em pessoas que marcaram mais de duas respostas ou não responderam. Ainda, 82,14% das participantes declararam se utilizar da punição física por meio da palmada em seu cotidiano. A maioria (89,3%) não considerava a palmada como violência física, entendendo-a como diferente de espancamento e outros castigos físicos, como demonstra as falas a seguir: “É claro que tu não vai espancar, mas acho que uma palmada às vezes tem o seu valor” (M24); “eu acho que é necessário, porque só tu falar, falar. É claro que não vai espancar né, mas acho que uma palmada às vezes tem seu valor” (M30); “tem gente que espanca os filhos, pra esses aí, tem que ter punição. Agora, a gente dar uma palmada ou uma varada, assim, eu acho que pode” (M39).
Poucas mães (n=10) não utilizavam a punição física por meio da palmada, sendo que, destas, três concordavam com o seu uso, afirmando que não acreditavam ser uma violência física, como demonstra a fala a seguir: “Eu acho que, tem algumas vezes que eu acho que a palmada ia resolver muito mais rápido, eu não sou contra (palmada)” (M4); “porque é diferente, tu dá uma palmada num momento de raiva uma vez no ano e outra coisa é ser uma coisa frequente e ser um hábito aquela família violentar aquela criança daquela maneira” (M13). Assim, apenas sete mães dessa amostra (12,5%) demonstraram convicção na decisão de não usar palmada ou outros castigos físicos em nenhuma circunstância.
As mães também foram questionadas a respeito de qual atitude teriam frente a uma situação-problema de agressão física, como presenciar um pai dando um tapa no rosto do filho. Como resposta, 44,64% relataram que comunicariam a situação ao Conselho Tutelar, ao passo que 12,50% das participantes apontaram que nada fariam diante desta situação e o restante não respondeu. Como justificativa à declaração de nada fazer frente ao testemunho dessa situação, algumas mães sinalizaram que o tapa não poderia ser tomado como uma agressão, como ilustrado no trecho: “Em um primeiro momento, é apenas um tapa e não foi constatado maior caso de agressão” (M9). Também se constatou a construção argumentativa das mães no sentido de supor a existência de um motivo desconhecido que justificaria o ato de agressão da situação hipotética, como se pode observar no comentário “não sei qual o real motivo, que o motivou a essa ação no momento” (M3) e “pois os pais sabem o melhor para seus filhos” (M26).
Em relação ao abuso sexual, 94,64% das participantes entrevistadas consideraram violência sexual os atos de mostrar fotos/vídeos, tocar e olhar com malícia para uma criança. No que se refere à questão que investiga o que as mães pensavam sobre a situação hipotética da relação sexual entre um adulto de mais de 35 anos e uma criança de oito anos, 100% das participantes consideraram o ato como abuso sexual. Quanto à responsabilidade acerca do ato, 16,07% das mães consideraram de responsabilidade dos pais, 19,64% da pessoa que abusou e 62,5% afirmou que a responsabilidade pela ocorrência era tanto dos pais quanto do abusador. Quando questionadas sobre uma situação semelhante à anterior, com a diferença de que a relação sexual hipotetizada se daria entre um adulto de mais de 35 anos e uma adolescente de 14 anos, a maioria das participantes (64,28%) considerou o ato como abuso sexual. No tocante à responsabilidade pelo ato sexual, a maioria atribuiu aos pais da adolescente e ao adulto envolvido (69,75%), contudo 30,35% das mães apontaram a adolescente como uma das responsáveis pelo ato, sendo que algumas participantes dividiram essa responsabilidade entre a adolescente, os pais e a pessoa que cometeu o abuso. Para os 35,72% de participantes que não consideraram abuso sexual o intercurso sexual entre a adolescente e o adulto, as justificativas repousavam nas concepções sociais negativas, estigmatizadas e pejorativas associadas às adolescentes, como as seguintes: “Ela já tem total conhecimento sobre o assunto, talvez de uma forma distorcida, mas não estará sendo inocente” (M14); “nos dias atuais, as adolescentes estão tão saidinhas que não dá pra dizer que com 14 anos não sabe nada da vida” (M47).
