Na conferência da Organização Mundial de Saúde, em 2002, originou-se o primeiro relatório mundial sobre violência e saúde. Foram realizados levantamentos descritivos classificando as diversas formas de violência e afirmando tratar-se de uma questão de saúde pública mundial.
Em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres com o propósito de gerar dados sobre esse fenômeno, padronizar atendimentos especializados e aumentar políticas de prevenção à violência (Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011). A violência sexual engloba 12,2% das mulheres no Brasil, condensada principalmente na faixa etária de 1 a 14 anos, sendo a própria residência o local de maior prevalência dos delitos (Senado Federal, 2012). Ela aparece como um fator de maior predição para restrições existenciais nomeadas pelo DSM como depressão, ansiedade, uso abusivo de substâncias psicoativas e estresse pós-traumático (TEPT), quando comparados às pessoas que não sofreram abuso (Ades, Goddard, Pearson Ayala, & Greene, 2019; Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi, & Lozano, 2002). Quando comparados aos assim chamados “outros tipos de trauma”, a violência sexual torna-se mais associada ao risco de desenvolvimento de TEPT, com sintomas persistentes ao longo de muitos anos, mesmo em tratamento (Ades et al, 2019).
Dodd (2009) afirma que o sentido da violência se articula sempre na experiência de cada um. Dado que as nossas experiências estão atreladas a um sentido, o autor afirma que a violência se impõe como uma interrupção nesse sentido. Portanto, frente a um questionamento sobre a experiência da violência, esse relato tende a ser difícil. Essa interrupção é uma das variáveis que impõem dificuldades para as pessoas que sofreram violência contarem sobre essa experiência.
Desse modo, para a presente pesquisa consideramos esta interrupção de sentidos para ouvir e compreender os relatos das participantes que tiveram o diagnóstico de TEPT decorrente do abuso sexual que sofreram. É importante garantir a acuidade com a violência de gênero para que pesquisadores e profissionais ampliem e aprimorem suas intervenções no cuidado com as mulheres. Essa pesquisa visa rever dispositivos de políticas públicas propondo um cuidado restaurativo, valorizando espaços de fala para mulheres que sofreram violência.
Método
Esse artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado submetida ao Comitê de Ética da UNIFESP - Hospital São Paulo, CAAE n.93284518.0.0000.5505. Os dados foram obtidos do Projeto Temático “Transtorno de estresse pós-traumático e neuroprogressão: trauma e estresse no aumento da carga alostática e aceleração do processo de envelhecimento”/ FAPESP (Processo 2014 12559-5) que estuda, sob vários enfoques, o transtorno de estresse póstraumático (TEPT) em mulheres que sofreram estupro no estado de São Paulo.
O projeto temático selecionou mulheres que foram expostas à violência sexual e desenvolveram TEPT. A seleção destas colaboradoras ocorreu a partir de uma triagem (instrumentos diagnósticos e história pregressa ao diagnóstico) sendo um deles a escala de abuso e negligência durante a infância e adolescência (QUESI). O QUESI é um questionário auto aplicado que mensura diversos tipos de abuso. Visto que o foco seria apanhar dados de quem havia sido reexposta à violência sexual ao longo da vida, a amostra de mulheres para esta pesquisa foi obtida a partir da resposta positiva colhida neste questionário. A escolha das colaboradoras foi realizada intencionalmente, pois levou-se em consideração que ao relatar suas experiências de violência, os sentidos presentes na reexposição ao trauma se desvelariam, proporcionando uma profundidade nas entrevistas e na análise de cada discurso, para maior compreensão da temática abordada (Flick et al., 2007).
O objetivo das entrevistas foi ampliar a compreensão da pesquisadora 1 sobre a experiência repetida do abuso sexual na vida destas mulheres. A presente pesquisa trabalha com diversos pensadores 2 da fenomenologia que fundamentam modos de compreender o ser e a clínica. Focamos na descrição dos fenômenos, que “estão sempre abertos e em processo de transformação histórica e nenhuma interpretação atinge, jamais, uma transparência absoluta de seu horizonte último de possibilidade” (Sá, 2017, p. 17).
Para Heidegger (1927/2015), eu sou o que acontece no meu campo existencial. Essa existência é originariamente indeterminada (leia-se originária como algo que inicia e se mantém). Não há constituição alguma, apenas condições. O filósofo se atém à etimologia da palavra existir (ek-sistere: significa mostrar-se, manifestar-se, ser para fora) ao inferir que: para existir, pressupõe-se uma base, uma morada, que chamará de mundo. Dessa forma, quando uma existência se dá, ela sempre se dá a cada vez como ser-no-mundo, herdando significados, tradições e crenças historicamente construídas. Nesse horizonte histórico, há normatizações, pois o mundo orienta os meus modos de ser, assim como normalizações, uma vez que auxilia o ser a fugir da estranheza de sua indeterminação a partir do que é familiar.
