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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022   03--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.68635 

PSICOLOGIA SOCIAL

Vinculação e Participação no PAEFI/CREAS na Perspectiva dos Usuários

Belonging and Participation in PAEFI/CREAS from the Users' Perspective

Vinculación y Participación en PAEFI/CREAS desde la Perspectiva de los Usuarios

Gelson Panisson1 

Psicólogo, Graduado e Mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina, Servidor Público na Prefeitura Municipal de São José, SC.


http://orcid.org/0000-0002-4969-7641

Marivete Gesser1 

Doutora em Psicologia, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-4091-9754

Marcela de Andrade Gomes1 

Doutora em Psicologia, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.


http://orcid.org/0000-0001-9804-4754

1Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil


RESUMO

Este estudo teve por objetivo investigar o processo de vinculação junto ao Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), por parte dos usuários, de modo a compreender os sentidos atribuídos acerca de sua inserção e participação nesse serviço. A pesquisa, de cunho qualitativo, levantou informações através de entrevistas semiestruturadas junto a nove pessoas atendidas no PAEFI de uma cidade da região sul do Brasil. A perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural norteou a construção metodológica e analítica da pesquisa. Os núcleos de significação atrelados ao processo de vinculação junto ao PAEFI na percepção dos entrevistados foram: a) Contexto e movimentos no acesso ao serviço; b) Motivações e afetos relacionados à participação no serviço. O estudo apontou indicadores para pensar o contexto, a intersubjetividade e as contradições que envolvem as práticas psicossociais, vislumbrando o PAEFI como espaço potente da construção de vinculação com os usuários. Ressalta-se a importância de uma perspectiva ético-política voltada à participação e ao envolvimento dos usuários junto à política de assistência social brasileira.

Palavras-chave: assistência social; psicologia; PAEFI; usuário; vinculação.

ABSTRACT

This study aimed to investigate the belonging process between the Specialized Protection and Care Service for Families and Individuals (PAEFI) and its users, in order to understand the meanings attributed to their insertion and participation in this service. This qualitative research collected information through semi-structured interviews with nine people that were psychosocially cared at PAEFI in a city in the southern region of Brazil. The perspective of Historical-Cultural Psychology guided the methodological and analytical construction of the research. The meaning cores linked to the process of binding with the perception of the interviewees were: a) Context and movements in the access to the service; b) Motivations and affections related to participation in this service. The study pointed out indicators to think about the context, intersubjectivity and contradictions that involve psychosocial practices, envisioning the PAEFI as a powerful space of the construction of belonging with users. It emphasizes the importance of an ethical-political perspective focused on the participation and involvement of users in a Brazilian social assistance policy.

Keywords: social assistance; psychology; PAEFI; user; belonging.

RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo investigar el proceso de vinculación con el Servicio de Protección y Atención Especializada para Familias e Individuos (PAEFI) por parte de los usuarios, a fin de comprender los significados atribuidos a su inserción y participación en este servicio. La investigación, de naturaleza cualitativa, recabó información a través de entrevistas semiestructuradas con nueve personas atendidas en PAEFI en una ciudad en la región sur de Brasil. La perspectiva de la psicología histórica cultural guió la construcción metodológica y analítica de la investigación. Los núcleos de significación en la percepción de los entrevistados fueron: a) Contexto y movimientos en el acceso al servicio y b) Motivaciones y afectos relacionados con la participación en el servicio. El estudio señaló indicadores para pensar el contexto, la intersubjetividad y las contradicciones que envuelven las prácticas psicosociales, visualizando al PAEFI como un espacio interesante de la construcción de vinculación con los usuarios. Se destaca la importancia de una perspectiva ético-política enfocada en la participación e involucramiento de los usuarios en la política de asistencia social brasileña.

Palabras clave: asistencia social; psicologia; PAEFI; usuario; enlace.

