O artigo fundamenta-se no relato de experiência acadêmica de três estudantes de graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir do Projeto de “Atendimento Psicológico a alunos beneficiários dos programas assistenciais da Divisão de Apoio ao Estudante (DAE) da UFRJ”.
O Projeto de Atendimento Psicológico encontra-se alocado na Divisão de Saúde do Estudante (DISAE) da UFRJ e já existia previamente. Contudo, requereu mais parcerias, pois era crescente a procura dos estudantes da UFRJ por esse serviço. Desta forma, a partir da necessidade de atender a demanda por auxílio psicológico dos discentes, a Universidade abriu um edital de seleção para estagiários de psicologia, então, a parceria entre o Instituto de Psicologia (IP) da UFRJ e a DISAE foi consolidada. O serviço oferecido pela DISAE vai para além do atendimento psicológico entendendo ainda a complexidade e as nuances envolvendo os conceitos saúde/doença, logo:
A Divisão de Saúde do Estudante (DISAE) é responsável por planejar, acompanhar, gerenciar e promover ações em saúde do estudante. A estratégia prioritária é a promoção de saúde, ou seja, intervir nos condicionantes que possam interferir em determinada situação do ambiente universitário. Entende-se que o conceito de saúde é ampliado, para além da dicotomia saúde/doença focada no modelo biomédico assistencial. As ações da DISAE visam potencializar os recursos disponíveis na universidade para o cuidado ser compartilhado com os atores envolvidos no percurso universitário (UFRJ, 2020a).
Os estudantes que procuram o serviço são os beneficiados pelos programas assistenciais da Divisão de Apoio ao Estudante (DAE) atendendo a exigência do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), criado em 2008. O PNAES tem como principal objetivo “contribuir para a melhoria do desempenho acadêmico, a partir de medidas que buscam combater situações de repetência e evasão” (Decreto n. 7.234, 2010). O Programa visa à permanência com qualidade dos estudantes de baixa renda e suas ações devem ser desenvolvidas nas seguintes áreas: moradia estudantil, alimentação, transporte, saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche e apoio pedagógico (Decreto n. 7.234, 2010).
O Projeto de Atendimento Psicológico inserido na DISAE abarcava algumas equipes que tinham um número determinado de estagiários. Limitar-nos-emos a apresentar o trabalho realizado especificamente por nossa equipe, composta por duas estagiárias, um estagiário e uma supervisora, docente do IP. O objetivo desse artigo será destacar as principais questões de sofrimento psíquico relatadas pelos estudantes atendidos e elucidar a importância da escuta clínica no campo acadêmico, fundamentando e articulando estas narrativas com conceitos psicanalíticos, elencados por serem estes os norteadores da escuta clínica e condução dos atendimentos realizados. Conjuntamente a este objetivo serão feitas algumas interrelações concernentes ao investimento psíquico transferido para universidade, adolescência tardia e o mérito da escuta clínica no campo acadêmico.
Método
O atendimento psicológico realizado na própria sede da DISAE, localizada na Prefeitura Universitária da UFRJ, foi fundamentado no método psicanalítico baseado nos psicanalistas Sigmund Freud e Jacques Lacan. Consistiu em sessões de escuta dos pacientes - os estudantes da UFRJ - embasadas no arcabouço teórico-técnico dos conceitos fundamentais da psicanálise freudiana e retomada por Lacan, a saber: inconsciente, associação-livre, transferência e neutralidade da posição do analista. As sessões eram individuais e semanais com duração de aproximadamente 50 minutos. O tempo de 50 minutos funcionava como uma referência, fundamentado no conceito de Tempo Lógico de Lacan, pois este tempo cronológico podia se expandir ou mesmo reduzir, de acordo com o(s) conteúdo(s) trazido(s) pelos estudantes para a sessão terapêutica. Lacan (1998), em uma primeira elaboração realizada em seu escrito “O Tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, difere o tempo cronológico que atende a uma marcação fixa dos relógios, do tempo lógico, o tempo subjetivo em uma lógica referida ao inconsciente.