Discussão
Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha sido instituído em 1990 no Brasil, há inúmeros impasses a serem superados no que tange à sua implementação e ao seu reconhecimento. As participantes desse estudo demonstraram ter conhecimento sobre os direitos básicos das crianças e adolescentes, contudo, algumas delas não reconheceram o ECA como referência na proteção legal da infância e adolescência. É fundamental que a família e a comunidade conheçam os direitos e deveres que constam no ECA e atuem como agentes de proteção contra a violação destes. Nesse sentido, é imprescindível que as prerrogativas preconizadas pelo ECA sejam amplamente disseminadas na sociedade e em suas diversas instituições, como universidades, movimentos populares, nos meios de comunicação, dentre outros (Bambrilla & Avoglia, 2010). Para isso, ainda é preciso avançar na divulgação dessa legislação, principalmente para que ela se torne efetiva e faça parte da realidade da sociedade de modo geral (Mello, 1999; Lima et al. 2017).
A maioria das participantes demonstrou ter conhecimento das atribuições do Conselho Tutelar. Entende-se, dessa forma, que embora não soubessem nomear o Estatuto, elas conhecem seu conteúdo, e contam com o Conselho Tutelar como uma fonte de apoio no caso da violação dos direitos. Esse dado vai de encontro aos resultados do estudo de Brito, Nascimento e Rosa (2018), o qual demonstrou que as famílias que eram acompanhadas pelo Conselho Tutelar não conheciam as funções do órgão, não reconhecendo o serviço enquanto apoio social, mas sim, enquanto órgão de vigilância e punição. É essencial que os pais, professores, profissionais da saúde, dentre outros, tenham conhecimento acerca dos direitos da criança e do adolescente, bem como estejam preparados para buscar os órgãos responsáveis quando tais direitos forem violados (Lima et al., 2017; Siqueira et al., 2012).
É importante refletir se as estratégias educativas utilizadas pelos pais e/ou responsáveis estão em consonância com os direitos da criança. Nesse aspecto, foi observada disparidade entre o que preconiza a lei e as estratégias utilizadas pelas mães como recurso educativo. Apesar do ECA afirmar que nenhuma criança ou adolescente deverá ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão (Lei n. 8.069, 1990), os dados do presente estudo apontaram para uma certa aceitação das participantes no que se refere a situações que envolviam a punição física, o que revelou uma naturalização desta prática e o entendimento de que a punição pode ser usada com o intuito de disciplinar. Nesse sentido, os resultados apontaram que, mesmo que a maioria das mães tenha considerado a ação geral de bater no filho uma violência que pode causar danos no desenvolvimento de crianças e adolescentes, as participantes não reconheciam a palmada, em específico, como violência, utilizando-a como recurso educativo. Esse dado evidenciou o que a literatura tem discutido sobre a existência de uma diferença entre crença e comportamento, ou seja, embora as mães tenham afirmado que não era preciso utilizar a punição física, quando perguntadas sobre quais estratégias utilizavam, o castigo físico figurava entre elas (Lansford & Deater-Deckard, 2012).
Quanto à Lei brasileira n. 13.010 (2014), a quase totalidade das mães afirmou conhecê-la, embora apenas uma pequena parcela concordasse com ela, o que parece ter relação com a utilização cotidiana da punição física pelas participantes na educação dos filhos. Nesse sentido, Kobulsky, Kepple, Holmes e Hussey (2016) apontam que os pais ou responsáveis podem sentir que práticas educativas fisicamente abusivas são alternativas inevitáveis frente aos problemas de externalização de seus filhos, sendo utilizadas como uma maneira de contê-los. Ademais, Pellegrini, Feltrin, Paiva e Feversani (2013) afirmam que, de modo geral, os brasileiros não aprovam os Projetos de Lei que pretendem proibir a palmada e os castigos físicos como forma educativa. Os apoiadores do uso de punição física têm afirmado que esta norma prejudicaria a autoridade dos pais sobre os seus filhos e, assim, as crianças se desenvolveriam sem limites, tornando-se mal-educadas (Bell & Romano, 2012; Pellegrini et al., 2013). Dados semelhantes foram encontrados em estudo realizado no Canadá, que buscava investigar a opinião da população acerca da Seção 43 do código criminal canadense, que oferece defesa legal para pais que se utilizam de punição física. Os resultados apontaram que 38,6% dos participantes eram favoráveis à manutenção da seção 43, sendo que 16,7% eram favoráveis ao uso da palmada (Bell & Romano, 2012).
