Conforme dados da International Agency for the Prevention of Blindness (IAPB) (2020), pelo menos 2,2 bilhões de pessoas em todo o mundo têm algum grau de deficiência visual. Apenas no Brasil, existem mais de 6,5 milhões de pessoas com esse problema, sendo 582 mil pessoas cegas e 6 milhões de pessoas com baixa visão (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2012). Conforme mencionado, as pessoas com deficiência visual se dividem em dois grupos: pessoas cegas - que não possuem resíduo visual ou aquele que possuem não é funcional - e pessoas com baixa visão - que possuem resíduo visual funcional (Amiralian, 2004). A deficiência visual pode se manifestar em duas condições: congênita, que provém do nascimento ou dos três primeiros anos de vida, e adquirida, que se instaura após esse período (Amaral, 2019).
De acordo com Moises e Stockmann (2020), as formas como as pessoas com deficiência foram representadas, ao longo da história, modificaram-se conforme os valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos de cada época e cultura: marginalizadas e abandonadas a própria sorte, nas sociedades antigas; assistidas caritativamente ou punidas por seus pecados, durante a dominação da igreja na Idade Média; consideradas improdutivas, a partir da revolução industrial e do avanço do capitalismo; e vistas como portadoras de uma enfermidade que necessita ser curada, conforme se avançou no estudo da medicina.
Atualmente, os Estudos sobre Deficiência propõem a abordagem da temática a partir de um modelo social, o qual considera a deficiência como uma experiência de desigualdade frente a uma sociedade pouco sensível à diversidade humana (Diniz, 2007). Esse modelo surge como contraponto ao modelo biomédico dos séculos XIX e XX, que compreendia as pessoas com deficiência como portadoras de uma lesão física, que necessitavam apenas de tratamentos e programas de reabilitação que pudessem minimizar ou remover seus danos corporais (Bisol, Pegorini, & Valentini, 2017). O modelo social, portanto, entende que, assim como no sexismo ou no racismo, as pessoas com deficiência sofrem uma opressão corponormativa e propõe que esses sujeitos, para além de possuírem uma lesão e precisarem de reabilitação e cuidados médicos, necessitam de condições sociais adequadas que lhes permitam viver de acordo com suas possibilidades (Diniz, 2007).
Se o século XXI trouxe consigo uma nova concepção de deficiência, impulsionada pelas discussões do modelo social, não significa que todas as concepções anteriores tenham deixado de habitar o pensamento de pessoas com e sem deficiência. Pelo contrário, estudos recentes demonstram a proeminência de um capacitismo estrutural no trato com esses indivíduos. O capacitismo, conforme Mello (2016), consiste na ideia de que as pessoas com deficiência, em função de possuírem uma inadequação ao padrão corponormativo vigente, são menos aptas ou capazes de gerenciar os mais diversos aspectos de suas próprias vidas. Dessa premissa básica, profundamente arraigada no modelo biomédico, decorrem todas as atitudes preconceituosas para com as pessoas com deficiência e a importância de sua discussão consiste, precisamente, em poder nomear e visibilizar a discriminação por elas sofrida (Mello, 2016).
Dessa forma, para nos auxiliar a compreender o que pensam as pessoas com deficiência visual sobre sua deficiência, utilizaremos a Teoria das Representações Sociais (TRS), elaborada por Serge Moscovici. As representações sociais (RS) são um conjunto de conceitos, afirmações e explicações compartilhadas no senso comum, que buscam fornecer às pessoas uma compreensão daquilo que lhes é desconhecido. Ou seja, quando falamos de representações sociais, falamos de uma sociedade pensante que não apenas manipula informações ou age desta ou daquela maneira, mas que se esforça para compreender o mundo a sua volta (Moscovici, 1981). Desse modo, as representações sociais estão sempre presentes na vida das pessoas e podem ser facilmente observáveis, uma vez que estão presentes nos discursos, nas mensagens e imagens midiáticas, em condutas cristalizadas, oferecendo-lhes uma forma de definir e interpretar diferentes aspectos da realidade (Jodelet, 2001).