A pesquisa qualitativa levou em consideração queixas, conflitos, sintomas e relatos de sofrimentos recorrentes que surgiram nos atendimentos dos três estagiários e objeto de vasta apreciação em supervisão clínica junto da professora supervisora do Instituto de psicologia. Também são salientados aspectos clínicos que se sobressaíram no decorrer destes atendimentos, tais como crises agudas de sintomas depressivos, atos impulsivos de “Comportamento autopunitivo” e “Ideação suicida”. Destaca-se que “a pesquisa qualitativa em psicologia clínica é sempre uma pesquisa-ação, pois conforme a ação vai sendo construída, ela é também investigada e interpretada, e com isso, o próprio processo vai sendo modificada” (Batista Pinto, 2004). Para Maanen (1979) a pesquisa qualitativa trata de reduzir a distância entre indicador e indicado, entre teoria e dados, entre contexto e ação.
Participantes
A porta de entrada ao serviço de saúde para os estudantes da assistência estudantil é a DISAE que acolhe o estudante, identifica suas necessidades e, em seguida, o encaminha para a rede de atendimento das Unidades do Complexo Hospitalar de Saúde da UFRJ das quais são parceiras, e no caso de atendimento psicológico os estudantes eram encaminhados para as equipes especializadas na própria sede da DISAE. Nossa equipe atendeu a um total de 24 alunos, sendo oito da cidade do Rio de Janeiro-RJ, quatro de municípios do interior do RJ e doze oriundos de outros Estados (5 SP, 5 MG, 1 CE e 1 PA), ou seja, 50% dos estudantes de fora do estado do RJ, sendo 13 homens (54,16%) e 11 mulheres (45,83%). Os atendimentos ocorreram durante o período de agosto 2016 a abril de 2018 (quando todos os estagiários da equipe se formaram).
Cuidados Éticos
O projeto que deu origem à pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAEE nº: 12594919.1.0000.5582).
Relato da Experiência
Grande parte desses alunos chegou ao serviço com queixas de dificuldades acadêmicas e emocionais. Essas duas variáveis se inter-relacionam uma vez que algumas questões emocionais interferem no desempenho acadêmico tanto quanto o baixo rendimento acadêmico afeta a estabilidade emocional desses estudantes. As principais queixas e sintomas ditos patológicos encontrados foram: crises de ansiedade em 79,16% (19) dos casos - caracterizadas com dificuldade de respiração (falta de ar), baixa concentração, nervosismo, evitação de situações e medo de perder o controle; sintomas de depressão em 75%(18) dos casos - desses 33,33%(8) com ideação suicida e 16,66%(4) com tentativa prévia; problemas referentes ao sono em 12,5%(3) dos casos; prática de autoflagelamento em 8,33%(2); e problemas com álcool e drogas ilícitas (maconha e crack) em 8,33%(2).
Estamos utilizando o termo “sintomas ditos patológicos” em sintonia com o conceito Freudiano de sintoma, que trouxe para o campo da psicopatologia uma nova perspectiva deste conceito, uma vez que, segundo ele, o sintoma se produz como saída defensiva a partir de um conflito (Freud, 1925-26/2006a). Esta teorização de Freud aproximou, ou mesmo reverteu, o conceito de normal e patológico. Com isso, fazemos referência à sintomatologia apresentada pelos estudantes que decorre da dinâmica subjacente de seus conteúdos psíquicos, sendo, portanto, relevante evocar estes conteúdos e não simplesmente focar e patologizar os sintomas relatados.
Alguns pacientes atendidos atribuem, a princípio, essas patologias às questões acadêmicas, porém, ao longo das sessões percebemos esses sintomas ditos patológicos e associados à vida na Universidade encobridores de outras questões anteriores às suas entradas na academia, ou seja, a outras questões pessoais e sociais pouco ou não elaboradas até a entrada na Universidade. Por outro lado, temos outros pacientes que logo de imediato já trazem suas histórias pessoais como algo a ser trabalhado e a Universidade como cenário de fundo, ou seja, mais secundário.