Esse rigor possibilita olharmos efetivamente para os relatos das mulheres, considerando o mundo de cada uma delas como um horizonte histórico. Essa abertura dará o norte para pensar em intervenções de cuidado com esse fenômeno.
Procedimentos
As colaboradoras, após assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram entrevistadas individualmente. Todas as entrevistas e transcrições foram realizadas pela pesquisadora. Um telefone móvel foi utilizado para gravação de áudio e a transcrição da entrevista foi feita em um espaço de tempo de uma a duas semanas para que o relato das voluntárias fosse o mais fidedigno possível.
Definiu-se que uma entrevista aberta seria mais adequada para começar esse processo. Iniciou-se a entrevista com uma pergunta desencadeadora: "Você pode me dizer o que aconteceu na infância e adolescência? Como foi este abuso que você relatou no questionário?"
Os resultados foram compreendidos a partir da fenomenologia-hermenêutica - “uma postura de desapego para a qual nada se encontra a priori supervalorizado nem excluído a partir de uma postulação teórica de fundamentos” (Sá, 2017, p. 35), resgatando o caráter polissêmico do mundo. Com base nos pensamentos de Minayo (2010), a análise dos discursos decorreu de uma leitura exaustiva dos documentos, objetivando um aprofundamento que permita uma interpretação por meio de categorias de sentido: exercício de ultrapassar apenas a descrição. A palavra “sentido” exposta neste trabalho refere-se à maneira que o ser compreende a si e a sua existência. A partir do que foi levantado com as colaboradoras e compreendido por meio da leitura atenta, foram criadas categorias de sentido derivadas das descrições e dos significados atribuídos pelas mulheres às suas experiências.
Resultados e Discussão
As colaboradoras entrevistadas eram residentes de São Paulo, tinham de 22 a 34 anos, em sua maioria negras e possuíam renda total de até 4 salários mínimos. Houve dificuldade de contato com algumas mulheres para a realização do trabalho. Algumas demonstraram disposição em realizar as entrevistas, mesmo que aos fins de semana, porém, por impeditivos de trabalho ou por não terem com quem deixar o(s) filho(s), não conseguiram fazer o deslocamento.
Durante a análise das entrevistas com as colaboradoras, foram desveladas e nomeadas categorias de sentido como: Afeto, Culpa, Mundo familiar, Não dito, Racismo, Profissionais, Hoje e Reexposição ao trauma. A partir delas, uma análise do discurso foi feita.
Categoria 1: Afetos
Segundo Heidegger (1927/2015), a disposição (humor/afinação) é o ato de sintonizarse. Faz parte da condição humana ser afetado pelo mundo. O autor pontua a disposição afetiva como uma característica do ser (modos de ser existencial) na relação com o mundo, revelando como alguém está e ficará. No caso das mulheres que participaram dessa pesquisa, a afinação delas está no temor, estranhamento, tristeza e fragilidade frente ao mundo.
Eu era uma pessoa muito doce. Eu comecei a ter raiva de tudo, comecei a ter raiva de todos, me assustei. ... Eu não estou tendo uma boa relação com o meu filho também... eu não tenho mais vontade de ficar perto dele. ... Eu não tenho coragem de cometer suicídio ... Mas eu também não tenho vontade de viver. (colaboradora 1)
Eu tinha medo, tinha nojo, tinha sabe assim, de você sair na rua e os outros mexer com você? ... É um vazio que você sente, que parece que você está fazendo hora extra. ... É uma dor tão grande, uma vontade de não viver mais. De não existir mais. ... Queria morrer. Não queria mais viver, de jeito nenhum. (colaboradora 2)
Quando eu comecei a ficar mais adolescente eu ficava com vergonha. Não sou mais moça, como que o menino vai me ver? ... É um sentimento que é inexplicável porque parece que aquele ato faz com que o mundo olhe para você, você se sente muito envergonhada. (colaboradora 3)
Cabe aqui elucidar o conceito de adoecimento daseinsanalítico, uma vez que é a partir dele que compreendemos o discurso e a experiência das mulheres. Em palestra proferida nos Seminários de Zollikon, Heidegger (1987/2001) declara que “o não-estar-são, o estar-doente é uma forma privativa do existir ... e que se refere a uma possibilidade do ser e não o mero lógico da afirmação negativa” (p. 74). Ou seja, as colaboradoras adoeceram por ficarem presas naquela possibilidade existencial - de terem sido violentadas - e de por ela se sentirem determinadas, como nesta fala:
Se um homem te olha, parece que... Eu tenho medo. Se ele começa a me olhar, já parece que eu vou encolher. Já começo a prestar atenção no que eu estou mostrando que ele está olhando. ... Aquele dia, acho que ele levou metade da minha vida aquele dia. ... Tentei me matar, tentei me enforcar, tentei desligar o gás, desliguei o gás e fui dormir. Tentei cortar meus pulsos. (colaboradora 4)
Os traços fundamentais (existenciais) dos seres humanos: corpo, tempo, espaço e disposição afetiva foram transformados devido a um acontecimento e, com isso, houve a quebra de uma familiaridade, da estabilidade que o mundo tende a fornecer. O adoecimento aparece quando a pessoa sofre pelo não poder ser e depara-se com a fragilidade de sua vida.
