O campo do envolvimento religioso e das instituições que o medeiam possui um longo antecedente de relações com o espaço da política. No histórico da sociedade ocidental, é possível observar um passado permeado por alianças entre uma organização religiosa hegemônica e um governo de seu Estado (Souza, 2009). Todavia, com o surgimento do Estado moderno, vemos um refluxo do espaço ocupado pela religião nas demais instituições sociais. O advento dos ideais iluministas e a racionalização do mundo impulsionada pelo pensamento científico, entre outros fatores, iniciaram, a partir do século XIX, um processo conhecido como secularização, a saber: o recrudescimento da influência religiosa sobre as instituições e práticas sociais, como também uma flexibilização da crença em oposição ao apego à tradição (Taylor, 2010).
Tal recrudescimento, contudo, não ocorre livre de tensões e ambiguidades. Na verdade, há um longo debate sobre até ponto podemos dizer, de fato, que os modelos das instituições seculares, principalmente o Estado, são distintos das formas de organização religiosas. Tal discussão encontra um ponto central na obra de Carl Schmitt, que em seu “Teologia Política” desenvolve a tese de que os elementos que fundamentam a legitimidade do Estado são uma reformulação de conceitos teológicos. Em outras palavras:
Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida em que o Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos. (Schmitt, 1992/2006, p. 35)
Podemos observar em relação à secularização, portanto, não só uma difusão dos ideais iluministas e do recrudescimento “natural” das instituições religiosas, mas também um processo permeado de tensões internas, no qual existe uma disputa pela fundamentação da legitimidade do poder. Nessa disputa, o Estado secularizado carrega consigo as marcas de uma teologia, uma teologia política, que permite deter o monopólio da função de estabelecer o sentido e as normas organizacionais da sociedade, fato que se mostra mais transparente ao se analisar a decisão soberana durante o estado de exceção (Schmitt, 1922/2006). A religião e a política, como observa Schmitt, estariam então mais profundamente relacionadas do que parecem, envolvidas em uma disputa histórica pela centralidade das formas sociais.
Nesse sentido, o advento do Estado laico ocupa um ponto central nos modelos políticos da modernidade. A necessidade de se construir uma organização social que esteja protegida da influência e do poder das instituições religiosas, durante a passagem para a era moderna, teve por consequência o estabelecimento do laicismo como separação dos campos do Estado e da Igreja. Decorre disso que o Estado seja capaz de assegurar legitimidade política para todos os indivíduos, independentemente de sua crença ou ausência de crença. Desse modo, no estado laico, as instituições religiosas teriam seus espaços delimitados, na tentativa de evitar sua possível sobreposição aos espaços e garantias políticas no âmbito democrático. No entanto, a interface mais explícita entre religião e política, mesmo com a secularização, nunca deixou de existir, seja de maneira direta ou indireta (Mariano, 2011). Podemos observar, inclusive, certo revigoramento dessa relação em nosso contemporâneo e um possível fortalecimento do discurso religioso no espaço político.
No Brasil, um dos blocos componentes do Congresso de maior expressão, tanto em número de parlamentares quanto em influência interna e popular, constitui-se como a Frente Parlamentar Evangélica. A maioria de seus membros é vinculada a vertentes pentecostais e neopentecostais. Seus projetos e pautas são, frequentemente, baseados em princípios religiosos, como o ensino moral e a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da eutanásiae do aborto (Fábio, 2018).
Além disso, o apelo à crença religiosa na tomada de posicionamento político por parte da população se mostrou de enorme relevância nas eleições ocorridas em 2018. Vimos a participação de igrejas, também ligadas ao movimento neopentecostal, na campanha eleitoral de um candidato à Presidência, promovendo a divulgação de vídeos eleitorais durante a celebração de um culto (Redação Revista Fórum, 2018). Durante a campanha e após a eleição, o agora presidente coleciona uma série de declarações que indicam sua orientação por princípios religiosos na tomada de decisões governamentais. Frases como “Não tem essa historinha de estado laico não, é estado cristão. E quem não concorda que se mude” (Rocha, 2018), assim como o próprio lema oficial do governo: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, denotam o peso do discurso religioso na atual conjuntura política brasileira.
Posto esse cenário, nosso objetivo é identificar como as novas formas de envolvimento religioso, em suas configurações seculares, podem ter derivado, também, novos caminhos rumo ao envolvimento político. Em outras palavras, como certos paradigmas da secularização poderiam ter deslocado e reorganizado pontos norteadores que inauguram uma nova relação entre religião e política no nosso contemporâneo. Para tanto, tomaremos a teoria da prosperidade como exemplo paradigmático do enlace contemporâneo da religião com a política.