Ambas as situações, a partir do observado pela equipe, demonstram que a Universidade corporifica um lugar de grande investimento e significação para estes alunos. Grande parte de suas narrativas expressa um conteúdo fortemente idealizado em relação à vinda para o Rio de Janeiro, no caso daqueles de fora do estado do RJ, e, em especial, para a UFRJ. Percebemos que a universidade é objeto de grande investimento e significação por parte dos estudantes atendidos, sendo este objeto de transferência de questões subjetivas. O estudante atua então na Universidade, a partir dos seus afetos, suas significações particulares, as quais irão modular sua interpretação e valoração de forma singular, bem como as atividades acadêmicas que serão desenvolvidas. Essa dinâmica de afetos pode se expressar, sintomaticamente, como queixas de insônia, falta ou excesso de apetite, irritabilidade, apatia, dependência química, autoflagelamento e as ideias ou tentativas de suicídio associadas a um quadro depressivo grave.
Para nos debruçarmos com mais clareza sobre a dinâmica psíquica observada nos atendimentos como um todo, especificaremos dois pontos principais: O primeiro concerne ao investimento subjetivo colocado na instituição UFRJ e o segundo, ao manejo mais desafiador para nós, psicoterapeutas em formação - a questão do suicídio.
Discussão
Ao passarem pelo processo de seleção para uma Universidade pública, no caso a UFRJ, mesmo morando em outra cidade, ou em outro estado, os estudantes buscam a excelência acadêmica, o prestígio associado à instituição. A UFRJ tem sua presença constante nas dez primeiras posições de diversos rankings acadêmicos na América Latina, além de ser a primeira universidade pública criada pelo Governo Federal em 1920 (UFRJ, 2020b). Em agosto de 2020, um estudo divulgado pelo Academic Ranking of World Universities 2020 (ARWU), considerado um dos precursores dos rankings universitários no mundo, afirma que a UFRJ é a melhor universidade federal do país 1.
Há todo um investimento psíquico atrelado ao nome e sobrenome “UFRJ”, associada a lugar de grande potência, portanto, capaz de funcionar como um divisor de águas que os alunos procuram como o lugar que proporcione uma mudança de vida. O ingresso na universidade, para muitos significa a saída de casa pela primeira vez para morarem sozinhos. Atrelado a isso, alunos em situação de vulnerabilidade social esperam conseguir auxílio financeiro por meio das bolsas e/ou uma vaga na Residência Estudantil, uma vez que a instituição possui uma residência destinada aos alunos de outros estados (prioritariamente). Logo, espera-se da comunidade acadêmica um acolhimento para além da demanda do conhecimento formal conteudista, pragmático e objetivo. Espera-se também que a instituição se coloque no lugar de garantir a condição financeira básica para a permanência no curso superior. Está deslocado para a instituição UFRJ, portanto, um lugar que transcende uma formação acadêmica em si, uma vez que esta corporifica a realização de um sonho almejado, por parte dos estudantes, assim como representa também a viabilidade financeira para tornar possível a realização deste.
Decorrente desse lugar que a Universidade é investida, demandas são endereçadas à comunidade acadêmica, como testemunhamos em nossa escuta nos atendimentos psicológicos fazendo da comunidade acadêmica uma ponte, um intermédio, que possibilite uma travessia que está envolta em questões subjetivas. O percurso da formação universitária caracteriza-se então, independentemente da idade do estudante, como um hiato entre a vida no núcleo familiar e a vida adulta, mais autônoma financeira e psiquicamente. Esse espaço intermediário do desenvolvimento implica novas demandas para o sujeito, o mesmo é convocado a lidar com seus projetos individuais, impasses e escolhas, o que é característico do período da adolescência. A universidade assume, dessa forma, o valor simbólico de provedora e de sustentação na dinâmica psíquica dos alunos.
A adolescência, na atualidade, rompe com conceitos exclusivamente relacionados aos acontecimentos cronológicos e orgânicos, passando a ser compreendida como uma construção psíquica e social. Esse processo de adolescer desvela tanto as referências das figuras parentais, quanto a urgência de uma inscrição em um novo grupo social, para que esta passagem possa se fazer. É imperativo que haja um caminho do cenário familiar ao cenário social.
