A violência contra crianças e adolescentes engloba todas as formas de agressão contra indivíduos com menos de 18 anos perpetradas por pais, cuidadores, pares, parceiros amorosos ou estranhos. Os maus-tratos, em particular, dizem respeito às situações de violência contra crianças e adolescentes cometidas pelos pais, cuidadores ou outras figuras de autoridade (World Health Organization [WHO], 2020). A exposição à violência na infância e na adolescência é um grave problema de saúde pública (WHO, 2016). No Brasil, foram realizadas 86.837 notificações de violações contra crianças e adolescentes em 2019 por meio do Disque Direitos Humanos (Disque 100). A negligência (38%) foi a forma de violência mais reportada, seguida pelas violências psicológica (23%), física (21%) e sexual (11%) (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2020). As consequências da exposição à violência incluem problemas de desempenho escolar, déficit de atenção, agressividade, baixa autoestima e dificuldades no estabelecimento de vínculos de confiança (Lee, Altschul, & Gershoff, 2015). Adultos com histórico de violência podem apresentar depressão, ansiedade, abuso de substâncias, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtornos de personalidade, ideação e tentativa de suicídio (Afifi et al., 2017).
A sexualidade é construída no decorrer do desenvolvimento e sofre a influência de aspectos biológicos, psicológicos e sociais (Silva, Frutuozo, Feijó, Valerio, & Chaves, 2015). A orientação sexual diz respeito a como cada indivíduo reconhece seu desejo afetivo e sexual (Sant’Anna & Daspett, 2007). Estudos têm apontado que adultos homossexuais e bissexuais reportam alta frequência de situações de violência na infância e na adolescência (Corliss, Cochran, & Mays, 2002; Friedman et al., 2011). As violências às quais gays, lésbicas e bissexuais são expostos no decorrer do desenvolvimento envolvem desde insultos verbais a abusos físicos e sexuais (Blosnich, Henderson, Coulter, Goldbach, & Meyer, 2020). A casa e a escola são os principais contextos de ocorrência de violência (Friedman et al., 2011). Homens homossexuais e bissexuais reportaram mais experiências de maus-tratos físicos e emocionais parentais na infância quando comparados a homens heterossexuais (Corliss, Cochran, & Mays, 2002). Por meio de uma meta-análise, verificou-se que, quando comparados a heterossexuais, jovens gays, lésbicas e bissexuais têm 3,8 vezes mais chances de sofrer abuso sexual na infância e 1,2 vezes mais chances de experienciar abuso físico (Friedman et al., 2011).
Um dos fatores que pode explicar a alta frequência de violência na infância e na adolescência de gays, lésbicas e bissexuais é o estigma sexual negativo sustentado por padrões heteronormativos. A heteronormatividade é um sistema de ideias que estabelece a heterossexualidade como norma (Corliss et al., 2002; Costa & Nardi, 2015). De acordo com a literatura, mesmo antes de a criança ou adolescente compreender sua identidade sexual e de gênero, pais e cuidadores podem reagir de forma negativa frente à observação de comportamentos que não correspondem aos padrões hegemônicos (Freitas, D’Augelli, Coimbra, & Fontaine, 2015). Gênero diz respeito ao conjunto de comportamentos, atitudes, valores, estereótipos e expectativas relacionados com a masculinidade e a feminilidade em determinada cultura e determinado tempo histórico (Saffioti, 1999). Crianças e adolescentes cujas expressões de gênero não correspondem às normativas sociais binárias de masculinidade e feminilidade são entendidas como em não conformidade de gênero (Spivey, Huebner, & Diamond, 2018). A estrutura social heteronormativa é responsável por tornar esses indivíduos alvos de discriminação e contribui para a patologização de suas identidades (Alexandre & Salgado, 2019). No caso dos meninos, pais, cuidadores e outros indivíduos podem ter comportamentos de violência motivados pelo preconceito quando a criança ou adolescente se afasta do modelo de masculinidade hegemônica, o qual implica virilidade, força, agressividade e heterossexualidade (Kane, 2006). A literatura aponta que o preconceito e a violência contra a diversidade sexual estão estreitamente relacionados à violência de gênero. O preconceito contra a diversidade sexual e de gênero manifesta-se de forma interacional, por meio de crenças, afetos e comportamentos contra populações que subvertem lógicas cisheteronormativas (Costa & Nardi, 2015).