Utilizaremos como metodologia a pesquisa teórica em psicanálise. Esse método se caracteriza por um estudo eminentemente teórico, submetendo a teoria psicanalítica a uma análise crítica e possibilitando, dessa forma, a verificação de sua lógica interna, a coesão estrutural de seus conceitos e as condições de sua efetivação como teoria (Garcia-Roza, 1993).
Essa modalidade de pesquisa, por intermédio do tensionamento de conceitos, ideias e ideologias, possibilita a circunscrição de temáticas e problemas que levam a um aprimoramento da fundamentação teórica. Considerando o instrumental investigativo da psicanálise, partimos da concepção de que os discursos a serem debatidos na pesquisa, assim como as construções de conhecimento de modo geral, não se constituem desprovidos de furos, incoerências e contradições (Lo Bianco, 2003).
Para desenvolvermos nossa argumentação, portanto, percorreremos, em um primeiro momento, as formulações freudianas a respeito das motivações que levam o sujeito ao encontro do envolvimento religioso, assim como as reformulações presentes na obra de Lacan a respeito do tema, procurando focalizar os pontos onde os autores analisam interseções entre religião e outros discursos. Faremos, também, em um segundo momento, uma breve exposição sobre o conceito de ideologia, tomando como base teórica os trabalhos de Althusser e Pêcheux - autores que permitem um diálogo com a psicanálise na proposta de um funcionamento inconsciente da ideologia. Depois, retomaremos algumas considerações históricas sobre a relação entre religião e política no Brasil, encaminhando a discussão para a forma como tal questão se situa na contemporaneidade. Por fim, proporemos uma análise do papel da secularização na movimentação religiosa política exposta, buscando dialogar com os conceitos trabalhados anteriormente.
Religião e Política: A Construção do Sentido em Psicanálise
Na obra de Freud, o fenômeno religioso é estudado repetidamente ao longo de suas produções, ora surgindo como ponto central dos textos, ora como discussões complementares e paralelas. Podemos organizar duas linhas de construção teórica presentes na metapsicologia freudiana da religião (Araújo, 2014), ainda que ambas se entrelacem constantemente. Uma trata da religião enquanto neurose obsessiva e a outra, da religião como ilusão. A primeira se traduz na constituição subjetiva do sujeito e na forma como se estabelecem as relações dentro de uma civilização. Nesse ponto, Freud vê o próprio surgimento da organização social como confluente à primeira forma de religião institucionalizada em “Totem e Tabu” (Freud, 1913/2012), o que, de certa forma, estabelece a maneira como o laço social se constrói em nossa experiência cultural.
Na análise freudiana, por meio do compartilhamento da culpa, da imposição de uma lei simbólica e do recalcamento de determinados desejos, surge a possibilidade do arranjo social. O aparecimento da figura totêmica, representativa do pai morto pelos filhos da horda primeva, e a relação religiosa dos sujeitos com tal figura marcam a condição para o processo civilizatório. Nessa construção, a religião atua como organizadora das práticas permitidas e proibidas, também cumprindo o papel de fornecer sentido às regras estabelecidas. Temos, na teoria freudiana, a religião desempenhando um papel de articulação com as estruturas sociais que orientam a civilização, na formação subjetiva dos sujeitos, estabelecendo o que é possível e o que não é. De certa forma, os meios psíquicos com os quais a religião marca sua rubrica no sujeito, em especial o recalque, são também aqueles que determinam as balizas de nossa organização social.
Freud assevera a profunda ressonância existente entre os mecanismos em que se baseiam o relacionamento dos sujeitos dentro de uma religião com as diferentes formas de coletividade. Em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (Freud, 1921/2011), ao longo dos diversos fenômenos sociais debatidos na obra, o autor aponta a existência de um vínculo libidinal nas massas religiosas tanto em relação ao grande líder religioso, como também aos outros indivíduos da massa, os “irmãos de fé”. Nesse ponto, o psicanalista traça comparações entre grupos sociais aparentemente distintos, mas que se organizariam por mecanismos psíquicos semelhantes:
Na Igreja - podemos, com vantagem, tomar a Igreja católica como modelo - prevalece, tal como no Exército, por mais diferentes que sejam de resto, a mesma simulação (ilusão) de que há um chefe supremo - na Igreja católica, Cristo, num Exército, o general - que ama com o mesmo amor todos os indivíduos da massa. Tudo depende dessa ilusão; se ela fosse abandonada, imediatamente se dissolveriam tanto a Igreja como o Exército, na medida em que a coerção externa o permitisse. (Freud, 1921/2011, p. 47)
Freud destaca como a identificação e o investimento objetal são fatores presentes nas diferentes formatações dos grupos formados pelas massas sociais. Vemos, aqui, a aproximação do envolvimento religioso a outros espaços que demandam o posicionamento do sujeito frente a um grupo, seja ele qual for, na medida em que possuem processos operacionais comuns. Sendo a religião uma forma organizadora do laço social como conhecemos em nossa sociedade, é possível que as relações estabelecidas em outras formas grupais atuem de maneira semelhante.
