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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2022   17--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.66486 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

Capacitando para o Cuidado em Saúde Mental: Um Relato de Experiência

Training for Mental Health Care: an Experience Report

Capacitación para el Cuidado de la Salud Mental: Un Informe de Experiencia

Allan Martins Mohr1 

Psicólogo e doutor em Filosofia. Psicólogo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Curitiba, e professor do curso de Psicologia da FAE Centro Universitário.


http://orcid.org/0000-0002-5764-9623

Carla de Oliveira Vaz Chiarello1 

Psicóloga, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade, e doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela UTFPR. Psicóloga da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba.


http://orcid.org/0000-0002-1350-5935

1Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR, Curitiba, PR, Brasil


RESUMO

Este relato de pesquisa tem por objetivo apresentar uma experiência de elaboração e execução de um curso de Capacitação em Cuidados em Saúde Mental realizado inicialmente no segundo semestre do ano de 2019 e repetido no primeiro semestre do ano de 2020 em uma Instituição Federal de Ensino Superior no sul do país. O referido curso foi ofertado em quatro encontros somando vinte horas de capacitação mesclando aspectos teóricos e experiências práticas. Sua proposta se efetivou devido ao reconhecimento dos proponentes, ambos psicólogos, de que a equipe do setor onde atuavam carecia de segurança para oferecer uma escuta inicial e encaminhar discentes que se apresentavam alterados emocionalmente. Dessa forma, apresentamos neste artigo a metodologia utilizada para o curso, além de explorarmos os conteúdos nele trabalhados para, finalmente, concluirmos que a capacitação atingiu seus objetivos, a recortar nossa tese de que uma capacitação em saúde mental, quando oferecida a profissionais de áreas diversas à da psicologia e/ou psiquiatria, traz resultados importantes na melhoria da qualidade do atendimento e no desenvolvimento da saúde mental do próprio profissional atendente.

Palavras-chave: capacitação profissional; psicologia; saúde mental.

ABSTRACT

This research report aims to present an experience in the elaboration and execution of a Training Course in Mental Health Care held initially in the second semester of 2019 and repeated in the first semester of 2020 in a Federal Institution of Higher Education in South Brazil. This course was offered in four meetings totaling twenty hours of training, mixing theoretical aspects and practical experiences. Its proposal was made effective due to the recognition of the proponents, both psychologists, that the team in the sector where they worked lacked the security to offer an initial listening and refer students who were emotionally altered. Thus, we present in this article the methodology used for the course, in addition to exploring the contents worked on in order to finally conclude that the training has achieved its objectives, to outline our thesis that a training in mental health, when offered to professionals in the fields different from that of psychology and/or psychiatry, brings important results in improving the quality of care and in developing the mental health of the attending professional himself.

Keywords: professional training; psychology; mental health.

RESUMEN

Este informe de investigación tiene como objetivo presentar una experiencia en la elaboración y ejecución de un curso de capacitación en atención a salud mental que se realizó inicialmente en el según semestre de 2019 y se repitió en el primer semestre de 2020 en una Institución Federal de Educación Superior en sur del país. Este curso se ofreció en cuatro reuniones en un total de veinte horas de capacitación, mesclando aspectos teóricos y experiencias prácticas. Su propuesta se hizo efectiva debido al reconocimiento de los proponentes, ambos psicólogos, de que el equipo en el sector donde trabajaban carecía de seguridad para ofrecer una escucha inicial y encaminar estudiantes que estaban emocionalmente alterados. Por lo tanto, presentamos en este artículo la metodología utilizada en el curso, además de explorar los contenidos trabajados para finalmente concluir que la capacitación ha logrado sus objetivos, en resumen nuestra tesis de que una capacitación en salud mental, cuando ofrecida a profesionales de áreas distintas a la psicología y/o psiquiatría, trae resultados importantes en la mejora de la calidad de la atención y en el desarrollo de la salud mental del profesional que atiende.

Palabras clave: formación profesional; psicología; salud mental.