Em um estudo realizado por D’Augelli, Grossman e Starks (2006), mais da metade da amostra composta por gays, lésbicas e bissexuais relatou ter sido discriminada por ter rompido com normativas de gênero durante o desenvolvimento. Além disso, a partir de um estudo longitudinal realizado por Roberts, Rosario, Slopen, Calzo e Austin (2013), foi possível verificar associações significativas entre expressões consideradas em não conformidade de gênero na infância e abusos psicológicos, físicos e sexuais. Apesar da importância da temática, são escassos os estudos nacionais que avaliam o histórico de violência na infância e na adolescência de homossexuais. Entender de que forma essas situações ocorrem e as repercussões para as vítimas pode favorecer o desenvolvimento de planos de intervenção psicoterapêuticos, bem como fomentar programas de prevenção. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi verificar a presença e as formas de violência na infância e na adolescência de uma amostra composta por homens adultos homossexuais. Além disso, objetivou-se compreender o significado atribuído a essas experiências por meio de entrevistas. Investigaram-se os contextos de ocorrência da violência, as percepções em relação às agressões e demais elementos significativos para os participantes.
Método
Delineamento
Estudo de caráter misto e sequencial (Schoonenboom & Johnson, 2017). A primeira etapa do estudo envolveu uma abordagem quantitativa para identificar histórico de violência na infância e na adolescência de homens homossexuais. Na sequência, foi empregado o método qualitativo exploratório por meio de entrevistas semiestruturadas com uma parcela dos participantes que indicaram histórico de violência. O método misto e sequencial foi utilizado neste estudo porque permite a triangulação de evidências quantitativas e qualitativas que contribuem para a compreensão de fenômenos complexos. A escala utilizada para avaliar histórico de violência na infância e na adolescência possibilita o mapeamento da exposição a essa experiência, mas não permite inferir que ocorreu em função de questões relacionadas à sexualidade. A inclusão de entrevistas é fundamental para o estabelecimento dessa relação.
Participantes
Participaram da primeira etapa deste estudo 101 homens brasileiros autoidentificados como homossexuais com idades entre 18 e 55 anos (M = 26,37; DP = 6,84). A maior parte era de cor branca (73,3%), possuía ensino superior incompleto (46,5%), trabalhava (66,3%), possuía renda mensal individual de dois a quatro salários mínimos (21,8%), não possuía religião ou culto (44,6%) e estava solteira (84,2%). Os critérios de inclusão para participação na primeira etapa do estudo incluíram ter 18 anos ou mais, ser brasileiro e se autoidenficar como homossexual.
A segunda etapa do estudo foi composta por sete homens que também participaram da primeira etapa. Os participantes tinham entre 19 e 33 anos (M = 25,43; DP = 4,42), eram de cor branca (n = 7), a maioria possuía ensino superior incompleto (n = 4), trabalhava (n = 5), não possuía renda individual (n = 3), não possuía religião ou culto (n = 4), estava solteira (n = 6) e todos residiam em Porto Alegre ou em cidades da região metropolitana. Os critérios de inclusão para participação na segunda etapa do estudo incluíram ter 18 anos ou mais, ser brasileiro, autoidenficar-se como homossexual, residir em Porto Alegre ou na região metropolitana e reportar histórico de violência na infância e na adolescência na avaliação realizada na primeira etapa do estudo. Na Tabela 1 são apresentadas as características sociodemográficas dos participantes das duas etapas do estudo.