A segunda chave de leitura freudiana acerca do tema refere-se à religião como uma construção de visão de mundo e atribuição de significado às coisas, uma função pedagógica de propor respostas, valores, orientações; em última análise, uma ilusão. Tal ilusão ofereceria ao homem uma imagem da realidade suprimindo seus traços desagradáveis e substituindo-os por outros que correspondam ao desejo humano. Tendo como motor pulsional o desejo, frente ao mal-estar e ao desamparo da vida adulta, a religião propõe um acolhimento em sua ilusão, possibilitando que a proteção, uma vez exercida na infância pela figura dos pais, retorne agora na imagem do Deus Pai (Freud, 1927/2010, 1933/2010).
Em “O Futuro de uma Ilusão”, Freud (1927/2010) postula três importantes funções que a religião cumpriria para o sujeito, sendo elas as mesmas exercidas pelo pai durante a infância: informar, proteger e educar. Considerando seu papel na cultura, as ilusões produzidas pelas religiões são formas de compensar as renúncias feitas para a inserção do homem no processo de socialização, uma retomada do pai protetor presente na infância. A parcela de mal-estar necessária para o processo civilizatório é compensada com a ilusão oferecida no saber religioso. Novamente, a analogia com a neurose se faz presente na medida em que a constituição da cultura exige o recalcamento de determinadas pulsões.
Tratando da interface entre religião e política, vemos comentários pertinentes em “Acerca de uma visão de mundo”, trabalho no qual Freud (1933/2010) discorre sobre diferentes “Weltanschauungen” - termo sem tradução literal, mas que pode ser compreendido em português como “visão de mundo”. Destacamos o fato de que uma das “Weltanschauungen” analisadas no texto, ao lado da religião, refere-se à teoria marxista. O autor considera que interpretar a economia como causalidade do percurso histórico social - forma como Freud entende Marx - gera uma nova visão de mundo particular: “E, embora o marxismo prático tenha removido impiedosamente todos os sistemas e ilusões idealistas, ele próprio desenvolveu ilusões que não são menos discutíveis e indemonstráveis do que as anteriores” (Freud, 1933/2010, p. 351).
É preciso ponderar neste ponto se as críticas empreendidas por Freud sofrem ou não de um insuficiente contato com a teoria, considerando, também, que as ideias de Marx tanto como sua difusão eram bem recentes. É possível rastrear leituras críticas de Marx que se aproximem dos pontos de Freud, denunciando um certo determinismo histórico similar a construções teleológicas da racionalidade religiosa. Contudo, há também no campo marxista vasta literatura que considera tais críticas como superficiais e insuficientes frente à totalidade da obra marxiana em seus diferentes períodos. Em todo caso, o paralelo entre alguns mecanismos presentes em uma possível leitura religiosa do marxismo fornece uma interessante aproximação entre as possibilidades de interface entre política e religião. Como ressalta Freud:
De modo muito semelhante à religião, o bolchevismo tem de compensar seus fiéis pelos sofrimentos e privações da vida presente com a promessa de um Além melhor, em que todas as necessidades serão satisfeitas. No entanto, esse paraíso deverá ser aqui, estabelecido na Terra e inaugurado num tempo não muito distante. (Freud, 1933/2010, p. 352)
Essa comparação com o marxismo, assim como aquela presente em “Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/2011), referente à religião e ao exército, nos mostra que os mecanismos psíquicos que motivam o envolvimento religioso do sujeito, seja o refúgio de um desamparo atual em uma ilusão ou a vinculação afetiva projetada na figura de um líder e seus iguais, também podem ser úteis na compreensão de outros fenômenos, como o do posicionamento político. Nota-se que, em Freud, no que concerne à religião, o psiquismo surge imbricado com as questões culturais (Drawin & Kyrillos Neto, 2018).
Lacan, ao propor o retorno a Freud, desloca a problemática religiosa para o âmbito epistemológico, da ciência e sua relação com a verdade, do antropológico, e da relação do sujeito com o real (Drawin & Kyrillos Neto, 2018). Os referenciais teóricos apropriados por Lacan possibilitaram a ele uma revisão do estatuto da ciência enquanto verdade. O cientificismo presente nas proposições freudianas é relativizado e passa a ser visto como uma das formas para as distintas possibilidades de construção do saber.