Dolto (2004) refere-se ao que denomina de um “projeto de valor simbólico” para os jovens na atualidade como equivalente aos ritos de passagem em épocas passadas, que marcavam de modo simbólico a transição de uma vida infantil para adulta. Esse projeto, apontado por Dolto (2004), iria permitir ancorar um ideal de vida adulta, por ser capaz de proporcionar um sentido simbólico, ao longo de um período de mudanças, quando prevalece o estado de impotência e dependência econômica.
Ressalta-se aqui, portanto, a adolescência não como um período do desenvolvimento marcado pela maturação dos órgãos sexuais, logo, o ingresso na universidade, apesar de os alunos deterem biologicamente a maioridade, acaba por promover um adiamento imposto por uma sociedade que não reconhece neste jovem o status de adulto, uma vez que seu papel ativo na rede social é suspenso. Ou seja, há um intervalo de tempo entre o momento da maturidade biológica e a chancela da cultura para que este jovem assuma seu lugar no mundo adulto. Assim temos rastos importantes das questões de adolescência, que são transportados para este momento, em que a autonomia, inclusive financeira, característica da vida adulta é adiada, enquanto se transita por uma etapa de preparação que na atualidade, demanda cada vez mais preparo (especializações, mestrado, doutorado, cursos outros) para que o formando se insira no mercado de trabalho.
Partindo do pressuposto que “vida adulta” é socialmente atrelada à independência financeira, há esse alongamento da etapa de tutela, na qual é necessário que uma instância assuma o lugar de suporte para sustentar a posição de ser estudante universitário, ou seja, obrigatoriamente “se é cuidado para poder estudar”, o que coloca o estudante em uma espécie de limbo tipicamente adolescente entre “não ser mais criança” a ainda “não ser adulto”. A Universidade aparece então como possível substituta da família no exercício dessa tutela.
Há, porém, um conflito nessa relação da qual a UFRJ está intensamente investida. A universidade é a casa do saber científico, afinada com seu método de produção do conhecimento onde o objeto é destacado e subtraído das suas correlações, a fim de reduzi-lo à objetividade. Como ilustra Santos (1988):
Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. (Santos, 1988, pp. 50)
A universidade tradicionalmente se apoia fortemente nestes paradigmas. 2 Nesse sentido, nos trâmites universitários, há um esvaziamento da possibilidade de incluir o aluno como um sujeito com seus predicados e, referido apenas parcialmente em sua integralidade, como aquele recebedor de ensinamentos em uma instituição de excelência. Esta operação relega a subjetividade, uma vez que dentro de uma formação universitária não parece haver espaço para as singularidades e especificidades envolvendo a complexa teia que envolve o ser humano, com suas dores, ambivalências e afetos (Fernandes & Costa-Moura, 2009).
Os estudantes anunciam essa falha e demandam atenção para o que lhe é singular por não encontrar na vivência acadêmica um espaço para alocar a sua história e suas particularidades, enquanto sua identidade e formação deverão se processar e consolidar. Esse descompasso, algumas vezes dramático, se expressa em sintomas alocando em seus próprios corpos essa dinâmica simbólica. O exposto até então, aponta as inúmeras questões subjetivas atravessadas em uma formação de ensino superior, logo o elucidamento das várias problemáticas e manifestações sintomáticas passa obrigatoriamente pela abertura de espaços para que os entrecruzamentos destes alunos possam ser elaborados e até mesmo inscritos.
A escuta clínica abre o campo para a expressão de um sujeito e assim, os alunos se haverem com seus atravessamentos subjetivos como possibilidade de fazer frente, enquanto alunos, a um percurso acadêmico, que representa a transição e a preparação para a inserção futura no espaço profissional e do ponto de vista psíquico, na vida adulta. Percebeu-se que esta escuta clínica pelos estagiários apresentou-se mobilizadora, incorrendo na abertura de espaço para que as questões psíquicas encobertas pudessem ser postas em evidência, com produção de efeitos na vida pessoal e acadêmica daqueles discentes. Especialmente, a partir dos pressupostos da psicanálise, esboçados em Freud e Lacan, é possível evidenciar o depositário psíquico de pertencimento à universidade e esta relação com a dinâmica psíquica, estabelecida nas histórias pregressas de cada um.