Este escrito objetiva apresentar um relato de nossa experiência na elaboração e execução de um curso de capacitação em saúde mental realizado inicialmente no segundo semestre do ano de 2019 e repetido no primeiro semestre do ano de 2020 em uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) no sul do país. Sua construção se efetivou devido ao reconhecimento dos proponentes, ambos psicólogos, de que a equipe do setor onde atuavam carecia de segurança para atender e encaminhar discentes que se apresentavam alterados emocionalmente, no sentido de apresentarem comportamentos ansiosos, depressivos, ideações suicidas, entre outros. Então, depois de reiteradas discussões acerca da possibilidade de um aprofundamento da equipe nas questões de saúde mental, elaborou-se a capacitação à época intitulada Primeiros Atendimentos em Saúde Mental e que, atualmente, denomina-se Primeiros Cuidados em Saúde Mental. Importante dizer que profissionais de outras áreas na referida IFES aumentaram o coro da demanda pela capacitação.

O curso foi composto por dois eixos, um teórico e outro prático, por meio dos quais se visou, em vinte horas, contemplar o seguinte ementário: classificação diagnóstica, nosológica e etiológica segundo organizações internacionais; conceito de saúde, normalidade, patologia e seus aspectos históricos; surgimento, conceituação e a história da loucura; o exame do estado mental; o método clínico; o homem em Schopenhauer, Heidegger e Camus; sofrimento psíquico; psicoses; suicídio; escuta em emergências. A escolha pelas especificações apresentadas na ementa decorreu considerando os estudos e formações dos profissionais capacitadores e, de imediato, cabe dizer que não precisa ser uníssona caso a experiência ora relatada seja reproduzida. Isso porque entendemos que o foco da proposta, e deste relato, não é sustentar a escolha estabelecida, mas sim discutir a tese de que uma capacitação em cuidados em saúde mental pode ser oferecida a profissionais de áreas diversas à da psicologia e/ou psiquiatria com resultados importantes na melhoria da qualidade do atendimento ao público e no desenvolvimento da saúde mental do próprio profissional que atende público.

Posto isso, ressaltamos que a primeira turma capacitada contou com profissionais atuantes na assistência estudantil - entre eles: assistentes administrativos, pedagogo, assistente social, odontólogo, enfermeiro e intérprete de LIBRAS - e na coordenadoria de recursos humanos de uma Universidade Federal do sul do país. Na segunda turma, contou-se com profissionais da coordenadoria de RH, uma vez que seu coordenador ratificou a importância da capacitação e o resultado positivo nos profissionais capacitados da primeira turma.

De sua encadeação, cabe dizer que o curso foi dividido em quatro encontros de cinco horas cada e, a cada encontro, realizou-se um primeiro momento de exposição e discussão teórica seguido de vivências e exercícios referentes a conhecimento de si mesmo, reconhecimento da posição de escuta, distanciamento egóico dos temas relatados pelo interlocutor, entre outros. Posto isso, agora passamos à descrição dos encontros conforme realizados.

Primeiro Encontro

No primeiro encontro foram trabalhados os aspectos históricos do conceito de “loucura”, com especial apoio no trabalho de Michel Foucault (2017) intitulado “História da Loucura”. Aqui cabe um parêntese: amparados pela proposta do autor no texto escolhido, tanto no curso quanto neste relato optamos por usar indiscriminadamente as palavras loucura e louco para designar as questões relativas à doença mental, transtornos mentais e pacientes diagnosticados psiquiatricamente ou não; ademais, optando por essa forma de descrever o público e o problema, entendemos que vislumbramos honestamente a maneira com a qual as pessoas ditas comuns tratam as questões de saúde mental, ou seja, com dificuldade e, por vezes, preconceito. Enfim, da obra de Foucault se recortou o importante percurso de exclusão social que parte da Hanseníase, ou Lepra, e segue até os quadros de loucura diversos. Com isso, objetivou-se circunscrever a loucura, a doença mental, os transtornos mentais ou, ainda, o “cliente estranho” no âmbito do excluído e, retomando o raciocínio foucaultiano, lemos que a loucura vem para ocupar o lugar que antes estava destinado à lepra e posteriormente às doenças venéreas e outras figuras demoníacas; em suas palavras: “freqüentemente nos mesmos locais, os jogos de exclusão serão retomados [...]. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento” (Foucault, 2017, p. 06). Optamos, também, por aprofundar o aspecto de exclusão do dito louco por entendermos a importância que o questionamento dos preconceitos tem para aquele que atende, escuta e cuida de pessoas com transtornos mentais ou que esteja em um momento de maior sensibilidade acerca da saúde mental. Com isso, discorreu-se sobre o lugar demoníaco com o qual a sociedade ao longo de sua história rotula tudo aquilo que difere do comum dos homens, o que resulta numa necessidade de exclusão extrema do diferente incluindo, sobremaneira, a morte do louco enquanto recurso perfeito para manutenção da norma. Não obstante, apresentou-se também o raciocínio de que o louco é temido justamente por se apresentar como um ser mais livre que os demais e aquele que ri do absurdo da existência - o que é entendido como uma afronta pelo homem comum que não suporta ser lembrado de sua condição de perecível. Afinal, diz Foucault (2017) que “o que existe no riso do louco é que ele ri antes do riso da morte. E pressagiando o macabro, o insano o desarma” (p. 16).