Em “O Seminário Livro 7: A ética na psicanálise” (Lacan, 1959-1960/1988), já encontramos a crença religiosa localizada como um campo de saber. Lacan recusa a afirmação da religião como devaneio, asseverando a maneira como o pensamento teológico é organizado de forma racional, ainda que nas teologias mais sutis. Nesse aspecto, adotando uma postura crítica em relação à ciência tomada como verdade e observando os indícios da insuficiência do discurso científico em uma série de questões referentes a seu tempo, o autor atesta a força contida no discurso religioso, sendo ele, diferente dos outros, uma “fonte quase inesgotável” de sentido pronta para explicar o que surja e se apresente da ordem do insuportável (Lacan, 1974/2005, 1959-1960/1988). Lacan, inclusive, pontua como um dos fundamentos do discurso religioso sua capacidade de fornecer sentido, em especial para aquilo que outros discursos, como o científico, se revelam insuficientes:
Desde o começo tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. [...] A religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona. (Lacan, 1974/2005, pp. 65-66)
Além de propor uma construção de sentido que valora os objetos naturais e a realidade, a religião se encarrega de oferecer uma possibilidade de amparo e de significado para os encontros com aquilo que é radicalmente desprovido de sentido, as imprevisibilidades, e o que insiste em não funcionar na sociedade; em outras palavras, para os encontros com o real. Nessa perspectiva, frente à angústia da morte, e a toda angústia inassimilável em outras construções de sentido discursivas, a religião surge como possibilidade de amparo (Lacan, 1974/2005).
Todavia, ao mesmo tempo, a religião significa o mundo. Ela significa o próprio sujeito na medida em que é parte da constituição de sua subjetividade e o posiciona em determinado lugar dentro de sua relação com seu contexto social. Seu discurso, mesmo que não o pretenda, é um discurso que ancora o sujeito ao que Lacan chama de Nome-do-Pai (Lacan, 1974/2005). Trata-se de posicionar o sujeito em um campo preexistente de leis, regras, possibilidades de ser e de fazer. Assim, as religiões fundamentam-se em uma lei, em cujo nome seus afiliados unificam práticas sociais e se orientam sob um mesmo modelo homogeneizante.
Um dos pontos nodais no qual Lacan (1969-1970/1992) situa o discurso religioso é o de causa final. O indivíduo religioso delega a Deus a tarefa da causa impedindo o seu acesso à verdade. O saber da religião remete tanto às questões fundamentais quanto aos acontecimentos previstos para um juízo acerca do fim do mundo, organizando-se como uma doutrina para o final dos tempos, de modo que a religião seja capaz de subtrair o real em meio a elaborações teológicas que ocultem a falta, oferecendo uma construção de saber totalizante.
Nesse aspecto, Lacan (1969-1970/1992) traça um paralelo entre o discurso religioso e o discurso político, ambos compartilhando a estrutura do discurso do mestre e operando segundo uma lógica totalizante em seu fim:
Essa noção de totalidade é imanente ao político como tal. Essa noção é sempre usada na pregação dos partidos políticos para transmitir a ideia de satisfação e completude, ideia essa a que devemos nos opor, pois se perde a direção - isso faz a manutenção do discurso do senhor. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 29)
Podemos depreender das elaborações de Lacan, portanto, aspectos dos discursos religioso e político que se refletem mutuamente, compartilhando uma mesma estrutura discursiva. Ambos são capazes de significar a realidade, tamponando as lacunas existentes com uma totalidade provedora de alívio frente ao mal-estar, ao mesmo tempo em que orienta as práticas e relações sociais estabelecidas para com o outro, fundamentando-se enquanto causa final. É o que parece, também, quando relemos sob essa perspectiva a aproximação feita por Freud entre marxismo e religião.
Tomando em conta tais considerações, podemos refletir sobre o fato de que certas interpretações da palavra sagrada conduzam a uma aproximação e um diálogo com determinadas visões políticas de mundo. É o que parece quando se observa a ascensão da teologia da libertação na América Latina, doutrina e movimento social da igreja católica influenciado pelos estudos e práticas marxistas. Também parece ser o caso, porém em uma configuração bastante distinta, da teologia da prosperidade. Consideramos pertinente a análise do movimento citado devido à aproximação de algumas de suas características com certos paradigmas seculares a serem explorados em breve neste artigo. Antes, porém, faz-se relevante uma elucidação teórica sobre o papel da ideologia em meio ao tema explorado.
Ideologia na Religião?