Pesquisa online (n = 101) | Entrevista semi-estruturada | (n=7) | ||
---|---|---|---|---|
M | ST> | M | SD | |
Media de idade | 26,37(18-55) | 6,84 | 25,43(19-33) | 4,42 |
N | % | N | % | |
Cor/raça | ||||
Branca | 74 | 73,3 | 7 | 100 |
Parda | 16 | 15,8 | - | - |
Preta | 5 | 5 | - | - |
Prefiro não responder | 3 | 3 | - | - |
Amarela/astática | 2 | 2 | - | - |
Indígena | 1 | 1 | - | - |
Nível de escolaridade | ||||
Ensino superior incompleto | 47 | 46,5 | 4 | 57,1 |
Pós-graduação | 27 | 26,7 | - | - |
Ensino superior completo | 21 | 20,8 | 2 | 28,6 |
Ensino médio completo | 6 | 5,9 | 1 | 14,3 |
Trabalha | ||||
Sim | 67 | 66,3 | 5 | 71,4 |
Não | 34 | 33,7 | 2 | 28.6 |
Renda individual mensal | ||||
De dois a quatro salários mínimos | 22 | 21,8 | 1 | 14,3 |
Não possuo renda individual | 21 | 20,8 | 3 | 42,9 |
De um a dois salário mínimos | 20 | 19,8 | 1 | 14,3 |
De quatro a seis salários mínimos | 13 | 12,9 | 1 | 14,3 |
Até um salário mínimo | 13 | 12,9 | 1 | 14,3 |
Mais de seis salários mínimos | 12 | H,9 | - | - |
Religião ou culto | ||||
Nenhuma | 45 | 44,6 | 4 | 57,1 |
Católica | 18 | 17,8 | - | - |
Ateu | 17 | 16,8 | 2 | 28,6 |
Espírita/Kardecista | 13 | 12,8 | - | - |
Outra | 8 | 8 | 1 | 14,3 |
Estado civil | ||||
Solteiro | 85 | 84,2 | 6 | 85,7 |
Casado ou em uma união estável | 16 | 15,8 | 1 | 14,3 |
Instrumentos
Questionário de dados sociodemográficos: composto por questões sobre idade, orientação sexual, cor ou raça, nível de escolaridade, renda mensal individual, estado civil atual, religião ou culto praticado atualmente e região de residência.
Maltreatment and Abuse Chronology of Exposure Scale (MACE): desenvolvida por Teicher e Parigger (2015) para investigar histórico de violência na infância e na adolescência. A escala foi adaptada para o português por Kluwe-Schiavon, Viola e Grassi-Oliveira (2016). Composta por 52 itens que avaliam a exposição a dez formas de violência: negligência emocional (itens 38, 39, 42, 43, 52), abuso emocional não-verbal (itens 5, 40, 41, 48, 49, 50), maus-tratos físicos parentais (itens 6, 7, 8, 9, 10, 11), abuso verbal parental (itens 1, 2, 3, 4), abuso emocional por pares (itens 26, 27, 28, 29, 30), bullying físico (itens 31, 32, 33, 34, 35), negligência física (itens 44, 45, 46, 47, 51), abuso sexual (itens 12, 13, 14, 19, 20, 36, 37), testemunho de violência interparental (itens 21, 22, 23, 24, 25) e testemunho de violência contra irmãos (itens 15, 16, 17, 18). Optou-se por não incluir as questões referentes ao testemunho de violência já que a investigação sobre o tema não faz parte dos objetivos deste estudo. Foram encontrados alfas de Cronbach que indicam boa consistência interna nos itens: maus-tratos físicos parentais (α = 0,72); abuso emocional por pares (α = 0,71); negligência emocional (α = 0,70); abuso sexual (α = 0,67); e abuso verbal parental (α = 0,65). Os demais itens apresentaram baixa consistência interna: bullying físico (α = 0,59); abuso emocional não-verbal (α = 0,51); e negligência física (α = 0,42).
Entrevista semiestruturada: composta por uma questão principal que visava responder o objetivo do estudo. O protocolo de entrevista possuía, também, questões complementares para promover o aprofundamento do relato. As questões eram: 1) Você já vivenciou alguma experiência de preconceito e/ou violência motivada por sua orientação sexual? Poderia relatar como aconteceu?; Questão complementar: Quais as suas percepções e sentimentos em relação a essas experiências de preconceito e/ou violência?