A partir desse raciocínio, passamos a estudar e discutir a ideia freudiana delineada em 1919 sobre o sentimento de estranheza, construção que vinculamos à necessidade de exclusão. Para Sigmund Freud, o estranhamento é justamente uma resposta subjetiva frente a algo que causa horror, inquietação ou, ainda, mal-estar. Na obra estudada, o pai da psicanálise nos mostra como essa infamiliaridade frente a um aspecto do outro remete a uma representação do próprio indivíduo que precisou ser recalcada, ou seja, retirada da consciência, e vai ser reconhecida, espelhada e estranhamente, no semelhante (Freud, 2019). Com isso, ainda afirma o austríaco que aquilo que é estranhado na “loucura tem a mesma origem. O leigo tem aqui, diante de si, a expressão de forças que ele não imaginara à volta dele, mas cujo movimento podia ser percebido, obscuro, num canto remoto da própria personalidade” (Freud, 2019, p. 91). A partir disso, intentamos refletir sobre o fato de que a exclusão, seja do leproso ou do louco, estaria mais relacionada às questões do próprio homem comum consigo mesmo e seus demônios do que com as questões alheias, o que nos leva a compreender que o sentimento de (in)familiaridade ou estranheza frente aos pacientes e/ou clientes não diz respeito necessariamente ao outro ou à relação de trabalho desenvolvida, senão aos próprios conteúdos de cada um que escuta um indivíduo.

Em seguida, passou-se ao debate embasado por dois autores que nos ajudam a entender outros aspectos da loucura, a saber: a liberdade do dito louco, a normalidade da loucura e a inveja do dito homem comum. Com Jacques Lacan, compreendemos que o louco possui o que chamamos de inconsciente descoberto, no sentido de que seus conteúdos “internos” não estariam tão represados como aqueles das pessoas não-loucas e, por isso, o louco teria uma certa liberdade que os demais não possuem (Lacan, 1988). De Erasmo de Rotterdam, por sua vez, recortamos o fato de a loucura ser, em algum grau, compartilhada por todos os humanos, afinal, como ela mesma diz sob a pena do pensador: “nenhum homem pode viver feliz, sem ser iniciado nos meus mistérios e sem participar dos meus favores” (Rotterdam, 2002, p. 57).

Ainda no primeiro encontro, trabalhou-se a dualidade normal-patológico e se iniciou as discussões sobre escuta dentro de uma perspectiva clínica. Daquele tema, trabalhamos sob a leitura de Canguilhem a fim de questionar a rotulação patologizante da loucura e apreendemos que a doença é apenas uma norma possível de vida no sentido de uma maneira de se fazer existir no mundo. Também vimos que o louco, ou o alienado, só pode assim ser considerado se for levado em conta não uma comparação externa, mas um confronto ontológico, ou seja, é necessário se questionar as mudanças dentro da própria existência de um indivíduo para sustentar um diagnóstico referente à alienação. A partir disso, discorreu-se sobre a patologização contemporânea da loucura como contrassenso clínico e disparate ético porquanto a normalização da lógica patológica enquanto disfuncionalidade a qual deve ser combatida estaria mais referida a uma lógica de médico de escravos do que uma boa escuta do sofrimento humano. Nas palavras do autor: “o estado patológico ou anormal não é consequência da ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma norma de vida, mas uma norma inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida” (Canguilhem, 2017, p. 127), o que quer dizer que pensar em falta de saúde mental é pensar justamente em um estado ou comportamentos cristalizados, uma maneira de ser (ansiosa, depressiva, maníaca, entre outras) que não permite flexibilidade; algo como a ideia de sintoma para a psicanálise.