No intuito de elaborarmos não somente a semelhança entre o discurso religioso e o político, mas sim seus pontos de contato e entrecruzamento, torna-se essencial a exposição do conceito de ideologia. Partiremos da definição e do trabalho teórico de Louis Althusser, que em sua obra “Ideologia e aparelhos ideológicos do estado” (Althusser, 1996) dedica-se à construção de uma teoria da ideologia. Esse pensador assume, explicitamente, a influência da psicanálise em sua teoria ao utilizar conceitos como inconsciente e sujeito. Althusser descreve sistemas e estruturas que interpelam o sujeito e o engendram, deixando-o descentrado, desprovido do caráter elucidativo da consciência, mas cujas obscuridades são precisamente as inverídicas evidências da consciência.
O autor propõe um sistema composto de três teses para sua definição conceitual. A primeira é “A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (Althusser, 1996, p. 126). Essa tese procura romper com a ideia disseminada de que a ideologia corresponderia a uma “falsa consciência”. Para o filósofo, o que é representado na ideologia não se trata das condições da realidade em si, mas das relações imaginárias que os indivíduos mantêm com as condições reais de existência: “É esta relação que está no centro de toda representação ideológica, e, portanto, imaginária do mundo real. É nesta relação que está a ‘causa’ que deve dar conta da deformação imaginária da representação ideológica do mundo real” (Althusser, 1996, p. 127). A segunda tese, “A ideologia tem uma existência material” (Althusser, 1996 p. 128), afirma a existência de instituições que atuam como aparelhos ideológicos do estado (AIE), não somente na instituição enquanto presença física, mas também nas práticas individuais reproduzidas pelas mesmas. A ideologia, então, passa a ser compreendida no terreno da prática social:
[...] as práticas sociais e as ideias que os homens fazem delas estão estreitamente relacionadas. Pode dizer-se que não há prática sem ideologia e que qualquer prática, incluindo a científica, se realiza através de uma ideologia. Em todas as práticas sociais (quer pertençam ao domínio da produção econômica, ao da ciência, ao da arte, ao do direito, ao da moral ou ao da política), os homens que atuam estão submetidos às ideologias correspondentes, independentemente da sua vontade e mais ou menos com uma total ignorância do assunto, (Althusser, 1996, p. 130)
A terceira tese, “A Ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeito” (Althusser, 1996, p. 131), caracteriza a função ideológica enquanto constituidora de sujeitos. A imposição de ideias como evidências no processo de construção de uma “verdade indubitável” se faz presente no papel da ideologia na medida em que interpela e participa da formação dos indivíduos. O autor afirma que a ideologia é utilizada para a conservação e reprodução das condições de produção, tanto materiais quanto ideológicas, no nosso caso, do sistema capitalista.
Entre os AIE citados por ele, encontram-se as instituições religiosas. Assim como para Freud e Lacan, também para Althusser a religião estabelece uma visão de mundo, um processo de valoração da realidade, capaz de atuar no sujeito e participar da constituição de sua subjetividade, ancorando-o em uma verdade que se apresenta como legítima e indubitável. O que o autor ressalta é a existência de um relacionamento, por vezes de subordinação, que perpassa as diversas instituições sociais em suas ideologias. Para que um sistema social mantenha sua estrutura enquanto tal é necessário reproduzir não só as condições materiais como também o arranjo imaginário que rege as relações culturalmente difundidas. Nesse sentido, os princípios religiosos e educacionais, entre outros, também carregam em si o ideal de um tipo específico de sociedade. Isso permite a diferentes instituições compartilharem aspectos ideológicos em comum, buscando garantir a reprodução de ambas.
Como aponta Pêcheux (1996), retomando os estudos de Althusser, os discursos não têm seu sentido constituído em si mesmos. Eles se referenciam uns aos outros, produzindo uma formação discursiva entre conteúdos ideologicamente semelhantes. Nessa ótica, a formação discursiva pode caracterizar o lugar de onde o sujeito fala. Em outras palavras, sob quais ideias, valores e discursos o sujeito é constituído e tem sua mediação específica com o mundo. Aqui, temos um campo em que elementos de uma prática ou teoria política podem se referenciar à mesma formação discursiva de certo princípio ou ideia de determinada religião, facilitando um posicionamento subjetivo para o sujeito já interpelado pela ideologia de uma das duas.
Tal articulação entre os discursos em uma sociedade secularizada apresenta-se de maneira menos direta se comparada aos tempos de aliança política entre igreja e Estado. A fim de compreendermos melhor tal movimento, assim como algumas de suas consequências para a conjuntura contemporânea, faremos uma breve exposição desse processo no contexto social brasileiro e sua instituição estatal.