Os processos que organizam e geram uma representação social como um objeto compartilhado por um determinado grupo são a ancoragem e a objetivação. A ancoragem é um processo que possibilita que algo desconhecido seja incorporado ao sistema cognitivo dos indivíduos e associado a algo que eles já conhecem, em que ocorre a comparação com uma categoria anteriormente conhecida (Moscovici, 1981). A objetivação, por sua vez, ocorre com a passagem do tempo, em que as ideias que antes eram estranhas ou inconcebíveis socialmente tornam-se aceitáveis, costumeiras, a partir das imagens e metáforas que os grupos elaboram sobre a realidade (Vala, 1997).
Neste trabalho, fazemos uma articulação entre a Teoria das Representações Sociais e a Teoria da Identidade Social. De acordo com Tajfel e Turner (1979), a identidade social está relacionada aos aspectos que compõem a autoimagem das pessoas, porém diretamente derivados das categorias e grupos sociais aos quais elas se consideram pertencentes. Desse modo, uma vez que boa parte da vida social ocorre direta ou indiretamente por meio de relações entre grupos, são inevitáveis movimentos de comparação social e muito comum a ocorrência de conflitos intergrupais. Isso porque, ainda conforme Tajfel e Turner (1979), os indivíduos buscam manter um autoconceito positivo de si mesmos e dos seus grupos de pertença.
Nesse sentido, os autores destacam que grupos desprestigiados socialmente podem internalizar uma avaliação de si mesmos como inferiores, em comparação a grupos de maior prestígio, de modo a descredibilizar suas próprias características (Tajfel & Turner, 1979).
Dessa forma, as crenças que possuem movem o comportamento social dos indivíduos em direção a um extremo intergrupal, frequentemente refletindo uma forte estratificação social ou um intenso conflito de interesses intergrupal, ou ambos, cujas consequências, no fim, aparecerão na forma de movimentos sociais que buscam criar mudanças sociais ou preservar o status quo (Tajfel & Turner, 1979). Ou seja, os grupos aos quais os indivíduos acreditam pertencer lhes fornecem informações sobre quem são, cada pertença grupal corresponde a uma dimensão da sua identidade social e lhes prescreve atributos pessoais, atitudes e normas comportamentais e, por fim, o princípio motivacional para assegurar a identidade positiva do grupo de pertença levará a comparações intergrupais (Vala, 1997).
A partir do exposto, entendemos que essas duas teorias em conjunto nos oferecem uma maior compreensão das relações entre grupos, bem como de seus conflitos e seu comportamento em relação às vítimas de exclusão social, uma vez que consideram tanto os valores sociais que os grupos têm sobre si e sobre os outros quanto a formação de estereótipos mútuos (Vala, 1997). O que nos motiva especificamente na busca por compreender as RS sobre a deficiência visual e a forma como elas se tornam identitárias nos grupos que as possuem é pensar que é possível que todas as concepções de deficiência citadas anteriormente coexistam, dificultando que as pessoas com deficiência - consequentemente as com deficiência visual - possam desenvolver a autonomia necessária para serem protagonistas da própria história. Isso porque essas pessoas ainda são tidas ou como frágeis e incapazes, ou como corajosas e cheias de força de vontade, de forma que possuir uma deficiência traz forte carga emocional tanto para esses indivíduos quanto para aqueles com quem convivem.
Estudos como o de Azevedo e Santos (2006), o qual buscou compreender as representações sociais do cuidado para cuidadores de pessoas com deficiência física causada por lesão medular traumática (LMT) são exemplos dessa percepção. A pesquisa supracitada encontrou como núcleo central das representações um processo de sofrimento constituído pela visão que o cuidador tem da deficiência, pelo papel da religiosidade em sua vida e pela influência da afetividade em suas relações, sofrimento no qual esses cuidadores mergulham ao se depararem com o súbito processo de cuidar (Azevedo & Santos, 2006). Já em pesquisa sobre as representações sociais da deficiência construídas por professores, Oliveira (2004) aponta que 56,6% dos seus entrevistados demonstraram entender a deficiência como um aspecto puramente individual, ou seja, consideram que a pessoa possui alguma falha ou limite que leva a um mau funcionamento geral ou específico, desviando-se do padrão social.