Procedimentos de Coleta de Dados
Um formulário autoaplicável foi elaborado na plataforma Qualtrics para a realização da primeira etapa do estudo. A coleta de dados online foi realizada entre abril e junho de 2016. A divulgação da pesquisa ocorreu pelas redes sociais (e.g., Facebook) do grupo de pesquisa, dos pesquisadores envolvidos no projeto e em páginas com conteúdo voltado aos grupos LGBTQ+. Uma página contendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) era gerada assim que os participantes acessavam o link da pesquisa. O preenchimento dos instrumentos só iniciava após a confirmação da leitura e aceite do TCLE. Caso não aceitassem participar, uma nova mensagem contendo um agradecimento era apresentada e a coleta de dados encerrada. Uma cópia do TCLE foi enviada a cada um dos participantes, os quais disponibilizaram um endereço eletrônico ao final do preenchimento do questionário online. Durante os dois meses em que a pesquisa esteve disponível, foram realizados 233 acessos. Destes, 101 (43,3%) responderam a todas as perguntas do questionário, 73 (31,3%) acessaram o questionário, mas não iniciaram o preenchimento do mesmo e 50 (21,4%) iniciaram o preenchimento do questionário, mas não finalizaram. Além disso, nove (3,8%) participantes foram excluídos das análises deste estudo porque indicaram ser bissexuais.
A seleção dos participantes para a segunda etapa do estudo ocorreu por conveniência e de acordo com a disponibilidade para responder à entrevista. Os critérios de inclusão da etapa qualitativa envolveram ter participado da primeira etapa do estudo, reportar histórico de preconceito e violência e residir em Porto Alegre ou região metropolitana. No convite enviado por e-mail estava descrito o objetivo do estudo e informações a respeito da coleta de dados, realizada de forma presencial na universidade responsável pelo estudo ou em local sugerido pelo participante. Foram enviados 31 convites por e-mail para participação na pesquisa, sendo que 11 homens retornaram demonstrando interesse em participar. Por diferentes motivações, especialmente indisponibilidade de horários, quatro interessados não realizaram a pesquisa. Sete entrevistas foram realizadas no período de maio a setembro de 2016. Cinco delas foram realizadas nas dependências do serviço-escola da universidade e outras duas em locais indicados pelos participantes. As sete entrevistas foram gravadas em áudio, realizadas de forma individual por uma pesquisadora previamente treinada e em espaços reservados. Em média, as entrevistas duraram 30 minutos.
Procedimentos Éticos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), parecer No. 1.427.051. Todos os participantes foram informados sobre os propósitos da pesquisa e incluídos mediante o aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As páginas da web contendo o TCLE e os instrumentos, bem como o banco de dados com as informações coletadas, foram armazenadas com senha com o objetivo de garantir a privacidade e a segurança das informações. Outro cuidado ético adotado foi a apresentação de orientações que incluíam os procedimentos de notificações de violações de direitos humanos e busca de atendimento psicossocial. Quando finalizavam o preenchimento dos questionários online, era gerada uma página com indicações para que, em caso de violação de direitos, os participantes realizassem notificações em delegacias ou por meio do Disque Direitos Humanos (Disque 100).
Procedimentos de Análise dos Dados
Inicialmente, foram realizadas análises descritivas das características sociodemográficas e do histórico de violência na infância e na adolescência dos participantes. As análises foram conduzidas utilizando o pacote estatístico SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 21.0. As entrevistas foram transcritas na íntegra respeitando o sigilo e a identidade dos participantes. A análise das entrevistas foi orientada pelo método de análise temática de Braun e Clarke (2006), seguindo os passos de familiarização com os dados, identificação de códigos iniciais, busca por temas, revisão dos temas, definição e nomeação dos temas e produção do relatório. As unidades de análise foram frases e as análises foram realizadas por duas juízas independentes a partir de orientação indutiva. Em caso da discordância, uma terceira juíza integrava a análise da referida unidade.