Finalmente, encerrando o eixo teórico deste primeiro encontro, iniciou-se as discussões sobre a história do método clínico e a distinção entre clínica, psicoterapia e clínica psicanalítica a partir dos estudos de Christian Dunker. Em seu livro “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica”, o autor apresenta uma tripartição dos componentes da clínica psicanalítica e que ele denomina: clínica, psicoterapia e cura. Nesse sentido, diz o psicanalista que o aspecto “clínica” se refere à capacidade de um profissional em ler, pela observação, os signos apresentados por seu paciente. Signos estes que, combinados, constroem os sintomas, o que se desdobra em uma hipótese diagnóstica, uma terapêutica e, quiçá, uma etiologia (Dunker, 2011).

No aspecto prático, neste primeiro dia se trabalhou com desenhos objetivando uma fluidez das discussões a fim de se trabalhar desejos e expectativas, sendo o disparador temático a seguinte sentença: representar por meio de uma imagem a situação atual de sua vida e o vislumbre do futuro, incluindo as expectativas do curso. Em duplas, os desenhos seriam explicados e enquanto um organizasse e ofertasse seus conteúdos ao outro por meio da fala o outro deveria escutar aquilo que vem do outro exercitando a alteridade e, ao mesmo tempo, organizar uma maior percepção das coisas advindas de si, pois o outro pode ser também espelho. Para que pudessem ser alcançados níveis de menor interferência da consciência e da razão, utilizamos gizes pastéis, driblando a tentativa de alcançar um ideal de desenho perfeito. Outra orientação era a de que a atenção daquele que escutava necessitava estar focada para as sensações advindas da fala do outro e no investimento em perguntas que promovessem a melhor visualização do cenário; assim, os questionamentos deveriam evitar julgamentos e o uso de por quês.

Segundo Encontro

O estudo da clínica, conforme ora apresentamos, estendeu-se pelo primeiro e segundo encontros e teve dois focos: o entendimento dos componentes do método clínico, conforme descritos pelo autor, e a distinção entre clínica, psicoterapia e a nomeada clínica psicanalítica como a junção das duas técnicas anteriores, além da perspectiva do cuidado.

Dunker nos diz que o método clínico clássico é composto por quatro elementos, a saber: semiologia, diagnóstica, terapêutica e etiologia. Semiologia é o discurso acerca dos signos, ou o estudo dos signos enquanto traços de um algo maior que pode ser denominado sintoma. Um bom clínico, nos diz o autor, é alguém capaz de uma boa leitura desses traços com vistas a formar uma diagnóstica ou uma hipótese diagnóstica. Para ele, o diagnóstico bem feito é sempre da ordem de uma hipótese que apenas poderia se fechar, por assim dizer, no final de um tratamento. Seria apenas ao finalizar um tratamento que o clínico poderia dizer se seu diagnóstico - que embasou sua terapêutica, ou seja, suas estratégias de intervenção - foi bem realizado, ou não. Ainda, também depois de um percurso seria possível se pensar em uma etiologia, quer dizer, a busca pelo reconhecimento da causa da doença (Dunker, 2011). Tudo isso é função da clínica que se ocupa da modificação de uma norma de vida dentro de uma história individual ou subjetiva, se desejarem.

Essa discussão, vale ratificar, serviu-nos para apresentar a conjectura de que, ao realizarmos os primeiros atendimentos em saúde mental ou ao atendermos um sujeito considerando as questões de saúde mental, cabe-nos atentarmos para dois desses componentes: semiologia e diagnóstica. Ao escutarmos um indivíduo devemos atentar aos signos que dizem respeito às suas questões de saúde mental para, minimamente - uma vez que a capacitação não é exclusiva para profissionais da área da psicologia ou psiquiatria -, sermos capazes de elaborar uma hipótese diagnóstica diferencial com o intuito de não aprofundar seu sofrimento e construirmos uma possibilidade de encaminhamento.