A partir desses estudos, inferimos que as crenças dos grupos de pertença, uma vez internalizadas e naturalizadas, podem desenhar as possibilidades ou impossibilidades de participação das pessoas com deficiência visual na vida social. Embora pesquisas que enfoquem as representações sociais das próprias pessoas com deficiência sobre sua condição sejam bem menos numerosas, estudos como o de Valença, Santos, Lima, Santana e Reis (2017), realizado com pessoas com deficiência física em processo de envelhecimento, apontam que suas representações estão relacionadas a sentimentos de tristeza, alteração da autoimagem, necessidade de cuidados, busca de se adaptar e superar as dificuldades e, no caso daqueles que estão em reabilitação, esperança de se recuperarem e reconquistarem sua independência. Nesse sentido, em razão da pertinência social destacada, o presente estudo é parte de uma pesquisa que teve como objetivo compreender a relação entre as representações sociais da deficiência visual e a identidade social para pessoas cegas e com baixa visão.
Método
Este estudo tem caráter quali-quantitativo, uma vez que faz uso de um software com uma base estatística quantitativa para compreender qualitativamente as crenças e relações de pessoas com deficiência visual. Além disso, trata-se de um estudo descritivo e exploratório, que é aquele que, conforme Gil (2008), busca descrever as características de uma população ou fenômeno e estabelecer relações entre variáveis, além de possuir caráter de ineditismo.
Participantes
Participaram da pesquisa 40 pessoas, 20 autodeclaradas cegas e 20 autodeclaradas com baixa visão. Os critérios de inclusão na pesquisa foram: ter acima de 18 anos, residir no estado de Santa Catarina (por critério de acessibilidade) e se declarar pessoa cega ou com baixa visão. Já os critérios de exclusão foram: apresentar deficiências múltiplas e não ter domínio tecnológico para chamadas de voz online (as entrevistas foram realizadas dessa forma).
Instrumentos
Para a realização da pesquisa, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, com perguntas que buscaram contemplar os seguintes tópicos: definição de pessoa cega/com baixa visão; percepção de um grupo em relação ao outro; definição do pensamento social sobre cegueira/baixa visão; e percepção do que outras pessoas (familiares, amigos, professores) pensam sobre esses grupos.
Procedimento de Coleta de Dados
Para compor os participantes do estudo foi utilizada a técnica metodológica Bola de Neve, que é aquela na qual os sujeitos iniciais da pesquisa indicam, a partir de sua rede de contatos, outros possíveis participantes, permitindo ao pesquisador alcançar o quantitativo desejado mesmo em populações de difícil acesso (Dewes, 2013). Ou seja, os primeiros participantes foram acionados a partir de contatos da pesquisadora que correspondiam aos critérios de inclusão na pesquisa e, posteriormente, solicitamos a eles que indicassem outros possíveis participantes, até que se pudesse alcançar o número desejado.
Para a realização da entrevista, foi agendado um dia e horário com cada participante. Cada entrevista teve, em média, 30 minutos de duração e ocorreu via chamada de voz do WhatsApp. O áudio da entrevista foi gravado com um gravador externo e posteriormente transcrito para a análise dos dados.
Procedimentos Éticos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC, sob o número CAAE n. 3.718.459, e respeita todos os preceitos éticos que regem as pesquisas com seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), tendo sido indispensável a assinatura do mesmo para a participação na pesquisa.
Análise de Dados
As entrevistas foram transcritas e dispostas em um único corpus de análise, o qual foi submetido a uma classificação hierárquica descendente por meio do software IRaMuTeQ 0.2. A classificação hierárquica descendente objetiva obter classes de Segmentos de Texto (ST) que, ao mesmo tempo, apresentam vocabulário semelhante entre si e vocabulário diferente dos ST das outras classes. Os ST são repartidos em função da frequência das formas reduzidas, cruzando segmentos de textos e palavras (em repetidos testes do tipo X 2 (Camargo & Justo, 2013). Além disso, Camargo e Justo (2013) destacam que a análise qualitativa das palavras leva em consideração os seus segmentos de textos, que são o seu ambiente, e propiciam a contextualização do vocabulário típico de cada classe. Desse modo, a nomeação das classes ocorreu a partir de uma análise qualitativa dos textos separados pelo IRaMuTeQ 0.2.
Resultados e Discussão
Embora alguns participantes cegos tenham nascido com baixa visão e alguns com baixa visão tenham sofrido alterações do seu resíduo visual durante a vida, todos os sujeitos da pesquisa declararam ter o mínimo de 2 anos de convívio com a sua condição visual atual.