Resultados e Discussão
Em relação à exposição à violência na infância e na adolescência, foi possível verificar que, entre os respondentes da primeira etapa do estudo (n = 101), a maioria foi vítima de abuso emocional por pares (88,1%), abuso emocional não-verbal (84,2%), maus-tratos físicos parentais (79,2%), abuso verbal parental (69,3%), negligência emocional (68,3%) e bullying físico (52,4%). Também se identificou alta porcentagem de abuso sexual (43,5%). Quanto aos sete participantes incluídos nas duas etapas do estudo, no questionário online todos eles reportaram ter vivenciado negligência emocional, maus-tratos físicos parentais e abuso emocional por pares (ver Tabela 2). Tais resultados estão de acordo com o que vem sendo descrito na literatura a respeito da alta frequência de experiências de violência na infância e na adolescência entre homossexuais (Corliss et al., 2002; Friedman et al., 2011).
n = 101 | n = 7 | |||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Negligencia emocional | ||||
Sim | 69 | 68,3 | 7 | 100 |
Não | 27 | 26,7 | - | - |
Missing | 5 | 5 | - | - |
Abuso emociona] nào-verbal | ||||
Sim | 85 | 84,2 | 6 | 85,7 |
Não | 16 | 15,8 | 1 | 14,3 |
Missing | - | - | - | - |
Maus-tratos físicos parentais | ||||
Sim | 80 | 79,2 | 7 | 100 |
Não | 21 | 20,8 | - | - |
Missing | - | - | - | - |
Abuso verbal parental | ||||
Sim | 70 | 69,3 | 6 | 85,7 |
Não | 31 | 30,7 | 1 | 14,3 |
Missing | - | - | - | - |
Abuso emociona] por pares | ||||
Sim | 89 | 88,1 | 7 | 100 |
Não | 9 | 8,9 | - | - |
-Missing | 3 | 3 | - | - |
Bullying físico | ||||
Sim | 53 | 52,4 | 6 | 85,7 |
Não | 45 | 44,6 | 1 | 14,3 |
3 | 3 | - | - | |
Negligencia física | ||||
Sim | 37 | 36,6 | 4 | 57,1 |
Não | 59 | 58,4 | 3 | 42,9 |
Missing | 5 | 5 | - | - |
Abuso sexual | ||||
Sim | 44 | 43,5 | 2 | 28,6 |
Não | 54 | 53,5 | 5 | 71,4 |
-Missing | 3 | 3 | - | - |
Com o objetivo de aprofundar a compreensão sobre as experiências de violência, realizou-se uma análise temática das entrevistas. Foram estabelecidos três temas principais: 1) Contextos de violência; 2) Não conformidade de gênero; 3) Emoções atribuídas às experiências de violência (ver Figura 1). Os contextos de violência dizem respeito aos ambientes nos quais os participantes relataram ter sofrido violência na infância e na adolescência. A não conformidade de gênero surgiu nos relatos associada à ocorrência de violência. Quanto mais distantes dos padrões rígidos e hegemônicos de gênero, maior a frequência e a intensidade das violências. Por fim, foram analisadas as emoções que os participantes atribuíram às experiências de violência na infância e na adolescência.
Contextos de Violência
O primeiro tema estabelecido por meio da análise das entrevistas foi chamado de “contextos de violência”. Como o próprio nome sugere, o tema envolve os relatos dos participantes a respeito das experiências de violência em dois contextos principais: a casa e a escola. Dois subtemas foram estabelecidos para possibilitar a análise aprofundada dessas experiências: “maus-tratos na família de origem” e “violência na escola”.
Maus-tratos na Família de Origem
Todos os entrevistados (n = 7) relataram ter vivenciado maus-tratos na família de origem durante a infância e a adolescência. Os relatos dos entrevistados ajudam a ilustrar os resultados obtidos por meio do uso da escala na coleta de dados online. De modo geral, as famílias foram descritas como contextos de ocorrência de abuso e negligência, especialmente emocional, como relatado pelo entrevistado 1: “A família foi o local onde eu não fui protegido, onde eu comecei a ser hostilizado, pelo contrário, quando eu busquei proteção na família, não só em relação a essa coisa da orientação sexual, não tive”. Situação semelhante foi identificada no relato do entrevistado 2: “E o resto era tipo, aconteceu alguma coisa, a única coisa que minha mãe poderia falar era ‘engole o choro’ e deu, acabou, só isso”.