No Brasil, construir a proteção social como direito tem sido vislumbrado face ao processo histórico de lutas dos movimentos sociais e ações populares projetadas na Constituição Cidadã de 1988. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), promulgada em 1993, considera-a como um direito do cidadão e um dever do Estado. Em 2004, foi delineada a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), de modo a implementar o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a fim de prover atendimento às necessidades básicas da população. Contudo, no espectro dessa política pública, percebe-se que diversas práticas ainda são marcadas por olhares assistencialistas, higienistas, clientelistas, de caridade, em que a assistência social é vista como benesse, donativo ou se dá como troca de favor.

A partir de uma perspectiva social crítica, a Psicologia tem buscado construir uma atuação profissional comprometida com a transformação social e o enfrentamento das desigualdades sociais desde a década de 1970 (Cruz & Guareschi, 2014), sendo que o SUAS se deu como possibilidade concreta de atuação profissional. Diante dos desafios e da complexidade das demandas junto aos contextos atravessados por vulnerabilidades sociais, torna-se relevante observar tanto as condições sociais das pessoas atendidas quanto sua dimensão subjetiva em seus processos sócio-históricos.

Nesta direção, Silva, Hüning e Mesquita (2014) destacam que a construção de saber junto com os usuários pode “potencializar e engendrar novas estratégias de ação diante dos chamados problemas sociais contemporâneos e contribuir para a produção de novos modos de vida e de conhecimentos não hegemônicos” (p. 126). Nesse intuito, percebe-se a relevância de marcar a participação do próprio usuário junto à política de assistência social, de modo a escutá-lo e compreender suas motivações, anseios, expectativas, interesses ou indiferenças diante das práticas dos serviços socioassistenciais.

O presente estudo é um recorte de uma pesquisa de mestrado que buscou investigar os sentidos atribuídos a um serviço de assistência social a partir da perspectiva dos usuários (Panisson, 2019). A escolha de tal problemática foi motivada a partir de reflexões em torno do atendimento psicossocial no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) de um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Assim sendo, este estudo tem como objetivo investigar o processo de vinculação junto ao referido serviço do PAEFI, buscando compreender os sentidos atribuídos pelos usuários acerca de sua inserção e participação nesse espaço.

Considerando sua conceituação produzida ao longo da história em diferentes campos, entende-se vinculação a partir de reflexões sobre vínculo familiar e comunitário. Rodrigues e Guareschi (2016, p. 297) mencionam “vínculo como ferramenta que possibilita ligar os sujeitos entre si (e entre as coisas inumanas)”, fazendo referência à dimensão afetiva como algo que tem uma direção e uma intencionalidade na sua construção.

Sawaia (2001) ajuda a refletir sobre a noção de participação, a qual vem adquirindo um sentido subjetivo, onde a individualidade e a afetividade ocupam lugar central, quando se define que participar é envolver-se emocionalmente (Sawaia, 2001, p. 119). Conquanto, para a autora, por trás da polissemia sobre participação, está a dialética exclusão/inclusão - a qual considera que a sociedade exclui para incluir de algum modo, nem sempre decente e digno, na ordem desigual (Sawaia, 1999). Desse modo, não há participação sem subjetividade, nem subjetividade sem participação, que é imanente à condição humana, tornando-se premente “não mais analisar para conhecer as contingências que levam o indivíduo a participar, mas as contingências sociais que o impedem de realizar sua condição humana” (Sawaia, 2001, p. 124).

Com base na filosofia de Espinosa, Sawaia (2001) destaca a capacidade de o ser humano ser afetado, sendo que a participação é motivada pela necessidade de o sujeito ser feliz e livre. É ouvindo e sentindo os próprios desejos e necessidades que se estabelece uma ética participativa, na qual a participação é vislumbrada como potência de ação, ou seja, configura-se como a capacidade de ser afetado no encontro com o outro em suas possibilidades infinitas de criação. A partir disso, como uma das propostas no planejamento da participação, a autora sugere contemplar os afetos, aos quais convém indagar sobre as emoções que constituem os motivos da participação.