Em relação ao perfil dos participantes, do total de 40 pessoas, 20 (50%) se declararam como homens e 20 (50%) como mulheres. A idade dos indivíduos variou entre 21 e 60 anos, com média de 33,05 anos de idade (DP=9,93). Sobre a sua situação de coabitação, 19 participantes (47,5%) afirmaram residir com os pais ou outros familiares, 16 (40%) disseram residir com o(a) companheiro(a) e/ou filhos(as) e 5 (12,5%) declararam morar sozinhos(as) ou com amigos(as).
Em relação à escolaridade, 1 participante (2,5%) declarou não ter frequentado a escola, 2 (5%) possuem ensino fundamental (completo ou incompleto), 10 (25%) possuem ensino médio (completo ou incompleto), 15 (37,5%) possuem ensino superior (completo ou incompleto) e 12 (30%) possuem pós-graduação (especialização ou mestrado) concluída ou em andamento. Verificamos, nesse caso, que 67,5% do total dos participantes desta pesquisa alcançaram o ensino superior ou a pós-graduação, o que apresenta discrepância em relação à realidade das pessoas com deficiência em geral no Sul do Brasil, cujo percentual de indivíduos que concluíram o ensino superior é de apenas 6,8% (IBGE, 2012). Já em relação à ocupação profissional, 21 participantes (52,5%) declararam possuir um emprego formal, sendo que, desses, 12 trabalham no setor privado e 9 são servidores públicos; outros 11 (27,5%) disseram estar desempregados ou serem beneficiários da Previdência Social (Benefício de Prestação Continuada - BPC ou Aposentadoria por Invalidez); 5 (12,5%) afirmaram ser profissionais autônomos; 2 (5%) se declararam estagiários; e 1 (2,5%) afirmou atuar como pesquisador.
A partir da realização da classificação hierárquica descendente, o software reconheceu 3216 ST, sendo que 2950 deles (91.73%) foram considerados na análise. Os ST foram compostos por 6211 palavras, as quais ocorreram 109215 vezes, ou seja, em média 17,58 vezes por palavra. A análise qualitativa das palavras levou em consideração os seus ST, os quais propiciaram a contextualização do vocabulário típico de cada classe. Em um primeiro momento, o software dividiu o corpus em dois subcorpora: de um lado a classe 4 e de outro as classes 1, 2 e 3. Em um segundo momento, o segundo subcorpus sofreu outra partição, gerando de um lado a classe 1 e de outro as classes 2 e 3. Por fim, as classes 2 e 3 foram separadas entre si. Na Figura 1 estão as palavras com maior frequência e x2≥3,84.
Na classe 4, denominada “Inclusão/Exclusão na Escola”, contendo 28,88% dos ST, encontram-se palavras como: “professor”, “ensino”, “aluno”, “aula”, “escola” e “escrever”. Essa classe é composta por trechos que fazem referência às iniciativas individuais de alguns professores, principalmente no ensino fundamental e graduação, para a adaptação de materiais e audiodescrição de símbolos e imagens para os alunos. Outros trechos acrescentam a disponibilidade de alguns professores de fazerem prova oral ou fornecê-las em pen drive, destacadas pelos entrevistados também como estratégias de acessibilidade que ocorrem na escola/universidade.
Da forma que são descritas, parece-nos que as ações inclusivas são bastante pontuais, ocorrendo por parte de alguns professores, aqueles que se interessam em promovê-las. Ribeiro (2017) aponta a função do professor no processo de ensino-aprendizagem de estudantes com deficiência visual, destacando que esse deve se organizar com os materiais que sejam necessários para o desenvolvimento dos alunos, propondo atividades que estimulem a sua interação com o ambiente escolar. Para que isso ocorra, no entanto, é necessário que os sistemas de ensino garantam a capacitação não apenas do professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE), mas também do professor do ensino regular (Borges, Silva, & Carvalho, 2018), para que esse possa compreender que seus alunos são plenamente capazes de se desenvolver pessoal e intelectualmente, embora necessitem que lhes sejam asseguradas possibilidades de aprendizagem com metodologias e recursos didáticos que contemplem a especificidade da sua deficiência (Ribeiro, 2017). O trecho a seguir faz referência à percepção que a pessoa com deficiência visual tem dessa situação: “Não gostava, nada em especial, mas vi que os professores, isso principalmente no ensino médio e na faculdade também um ou dois, acontece que eles não queriam se esforçar para me promover a acessibilidade”. (Participante 33, cego, mulher, pós-graduação). Outra entrevistada acrescenta:
Que aí eu vou brigar de acordo com a legislação. Não adianta só bater boca se a legislação vai estar contra mim. Mas ali também, não tinha leis lá na, até o ensino médio tudo bem, foi sofrido, mas aí na universidade não, como eu te falei: se dependesse dos professores eu não estaria aqui. (Participante 03, baixa visão, mulher, pós-graduação).