Segundo Coelho (2010), o ser humano, ao viver uma experiência de terror, passa a conviver com “a perda da possibilidade de futuro, visto que se está destituído de sua autonomia. De fato, não sabemos se continuaremos vivos amanhã, mas tentamos, na vida cotidiana, nos ocupar de projetos contando com isso” (p. 121). A mulher que sofreu violência tem sua perspectiva de futuro restringida. Determina-se naquela experiência do passado que se presentifica na medida em que se atualiza no medo. Seu corpo é violado e usado contra si, seu espaço/mundo é instável, inseguro e amedrontador, sua compreensão de mundo torna-se apenas uma. Coloca-se em xeque seu entendimento da vida.
Quando a relação com o mundo fica aprisionada em uma experiência cujo significado passa a ser determinante, temos uma restrição de suas possibilidades existenciais. É isso que costumamos chamar de "adoecimento". No caso da presente pesquisa, percebemos que as mulheres que foram expostas à violência tiveram sua relação com o mundo afetada pela sensação de desamparo, insegurança e ameaças, produzindo essa restrição. Em suas falas, percebemos que a disposição afetiva está calcada no medo, vergonha, na compreensão de que algo ruim acontecerá. Estão invadidas pelo afeto do momento da situação de violência, cuja característica é restringir a abertura de mundo. Segundo Cardinalli (2011), “o aprisionamento não está ligado apenas à situação concreta de violência, mas ao sentido de risco, perigo e ameaça que se abriu no ‘acontecido’” (p. 126).
Também pela análise do discurso pode-se entender que para estas mulheres o suicídio é uma resposta de desespero, uma maneira de aliviar a dor de ter sido destituída de si (Coelho, 2010). Segundo Holzhey-Kunz (2018), ao sentir vergonha, desejamos nos tornar invisíveis, embora este desejo já traga consigo a inviabilidade de sua concretização, tornando a pessoa condenada à visibilidade e à sensação de impotência. O adoecimento, a sensação de impotência e o sofrimento são marcas do estupro na corporeidade. O sofrimento pelo abuso sexual se manifesta como uma tortura: há o uso do seu corpo contra você mesmo. Pensar o suicídio é trazer a possibilidade de sair do uso de seu corpo contra si e, dessa maneira, reaver o próprio poder que antes fora destituído (Coelho, 2010).
Categoria 2: Culpa
A culpa é uma característica inerente ao ser. Segundo Holzhey-Kunz (2018): “Ela consiste, por um lado, em que em geral se vive, ao invés de não viver, e, por outro, em que cada decisão torna inevitavelmente culpado” (p. 131). A pessoa sente-se em débito com ela mesma, pois, dentro de suas escolhas, houve, necessariamente, a renúncia de outra. “Na incômoda sensação da culpa, a falta sugere a quebra de uma integridade” (Pompeia, 2004, p. 107). Apesar de inescapável, a culpa é um movimento em direção ao vir-a-ser, marca um processo de transição na pessoa a fim de encontrar-se. Segundo Pompeia (2004), quando eu vivo uma culpa, sinto que não sou ou não fui quem eu queria ser: no momento do ato sou menor do que gostaria de ser. Houve um distanciamento do que era o desejado e o que foi realizado. Dessa forma, “só pode ser culpado quem tem algum poder” (Pompeia, 2004, p. 105). É a partir das afetações que somos trazidos para a nossa condição humana, uma vez que os afetos nos aproximam da facticidade da existência e, vivendo, nos responsabilizamos pela nossa existência.
Eu achei que eu era realmente culpada por aquilo, porque era como se eu tivesse atrapalhado o casamento da minha mãe. Eu tomava banho de porta aberta, eu me trocava na frente dele, porque eles ficavam pelados na minha frente, então era natural para mim que eu ficasse. (colaboradora 1)
Pelo menos os homens que eu conheci, é: o que você estava fazendo ali? Se não tivesse ido nada disso teria acontecido, né? Eu saí, fui me divertir com as minhas colegas e aconteceu o absurdo. Então eles acham que: ué, foi sair, foi pra balada... tá vendo, por que não ficou na sua casa? (colaboradora 2)
E... alguma coisa me dizia naquela época, que se eu não tivesse saído com aquela roupa que a minha mãe falou que chamava atenção talvez não teria acontecido. Se eu tivesse obedecido ela. Foi desobediência, foi minha culpa. (colaboradora 3)
De algum modo, a culpa é a expressão de algum poder, mesmo que este esteja apenas na significação e não em uma concretude. “Na culpa, há um conflito entre o que eu sonho, desejo ser, e aquilo que pude ser na situação” (Pompeia, 2004, p. 105). Os acontecimentos são sempre vitoriosos, pois nunca teremos acesso prévio às consequências das nossas decisões. O sentido do que virá se revela de maneira surpreendente mediante o acontecimento existencial, mostrando o caráter imprevisível da condição humana, por isso, “toda decisão está carregada com uma possível culpa, cuja extensão ninguém tem como prever” (Holzhey-Kunz, 2018, p. 132).