Estamos denominando depositário psíquico todo conjunto de questões psíquicas dos estudantes, porém transportadas e atualizadas para o mundo e as relações acadêmicas. Para Freud (1924/1986), a narrativa que o sujeito faz de sua realidade externa está submetida à dinâmica de suas questões psíquicas internas. Ou seja, toda construção subjetiva subjacente impõe uma transposição imperativa de como será apreendida a realidade externa e a relação do sujeito com o campo do Outro. A realidade percebida, portanto, não é equivalente a uma realidade exterior, uma vez que o sujeito evita uma relação com a realidade psíquica dolorosa ou recalcada e rompe com partes desta. Esta realidade psíquica acaba transbordando e sendo depositada em objetos externos, no caso a UFRJ e toda rede de relações envolvendo a academia, emprestando-lhe assim uma significação particular da realidade externa.
Entretanto, enquanto no campo das relações cotidianas humanas essa concepção ocasiona os maiores mal-entendidos, uma vez que a leitura de realidade obedece a uma lente particular do campo psíquico, para a escuta no campo analítico, desvela a posição do sujeito, na medida em que revela o ponto de realidade que ele adere ou subverte. A narrativa da realidade por parte do analisando, traduz-se na dimensão da verdade para o campo da dinâmica psíquica do sujeito.
O atendimento psicológico possibilita não apenas a permanência desse aluno na Universidade pura e simplesmente, mas mais do que tudo, traduz-se no investimento na saúde mental durante o percurso acadêmico. A aposta é que esses estudantes possam se implicar com suas questões subjetivas a fim de construírem instrumentos para lidarem com estas questões durante sua estadia na vida acadêmica e em suas vidas pós-Universidade.
De todos os sintomas patológicos apresentados, os que nos demandaram maior atenção foram os pacientes que apresentaram ideias ou tentativas suicidas com passagem ao ato, na intenção de retirar a própria vida. Torna-se então crucial, para o desenvolvimento deste artigo, evidenciar a diferença que Lacan elaborou entre acting out e passagem ao ato, sendo o acting out o ato de uma demanda ao outro na cena que o sujeito produz; e, na passagem ao ato o deslocamento em que ele se precipita para fora da cena produzida.
Segundo Lacan (2005a), no surgimento da angústia, a passagem ao ato e o acting out são os possíveis recursos para lidar com a intensidade com que esta eclode sob o sujeito. Entretanto, a passagem ao ato se caracteriza por um lançar-se para fora da cena, enquanto no acting out possui um apelo, um endereçamento dentro da atuação da cena. No caso da transferência em análise, o acting out comporta um direcionamento a alguém a quem o sujeito supõe deter o saber: o analista. Enquanto na passagem ao ato, não existe mais um apelo a alguém que o decifre, acolha, repudie, ou qualquer outra forma de receber tal demanda. Há simplesmente um ato de saída de cena por parte do sujeito. Desde modo, o conceito de que todo acting out possui em si mesmo uma orientação para o Outro deve ser destacada.
Quando não se abre uma via de elaboração pela representação simbólica, pode ter-se em sequência uma passagem ao ato, com toda a dramaticidade e nocividade que este ato comporta. Lacan (2005b), no seminário XV, afirma que a passagem ao ato “bem-sucedida” 3 seria o suicídio, uma vez que, de fato o sujeito consegue uma saída de cena plena. Todas as outras são tentativas de ruptura com essa cena, porém, uma vez que são malsucedidas, o sujeito é restabelecido à cena, à sua história e ficção, podendo, portanto, ter seu ato interpretado. Ou seja, instala-se a possibilidade da inscrição de uma narrativa simbólica que sustente o sujeito fora de um circuito de passagem ao ato. Trata-se dessa possibilidade, portanto, que investimos enquanto analistas, ao nos posicionarmos no lugar de escutar estes estudantes.
Diz-nos Lacan, metaforizando o lugar do analista na escuta de pacientes na iminência do ato: “Em referenciais clínicos, observem a que ponto segurar a mão para não os deixar cair é absolutamente essencial, num certo tipo de relações do sujeito” (Lacan, 2005a, p.136). Diante do exposto, foi e é um desafio para nós nos depararmos com casos que nos convocam a trabalhar a questão do sofrimento humano e o quanto esse sofrimento pode ser levado ao ato como uma tentativa de acabar com a permanente dor de existir. Considerando o conceito de passagem ao ato como um ato em que o “próprio sujeito cai”, foi desafiador sustentar caminhos enquanto analistas, no sentido da metáfora citada por Lacan “segurar a mão para não os deixar cair”.