As experiências na família de origem são fundamentais para a construção da identidade. No entanto, muitos indivíduos homossexuais não encontram no contexto familiar o suporte e o acolhimento para lidar com situações de preconceito e discriminação (Knight, Safa, & White, 2018). Familiares podem reagir com violência quando identificam em crianças e adolescentes atitudes e comportamentos diferentes do que é imposto pelos padrões heteronormativos (Katz-Wise, Rosario, & Tsappis, 2016). Tal situação é ilustrada pelo relato do entrevistado 2: “Eles (pai e mãe) ajudaram a piorar a situação na verdade, não a melhorar. Tipo, ao invés de poder conversar com eles, eu tinha trauma de apanhar deles. Se tu abrisse a boca então, não… Esqueça, família não existia pra esse tipo de situação, aliás, pra bem poucas situações se for falar a verdade”.
A negligência emocional é caracterizada por omissões relativas a aspectos emocionais e afetivos (Stoltenborgh, Bakermans-Kranenburg, & Ijzendoorn, 2013). Já o abuso emocional caracteriza-se por um padrão repetitivo de comportamento que comunica à criança ou ao adolescente que ele não tem valor, é mal-amado e indesejado (Conte & Klika, 2017). O estigma sexual negativo e o fato de a sexualidade ser tratada como um tabu pela família podem contribuir para a ocorrência dessas formas de violência. O entrevistado 5 relatou o seguinte: “O meu pai é exatamente a questão que falamos de ignorância, não é que ele ignorava no sentido de preconceito, pra ele não fez diferença, ele não teve uma resposta afetiva frente a isso, ele não falou ‘eu tô preocupado contigo’ ou ‘eu não aceito’. Até hoje ele não conversa, aí eu não sei se ele aceitou tão bem a ponto de dizer ‘isso pra mim não interessa’, ou ele simplesmente diz ‘eu não quero saber, não vou conversar sobre isso’”. Devido à falta de diálogo com a família, muitos jovens homossexuais acabam buscando apoio e informações de outras formas, como em conversas com amigos, na escola ou na internet (Flores, Abboud, & Barroso, 2019). Discutir o tema da sexualidade em casa de forma respeitosa tem efeitos positivos, como diminuir a exposição a práticas sexuais de risco e a infecções sexualmente transmissíveis (Arrington-Sanders et al., 2015).
Violência na Escola
Além das situações de maus-tratos na família de origem, todos os entrevistados (n = 7) relataram ter sofrido violência motivada por preconceito no contexto escolar. Esse resultado condiz com os dados obtidos por meio da coleta de dados online. O abuso emocional por pares foi uma das formas de violência mais reportadas pelos participantes. Segundo o entrevistado 5: “Na escola que era o problema, ‘bichinha’, ‘borboleta’, ficavam dando vários apelidos, mesmo eu não sabendo minha sexualidade, nem tendo uma sexualidade desenvolvida ainda, vinham esses comportamentos... Os professores fingiam que não viam, ou será que eles não percebiam?”. Também de acordo com o relato do entrevistado 2: “Bom, durante a escola, todos os dias... Com o tempo eu fiquei um pouquinho mais isolado deles, então eu tinha meu grupo de amigos, só que aí tinha aquele detalhe que eu não jogo futebol, então começavam: ´é veadinho, bláblábláblá e coisas nesse sentido”.
De acordo com a literatura, lésbicas, gays e bissexuais sofrem mais violências do que seus pares heterossexuais e estão mais suscetíveis a sofrer bullying na escola. O bullying motivado pelo preconceito contra a diversidade sexual é uma forma de comportamento que objetiva marginalizar e tornar indesejável a presença de uma pessoa devido à sua orientação sexual ou identidade de gênero (Katz-Wise & Hyde, 2012). De acordo com uma pesquisa nacional sobre clima escolar realizada nos Estados Unidos, a maioria dos jovens pertencentes a minorias sexuais (74,1%) reportaram agressão verbal por conta de sua orientação sexual no último ano. Devido à hostilidade, muitos jovens homossexuais sentiam-se inseguros no ambiente escolar (Kosciw, Greytak, Palmer, & Boesen, 2014).