O aspecto “psicossocial” é compreendido aqui como uma perspectiva que abarca a relação dialética intrínseca das dimensões subjetivas e materiais, em que o psíquico e o social, mesmo sendo esferas distintas, não são dicotômicas, mas se constituem mutuamente (Gomes & Santos, 2017). Acredita-se que a identificação do modo como se concebe o atendimento psicossocial - objetivo geral da pesquisa de mestrado - pode contribuir para uma atuação baseada em uma perspectiva ético-política que possibilite o envolvimento, a vinculação e a participação dos usuários na construção de modos de vida emancipadores. Sendo assim, neste artigo, debateremos essa categoria de análise engendrada na pesquisa, que diz respeito ao modo como o usuário se envolve subjetivamente com o PAEFI.

Método

Este estudo se caracteriza como pesquisa qualitativa, construída com base em referenciais da Psicologia Histórico-Cultural, a qual aborda a constituição sócio-histórica do funcionamento psíquico (Vigotski, 2000). O objeto de estudo é o PAEFI de um Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) localizado em uma cidade da região sul do Brasil. Conforme a tipificação do SUAS, o PAEFI é um serviço que visa prestar apoio, orientação e acompanhamento psicossocial a pessoas e famílias com um ou mais de seus membros vivenciando situações diversas de violação de direitos (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009).

Nove usuários do referido PAEFI/CREAS participaram do estudo por meio de entrevista semiestruturada, caracterizada como técnica de pesquisa em que o entrevistado discorre sobre o tema em questão sem se prender à pergunta formulada (Minayo, 2010). Duas entrevistas foram feitas em conjunto - uma entre mãe e filha, outra entre cônjuges. As participações foram gravadas com autorização dos entrevistados para posterior transcrição, sendo que uma pessoa solicitou que sua fala não fosse gravada. Nesse caso, com autorização do participante, foram feitos registros por escrito que também foram analisados.

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, sob o parecer nº 2.572.240 de 30 de março de 2018 (CAAE: 82997618.7.0000.0121). Todos os princípios éticos recomendados pela Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016 foram assegurados. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual constavam as informações sobre a pesquisa, foi lido e assinado por todos os participantes. Visando assegurar o anonimato, foram atribuídos nomes fictícios aos participantes.

Os procedimentos analíticos tiveram como base reflexões de Aguiar e Ozella (2006), que indicam os núcleos de significação como meio de se apreender a constituição de sentidos do discurso dos sujeitos. De acordo com pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, o conceito de sentido abarca o sentir, o pensar e o agir e se refere a toda produção que se singulariza no sujeito, sendo construída na intersubjetividade a partir de processos de mediação simbólica compartilhados socialmente através da linguagem. De forma similar, a subjetividade se constrói na materialidade e nas relações intersubjetivas, sendo constituída socialmente (Vigotski, 2000). O processo de análise envolveu três construções: 1) Préindicadores: leitura flutuante e organização do material; 2) Indicadores: segunda leitura de modo a aglutinar os pré-indicadores e sobressair temas a partir dos critérios de similaridade, complementaridade ou contraposição; e 3) Núcleos de significação: processo de articulação realizado a partir da releitura do material, considerando a aglutinação em indicadores, organização dos núcleos de significação e sua nomeação (Aguiar & Ozella, 2006).

Resultados e Discussão

A partir da caracterização dos nove participantes, os entrevistados apresentaram faixa etária entre 20 e 53 anos. Duas pessoas se identificaram como sendo do sexo masculino e sete do sexo feminino, autodeclaradas mulheres. Seis pessoas se identificaram como mães e as outras três como marido, pai e filha. Seis indicaram receber entre um terço e meio salário mínimo como renda familiar per capita; outras três pessoas não quiseram mencionar sobre a remuneração. Sete participantes referiram possuir ensino fundamental incompleto, enquanto dois disseram ter concluído o ensino médio. O número de membros das famílias dos participantes foi de três a seis pessoas pertencentes ao núcleo familiar de cada entrevistado. O tempo de acompanhamento psicossocial durou, em média, dois anos.