Categoria 3: Mundo familiar
Fez-se relevante criarmos uma categoria que pudesse contemplar a relação das colaboradoras com a família. Isso porque a nossa cultura orienta o campo de sentido articulado pelo mundo especialmente a partir da família. A existência originariamente indeterminada passa a ter modos de ser cotidianos normatizados, ou seja: onde, como e quando a pessoa nasce, passa a atravessar o seu mundo, pois o ser é colocado diante dos preconceitos sedimentados historicamente.
Ao longo da entrevista, todas as colaboradoras apontaram problemas relativos ao abuso de substâncias psicoativas (principalmente álcool) por membros de sua família e mostraram que, em decorrência deste uso, havia certa exposição delas a situações de maior vulnerabilidade, como vemos nestes trechos:
Meu pai estava muito bêbado e falou para eu levar (o amigo) para ver (uma colméia) e foi deitar! Ele viu que meu pai deitou e foi tirar um cochilo. Nisso ele começou a passar a mão no meu seio, na minha barriga. ... O meu pai e a minha mãe trabalhavam, o pedreiro trabalhava em casa. Eu chegava da escola, fui esquentar comida, ele foi e me catou no colo. (colaboradora 2)
Ele tinha problema com álcool. ... Eu assistia às vezes eles tendo relação e isso pra mim não me incomodava, eu achava normal. Ele me tocava, ele me beijava. (colaboradora 1)
Com o meu pai e com o meu padrasto foram casamentos muito conturbados mesmo, de caso de bebida, de vícios por parte do meu pai e do meu padrasto também. ... Desde novinha, 9 anos de idade eu ia no mercado para ela, ia na padaria. Ela ia trabalhar e eu que ficava com o meu irmão” (colaboradora 3)
As mulheres relataram que, quando crianças, assumiram responsabilidades no cuidado da casa, como receber pessoas ou fazer atividades domésticas. “Minha mãe vivia ... muito trabalhando na roça. A gente também. Quando a gente ficava em casa ele passava a mão na gente”. (colaboradora 4) Este fenômeno é denominado de “parentificação”: quando uma criança tem que assumir papéis reservados a adultos.
Ainda caracterizando o mundo familiar, duas colaboradoras referem-se às mães como responsáveis pelas violências ocorridas: “Eu culpava ela pelo que aconteceu. Eu não queria o amor e carinho dela, porque eu culpava ela. ... a gente se apegou muito ao pai” (colaboradora 4). Nota-se o inconformismo, a mágoa e a raiva por não terem sido protegidas por suas mães do primeiro episódio de violência sexual: “Eu entendi que ela (mãe) é louca, ela tem algum problema, alguma doença pra ter permitido uma coisa dessa... Ela não é normal, não pode ser“ (colaboradora 1).
Uma das voluntárias, apesar de não culpabilizar a mãe pela violência sexual, entende que a relação estabelecida entre elas deixou lacunas afetivas: “Como ela trabalhou demais, ela nunca foi de dar muito amor e carinho pra gente não. Sabe aquela mãe cuidadosa, carinhosa? Ainda mais assim, sempre me senti rejeitada“ (colaboradora 2). Em contrapartida, a única colaboradora que aponta um bom vínculo com a mãe não sentiu-se acolhida por ela como imagina que o seria pelo seu pai:
Mas a pessoa que talvez, pra mulher, seria importante nessa fase, que é o pai, que era a pessoa que você iria abraçar e falar: "Não, ele vai me proteger. Não vai acontecer nada, porque ele está aqui, ninguém vai chegar perto de mim". Foi muito difícil, porque eu não tinha essa figura perto de mim. (colaboradora 3)
Percebe-se no relato das voluntárias que as mães eram as provedoras financeiras dos domicílios, enquanto a figura paterna aparece pouco e com comportamentos descritos como "vícios". Em geral, as colaboradoras são mulheres que, quando crianças, pareciam ficar desassistidas em suas residências. Vale destacar que essas mães descritas aparecem sempre sozinhas, seja na responsabilização de cuidado, seja como culpadas.
Ao pensar na construção da compreensão de referências de mundo de uma criança, há de se considerar que ela possui um repertório menor de vivências e de modos de se comunicar, quando em comparação ao adulto. Cytrynowicz (2018) discorre sobre o cotidiano da criança e a descoberta de seu mundo a partir do dia-a-dia, uma vez que é nesse horizonte do conhecido, do familiar que o cuidado entre a criança e os responsáveis se dá. “Quanto menor a criança, mais a sua expressão e comunicação podem ser alcançadas somente a partir das relações de mais proximidade. ... É na proximidade que a criança pode ser mais bem compreendida e, assim, protegida” (Cytrynowicz, 2018, p. 106). Sendo assim, é de suma importância considerar quem pertencerá a esse ambiente cotidiano para poder, junto à criança, desvelar essas experiências e acolhê-la.