Brasil: A Secularização na Interface Religião e Política
O processo de secularização não se dá de maneira homogênea. Como exposto, o movimento secular se define como o recrudescimento da presença religiosa nas demais instituições da sociedade. Entretanto, as características específicas de cada cultura reagem gerando resultados variáveis nos distintos campos sociais em que a secularização atua. No Brasil, retomando brevemente alguns aspectos históricos, a fim de acompanhar o movimento secular em questão, a relação entre a coroa portuguesa e a igreja católica foi determinante para a consolidação de uma aliança predominante entre um discurso religioso e a prática política durante todo o período colono-imperial (Souza, 2009).
Um ano após a passagem para o Brasil república, temos a primeira declaração de laicidade do Estado com o Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890. Contudo, de acordo com Mariano (2011), os pensadores católicos se opuseram veemente à orientação laica do Estado, permanecendo presentes direta e indiretamente no espaço governamental. A influência hegemônica do catolicismo se fez presente no texto constitucional de 1934 por meio das seguintes concessões estabelecidas no documento: a) o casamento religioso passava a ter validade civil e o divórcio foi proibido; b) foi facultado nas escolas públicas o ensino religioso confessional durante o período de aulas; e c) ao Estado foi permitido o financiamento de escolas, hospitais e quaisquer atividades da Igreja Católica sob a forma de interesse coletivo.
Temos, também, como exemplo, o fato de que, em 1890, práticas relacionadas ao espiritismo foram proibidas no Brasil, e os efeitos práticos desse artigo se estenderam até a década de 1960, mesmo com as alterações do Código Penal de 1940, vigente até hoje (Gomes, 2013). Nesse sentido, só a partir do processo de redemocratização no Brasil e da promulgação da Constituição de 1988, também conhecida como constituição cidadã, a semântica da liberdade religiosa passa a situar-se dentro da lógica de um Estado democrático de direito (Mariano, 2011).
Há de se levar em consideração a diferença entre um Estado laico e um Estado ateu. Mais do que a recusa do controle religioso sobre a vida pública, o que a laicidade implica, necessariamente, é o reconhecimento do pluralismo religioso, a possibilidade de o indivíduo viver sem religião e a neutralidade do Estado, que não privilegia nenhuma crença, religião ou instituição religiosa. A laicidade não exclui, portanto, as religiões e suas manifestações públicas, nem o ensino religioso, muito menos deve interferir nas convicções pessoais daqueles que optam por não professar por nenhuma delas. Ao mesmo tempo, garante aos cidadãos que nenhuma religião, crença ou igreja poderá cercear os direitos do Estado ou apropriar-se dele para seus interesses (Oro, 2011).
Ainda assim, com as dificuldades e deficiências do Estado brasileiro, uma série de serviços e instituições ou são insuficientes ou não são disponibilizadas em seu alcance a grande parte da população, fazendo com que, muitas vezes, instituições religiosas acabem ocupando esses papéis (Mariano, 2011). Desse modo, a presença institucional da religião em diversos campos sociais da realidade brasileira ainda se dá de forma significante, como no estabelecimento de clínicas terapêuticas, ou de reabilitação penal, vinculadas a religiões cristãs, ambas previstas em constituição e que, em projetos políticos recentes, ocupam o polo central no qual se direcionam as escassas políticas sociais.
Porém, no âmbito do aparelho estatal legislativo e executivo, vemos uma mudança radical das coordenadas que orientam o relacionamento da política com a religião. Antes influenciada pelo catolicismo no âmbito institucional, passando pelo recrudescimento dessa influência de forma mais pungente por meio da Constituição de 1988, temos um envolvimento agora personificado e individualizado na figura de parlamentares que fazem de seu projeto político um projeto religioso. Tal movimento encontra seu maior representante na chamada Bancada Evangélica.
Apesar de o primeiro parlamentar representante de uma igreja pentecostal ter sido eleito em 1960, foi a partir da década 1980 que se iniciou um movimento mais consolidado de envolvimento com a política, com pastores eleitos ligados à Assembleia de Deus (Suruagy, 2011). Já em 1990, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), iniciou sua entrada no aparelho estatal por meio de um projeto político estruturado. Com uma racionalizada distribuição geográfica da seleção dos candidatos e das alianças partidárias, a IURD consolidou cada vez mais seu espaço no Congresso. Outras igrejas do movimento neopentecostal seguiram seu modelo. Como um dos resultados desse processo, em 2003, registraram-se no Congresso como a Frente Parlamentar Evangélica, renomeada recentemente como Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (Suruagy, 2011). Em 2019, com 195 deputados e oito senadores, constituiu-se como uma das bancadas de maior poder político nas Casas Legislativas. Paralelamente, a IURD inaugurou uma aliança pungente, ainda que não transparente, com o Partido Republicano Brasileiro (PRB), atualmente designado como Republicanos (REP), partido cujo atual presidente é o bispo licenciado pela IURD, Marcos Pereira.