Além disso, sobre o modo de inserção no PAEFI estudado, outro aspecto que se sobressai é o fato de que, dos nove participantes do estudo, oito pessoas foram encaminhadas através de outros equipamentos da rede (como Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, Promotoria da Infância e Juventude, CREAS de outro município e Serviços de Saúde), por meio de encaminhamentos e/ou denúncias; sendo que uma pessoa chegou ao serviço por demanda espontânea.

A partir da articulação de diferentes indicadores em que as pessoas entrevistadas expressaram como foi sua inserção no serviço em questão, produziram-se dois núcleos de significação: a) Contexto e movimentos no acesso ao serviço; b) Motivações e afetos relacionados à participação no serviço. Salienta-se que foram trazidos os depoimentos mais significativos, que mais sintetizaram e materializam o que está no texto e no subtexto das entrevistas junto a todos os participantes da pesquisa.

As informações obtidas apontaram que, de modo geral, os participantes demonstraram hesitação inicial em relação à abordagem dos profissionais do PAEFI, que, como veremos abaixo, está relacionada a significados mediados por questões estruturais, institucionais, relacionais e históricas, como por exemplo, fluxo da rede, tempo de espera para atendimento, relação com os profissionais e com a instituição, afetividades relacionadas à presença no serviço e práticas permeadas por olhares assistencialistas. Entende-se que essas significações podem tanto contribuir para aumentar como também para cessar a vinculação dos usuários no processo de acompanhamento. Nesse sentido, a presente análise propõe refletir sobre a adesão em serviços socioassistenciais como processo de vinculação permeado por múltiplos fatores.

Contexto e Movimentos no Acesso ao Serviço

O presente núcleo de significação foi organizado com base na articulação dos seguintes indicadores: demanda espontânea, encaminhamento, denúncia, fila de espera e relação com os profissionais e a instituição. Diante disso, compreende-se que o processo de vinculação dos usuários ao PAEFI em questão se produz nas contradições, no movimento entre o universal, o singular e o particular, considerando o contexto que envolve a relação profissional-usuário e o papel do Estado na vida das pessoas.

Conforme diretrizes do processo de trabalho do serviço em questão, o acesso ao PAEFI ocorre por identificação e demandas constituídas por denúncias e encaminhamentos provenientes da rede de serviços e do sistema de garantia de direitos (Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos, Ministério Público, Poder Judiciário, Rede de Saúde, Educação, Assistência Social, Delegacias Especializadas, Disque Direitos Humanos, entre outros). Esses encaminhamentos são cadastrados em uma lista única e avaliados por uma equipe da secretaria municipal de assistência social, que delibera se o caso corresponde ao público-alvo do PAEFI. Já a demanda espontânea é uma forma de acesso tipificada em que a acolhida é realizada pelos profissionais do próprio serviço. No SUAS, realiza-se esse tipo de acolhimento por entender que a demanda apresentada pelo usuário deve ser acolhida, escutada, problematizada e reconhecida como legítima (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009).

Como pontos iniciais, ficam evidentes duas posturas do usuário no processo de inserção do serviço: a de quem busca o atendimento (via demanda espontânea) versus a de quem é chamado ao PAEFI (através de encaminhamento ou denúncia). Conforme destacado, dos nove participantes do estudo, oito revelaram que foram chamados ao PAEFI por encaminhamentos da rede ou por denúncia. Porém, uma pessoa acessou o serviço por demanda espontânea: a entrevistada Iara (34 anos, dona-de-casa), uma vez que conhecia o prédio do CREAS como serviço de assistência social, quando foi procurar por ajuda especializada para atender a filha de 13 anos, a qual apresentava sofrimento psicológico por ter sofrido tentativa de abuso na infância. Em seu relato, fica subentendida a postura de abertura ao atendimento do PAEFI, quando explicita o fato de ter encontrado a ajuda esperada, manifestando resultados no andamento dos atendimentos até então: “encontrei ajuda aqui com a [nome da psicóloga] que chegou num resultado imenso na nossa vida” (Iara).