Nota-se a necessidade de expandir o questionamento da parentificação deixando em voga a questão da classe social neste processo. Pais/responsáveis com uma renda baixa não poderiam arcar com babás, escolas de período integral, atividades no contraturno escolar ou até mesmo algum responsável em casa realizando o cuidado dos filhos, resultando em responsabilização das crianças pelos cuidados domésticos. É nesse desvelamento de mundo para a criança que a sua história, compreensão de si e de suas relações vão se constituindo. Nos relatos das mulheres, as crianças do gênero feminino são identificadas como mulheres nas tarefas domésticas e também na erotização de seus corpos.
O relato das mulheres mostra o resultado da construção social de papéis de gênero na sociedade em que vivemos atualmente, onde já existem preconceitos sedimentados nos horizontes significativos de cada ser que, ao nascer em determinado contexto, já é interpelado significativamente por essas proposições cotidianas. Neste sentido, a naturalização do uso de álcool atua como um dispositivo que estimula a desresponsabilização dos homens/pais, fazendo com que as colaboradoras pactuem com a culpabilização de suas mães.
Categoria 4: Não dito
Na etimologia da palavra infância, do latim infans - sendo in a negação de um verbo e fan o significado de falante - o significado de infans (infância) é aquele que ainda não tem fala própria. Dar voz às crianças é assumir o risco de ouvir o que elas têm a dizer.
Às vezes minha mãe perguntava: “Você andou muito de cavalo? Você está com a sua vagina vermelha”. Minha mãe perguntava, porque eu andava muito de cavalo. Mas não machucava, o que machucava era ele. Mas ia falar o que? “É, mãe, andei muito de cavalo”. (colaboradora 4)
A negação de um fato tão grave, como a violência sexual, pelos pais ou pelas mães, leva a deslegitimação da criança: “Contei para a minha mãe e ela não acreditou. ... ela falava pra mim que era uma coisa da minha cabeça” (colaboradora 1). Trata-se de uma negligência extremamente poderosa no sentido de produzir danos graves e duradouros ao seu desenvolvimento. Em um momento de intensa angústia, medo, insegurança e culpa, uma menina, ainda sem compreensão suficiente de mundo para se proteger, precisa de seus pais/responsáveis para esta proteção.
Cytrynowicz (2018) aponta a necessidade de os adultos se responsabilizarem pelas crianças, considerando que eles possuem mais experiência/vivência, podendo antecipar situações, uma vez que a visão de futuro infantil é mais restrita. No caso das colaboradoras, a situação violenta que elas passaram produziu a percepção de outras maneiras de se comportar para se protegerem sozinhas, como vemos no seguinte trecho: “Não contei nada pra minha mãe e pro meu pai, mas eu chegava da escola e não entrava mais pra dentro de casa” (colaboradora 2).
Segundo a autora, para a criança, é essencial “que alguém antecipe o que está para além do seu conhecimento imediato, tanto para reconhecer as suas necessidades e o melhor caminho para satisfazê-las como para encontrar o apoio e encorajamento” (Cytrynowicz, 2018, p. 129). Também é considerada nesta relação adulto-criança a história e compreensão de mundo que o adulto carrega. Portanto, é possível que a tradição de cuidados a partir dos sentidos e significados construídos historicamente naquele determinado horizonte existencial, vire uma sequência de limitações no cuidado passada adiante, como um círculo recorrente. Quando a violência vem de supostas figuras de proteção que não confirmam a própria violência, ocorre uma confusão na leitura dos acontecimentos, que poderá levar a dificuldades no processo do desenvolvimento. Através da deslegitimação da sua vivência e de seu mundo, podem surgir sentimentos da ausência da noção do próprio valor ou de poderem sentir-se reconhecidas. Estas experiências acabam marcando as vidas destas crianças, permanecendo quando se tornam adultas.
Categoria 5: Racismo
No imaginário dessas mulheres, um certo estereótipo masculino estaria ligado à violência contra a mulher. “O homem com uma aparência boa, não tinha a aparência de um homem mau, como a gente fala quando é criança” (colaboradora 3).
As falas e hábitos reproduzidos a partir de um comportamento costumeiro da população levam a crer que o que está intrínseco no discurso das colaboradoras era o preconceito, denotado a partir da compreensão de que policiais, pastores, homens de família ou com “aparência boa” possuiriam um lugar protegido socialmente, já que são isentos de oferecer risco ou perigo. Esta observação levanta uma questão de quais valores estariam por trás das crenças e dos estereótipos.