Dizemos diagnóstico diferencial porquanto o autor vai ainda trazer o diagnóstico evolutivo como aquele que se apresenta na diferença longitudinal de um tratamento. O diferencial, no entanto, é aquele diagnóstico inicial que serve ao clínico como auxílio no discernimento da doença e diferenciação entre entidades, ou espécies, nosográficas. Assim, o estudo da clínica dentro da capacitação aqui relatada teve como desígnio a compreensão de que nos atendimentos iniciais em saúde mental é possível realizar uma semiologia e um diagnóstico diferencial, o que nos auxiliaria na acolhida, escuta e encaminhamento dos indivíduos; sabendo que, no entanto, os aspectos de diagnóstico evolutivo, terapêutica e etiologia não cabem à proposta.

Da diferenciação entre clínica, psicoterapia e clínica psicanalítica, selecionou-se estudar o entendimento de que a clínica, historicamente, refere-se aos signos e sintomas como seu objeto, proporcionando um tratamento que visa uma cura, ou seja, a remissão sintomática. A psicoterapia, por sua vez, teria como objeto de seu método o sofrimento humano, subjetivo; sofrimento este que demanda alívio e que poderia, após o tratamento, ser aliviado ou, melhor, atenuado. Da clínica psicanalítica, o autor reconhece esses aspectos e acrescenta o fato de que ela visa um restabelecimento de um sujeito que se apresenta incômodo em sua posição de vida, ou seja, a psicanálise enquanto método atuaria sobre o mal-estar como objeto que pede por cuidado e mira em um restabelecimento.

Esse estudo proporcionou discussões acerca do cuidado em cada contato humano, no sentido de uma acolhida daquilo que o outro em sofrimento apresenta. Novo parêntese: é por conta desse conceito que hoje optamos por mudar o nome da capacitação substituindo a palavra “atendimento” e a denominando “Primeiros Cuidados em Saúde Mental”. Enfim, para Dunker, a ideia de cuidado enquanto Sorge, do alemão, “traduz-se tanto por cuidar de, quanto preocupar-se com e ainda por tratar de. Estamos assim diante de um termo que compreende ambas as acepções anteriores, a psicoterapêutica (preocupar-se) e a clínica (tratar), mas [vai] além disso” (Dunker, 2011, p. 32). E esse cuidado, ainda cabe dizer, refere-se à “experiência legada por seu processo, a integração, à história dos envolvidos, da cicatriz formada, dos conselhos recebidos e do sentido do evento … ou de sua falta de sentido” (Dunker, 2011, p. 33). No caso desses primeiros cuidados propostos pela capacitação, cuidar se refere à escuta da história e das modificações da norma de vida desse indivíduo a fim de possibilitar uma acolhida e um bom encaminhamento para que seu sofrimento possa ser trabalhado, mesmo que em outro lugar.

O eixo teórico do segundo encontro finalizou sendo estudado sobre a história e o conteúdo da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) e do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Além disso, foi apresentado aos profissionais que participaram da capacitação uma discussão acerca do Exame do Estado Mental conforme resumido e estruturado por Dalgalarrondo (2008). Esse último conteúdo teve por objetivo proporcionar certa instrumentalização para que, nos contatos desses profissionais com seu público, eles pudessem reconhecer ou colocar em questão os aspectos físicos e linguageiros de seus interlocutores a fim de apoiar uma hipótese diagnóstica diferencial.