O olhar favorável à punição física capturado nessa amostra de mães pode estar associado aos valores culturais do contexto brasileiro, como obediência à autoridade dos pais e submissão a ordens (Pellegrini et al., 2013; Ribeiro, 2012; Sacco et al., 2016). Nesse sentido, o discurso social, bem como a transgeracionalidade, se destacam como fatores importantes na perpetuação da utilização da punição física como uma prática de caráter educativo e pedagógico. A violência, dessa forma, muitas vezes é legitimada como principal estratégia para resolução de conflitos por diversas gerações de uma mesma família. Assim, as crianças educadas a partir desta perspectiva tendem a perpetuá-la em sua adultez, podendo inclusive acreditar que esta é a maneira mais eficaz de garantir a educação (Reis, Prata, & Parra, 2018; Sacco et al., 2016). Nessa linha, no estudo de Sacco et al. (2016), o qual foi realizado com crianças e adolescentes angolanos, foi constatado que apesar de relatarem não gostar de ser castigados, muitos dos participantes afirmaram acreditar que a punição física é necessária para a aprendizagem. A partir disso, as autoras discutem sobre a realidade angolana, na qual diversos pressupostos históricos e socioculturais justificam as práticas violentas utilizadas, apesar da adesão do país a pactos internacionais de reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes. De forma semelhante, pode-se pensar que na realidade brasileira, desde a promulgação do ECA e da Lei 13.010, a mudança de posição social frente ao uso da punição física na educação não foi completamente absorvida e internalizada pela sociedade (Lima et al., 2017).
Quanto às situações que envolviam o abuso sexual, uma significativa parcela das mães não reconheceu como abusiva a relação sexual entre um adulto e uma adolescente de 14 anos, quando comparada com a relação sexual entre um adulto e uma criança de oito anos. Esse dado vai de encontro à legislação brasileira, a qual preconiza como abuso a relação sexual entre crianças/adolescentes (menores de 18 anos) e adultos (maiores de 18 anos) (Lei n. 8.069, 1990), cuja diferença etária seja superior a cinco anos. Além disso, uma significativa porcentagem das participantes considerou esse ato de responsabilidade da adolescente, dado que também pode ser encontrado na literatura. Lira et al. (2017) aponta que situações de abuso sexual que envolvem adolescentes ainda não são vistas de maneira clara pela sociedade, o que muitas vezes gera a culpabilização das vítimas. Embora as participantes do presente estudo reconheçam que perante a legislação o ato se configura como abuso, elas entendem que a adolescente tem condições de assumir responsabilidade pelo seu comportamento, o que demonstra um desconhecimento sobre o processo de desenvolvimento cognitivo, social e emocional dos jovens. A partir das justificativas apontadas pelas mães do presente estudo, é possível inferir que interpretações semelhantes acerca desse tipo de situação são recorrentes, embora a literatura afirme que a adolescência é uma fase de transição entre o mundo infantil e o adulto, marcada por grandes transformações afetivas, físicas e psicológicas. É, portanto, uma fase marcada por instabilidade, na qual o adolescente se encontra vulnerável a pressões e opiniões externas. Em uma pesquisa realizada por Portes e Senra (2015), a qual buscou compreender o abuso sexual infantil na perspectiva de cidadãos, os resultados apontaram que a maioria das respostas dadas pelos participantes apontava para a culpabilização da vítima por ter sido abusada. Além disso, essas concepções desconsideram que a vítima poderá sofrer outras consequências decorrentes do abuso sexual, como baixa autoestima, distúrbios de ansiedade e do sono, irritabilidade, raiva, medo, depressão, sentimentos suicidas, relações interpessoais empobrecidas, abuso de álcool e drogas, distúrbios alimentares e falta de confiança (American Psychological Association, 1995; Lira et al. 2017; Naughton et al., 2017).