Percebemos, a partir das falas citadas, que a oferta da acessibilidade na escola é reconhecida pelas pessoas com deficiência visual como um “ato de boa vontade” do professor. Além disso, podemos entrever que à medida que o aluno com deficiência visual avança no seu processo de escolarização, ensino médio ou graduação, suas dificuldades se ampliam, indicando que as discussões sobre a educação inclusiva podem estar ainda muito pautadas na alfabetização e ensino fundamental, havendo um descuido em relação a esse processo à medida que os estudantes alcançam maiores graus de formação. Desse modo, compreendemos haver uma possível ancoragem da representação social da deficiência visual na acessibilidade. Ou seja, parece-nos que, para os entrevistados, possuir uma deficiência visual significa necessitar de acessibilidade. Essa última, no entanto, surge para esses sujeitos como um esforço de adaptação individual ao ambiente escolar, seja da própria pessoa com deficiência visual, seja do seu professor. Esse dado é bastante preocupante, pois entendemos que a responsabilização do indivíduo pela acessibilidade do seu ambiente de aprendizagem, sobretudo ocorrendo durante a infância ou adolescência, pode levá-lo a um baixo rendimento acadêmico, a uma desmotivação e, consequentemente, contribuir para a sua evasão escolar.
A classe 1, denominada “A Pessoa com Deficiência Visual e a Família”, apresenta 29,59% dos ST e está representada por palavras como “mãe”, “pai”, “irmão”, “filho”, “sempre”, “cuidar”, “família”, “coitado”, “tratar”, “criança”, “crescer” e “pena”. Nessa classe os trechos fazem referência ao papel da família na autonomia da pessoa com deficiência visual. Por um lado, há trechos que trazem a família como composta de personagens que mantém uma relação de dependência e codependência da pessoa com deficiência visual por meio da superproteção, oriunda, muitas vezes, dos medos em relação a falta de acessibilidade nos espaços sociais, o que faz com que a independência dessas pessoas, quando ocorre, esteja restrita ao ambiente domiciliar (Barbieri, 2016; Pintanel, Gomes, Xavier, Cezar-Vaz, & Silva, 2016). Conforme vemos em Barbieri (2016), a intenção da família, quase sempre, é auxiliar a criança/adolescente com deficiência visual no seu processo de independência, porém a insegurança e o medo que os familiares sentem por percebê-la como alguém frágil faz com que incorram em atitudes superprotetoras, jamais deixando de se questionarem sobre qual seria o limiar entre proteger e superproteger. Esse cuidado expresso na forma de superproteção, no entanto, faz com que os filhos, já adultos, sintam-se, como na fala do participante a seguir, infantilizados e descredibilizados pela família: “Meu pai acha que eu sou o nenenzinho de sempre. Que eu não sei de nada, que sou, que eu não sei nada”. (Participante 17, baixa visão, homem, pós-graduação).
Por uma outra perspectiva, encontramos trechos que fazem referência à família como mediadora para o processo de autonomia da pessoa com deficiência visual, ou seja, falas que mostram o familiar como alguém que estimula na pessoa a exploração dos mais diversos ambientes. Pintanel et al. (2016) apontam que, ao se depararem com a possibilidade de a deficiência visual dificultar a independência da criança, os familiares podem passar a contribuir com sua estimulação e desenvolvimento, lutando contra a vontade de executarem por ela o que tem capacidade para realizar sozinha. Nesse caso, a pessoa com deficiência visual parece reconhecer o esforço da família em desafiar as expectativas sociais de cuidado, como demonstra o trecho a seguir: “a coitadinha, que não enxerga e não pode fazer as coisas. Por exemplo, teve uma vez que meus pais deram uma bicicleta e todo mundo os xingou até o último”. (Participante 25, baixa visão, mulher, ensino médio).