Assinalada a demanda espontânea como uma das circunstâncias para inserção no PAEFI, como contrapontos apareceram o encaminhamento da rede e a denúncia, tendo em vista o contexto do fluxo de atendimento. Nessas situações, cabe um olhar aprofundado em torno da vinculação para com o serviço, visto que o atendimento não foi um pedido da pessoa. Além disso, a maioria dos participantes do estudo indicou que não tinha conhecimento prévio da existência do PAEFI.

De acordo com as narrativas das pessoas chamadas ao PAEFI a partir de denúncia, as vivências diante da abordagem da rede foram permeadas por “mal-estar” por não conhecer a origem da denúncia, visto que “tinha que ir” ao atendimento, atribuindo a responsabilidade da situação aos vizinhos, pois se “cuidassem da sua vida, nunca daria rolo” (casal Marcos - 50 anos, sem atividade laboral - e Maria, 52, servente; sua família é atendida há três anos no PAEFI). Chama atenção a falta de clareza relacionada à vivência de vulnerabilidade e risco, subentendida nas falas de Maria e Marcos. Tal aspecto é discutido por Andrade (2018), a partir da escuta de usuárias de um PAEFI em Belo Horizonte, em que elas não mencionam a situação de violação de direitos que acarretou sua inserção no serviço como uma expectativa delas em relação ao acompanhamento. Para a autora, a não compreensão da situação como violação de direitos e como aspecto abordável pelo serviço indica, dentre vários fatores, uma provável falta de informação por parte dos usuários sobre a política de assistência social, além de assinalar desinformação em relação ao acesso aos direitos. Entretanto, embora não seja foco do presente estudo, presume-se que há particularidades na (não) vinculação de autores de violência e no seu (não) reconhecimento do serviço como espaço de proteção social e enfrentamento à violação de direitos.

Outros aspectos trazidos pelas pessoas encaminhadas ao serviço remetem a “burocracia”, “falta de profissionais”, “ter que esperar muito”, “constrangimento” e “medo” (Jane, 38 anos, leiturista, família atendida por um ano devido a histórico de abuso sexual). Para a filha de Jane, após tanto tempo de espera (oito anos em demanda reprimida), “não devia nem ter puxado isso [...] ficar remexendo no passado” (Gabi, 20, sem atividade laboral). De forma similar, a família de Lúcia (34 anos, professora, atendida há cerca de três anos) permaneceu em fila de espera por cinco anos. Ela relata que o contato tardio do serviço fez evocar “culpa” que sentia diante da ocorrência de abuso sexual intrafamiliar contra uma das suas filhas. Lúcia apontou ainda a rotatividade de profissionais e a descontinuidade do processo de acompanhamento familiar como aspectos desestabilizadores na vinculação com o serviço. A usuária manifestou impasses no momento da saída da primeira psicóloga, o que afetou o atendimento junto às filhas: “teve pausas”, chegaram novas profissionais, “mas não conseguiram chegar nem perto, assim, da confiança que a outra tinha conseguido primeiro” (Lúcia).

Sendo assim, acerca do processo de vinculação no PAEFI estudado junto às pessoas inseridas por denúncia e/ou encaminhamento, são constatadas experiências de hesitação, desinformação da origem da denúncia/encaminhamento, embaraço, ressentimentos ligados à rede e aos vizinhos, negação, medo, culpa, demora e rupturas no processo de atendimento. Percebe-se que a solicitação advinda do serviço faz remeter a situações de sofrimento ainda emergentes, visto que o PAEFI surge no movimento de busca de ressignificação dos efeitos da violência, porém, por vezes, pode ser significado pelo usuário como intrusivo. Tal fato faz pensar o quanto o PAEFI, para além da proposição de garantir acesso a direitos, pode ser justamente sua antítese, promovendo possível revitimização e sofrimento à pessoa atendida. Diante disso, Andrade (2018, p. 98) identificou preocupação por parte dos trabalhadores do PAEFI ao perceberem que “ser o agente que nomeia uma violação pode atravessar a construção do vínculo com os usuários”.