A escola, local de convívio de crianças, jovens e adultos, constitui-se como um espaço privilegiado para que temas relacionados a gênero e sexualidade sejam abordados. Quando isso não ocorre, pode se tornar um ambiente restritivo por impor, direta ou indiretamente, uma socialização heteronormativa. Além disso, os pares podem reproduzir o estigma sexual negativo e contribuir para a vigilância de indivíduos que apresentam condutas não consoantes com as expectativas de gênero (Bautista, 2019). O entrevistado 3 abordou a questão: “Na escola eu sofria com isso, um pouco assim, porque eu sempre andei mais com meninas, eu sempre gostei mais de brincadeiras que eram tradicionalmente de meninas, e eu lembro de ter sofrido assim, durante toda minha vida escolar, eu sofri bullying por causa disso”.
Não Conformidade de Gênero
A análise das entrevistas permitiu identificar que atitudes hostis e situações de violência foram motivadas pelo preconceito em relação a comportamentos considerados desviantes do modelo de masculinidade hegemônica, como gostar de brincar com bonecas, escutar bandas “femininas” (girlsbands) e andar com grupos de meninas. Apesar de a orientação sexual e a expressão de gênero serem construtos diferentes, estão relacionados e muitas vezes são confundidos no imaginário social. Situações de hostilidade motivadas pelo rompimento com estereótipos de gênero foram relatadas por quatro dos sete entrevistados. O entrevistado 3 relatou o seguinte: “A minha mãe me chamava a atenção porque ela notava que eu brincava bastante com as meninas, então não sei se ela tinha medo do que pudesse acontecer ou se ela queria me converter, sei lá, mas ela ainda me chamava atenção e eu não entendia, sabe?!”.
Dois subtemas foram estabelecidos por meio da análise dos relatos que envolviam a não conformidade de gênero: “tentativa de correção” e “antecipação de preconceito”. De acordo com Freitas et al. (2015) os pais podem reagir de forma negativa frente à observação de expressões de gênero que fogem das normativas sociais por medo de que o filho não seja heterossexual. Em um estudo realizado por D’Augelli et al. (2006), cerca de um terço dos pais desencorajava esses comportamentos, considerando-os desviantes. Cabe ressaltar que há um número maior de estudos sobre não conformidade de gênero do que sobre orientação sexual na infância. A ideia de que as crianças são seres desprovidos de sexualidade afeta a forma como o tema é abordado em termos científicos.
Tentativa de Correção
O subtema “tentativa de correção” envolve experiências em que houve a tentativa de modificar a expressão de gênero ou a orientação sexual. Quatro participantes relataram terem sido expostos a essas situações. O entrevistado 1 relatou o seguinte: “Já me levaram no psicólogo quando eu tinha cinco anos porque eu tinha comportamento feminino, queria brincar de boneca”. Historicamente, a Psicologia desempenhou um papel central na legitimação e perpetuação do estigma sexual negativo (Gilman, 1985). Apesar de a homossexualidade não ser uma categoria diagnóstica desde a década de 1970, ainda hoje é possível encontrar psicólogos que realizam práticas corretivas. A exposição a tais práticas pode resultar em danos severos, como depressão, ansiedade, uso abusivo de álcool, dificuldades para manter relações interpessoais saudáveis, prejuízos na vida sexual e ideação suicida (American Psychological Association [APA], 2009). Apesar das evidências que apontam os efeitos negativos, um estudo realizado no Brasil identificou que, dos 692 psicoterapeutas entrevistados, 204 reportaram atitudes corretivas com seus pacientes (Vezzosi, Ramos, Segundo, & Costa, 2019). A Psicologia, entretanto, deve fornecer intervenções livres de preconceitos, baseadas em evidências científicas e que respeitem a orientação sexual de qualquer indivíduo.
Antecipação de Preconceito
O segundo subtema foi chamado de “antecipação de preconceito” e identificado nas falas de três dos sete entrevistados. A antecipação de preconceito é um dos muitos estressores vivenciados por homens homossexuais e outras minorias sexuais. Trata-se da antecipação do evento estressor que causa expectativas de rejeição e recriminação, bem como leva a um estado de vigilância e estresse (Costa & Nardi, 2015). Esse tipo de experiência pode ser verificado no relato do entrevistado 3: “É... Senti que eu tinha que esconder e foi um momento que eu lembro, assim, se tratando da família, lembro de ter sofrido um pouco com isso e de ter notado que também já estavam desconfiando de alguma coisa”. Em outro trecho do relato do mesmo participante também é possível identificar a antecipação do preconceito: “E outra coisa que eu noto, também, é que eu tive um pouco de medo quando a gente via esse tipo de coisa junto, principalmente meus avós, de que eles fizessem algum comentário negativo”. De acordo com a literatura, a experiência de sofrer preconceito, bem como a antecipação, aumentam o estresse e contribuem para desfechos negativos em termos de saúde mental, tais como depressão, abuso de substâncias e suicídio (Meyer, 2003).