Percebemos, na fala da participante 25, que a família, ao promover a independência do membro com deficiência visual, fica sujeita a uma série de julgamentos sociais. Corrobora nossos resultados a pesquisa de Pintanel et al. (2016) que, no relato dos familiares, evidencia que a restrição da criança com deficiência visual ao ambiente familiar ocorre por medo do julgamento da sociedade, bem como de membros da própria família, que não compreendem a atitude de querer promover a independência de uma criança cega ou com baixa visão. Desse modo, compreendemos ser de grande importância o tipo de cuidado dispensado às pessoas com deficiência visual no ambiente familiar, sobretudo porque esse cuidado, quando expresso na forma de superproteção, pode favorecer para que o indivíduo, em sua identidade social, represente seu grupo de inserção como um grupo menos capaz ou com menos potencial de ação quando comparado ao grupo de pessoas sem deficiência. Essa percepção do grupo como desprestigiado socialmente, conforme Tajfel e Turner (1979), leva-o a descredibilizar suas características e legitima relações de dependência, dentro e fora da família, como as vivenciadas pelos participantes da pesquisa.
A classe 2, denominada “autoaceitação versos aceitação social”, com 15,69% dos ST, está representada majoritariamente por pessoas cegas. Essa classe traz palavras como: “superar”, “capaz”, “possível”, “limitação”, “potencialidade”, “dificuldade” e “deficiência”. Nessa classe encontramos uma intersecção entre representação social e identidade social, compreendendo que, conforme aponta Jodelet (2001), além de possuírem um objetivo prático, as representações sociais contribuem para construir uma realidade comum a determinados grupos sociais, o que, de acordo com Doise (1985), irá orientar os indivíduos a partir de uma visão de mundo que implicará na sua identidade social. Desse modo, no que se refere à representação social, percebemos, a partir dos trechos selecionados, haver uma possível ancoragem da representação da deficiência visual na representação social de “limitação”. Essa representação, por sua vez, parece sustentar a comparação social entre o grupo de pessoas com e sem deficiência visual, gerando práticas sociais compensatórias que levem as pessoas cegas ou com baixa visão a minimizar a sensação de débito social e dividir pertenças com as pessoas sem deficiência.
Por meio do processo de comparação social, os indivíduos aprendem, integram e avaliam as representações sociais que separam um grupo de outro (Tajfel & Turner, 1979) ou que de alguma forma conferem sentido a uma dimensão da identidade social do próprio grupo (Doise, 1985). Nesse sentido, percebemos que os entrevistados ressaltam a importância de ter um bom desempenho - profissional, acadêmico, social, etc. - para que a deficiência visual enquanto característica não seja notada. De certa forma, é como se, caso o indivíduo se esforçasse o suficiente e conseguisse se mostrar muito bem adaptado, poderia então chegar a um ponto em que suas características desprestigiadas desaparecessem e ele pudesse migrar para esse outro grupo valorizado socialmente (Tajfel & Turner, 1979). O trecho a seguir exemplifica essa discussão: “Percebo que ainda primeiro vai se ver as dificuldades que a pessoa cega vai ter e depois vai se percebendo as potencialidades que essa pessoa tem e, por fim, algumas pessoas acabam até esquecendo que você tem aquela limitação”. (Participante 34, cego, homem, ensino superior). Ou seja, a cegueira, que por vezes surge como bem aceita no próprio grupo de pessoas cegas, necessita ser invisibilizada no contato com pessoas videntes.
Por outro lado, encontramos trechos que destacam a importância da autoaceitação e do reconhecimento das possibilidades e impossibilidades no agir enquanto indivíduo cego. Isto é, esses sujeitos incorporaram a deficiência visual como parte de sua identidade, reconhecendo as impossibilidades visuais no contato com a realidade sem que essas gerem uma desvalorização de si mesmos ou do seu grupo de pertença e sem sucumbir a uma falsa onipotência. O trecho a seguir é um exemplo:
Tem várias formas de a gente criar oportunidades, mas também temos que ser realistas e entender a nossa deficiência, a nossa limitação. Exatamente, entender. Aquela história: o cego pode tudo. Ou: a pessoa com deficiência pode tudo. Não, a gente não pode tudo, a gente pode tudo dentro daquilo que as nossas limitações nos permitem fazer. Então acho que a gente tem que ser cego realista. (Participante 22, cego, homem, ensino superior).