No que tange à rotatividade de profissionais, quando “tem a nova psicóloga e a nova assistente social” (Jane), diversos autores reconhecem os prejuízos da precarização dos vínculos de trabalho nos equipamentos da assistência social brasileira (Andrade, 2014). Essa dinâmica de trabalho, associada à insegurança do emprego, rebaixamento salarial, ausência de perspectivas de progressão na carreira, perda de direitos sociais e trabalhistas, pressões pelo aumento de produtividade, competição entre trabalhadores (Raichelis, 2011), afeta diretamente o trabalho social com famílias e indivíduos, impulsionando profissionais a buscarem oportunidades melhores de trabalho.

No momento da realização da pesquisa, todos os profissionais do PAEFI estudado eram servidores públicos efetivos recém-inseridos na equipe técnica. Apesar disso, foi possível constatar que os profissionais, por conta da precariedade das condições de trabalho, não têm estruturado suas carreiras nesse campo de atuação profissional. Por decorrência disso, a rotatividade desestabiliza o desenvolvimento de ações continuadas nos serviços e fragiliza as ações em equipe e na rede socioassistencial, conforme apontado pelos entrevistados e também identificado em outros estudos (Macedo et al., 2011; Senra & Guzzo, 2012). Os prejuízos em função da rotatividade de profissionais condizem ao rompimento do vínculo estabelecido com os usuários, o que pode provocar não adesão ao serviço e despotencialização ou descontinuidade do trabalho psicossocial (Macedo et al., 2011; Senra & Guzzo, 2012; Lima & Schneider, 2018).

Entende-se que a precarização das políticas públicas é transcendente à insuficiência de recursos humanos, de rotatividade profissional e de instabilidade do corpo técnico. Diversos autores sinalizaram que, dentre os principais aspectos que dificultam a implementação do SUAS, também sobressaem a ausência de transparência no uso do financiamento, dificuldade do trabalho em rede, escassez de planejamento, monitoramento e avaliação de serviços e falta de fundamentação e capacitação profissional (Oliveira et al., 2014; Ribeiro, Paiva, Seixas, & Oliveira, 2014).

Lima e Silveira (2016) apontam a contradição inerente às políticas públicas e sociais no ocidente como fruto do paradoxo intrínseco ao sistema capitalista que, ao mesmo tempo em que implanta a noção de Direitos Humanos e Estado de Bem-Estar Social, é um sistema que só sobrevive mediante a permanência de relações de dominação e exploração. Assim, tem-se que estas políticas emergem mais para realizar uma gestão da pobreza do que, de fato, para realizar um trabalho de transformação estrutural que viria combater as desigualdades sociais. Dessa forma, estas políticas possuem um caráter mais reformador e funcionam sob uma racionalidade econômica-institucional, tornando-as, de forma paradoxal, produtoras de violação de direitos.

As narrativas de Jane, Gabi e Lúcia denunciam a contradição de um Estado que se propõe proteger a infância e erradicar a violência intrafamiliar, mas que, ao funcionar sob esta racionalidade econômica-institucional (precarização das condições de trabalho, falta de profissionais, ausência de investimentos técnicos, etc.) acaba ele próprio violando subjetividades que já foram violentadas na esfera privada. Tem-se assim, um triste cenário no qual estas mulheres acabam se tornando vítimas das violências domésticas e da violência de Estado, sendo violadas em seus direitos e em suas subjetividades tanto na esfera privada como na pública. Destaca-se que a ausência da política pública ou a precariedade em sua oferta - por exemplo, de modo particular, diante do longo tempo na fila de espera, conforme explicitado nos relatos - são aspectos relevantes que comprometem e, ao mesmo tempo, definem toda a vinculação e participação dessas pessoas atendidas.