Cabe aqui um destaque à construção social do homem com uma aparência boa. Alguns autores (Guimarães, 1999; Ribeiro, 2019) citam a história do Brasil, seu período colonialista e da ditadura como marcantes para a construção destes estereótipos. Um dos exemplos é a “Lei da Vadiagem, de 1941, que perseguia quem estivesse na rua sem uma ocupação clara justamente numa época de alta taxa de desemprego entre homens negros” (Ribeiro, 2019, p. 75). Já naquela época o encarceramento de negros sem justificativa convincente prenuncia o que é vivenciado hoje ao vincular a negritude com marginalização.
A autora também menciona o incentivo do Estado brasileiro a imigrantes adquirirem terras enquanto os negros libertos da escravização pela Lei Áurea não obtinham qualquer apoio (Ribeiro, 2019). Esse dado fortalece a compreensão de que a busca por ascensão econômica diz de uma rigidez social que se torna racial, uma vez que o dispositivo de branqueamento usado anteriormente pelas políticas do Estado intensificou a divisão de classes econômicas e o preconceito hoje estabelecido.
Segundo Kilomba (2019), o racismo é discursivo e se constitui a partir de uma “cadeia de palavras e imagens que por associação se tornam equivalentes. ... Uma cadeia de equivalentes legitima o racismo ao fixar identidades em seus lugares.” (Kilomba, 2019, p. 130). A partir do trecho seguinte, faz-se possível a análise do que discorremos anteriormente: “Porque também era uma festa que não ia só maloqueiro. Não tinha maloqueiro. Não era festa de funk, pancadão. Era festa de quem tinha dinheiro” (colaboradora 2).
Logo, de acordo com a entrevistada, em baile funk tem “maloqueiro”. Originalmente as festas de funk acontecem em comunidades periféricas das cidades e nelas há uma maior concentração de pessoas negras, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Dessa forma, a associação entre funk - maloqueiro - negro é determinante para a compreensão da fixação da identidade do negro como um maloqueiro, alguém que pode oferecer perigo. Schucman (2020) pontua sobre um racismo cultural intimamente relacionado ao racismo biológico, uma vez que há uma hierarquização de modos de vida, religião e diferenças linguísticas associadas aos corpos e fenótipos de determinados grupos.
A bondade vista no homem branco é decorrente da cor de sua pele, não de suas atitudes. Segundo Kilomba (2019), desde a época colonialista, os brancos instauraram a compreensão social de que o negro é assustador e cria medo. “No racismo cotidiano, a pessoa negra é usada como tela para projeções do que a sociedade branca tornou tabu. Tornamo-nos um depósito para medos e fantasias brancas do domínio da agressão ou sexualidade” (Kilomba, 2019, p.78).
Categoria 6: Profissionais
As colaboradoras falam de uma falta de preparo dos profissionais da saúde no trato com mulheres que sofreram violência. Esse despreparo foi avaliado mesmo em centros especializados no cuidado da violência contra a mulher: “Os profissionais do (Hospital de referência) e da delegacia estavam completamente despreparados, perguntavam sobre a minha roupa, anotavam tudo aquilo... Eles não sabem fazer um acolhimento“ (colaboradora 1). Queixaram-se de falta de acolhimento, de amparo e de escuta. Ao mesmo tempo, têm boas referências sobre grupos também especializados, nos quais se sentiram acolhidas, ouvidas e valorizadas.
Como você entra no hospital, fala que foi estuprada e ele fala que não pode fazer nada? A única coisa que ele podia passar era glicose. ... A (Plataforma digital sobre saúde mental) é uma rede de psicólogos que tem no Facebook, no Instagram e desde muito tempo eu escuto os vídeos deles e eles me ajudam tanto. (colaboradora 2) Essa fase que eu passei agora, eu tive esse acompanhamento com o pessoal lá do (Ambulatório especializado em violência). Eles foram maravilhosos. Me ajudou demais, porque era o único momento em que eu poderia falar o que estava realmente sentindo, coisas que eu não falava com as pessoas que estavam ao meu lado. (colaboradora 3)
Com base nesses dados, vemos a necessidade de um aperfeiçoamento na capacitação das equipes de saúde no acolhimento e na escuta de situações de violência, especialmente de gênero. Essa capacitação deve conter dimensões que considerem os aspectos emocionais do profissional em relação à violência contra a mulher, trabalhando sobretudo o estigma dos profissionais à violência sexual e de gênero, pois o racismo estrutural e os preconceitos contra a vítima também os atravessam e, a partir deles, podem ocorrer intervenções com potencial iatrogênico no trato das mulheres que passaram por violência sexual. No questionamento da roupa que as mulheres estavam usando ao serem estupradas, por exemplo, reproduzem o discurso comum e socialmente disseminado de culpabilização feminina, em vez de compreenderem a vulnerabilidade que mulheres possuem em nossa sociedade. Essa maneira de agir pode ser compreendida a partir do conceito de má-fé de Sartre (1943/1997): “A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da mentira. Só que isso muda tudo - na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim mesmo” (Sartre, 1943/1997, p. 94). Pode-se entender que os profissionais tendem a amenizar uma situação violenta a partir da reprodução de comportamentos que sustentam o racismo, o machismo e preconceitos institucionais.