Destacamos a fala do participante 22 como a posição de quem tenta negar tanto o rótulo do “coitadinho” quanto o mito do “super-herói” (exemplo de superação), os dois estereótipos mais comuns associados às pessoas com deficiência (Oliveira, Poffo, & Souza, 2018). Ao fazer isso, resta-lhe a compreensão de que a pessoa com deficiência visual, quando no contato com a realidade, encontrará possibilidades e impossibilidades ao seu fazer cotidiano, as quais, para além da deficiência, são puramente inerentes a condição humana. A linha que separa os dois extremos apresentados, no entanto, é bastante tênue, como podemos perceber no trecho a seguir:
A deficiência visual está no olho, não na cabeça, então a pessoa que consegue compreender esse sentido de que a visão não é o obstáculo para ela seguir a diante e consegue usar a sua intelectualidade dentro da sua integral potencialidade, acho que ela vai adiante. (Participante 32, baixa visão, mulher, pós-graduação).
Trechos como esse, que à primeira vista poderiam nos parecer positivos, na verdade, evidenciam uma percepção da deficiência visual como um aspecto subjetivo que pode ser compensado por habilidades cognitivas. Nesse sentido, retomamos a representação social da deficiência visual enquanto débito social, a qual leva essas pessoas a sentirem a necessidade de se mostrarem produtivas para serem reconhecidas. Conforme Tajfel e Turner (1979), por meio da comparação social os indivíduos podem tanto procurar se aproximar de grupos mais valorizados socialmente quanto atribuir valor ao seu próprio grupo, de modo que entendemos que as pessoas cegas, ao destacarem seus atributos intelectuais, talvez estejam buscando uma forma de valorizar características positivas do seu grupo de pertença de maneira tal que possam minimizar características negativas desse mesmo grupo e diminuir atitudes discriminatórias.
A classe 3, denominada “comparação social”, com 25,83% dos segmentos de texto, é representada majoritariamente por pessoas com baixa visão. Encontram-se nessa classe palavras como “baixa visão”, “cego”, “bengala”, “visão”, “enxergar” e “perder”. Essa classe traz a comparação social entre os grupos de pessoas cegas e com baixa visão, evidenciando-se os conflitos sociais entre os dois grupos, cada um movido por princípios motivacionais que têm por objetivo lhe assegurar uma identidade social positiva (Vala, 1997). Inicialmente, percebemos como a bengala surge como objetivação da representação social da pessoa cega. A bengala seria, portanto, a personificação do sujeito cego, aquilo que define e identifica esse grupo, tanto para si mesmo quanto para os demais. O trecho a seguir é um exemplo de como essas pessoas percebem e lidam com esse estereótipo:
No sentido da bengala, dessas tecnologias. Elas não são instrumentos, antes eu falei instrumentos, mas tecnologias que a gente precisa. Cai a ficha de que eu tenho deficiência visual e que vou precisar sim, eu falo muito da bengala, porque foi o mais difícil para eu aceitar. Assim, que eu tinha vergonha, que todo mundo ia olhar, que todo mundo comentava, então era o mais difícil para eu conseguir entender e aceitar que precisava dela. (Participante 07, cego, mulher, pós-graduação).
Fazemos notar, nesse caso, que o estereótipo da bengala é citado, tanto por pessoas cegas quanto por pessoas com baixa visão, como associado apenas ao grupo de pessoas cegas, não ao grupo de pessoas com deficiência visual em geral. As pessoas com baixa visão, por muito que já se fale no uso da bengala verde como símbolo de identificação desse grupo (Caran, Araújo, & Travieso-Rodríguez, 2019), parecem buscar em si mesmas justificativas para evitar seu uso. Outro aspecto que nos chama a atenção é como as pessoas cegas definem as pessoas com baixa visão como privilegiadas, de certo modo, por terem passabilidade entre as pessoas videntes. Essa passabilidade, que como vimos anteriormente é desejada pelas pessoas cegas, é compreendida, quando essas se referem às pessoas com baixa visão, como dificuldade de aceitação da deficiência visual, assim como expresso na fala da participante 07: “Pessoalmente, acaba até sendo um pouco, não sei se preconceituosa ou mais complicada, porque eu vejo como pessoas que parecem ter dificuldade de aceitar a deficiência visual”. (Participante 07, cego, mulher, pós-graduação).