Emoções Atribuídas às Experiências de Violência
O último tema estabelecido por meio da análise das entrevistas foi chamado de “emoções atribuídas às experiências de violência” e esteve presente nas falas dos sete entrevistados. Esse tema inclui reflexões dos participantes a respeito dos aspectos emocionais decorrentes das violências sofridas no período da infância e da adolescência. As emoções mais frequentes foram raiva e tristeza, as quais eram acompanhadas pela forte sensação de não ser compreendido, como descrito pelo entrevistado 3: “Eu fico muito triste, muito triste. Na verdade, tem muita coisa que eu não falei pra muita gente. Justamente por não falar e guardar isso, a emoção fica muito viva ainda, né?! Eu não sei se eu fico com raiva, mas eu acho que em primeiro lugar eu fico triste, e aí a raiva vem depois”. Outro relato é do entrevistado 4: “É ódio mesmo das pessoas te questionarem por ser... Por ser o que tu é simplesmente, tu… É ódio realmente o que eu sinto, de não conseguir rebater as críticas, as falas preconceituosas assim”.
Além de raiva e tristeza, outra emoção identificada nos relatos dos participantes foi medo, especialmente relacionado às reações do pai. Segundo o entrevistado 4: “Meu pai morreu quando eu tinha quatro anos, aí eu acho que isso (realizar a revelação da orientação sexual para a família) foi mais fácil”. Ainda hoje é confiado ao pai o dever de ensinar aos filhos comportamentos de poder e dominação atribuídos ao gênero masculino. A masculinidade hegemônica diz respeito a um modelo ideal de ser homem que se baseia em normas rígidas de gênero e que pressupõe a heterossexualidade como imperativa (Connel, Messerschmidt, & Fernandes, 2013). Frente à possibilidade de revelar-se homossexual para o pai, é comum que muitos indivíduos tenham expectativas negativas e se sintam angustiados por frustrar as expectativas da família, contrariando, por meio da homossexualidade, as normas de uma sociedade patriarcal, machista e heteronormativa (Jadwin-Cakmak, Pingel, Harper, & Bauermeister, 2015).
Conclusões
Avaliar o histórico de violência motivado por preconceito contra a diversidade sexual e de gênero na infância e na adolescência de homens homossexuais é importante porque permite compreender os impactos que o estigma sexual negativo pode causar no desenvolvimento. Neste estudo, a maior parte dos participantes foi exposta a diferentes formas de violência perpetradas por pessoas próximas, como pares e familiares. A coleta de dados incluiu tanto dados quantitativos quanto qualitativos, o que permitiu gerar resultados complementares. Para além da descrição das formas de violência às quais foram expostos, os participantes puderam falar a respeito dos contextos de ocorrência e das emoções geradas por essas experiências. Mesmo tendo ocorrido há anos, a violência deixa marcas negativas e envolve lembranças que podem acompanhar e impactar o indivíduo por toda a vida.
Os resultados deste estudo devem ser discutidos levando em consideração o contexto e as particularidades da amostra, composta majoritariamente por homens brancos, de classe média, com ensino superior incompleto e residentes da região Sul do Brasil. Novos estudos devem incluir diferentes amostras e delineamentos com o objetivo de aumentar a compreensão a respeito das experiências de violência na infância e na adolescência de homens homossexuais. Estudos longitudinais com amostras representativas são importantes porque permitem avaliar a relação causal entre a exposição à violência e os desfechos em termos de saúde. É fundamental que pais e educadores compreendam o papel de suporte emocional que devem desempenhar no processo de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Nesse sentido, psicólogos e demais profissionais da saúde devem contribuir com a desconstrução de estereótipos de gênero e lógicas heteronormativas que sustentam o preconceito e a violência.