Categoria 7: Hoje
A categoria que mostra como elas estão hoje representa o processo inicial de elaboração da vivência traumática. Mostra que as mulheres são capazes de habitar o corpo/existência não pela violência, mas como potência. Mostra a possibilidade de recuperar a familiaridade do mundo, mesmo sabendo que existe o outro lado abismal, onde tudo perde sentido e fica estranho: “Hoje, depois de ouvir e contar várias vezes a mesma história, eu já consegui aceitar a história. Então ela, claro, ainda dói. Mas eu consigo dizer sem culpa, que é uma coisa que eu não conseguia” (colaboradora 1).
Hoje eu tenho muito mais receio. Mesmo sendo adulta eu tenho muito mais receio de sair sozinha, de dormir sozinha em casa. Qualquer barulho que eu ouço eu penso, relembro. Qualquer notícia que eu vejo relacionada a isso eu me emociono, me lembro. É uma fase ainda que não passou, mas eu procuro superar, porque eu tenho que viver minha vida, não posso deixar isso mudar, tirar a minha essência. (colaboradora 3)
Ao legitimar a existência destas mulheres em um mundo que já foi determinado por essa violência, mas que também permanece aberto para se transformar, permitimos que elas compreendam que o sofrimento vivido não é apenas individual, mas de gênero. Escutar o sofrimento é dar lugar para que a narrativa de vida daquela pessoa seja escutada e repensada por ela mesma. Jardim (2015) escreve sobre este processo:“Tomar uma iniciativa e inaugurar modos de ser somente é possível tomando a experiência como ponto de partida, isto é, atrelado à possibilidade de ter sido tocado por algo, transformado e arrastado para fora do já conhecido” (p. 63).
O que permanece na vida de cada uma as constituem. O processo terapêutico permitiu esta elaboração em um espaço de ressignificação, de aproximação de suas possibilidades, objetivando uma abertura mais criativa para as respectivas existências.
Categoria 8: Reexposição à violência sexual
Cividanes, Mello e Mello (2019) em sua revisão em estudos qualitativos apontam para um risco cumulativo de TEPT após a reexposição à violência sexual:
Foi como se viesse tudo e mais um pouco, uma carga muito mais pesada. ... Será que eu sou um alvo? Você fica tentando achar, por que aconteceu comigo?” (colaboradora 3).
Durante toda a violência eu não conseguia pensar no que estava acontecendo. Eu só revivia o que eu vivi na infância. ... eu lembro de tudo. Em detalhes. E eu não lembrava. Eu sabia que existia a violência, mas eu não lembrava. (colaboradora 1)
Parecia que desabou tudo de uma vez. Parece que você foi destinada a sofrer com isso. Aí acontece de novo, foi quando eu perdi o chão mesmo. Eu precisei de ajuda. ... Acho que tudo eu fui carregando, porque eu achei que não era tão grave. (colaboradora 2)
É o que encontramos nos relatos do estupro com um grande peso: ao serem reexpostas ao abuso, as memórias do trauma infantil retornaram com maior intensidade e as mulheres acreditam que este fator pode influenciar na potencialização do trauma: “Fiquei com perda de memória, eu não lembrava as coisas. Eu fiquei muito mal. Então veio tudo à tona. Veio a lembrança” (colaboradora 4). Ao perceberem concretamente a reincidência, questionaram-se o porquê e acabaram se culpabilizando, o que pode ensejar o desenvolvimento do “TEPT”, uma vez que há maior dificuldade de elaboração, estabilização de si e suas relações no mundo. Desde criança as mulheres já se deparam com as violências de gênero imbuídas na história e na tradição de nosso país. Infelizmente, repassam em sua memória a cena da violência na infância por terem de lidar desde cedo com a fragilidade de sua existência nesse mundo que as atravessa com significados e sentidos já atribuídos ao ser-mulher. Dessa forma, a culpabilização vem novamente como a busca de trazer certo controle à imprevisibilidade da vida, como se elas pudessem tomar alguma decisão que as tirassem desse lugar marginalizado que a tradição as colocou. Personificam nelas a responsabilidade de romperem com a ciclicidade das violências.
Considerações Finais
Tratando-se da temática da violência, é compreensível que nem todas as colaboradoras se disponibilizem para falar sobre suas dores, uma vez que falar implica reviver. Além disso, as colaboradoras são provenientes de serviços públicos de saúde, indicando uma condição financeira baixa e, ao mesmo tempo que isso limita a nossa compreensão para este recorte, também ressalta a necessidade de pesquisas com uma população com renda maior.