Desse modo, compreendemos que o saber social acerca da deficiência visual pode ser enquadrado no que Vala (1997) denomina como representações sociais polêmicas, as quais são geradas na ocorrência de conflitos sociais, sendo ancoradas, em grupos antagônicos, a partir da sua identidade social. Ou seja, é possível que, enquanto para os indivíduos cegos as pessoas com baixa visão são representadas como quem não aceita sua deficiência visual, para os indivíduos com baixa visão as pessoas cegas são representadas como quem possui menos dificuldades cotidianas por serem mais facilmente reconhecidas enquanto pessoas com deficiência. O trecho a seguir exemplifica essa percepção: “Acho que, falando sobre os cegos, para a sociedade é mais fácil, porque define: cego é cego, cego não tem visão. Agora, para definir o baixa visão, até para nós é difícil, imagine para a sociedade”. (Participante 12, baixa visão, mulher, ensino superior). Para além dos conflitos sociais, trechos como esse evidenciam que, assim como apontam outros estudos (Alencar & Gasparetto, 2019; Amiralian, 2004), as pessoas com baixa visão não se identificam como pertencentes nem ao grupo de pessoas cegas, nem ao grupo de pessoas videntes, transitando, ora por um, ora por outro, sem saber muito bem quem são. Ou seja, essa ausência de um lugar social para a pessoa com baixa visão pode afetar a identidade social e a coesão desse grupo, de modo que se faz necessário olhar mais atentamente as especificidades da baixa visão no grupo de pessoas com deficiência visual.
Considerações Finais
No que se refere às representações sociais da deficiência visual, percebemos, ao cabo deste trabalho, que ela está ancorada de diversas formas, conforme o contexto investigado: na representação de acessibilidade (ou da falta de), advinda do contato com o ambiente escolar; na representação de dependência, relacionada à superproteção familiar; e na representação de limitação, que parece decorrer do contato com o próprio meio social. Já em relação à objetivação, percebemos que o indivíduo cego é fortemente objetivado por meio da bengala, porém não foi encontrado nenhum elemento de objetivação em relação ao grupo de pessoas com baixa visão. Essas representações demonstraram influenciar de forma bastante contundente a identidade social de ambos os grupos. Os indivíduos cegos parecem possuir uma identidade social consideravelmente mais coesa se comparados aos com baixa visão, os quais parecem não se reconhecerem nem serem reconhecidos enquanto grupo. Ambos os grupos, provavelmente devido à discriminação social, parecem buscar maneiras de invisibilizar a deficiência e se inserir no grupo de pessoas videntes.
Ainda em relação à identidade social, identificamos alguns conflitos intergrupais: enquanto os indivíduos cegos representam as pessoas com baixa visão como quem não aceita a deficiência visual, os indivíduos com baixa visão representam as pessoas cegas como quem tem menos dificuldades cotidianas por serem mais facilmente identificáveis. Esses conflitos merecem alguma atenção, já que podem se apresentar como complicadores à medida que esses grupos precisem se unir para objetivos comuns, uma vez que ambos constituem a categoria de pessoas com deficiência visual que, por sua vez, compõe um grupo ainda maior, o de pessoas com deficiência.
Cabe-nos destacar que a presente pesquisa contou com um recorte de escolaridade, o que não nos permite generalizar os resultados, de modo que recomendamos que novas pesquisas abordem grupos mais heterogêneos e representativos da realidade social desses indivíduos. Além disso, consideramos relevantes estudos que enfoquem a relação das pessoas com deficiência visual na escola e na família, de modo a aprofundar resultados que aqui puderam ser apenas esboçados. Nesse sentido, concluímos reafirmando a importância de intervenções com familiares de pessoas com deficiência visual, a fim de que possam ser acolhidos em suas angústias e potencializados com estratégias de promoção de autonomia aos membros da família cegos ou com baixa visão. Também ressaltamos a necessidade de fortalecimento das políticas públicas relativas à educação inclusiva, de modo que essas realmente subsidiem os professores com metodologias e recursos de tecnologia assistiva, fazendo com que a inclusão escolar seja um processo menos individualizado e mais sistemático. Embora as recomendações sejam muitas e variadas, consideramos cada uma delas com igual importância. Não acreditamos em uma inclusão real que não envolva todas as pessoas, de todos os setores sociais, cada uma a seu modo contribuindo para uma sociedade sem barreiras, em que todas as ações sejam pensadas considerando-se a diversidade humana.