Nossa aposta, então, é na fala, o ato de dizer como suporte para que este paciente (estudante) elabore uma a uma cada carga de afetos que o mobiliza, promovendo uma simbolização capaz de reduzir seu sofrimento e possivelmente a passagem ao ato. Reconhecemos dessa forma, a importância de sustentarmos essa escuta, - mobilizadora para o paciente, por tocar em pontos fundamentais, mas também mobilizadora para o psicoterapeuta em formação - a fim de dar um lugar para a elaboração das intensidades que os impulsionam a atos avizinhados de morte.
Além disso, deparamo-nos com mais um desafio: O fato de que nós, quem ocupávamos o lugar de psicoterapeutas éramos igualmente estudantes. Ou seja, éramos estudantes em formação atendendo estudantes que traziam às sessões questões acadêmicas e pessoais semelhantes às vivenciadas por nós (estagiários psicoterapeutas). Inevitavelmente, nos interrogamos sobre a impossibilidade de operar na necessária neutralidade clínica do psicoterapeuta (e também da ciência), pois percebemo-nos igualmente implicados e identificados com a UFRJ. Não estamos apartados dessa dinâmica institucional, também estamos inseridos com questões comuns aos estudantes e com essa identificação.
Outro ponto pertinente observado, a partir das sessões e na discussão dos casos nas supervisões, eram as queixas usuais dos estudantes de não se sentirem pertencentes ao espaço universitário. A Universidade é a casa do saber científico, onde “o conhecimento científico tem uma posição diferenciada em relação a outras formas de conhecimento, os cientistas estabelecem suas afirmações de conhecimento por meio de um programa de experimentação, verificação e revisão por pares, para que haja um consenso que se torne sua base de confiabilidade” (Osborne, 1996, p.16), ou seja, o conhecimento não é tido como verdade absoluta, o conhecimento é temporário e mutável. No entanto, muitas queixas referentes às dificuldades acadêmicas são dirigidas ao fato dos conhecimentos tidos como informais trazidos pelos estudantes terem pouca relevância ou nenhuma dentro da UFRJ ou qualquer Universidade ou no sistema educacional como um todo.
Dessa forma, entendemos as queixas como uma forma de produzir críticas acerca do modelo de ensino e elaboração do próprio conhecimento científico nos espaços universitários. A dificuldade em articular os diversos saberes prejudica a integração de diferentes áreas e de conhecimentos ditos “informais”. Tal proposição vai de encontro com a importância ressaltada por Freire (2003) de os modelos educacionais incluírem as “leituras de mundo” e os extramuros acadêmicos como forma de tornar o aprendizado mais significativo para o aluno, possibilitando uma formação não apenas visando inserção no mercado profissional, mas também com potencial de realizar transformações nas esferas social e individual.
Os conhecimentos ditos informais abarcam as experiências de vida e modos de ser e estar no mundo, o que traduz o contexto psíquico que o estudante traz consigo, tal contexto é o que, muitas vezes, sustenta o sentido de sua participação na sociedade. Logo, a crítica aqui exposta é em relação à “visão positivista do homem [...] mecanicista e atomicista, que rejeita a concepção do homem como um ser social” (Soares, 2006, p. 487). Em outras palavras, há necessidade de maior integração do conhecimento científico com os aspectos culturais que o estudante traz até o ingresso na Universidade, isto é, o mesmo deve ser concebido não como um indivíduo “a-histórico”, mas sim como uma pessoa singular, concreta e histórica.