Nesse ponto, em que pese o movimento caracterizado pela secularização na sociedade brasileira, podemos questionar até que ponto os paradigmas seculares, de fato, operam uma separação nítida e objetiva entre os vetores político-governamentais e os movimentos e organizações religiosas. No âmbito institucional, o distanciamento entre as duas instâncias parece bem definido. Contudo, propomos que, paralelas a tal distanciamento, as novas formas de envolvimento religioso em suas configurações seculares podem ter derivado, também, novos caminhos rumo ao envolvimento político.
Do Uso Político da Secularização: A Teologia da Prosperidade
Presenciamos um recrudescimento da influência institucional da religião nos espaços estatais característico do processo secular. Ao mesmo tempo, vemos um ascendente movimento de parlamentares e políticos que representam especificamente ideias e projetos religiosos. É possível que, em certo sentido, não apenas o primeiro, mas ambos os processos descritos estejam relacionados com a secularização, assim como o ponto de deslocamento entre um e outro.
Podemos observar que, na conjuntura atual de relações estabelecidas entre política e religião no espaço brasileiro, o fenômeno mais pungente, de radical ruptura com moldes clássicos da prática religioso-política, se dá justamente entre as igrejas que expressam em sua teologia paradigmas considerados fundamentais no movimento secular. Destacamos aqui dois desses paradigmas.
O primeiro se refere ao enfraquecimento das mediações institucionais na religião em detrimento de uma relação mais próxima entre o sujeito e sua crença. O segundo é o fato de que, a partir da reforma protestante, a prioridade do “Outro mundo” e a busca pela redenção do pecado a partir de meios transcendentais abrem espaço para a confirmação de uma salvação predestinada a partir de ações e sinais intramundanos (Weber, 1904/2004). Em outras palavras, temos um deslocamento da prioridade da instituição para o sujeito, e do ascético para o mundano.
As igrejas neopentecostais, majoritariamente constituintes da Bancada Evangélica, expressam uma radical valorização do intramundano por meio da teologia da prosperidade. A salvação, dentro dessa teologia, não mais aguarda um plano metafísico nem está embasada em uma predestinação celestial, mas na predestinação imediata. O poder da fé revela as soluções para todo tipo de adversidades; soluções no próprio mundo. Paralelamente, o contato com o conteúdo religioso torna-se desburocratizado. A fidelidade institucional continua tendo sua importância, porém com um caráter voltado à personalização das figuras hierárquicas, como pastores e bispos. Trata-se mais dos sujeitos envolvidos, tanto dos pregadores quanto dos crentes, do que de uma tradição ritualística em si (Duarte & Carvalho, 2005).
Se antes tínhamos como predominante um caráter institucional na relação entre religião e política, representado pela igreja católica, a mudança do paradigma cristão do “Outro mundo” para este mundo, e da instituição-tradição para o contato imediato e individual, trouxe um possível reflexo dos aspectos seculares no advento da figura do “parlamentar religioso”. O anseio por tal figura, assim como o próprio “ressurgimento do religioso” no contemporâneo, pode revelar outro ponto importante na problemática tratada, e que também está relacionado à secularização.
Marramao (1995) descreve como um dos fundamentos seculares a racionalização do mundo. Vemos uma substituição dos valores que sustentavam lógicas clássicas de organização social por valores que sustentam uma nova ordem de preceitos seculares. Depois da economia, os mundos da política e da cultura passam também a serem racionalizados. Desse modo, inaugura-se uma fratura com qualquer forma orgânico-comunitária do social e sua reorganização como mundo administrado, aquele onde não existe espaço para a política senão compreendida como burocracia, que se tornou o modo formal mais racional do exercício do poder.
No entanto, a partir do momento em que os valores abraçados para que se “desencantasse” o mundo, como a racionalização, o saber científico e a lógica liberal, se mostram insuficientes na construção de uma sociedade que dê conta dos problemas sociais e do mal-estar (Birman, 2003), vemos um retorno a tentativas de organizações comunitárias e relações orgânicas; consequentemente, um possível “Reencantamento do mundo”. Nessa perspectiva, podemos considerar que a secularização trouxe, também, um respiro à religião na forma de novas configurações que se adequem à organização social contemporânea. Incluímos, aqui, a teologia da prosperidade. E é possível que as modificações ocorridas inaugurem um novo relacionamento com o campo político.