Em relação ao momento prático, outra atividade com representação pictórica foi realizada, contudo, desta vez, iniciou-se com um relaxamento conduzido. A condução foi no sentido de que os participantes visualizassem a vivência de um sonho no momento de sua realização e esta deveria ser a imagem a ser representada em papel com gizes pastéis. A dinâmica tem sequência com a proposta de que cada pessoa possa contribuir no “sonho” do outro, analisando o desenho alheio e oferecendo, ou não, algum item que também seria desenhado. A proposta é perceber o quanto as pessoas ao nosso redor marcam nossas vidas, mesmo que algumas apenas com suas presenças enquanto outras conseguem oferecer mais. As percepções acercas de suas próprias emoções e sua nomeação foi um dos principais exercícios desta capacitação, pois à medida que visualizamos a sensação ou a emoção que estamos experienciando podemos questionar se é nossa ou da outra pessoa, por exemplo, e esta diferença produz em nós um melhor entendimento de nossas características e, inclusive, daquilo que, do outro, nos incomoda.

Terceiro Encontro

O terceiro encontro se concentrou acerca da especificação de uma clínica com arcabouços psicanalíticos no sentido de apresentar aos cursistas a proposta de uma escuta que considera o psiquismo humano circunscrito às hipóteses de inconsciente, transferência, linguagem, entre outros conceitos. Assim, iniciou-se a discussão acerca do que nomeamos “quatro estruturas psíquicas” enquanto entidades nosográficas que precisam ou poderiam ser diferencialmente diagnosticadas em um curto espaço de tempo, quiçá no primeiro atendimento que se propõe um cuidado em saúde mental. Obviamente o público foi alertado de que, por vezes, esse diagnóstico inicial é extremamente difícil de ser realizado e, dessa forma, coube relembrar a característica de hipótese de toda diagnóstica. Enfim, brevemente foram explicadas e diferenciadas a neurose, psicose, perversão e autismo; brevemente, porquanto o quarto encontro se propôs a aprofundar esse tema. Em seguida, para dar suporte à nosografia psicanalítica escolhida para o curso, foi discutida a noção ou ideia de homem conforme pensada por três filósofos, a saber: Arthur Schopenhauer, Martin Heidegger e Friedrich Nietzsche.

De Schopenhauer, recortou-se o problema da representação enquanto modelo mental adotado posteriormente por Freud para explicar acerca do psiquismo humano, além da questão da vontade e sua distinção entre a Vontade - da ordem cósmica e lógica, lógos - e aquilo que se pode nomear desejo - da ordem do humano - para discutir sobre a convicção schopenhaueriana do sofrimento como consequência de uma vida desejante porque nunca completa (Schopenhauer, 2005). Além disso, trabalhou-se a angústia e a certeza humana da morte como causa de miséria e sofrimento existencial. Heidegger, por sua vez, foi utilizado para apresentar aos cursantes a proposta de um homem enquanto relação com o mundo, ou melhor, um ser-em-o-mundo, aquele que só pode ser pensado na sua íntima relação com a existência temporalmente mundana. Ademais, apresentou-se também os conceitos de Dasein e ser-para-a-morte a fim de explorar o pensamento do autor acerca da falta enquanto essência inerentemente humana (Heidegger, 2012). Dessa forma, optou-se por apresentar um homem no qual a falta é imanente a fim de vincular esse raciocínio com a ideia de uma loucura como parte constituinte de todo humano, a lembrar Erasmo de Rotterdam. Finalmente, Nietzsche (2008) nos auxiliou a reforçar a noção de um homem sem causa e cuja vida carece de sentido. Em seguida, optou-se por discutir a questão da linguagem e do tratamento psíquico pela palavra com o apoio do texto freudiano “Tratamento psíquico (tratamento anímico)”, de 1890 (Freud, 2017). A partir desse estudo, recordou-se a questão da representação, do humano enquanto imanentemente faltoso, além dos conceitos de transferência e cura. Ademais, debateu-se a escuta nos atendimentos em saúde mental como concernente àquilo que é da ordem do cuidado, devendo se deixar ao largo o furor pela cura, pleno entendimento do outro ou demais tentativas terapêuticas narcísicas. Ao final desse encontro, debatemos a distinção que propõe Freud (2017) entre as técnicas sugestivas e psicanalítica para oferecer uma proposta de escuta baseada no reconhecimento do outro como um lugar discursivo de singular importância.