Ademais, percebe-se ambiguidade no trabalho realizado pelo técnico, que ao mesmo tempo que busca promover vínculo com o usuário e a família, também se apresenta como representante do Estado, o qual vem operando apenas na gestão das desigualdades sociais - e não no seu combate (Lima & Silveira, 2016; Andrade, 2018; Gomes et al., 2019) - e tem se demonstrado ausente na garantia de acesso a direitos e serviços. Junto aos trabalhadores do PAEFI, Andrade (2018), ao constatar a inerente influência do Estado na prática profissional, afirma a importância de fomentar processos de criação em que o trabalhador possa reinventar a sua relação com o Estado, a instituição e o usuário, tendo presente a constante emergência de novas tensões assim como novas respostas. Entende-se que essa ambiguidade personificada nos profissionais vai ao encontro do paradoxo de um Estado que, ao mesmo tempo em que é corresponsável pela defesa de direitos, se coloca de forma subalterna aos interesses de mercado (Gomes et al., 2019).

Destaca-se o papel do Estado que, diante das necessidades da população que demanda serviços e reivindica acesso a direitos, demonstra-se incoerente pela não efetivação de políticas públicas no campo da assistência, saúde, educação, cultura etc. Tal inquietação é debatida por autores que discutem as políticas públicas de assistência social. Para Silva et al. (2014), a ausência do Estado, em sua invisibilidade e não reconhecimento, associados à violência e pobreza, sobrecarrega os grupos comunitários locais, impondo-lhes o encaminhamento de demandas que deveriam ser supridas por serviços da rede e produzindo discursos de abandono e negligência por parte do poder público.

Assim sendo, compreende-se que as questões estruturais e de planejamento do PAEFI em questão são produções dessa situação de contradições, fragilidade, fragmentação e não efetivação dos serviços essenciais e de políticas públicas que poderiam atuar em articulação na proteção e bem-estar social. Tais aspectos refletem a grave ausência do Estado e de outras instâncias que poderiam atuar como atores protetivos dos direitos humanos, o que repercute no processo de vinculação e participação dos usuários.

Motivações e Afetos Relacionados à Participação no Serviço

Neste tópico, serão apresentadas as significações dos usuários relacionadas ao seu envolvimento e participação no acompanhamento do PAEFI pesquisado. Diante disso, cabe reiterar que a maior parte dos atendimentos ocorre por meio de uma solicitação de comparecimento realizada pelos profissionais do PAEFI aos usuários, sendo interessante analisar quais motivações e afetos estão relacionados à participação da pessoa no serviço.

De maneira geral, as pessoas entrevistadas compreendem o trabalho do PAEFI em sua metodologia como um atendimento sistemático individual ou em conjunto com membros da família, que geralmente ocorre de forma periódica, por meio de um “chamado para conversar” no CREAS ou através da visita domiciliar.

Em muitos casos, ao comparecerem no serviço, os usuários atribuem a necessidade do atendimento a um “outro”, centralizado em uma pessoa do núcleo familiar, naquele “que era pra ir [...], que tava meio rebelde, mas não quis ir” (Marcos). Esse sentimento de frustração em não conseguir levar outros membros da família (no caso, uma das filhas) também é partilhado pela usuária Lúcia, que, diante da longa espera para atendimento, revelou: “não queria trazer ela de volta, mas pra não me complicar né, com justiça, com tudo, aí eu peguei e trouxe elas” (Lúcia). Nesse caso, há o atravessamento da intersecção entre PAEFI e o poder judiciário, em que as motivações para comparecer no acompanhamento psicossocial possivelmente estejam atreladas a algum receio diante da judicialização das questões familiares. Lúcia salienta prováveis sentimentos de apreensão, desinteresse e indiferença aos atendimentos quando a filha vai, “quando ela pode” e lhe diz: “Ah eu posso, não dá, não vou. Depois eu vou ali e marco outro horário” (Lúcia).