Talvez o que Weber (1904/2004) muito assertivamente propôs como uma aliança ética e cultural dos ideais protestantes e capitalistas, a partir dos desdobramentos da secularização, tenha se estendido ao campo da prática estatal. Há de se considerar, nesse sentido, a afinidade entre os valores da lógica de nosso sistema neoliberal com a teologia expressa pelas igrejas neopentecostais nessa afiliação. Mais do que isso, das promessas de tal teologia frente ao que falha na atual organização social contemporânea. Nas palavras de Birman:
A religiosidade que permeia a sociedade brasileira desde sempre assume na atualidade uma dimensão gigantesca nas classes populares, nas quais as formas messiânicas de salvação buscadas ardentemente pelas massas diante do quadro catastrófico do gozo perverso usufruído pelas elites à custa dos corpos das classes populares. Portanto, se o Estado e a sociedade brasileira não reconhecem os direitos básicos de cidadania das classes populares, estas vão buscar com volúpia nos deuses a possibilidade de serem reconhecidas como sujeitos. (Birman, 2003, p. 286)
Como aponta Oliveira (2012), a teologia da prosperidade soube capturar os pontos nos quais o neoliberalismo falha e gera todo o seu mal-estar, ora justificando teologicamente, ora garantindo soluções terrenas. O sucesso profissional, a propriedade privada e a família são valores defendidos e adquiridos através do poder da fé no mundo. Paralelamente, é comum eleger um inimigo, na forma do Diabo, muito frequentemente associado por essas igrejas às religiões de matrizes africanas, para localizar a fonte de tudo aquilo que falha, que faz sofrer e que ataca constantemente os irmãos de fé, impossibilitando seu bem-estar no mundo (mundo que, na realidade objetiva, não se mostra nem um pouco funcional em sua estrutura).
Existindo uma saturação da política burocratizada que é insuficiente na resolução das questões sociais, combinada a uma lógica religiosa que busca satisfazer, dar respostas e prometer soluções a esses problemas específicos de maneira intramundana, parece coerente a eleição de candidatos que representem esse apelo, não estando mais eles amarrados à sua função exclusivamente clerical no mundo secularizado.
Considerações Finais: A Subjetividade Secular e a Religião-Política
Nosso contemporâneo nega, insistentemente, a ingênua previsão cientificista de uma divisão cada vez mais clara entre a religião e os demais campos sociais. Em certo sentido, a secularização pode ter sido responsável pelo revigoramento da religião em suas novas modalidades. Tampouco seu relacionamento com a política teve limitações e distanciamentos nítidos. Não obstante, os mesmos paradigmas seculares responsáveis pelo “novo respiro” da religião podem ter modificado a forma como tais “ares” sopram o campo político. Analisando a questão pela perspectiva da psicanálise, não causa espanto a perseverança com a qual os dois temas se relacionam continuamente.
Retomando a concepção lacaniana da religião como um discurso que busca tamponar o que não funciona e amparar o que causa angústia e foge do controle, vemos que novas experiências religiosas e diferentes formas de teologia surgem com os contornos trazidos pelas novas formas de sofrer. As formas de sofrimento características da contemporaneidade, que nos remetem à organização social neoliberal e àquilo de que ela não da conta, ou àquilo que precisa não funcionar para que ela se sustente, podem encontrar uma alternativa de resposta ou alívio no saber religioso. Esse real, que não cessa de nos afetar e resiste à significação, é o que permite a Lacan (1974/2005) dizer que a religião no fim triunfará. Os saberes produzidos, para Lacan, nunca conseguirão alcançar a totalidade, como também nunca cessarão por completo nosso sofrimento. E onde o que não funciona ou o que não se conhece gera angústia, surge a religião como amparo.
E tal qual se modificam as experiências do sujeito com a religião segundo as novas modalidades de sofrer, também se configura em novos formatos sua interface com a política. Os discursos de ambos os campos se encontram em uma estrutura semelhante: a da visão de mundo. Como exposto por Pêcheux (1996), os discursos não se sustentam em si mesmos, mas se determinam pela referência uns aos outros, criando uma afinidade ideológica que se articula em espaços distintos sua reprodução. Em nosso contexto secular, talvez seja possível pensar que essa afinidade ideológica, por não mais se restringir ao campo ascético ou institucional, mas sim ao mundano e individual, mais ao campo da religiosidade do que da religião, tem uma de suas traduções na figura do deputado-pastor, do presidente-de-partidobispo, em um “desejado” ministro-evangélico e, talvez, em uma nova forma de religiãopolítica.