Acerca do eixo prático, cabe ressaltar que enfrentar o assunto da morte numa sociedade ocidental é um exercício difícil de se realizar, porquanto a morte, embora parte da vida, simboliza perda em nossa cultura e há muitos preconceitos que perpassam o tema, em especial a questão do suicídio. Neste terceiro exercício, então, optou-se pela utilização de textos que abordassem as temáticas acerca da morte e do homem, porém antes foi realizado um brainstorming a fim de que se escrevesse tudo que viesse à cabeça referente a morte. Após a leitura em grupos, os participantes deveriam debater os textos e, após, analisar as palavras escritas no brainstorming. O aspecto central desta atividade foi elencar aquilo que está presente em nossos mundos subjetivos acerca da morte e comparar com as temáticas: crises, suicídio e morte como a necessidade de finalização de algo para o nascimento de algo novo; por exemplo: relacionamentos, empregos, vida estudantil, entre outros.

Quarto Encontro

No último encontro, escolheu-se aprofundar o entendimento de três das estruturas psíquicas citadas anteriormente: autismo, psicose e neurose. Além disso, sua etiologia e forma de apresentação, a questão dos sintomas (neurose) e dos fenômenos elementares (psicose). Aprofundou-se, também, aquilo que Freud veio a chamar de formações do inconsciente para oferecer alguma instrumentalização, por mínima que seja, aos cursantes a fim de poderem sustentar um diagnóstico diferencial entre autismo, neurose e psicose. Esse caminho foi escolhido pelos proponentes da capacitação por entendermos que, a depender da estrutura subjetiva do interlocutor, deve-se assumir um lugar e uma postura distinta, ou seja, não é interessante agir com um psicótico da mesma maneira que se agiria com um neurótico, por exemplo. Portanto, optou-se por esquadrinhar esses temas o máximo possível, não obstante cientes da insuficiência temporal e estrutural de uma proposta de capacitação como a relatada.

O último tópico abordado no curso foi o tema do suicídio, com o apoio de materiais oficiais do Ministério da Saúde do Governo Federal e o livro “O mito de Sísifo”, de Camus (2010). Do primeiro material, recortou-se a conceituação, o aspecto de sobredeterminação, os mitos e verdades, sinais de alerta e encaminhamentos para pacientes com ideação e/ou tentativa de suicídio. Com Camus, tentamos apresentar uma proposta de entendimento do suicídio vinculada ao problema existencial, não sem antes falarmos um pouco da visão de Durkheim e da psicanálise. Vale dizer que o filósofo francês entende o suicídio como o verdadeiro problema filosófico e o primeiro problema o qual cada um de nós deve verdadeiramente responder, afinal, “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois” (Camus, 2010, p. 19). Com esse estudo, visou-se apresentar uma leitura da existência humana que, muito embora insensata, deva ser vivida justamente por seu caráter de absurdez, ou seja, é justamente porque a vida é absurda e a morte é certa que podemos empregar sentido aos eventos da existência.

Assim, compreender a resposta camusiana para o absurdo da vida, a lembrar, a revolta, é assaz importante ao se interrogar sujeitos - em especial os adolescente, diga-se de passagem - com ideação suicida. E isso porque, saber do absurdo da existência, nos auxilia a validar o sofrimento do outro que cogita se suicidar e, ao mesmo tempo, possibilita que possamos o ajudar a colocar em questão suas certezas; afinal, como vimos anteriormente com Canguilhem, a cristalização de uma norma de vida é sinal patológico, ou seja, falta de saúde mental.

Enfim, de nossa parte prática, destacamos que neste quarto encontro foi utilizado um vídeo com uma história onde o personagem trazia a sua percepção acerca de determinados acontecimentos relativos a um sofrimento subjetivo. Após o vídeo, os participantes foram convidados a responderem perguntas de acordo com a posição da pessoa que relatava, da pessoa que escutava e de uma terceira pessoa que narrava de forma impessoal os fatos. Todos compartilharam as facilidades e dificuldades que tiveram em cada espaço e houve discussão sobre escuta e empatia, consciência e limites de atuação, aproximação e distanciamento da situação alheia e de como auxiliar alguém na tomada de decisões; também se discutiu o encaminhamento como possibilidade de atuação, o entendimento de que daquilo que é trazido pelo outro não é material daquele que o atende e, portanto, não é necessário se defender, entre outros temas. Após a discussão, finalmente, pudemos realizar uma breve avaliação do curso.