Para Silva (2016), Husserl analisou a extensão das ciências positivistas e a crise que alienava o ser humano da sua origem, ou seja, da sua humanidade. Apontou que a ciência positivista, na sociedade moderna, fez o distanciamento do subjetivo no homem e reduziu o conhecimento, o saber, à mera esfera do técnico-científico. A razão é supervalorizada para o saber científico em detrimento da emoção e da singularidade do sujeito. Entretanto, o colapso evidenciado nas muitas expressões sintomáticas apresentadas no corpo discente, nos aponta para a necessidade de outra forma de funcionamento no espaço da formação acadêmica. Um espaço que permita a transmissão do conhecimento incluindo o indivíduo singular, ou seja, o estudante e suas particularidades, provenientes de lugares diversos e portadores de várias histórias, em um movimento plástico que permita que este conhecimento seja efeito dessa rede de diversidade.
Uma formação comprometida com a competência dos futuros profissionais seria melhor construída agregando, acolhendo e considerando outras variáveis e atributos do sujeito, a fim de que estes possam, singularmente, desenvolver suas potencialidades nesta casa, considerada referência do saber científico. Seguindo essa perspectiva, é surpreendente a atualidade do artigo que Freud (2006b) dedica ao suicídio, “Contribuições para uma discussão acerca do suicídio”. No mesmo encontramos, de forma explícita, a relevância da implicação da instituição educacional nas questões subjetivas de seus alunos, assim como a constatação do fracasso desta implicação. Freud (2006b) afirma que as instituições devem fomentar nos estudantes o desejo de viver, proporcionando condições de desenvolvimento, com apoio e amparo, num período da vida em que os vínculos com a família se afrouxam. Porém, as instituições falham em proporcionar um ambiente substituto para a família e em ensejar o interesse pela vida do mundo externo. Essa falência do lugar que as instituições educacionais deveriam ocupar frente a seus alunos, parece estar denunciada na multiplicação do sofrimento mental e produção sintomática dentro das universidades.
Conclusão
As muitas manifestações denominadas sob vários nomes, tais como depressão, autoflagelamento, crises de ansiedades, dentre outras, que originaram demandas de atendimento psicológico de alunos da UFRJ, e o posterior exercício de escuta destes alunos, nos fizeram testemunhar a necessidade de abrir e/ou ampliar um lugar de acolhimento dentro do espaço acadêmico, diferenciado do tradicional trâmite e interlocução de produção de conhecimento. Um lugar que se ocupe da parte subjetiva negligenciada, que dará sustentação e significação a este “resto”, ato de rebeldia e resistência do sujeito, posto em evidência nas manifestações ditas patológicas. Desta forma, o trabalho realizado nos mostrou ainda a necessidade de se desenvolver e pesquisar o tema.
Com a escuta clínica evidenciou-se redução das queixas e sintomas iniciais trazidos pelos estudantes nas sessões iniciais, as quais tanto nos traziam preocupações (vide o risco de passagem ao ato). Foi possível verificar novas implicações subjetivas frente às dificuldades acadêmicas e emocionais como planejamento para realização de estágios, matérias e conclusão do curso no que tange assuntos relacionados à UFRJ, e, mesmo que ainda houvesse dificuldades, os estudantes vislumbravam novas possibilidades de enfrentamento, diferentes da evasão do curso e do suicídio. Isso também pode ser observado nas áreas de trabalho, da família, e social (amizades e relacionamentos amorosos) com relatos de melhora nas relações conflituosas e potencializadoras de sofrimento, o que nos indicou melhora na qualidade de vida dos estudantes acompanhados por nossa equipe.
Pontuamos também toda nossa implicação subjetiva própria ao ocuparmos o lugar de psicoterapeutas, uma vez que também éramos estudantes da UFRJ. Entendemos também como uma forma de, representando o IP-UFRJ, tentar dar conta em ato de nossa preocupação com a comunidade discente, após tantos casos de adoecimento psicológico. Possivelmente seja também a nossa forma singular de nos articularmos ao espaço acadêmico. Por fim, pensamos ser representativo fazer parte de um projeto que coloca a UFRJ em outro lugar, um lugar de acolhimento integral do estudante e não só de formação profissional estrita, nos proporcionou uma vivência de integração com a instituição, com os estudantes e conosco mesmos. Oportunizou-nos também a ocupação de um lugar de resistência dentro da instituição, o que nos convoca à pesquisa e construção formal do conhecimento obtido, como legado tanto da escuta clínica efetuada, como da instituição universitária que nos formou.