Pudemos compreender, a partir do discurso de colaboradoras, que a violência sexual faz com que a polissemia do mundo se reduza a um único significado: o aprisionamento àquela experiência traumática. A culpa, a vergonha e o medo, atravessam-nas existencialmente, restringindo seus modos de ser. Acrescentado a isso, a falta de acolhimento dos profissionais de saúde e as tradições patriarcais cristalizadas no horizonte significativo fazem com que esta experiência seja mais solitária e aterrorizante. Os sintomas que caracterizam esta restrição existencial aparecem repetidamente em busca de significado, uma vez que a violência fez com que as mulheres rompessem com aquele mundo que as orientava anteriormente (Dodd, 2009).
O levantamento feito pelo discurso das mulheres encontra consonância com o artigo de Neto, Tomé e Messas (2021), no que tange ao medo como condição estrutural do que se é compreendido como TEPT, tal como as colaboradoras pontuaram, bem como a vivência da temporalidade a partir do rompimento da cotidianidade. Segundo Neto, Tomé e Messas (2021, p. 63), a temporalidade das pacientes aparece como: um presente infinito, com um passado que só é sentido como os últimos segundos relacionados à consciência imediata do perigo percebido. O futuro também não é mais longo do que os próximos segundos imediatos.
Nessa abertura restritiva, os referenciais de mundo de cada mulher podem fundamentar o movimento cíclico deste fenômeno, potencializando a crença de autoresponsabilização. Não há, conforme pontuado pelas colaboradoras, uma assistência de qualidade, gerando uma manutenção de relações históricas de desumanização e objetificação de seus corpos, inviabilizando o rompimento do padrão de mundo já conhecido por elas desde cedo.
Paulo Freire (1968), em seu estudo sobre a relação opressor-oprimido, propõe que uma mudança no cuidado dos oprimidos comece com uma mudança na práxis: é necessária uma reflexão que nos faça agir no mundo dialogando com a maneira que pensamos o mundo. Seguindo este pensamento, as mulheres nascem em um sistema patriarcal, de objetificação e violências constantes, sentem medo de serem abusadas ou mal interpretadas desde muito novas. As mulheres já vivem com a interiorização da opressão e isto pode ser constatado em suas crenças de responsabilização quando discorrem sobre a reexposição e a possível intensificação da dor no momento traumático. O resultado desta cultura culmina na responsabilização de qualquer ação recair sobre as mulheres. A libertação desta relação hierárquica na qual as oprimidas estão inseridas ocorre quando há busca pela reflexão, por problematização das relações humanas com o seu mundo. Dar voz a essas mulheres é permitir que os profissionais aprendam sobre esta vivência e construam dispositivos para acolhimento adequado e maneiras de prevenção. Abrir caminho para que essa prática aconteça é permitir que exista uma criação de estratégia de orientação, auto-defesa e denúncia, pois a exposição do modus operandi da violência a debilita. O compartilhamento das experiências entre as vítimas mostra que 1- elas não são exceções ou acidentes e 2- que há pactos políticos que ensejam e possibilitam a violência. A arquitetura patriarcal demanda que exercícios de força sejam praticados para a manutenção desse pacto.
Como aponta Rivara et al (2019), é necessário um cuidado primário na atenção básica a fim de combater o abuso sexual infantil ou a revitimização sexual de mulheres em uma sociedade que não se propôs a instaurar uma política restaurativa e de desconstrução da cultura machista.
Desta forma, as pesquisas poderiam se valer de informações mais precisas para o planejamento de medidas preventivas, já que a maior dificuldade nesta área é o acesso às crianças vítimas de violência sexual para a avaliação de ocorrências e intervenção em tempo hábil. Junto a isto, vale ressaltar a importância em discutir a necessidade de pesquisarmos e intervirmos na prevenção e no cuidado das mulheres em situação de violência. Permitir que este tema não fique restrito à clínica, mas também considerá-lo politicamente significa oferecer, para além de cuidado individualizado, intervenção comunitária, potencializando as mulheres.
A respeito do estímulo da potência nas mulheres, Arendt (1958/2019) pontua que há uma efetivação do poder quando as pessoas agem em conjunto, uma vez que esta ação cria novas relações e realidades. O trabalho com as pacientes e sua intervenção comunitária produz um espaço onde iniciativa e palavra circulam, favorecendo a reflexão coletiva crítica sobre os desdobramentos relacionados às experiências de violência. Trabalhar a memória passa a ser um gesto de re-significação da história, onde não há mais um congelamento do momento violento e sim um sofrimento possível de ser nomeado e acolhido (Safra, 2004).
Atentar-se exclusivamente ao tratamento individual das mulheres que passaram por abuso sexual e desenvolveram uma restição de mundo é pensar apenas no adoecimento como está instalado, não em seu processo histórico e na prevenção do abuso. Sofrimentos existenciais devem ser considerados a partir dos campos históricos, que determinam como as coisas são. Tratar esta temática exclusivamente de forma clínica é uma maneira paliativa de tratar a violência de gênero, que precisa ser olhada em instâncias estruturais.