A partir do exposto, foi possível identificar que, apesar da legislação que garante os direitos da criança e do adolescente há décadas, muitos desses direitos, bem como os deveres, ainda são compreendidos de maneiras diferentes e, por vezes, distorcidas, o que tende a impactar de forma negativa os principais beneficiários do ECA. Nesse sentido, torna-se necessário construir políticas efetivas que garantam os direitos da criança e do adolescente e priorizem uma abordagem multisetorial, envolvendo diferentes interlocutores em diversos níveis (Lima et al., 2017). Destarte, a sociedade precisa refletir não somente acerca dos direitos percebidos como fundamentais, mas também sobre a prevenção da ocorrência de situações que ameacem a integridade física, moral e emocional das crianças e dos adolescentes. Uma alternativa é a metaparentagem, a qual consiste em os pais e/ou educadores pensarem ou refletirem a respeito das próprias práticas parentais. O estudo de D’Affonseca e Williams (2013) encontrou correlação positiva entre a metaparentagem, parentagem democrática e competência parental, bem como correlação negativa com potencial de abuso. Ainda, existem programas de aperfeiçoamento de habilidades parentais sendo desenvolvidos em diversos países, consistindo em ferramentas fundamentais para promover mudanças (Altafim & Linhares, 2016; Altafim, Pedro, & Linhares, 2016; Levey et al., 2017).
Compreende-se que mães, pais e cuidadores precisam ter acesso ao conhecimento de práticas e formas de educar que assegurem o desenvolvimento de um repertório adequado de habilidades sociais e afetivas nas crianças e adolescentes, garantido a proteção dos direitos fundamentais destes jovens. Destaca-se, dessa forma, a importância de que discussões possam ser promovidas, com o intuito de que, para além de cumprirem o que é previsto pela legislação, os pais e responsáveis sejam capazes de compreender o embasamento das formulações legais, principalmente no que tange aos prejuízos que podem surgir frente à violação dos direitos da infância e adolescência. Afinal, é apenas através da conscientização, e não da obediência sem reflexão, que se pode obter mudanças socioculturais efetivas e duradouras.
Considerações Finais
O presente estudo lançou luz sobre o tema dos direitos da criança e adolescente, demonstrando o caminho que ainda precisa ser percorrido no sentido do alinhamento da sociedade brasileira às suas próprias leis, a fim de promover a proteção destes jovens. As concepções de criação e cuidado da criança na família ainda não se traduzem em práticas, e os pais, no papel de educadores, ainda recorrem a estratégias como o bater, demonstrando a naturalização cultural e histórica de punições físicas como estratégias educativas utilizadas com crianças. Assim, a criação da legislação como marco regulatório parece não se mostrar capaz, por si só, de concretizar a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, o que revela a necessidade de uma verdadeira transformação social e cultural.
Considera-se importante que a infância e a adolescência sejam apresentadas a partir das suas devidas peculiaridades nos mais diversos espaços sociais, já que o desconhecimento destas tem influência na maneira como essa população é atendida/cuidada. Nesse sentido, espaços para que as práticas educativas possam ser discutidas e repensadas são fundamentais para que os responsáveis pelo processo de educação possam compreender os efeitos de suas ações, instrumentalizando-se com alternativas positivas para lidar com os conflitos e favorecer o desenvolvimento social e emocional dos filhos.
Ainda que a sociedade brasileira demonstre desalinhamento com os valores de proteção e segurança da infância e adolescência, a existência de uma legislação com tais avanços é notável. Mudanças podem ser desencadeadas a partir das reflexões e debates promovidos por ela. Assim, o reconhecimento do papel de cada cidadão na garantia dos direitos da criança e adolescente pode se modificar no cenário brasileiro, no qual a violência física e sexual ainda são fenômenos frequentes. Por isso, ressalta-se a importância de que o conhecimento científico já produzido acerca da infância e adolescência seja difundido, bem como as leis que protegem e garantem condições saudáveis de desenvolvimento para essa população.
Por fim, cabe destacar as fragilidades do estudo para que futuras pesquisas possam superá-las. Sugere-se que a amostra seja ampliada e que abarque tanto mães quanto pais das crianças, para que se possa ter uma visão mais completa do fenômeno. Ainda que estudos que evidenciem a visão dos direitos das crianças e adolescentes sejam escassos na realidade brasileira, estudos futuros com maior amostra e com a inclusão dos pais poderão fornecer informações adicionais para a compreensão do tema. Por fim, mesmo que não tenha sido foco do presente estudo, a utilização de escalas e outras ferramentas quantitativas permitiria análises inferenciais e relações entre as variáveis. Sugere-se também que as crianças e adolescentes sejam ouvidas no que tange ao entendimento dos seus direitos, a fim de se verificar se os compreendem, bem como qual seu entendimento sobre seus deveres como cidadãos.