Resultados e Considerações Finais

A proposta da Capacitação em Primeiros Cuidados em Saúde Mental foi construir um espaço de discussão e aprendizagem para um grupo de não psicólogos e/ou psiquiatras que atendem público e se preocupam com questões relativas à saúde mental a fim de favorecer com que esses atendentes possam repensar seu lugar de oitiva, tanto no sentido de estarem frente a um sujeito que sofre de maneira singular e saber como o encaminhar, quanto no fato de que esse mesmo atendente possui questões subjetivas que, por vezes, interfere no seu lugar de escuta. Estar frente a um sujeito e o escutar considerando os aspectos relativos à sua saúde mental não é uma tarefa simples, porquanto convoca o próprio individuo que escuta em sua característica mais humana, o sofrimento existencial. Assim, a construção desta Capacitação em Primeiros Cuidados em Saúde Mental partiu da experiência de seus idealizadores no atendimento psicológico e nas discussões em equipe multidisciplinar, em especial o reconhecimento desta mesma equipe na dificuldade de escutar um público que, para além da demanda inerente ao serviço oferecido na IFES, trazia questões relativas à saúde, saúde mental, familiares, entre outras. Em consequência, conjecturamos que uma capacitação em primeiros atendimentos ou cuidados em saúde mental voltada aos servidores da supracitada IFES poderia auxiliar esses profissionais não psicólogos e/ou não psiquiatras no atendimento ao público, tanto qualificando o atendimento como apaziguando as angústias dos próprios servidores frente aos imprevistos que sempre aparecem quando nos propomos a escutar o sofrimento das pessoas.

Apesar de o curso ser relativamente curto contando com apenas vinte horas e de maneira alguma se propor a profissionalizar ou capacitar terapeutas e/ou outras designações correlatas, a capacitação em tela se propôs a ampliar o arcabouço teórico e técnico dos servidores que atuam na escuta de um público diverso e, justamente por isso, imponderável. Um público que por vezes exige ou, por que não dizer, coage o atendente a responder com certa urgência frente a uma crise de pânico ou ideações suicidas; e um atendente que por formação profissional não tem a competência necessária para dar suporte ao sujeito, tampouco conseguir se manter numa posição tal capaz de favorecer uma escuta e um encaminhamento em saúde mental. Enfim, a despeito da característica lacônica do curso, pudemos recolher de suas primeiras turmas respostas favoráveis à metodologia e conteúdo aplicados.

Seja em relação ao aspecto teórico, aspecto prático ou, ainda, às discussões sobre o posicionamento profissional frente ao público com o qual se trabalha questões de saúde mental, os participantes das duas primeiras turmas da capacitação se disseram satisfeitos e puderam, inclusive, relatar atendimentos após o término do curso nos quais se utilizaram dos conhecimentos adquiridos para se sentirem mais tranquilos e encaminhar o caso atendido de uma maneira mais adequada do que fariam anteriormente. Não obstante, cabe dizer que frente à segunda turma e uma nova conversa com os primeiros cursantes, percebemos que, a depender do público trabalhado, a profundidade dos conceitos e das discussões precisam ser questionadas e o curso precisa ser, na medida do possível, adaptado. À parte essa ressalva, entendemos que a capacitação atingiu seus objetivos, a lembrar nossa tese de que a capacitação, quando oferecida a profissionais de áreas diversas à da psicologia e/ou psiquiatria, traz resultados importantes na melhoria da qualidade do atendimento e no desenvolvimento da saúde mental do próprio profissional atendente. Finalmente, esperamos que este relato possa favorecer outros serviços e instituições a construírem capacitações referentes à saúde mental que ampliem esta discussão, de assaz importância em nossos dias.

Referências

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Recebido: 30 de Março de 2020; Aceito: 11 de Janeiro de 2021

Allan Martins Mohr Avenida Sete de Setembro, 3165. Centro, Curitiba - PR, Brasil. CEP 80230-901, Endereço eletrônico: allan.mohr@gmail.com

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