A impressão de desinteresse ao atendimento psicossocial também se torna visível na fala de Maria, a qual destaca outros elementos que resultam em ambivalência e indiferença ao acompanhamento do PAEFI, remetendo a necessidade de atendimento aos outros, não para si:

Eu acho que eles (profissionais) tinham mais é que averiguar um monte desses acontecimentos que tem por aí [...] Porque tem muita gente aí que precisam mais atenção do que pequenas causas né. [...] Pra mim não tem diferença, sabe? (Maria).

Tanto essas últimas narrativas como as conseguintes indicam que alguns usuários do PAEFI nem sempre se identificam como partícipes tanto da demanda familiar quanto do processo de acompanhamento. Carla (32 anos, cuidadora) teve seu núcleo familiar inserido no PAEFI a partir do encaminhamento de um CREAS de outra cidade, onde houve suspeitas de que sua filha (de 11 anos de idade, com quem não tinha vínculo) foi abusada desde a primeira infância pelo avô materno. Sentindo-se obrigada a e perturbada por comparecer aos atendimentos em prol da filha, a usuária comenta sobre suas motivações posteriores para estar no serviço, quando a filha havia passado por acolhimento institucional. A expectativa da usuária de comparecer no PAEFI remetia ao propósito de “tirar” a filha da instituição. Carla chegou a manifestar à equipe seu desejo de não comparecer aos atendimentos. Embora se sentindo compelida a ir ao acompanhamento, ela revela suas estratégias de, mesmo assim, comparecer sem o desejo de “estar presente” no PAEFI.

Eu não conversava, assim, elas me perguntavam as coisas - “ah, não sei” [...] Eu falei bem assim... “e não vou facilitar em nada, porque vocês sabem que eu não quero vir no atendimento e vocês ficam insis... eu tô aqui obrigada por vocês, por uma ordem judicial, por uma coisa... só que então, eu tô aqui. Vocês querem eu aqui, eu tô aqui. Agora, eu não sou obrigada a falar (Carla).

Em contraposição, acerca do que significa ser atendido no PAEFI, alguns usuários manifestaram como importante sua participação, pois o acompanhamento produziu efeitos em sua vida. Jane, mãe de uma das participantes entrevistadas, identifica que, a partir de sua presença nos atendimentos, naquela oportunidade, o acompanhamento foi benéfico para si como apoio psicológico, um “desabafo”, trazendo “alívio” em “tirar um peso de dentro”, que não se referia à demanda inicial, a qual remetia à situação de abuso contra a filha, mas por outras questões que haviam emergido na trajetória de sua vida.

Em consonância, Iara manifesta gratidão e envolvimento frente ao atendimento psicossocial por vislumbrar resultados junto à filha, sendo o acompanhamento “significativo” para ela (Iara). Correspondente a isso, Lúcia expressa que as contribuições do serviço em sua vida se referem tanto por meio da “conversa” quanto da provisão de cesta básica para que ela conseguisse se projetar para o futuro, fazer escolhas e organizar sua vida. Para a usuária, no serviço, encontrou “acolhida”, “suporte” e “ajuda em questão de alimentos e uma boa conversa, conselhos, tudo né?” (Lúcia).

Embora identificadas contribuições do atendimento psicossocial aos usuários, nota-se, no subtexto de alguns depoimentos, que a assistência social nem sempre é compreendida como um direito, sendo que a motivação frente ao atendimento presume ideias estigmatizadas de assistencialismo e benesse. Conforme uma das entrevistadas, “as pessoas só vão lá [no serviço] pra pedir”, mas têm psicólogos para “te ouvir [...] tirando o tempo deles, que eles poderiam estar fazendo outra coisa” (Jane). De igual forma, significações sobre a assistência social estarem relacionadas com filantropia e caridade emergem no diálogo com uma usuária, ao refletir sobre a possibilidade de o PAEFI contribuir para acessar direitos: “Se um dia eu tiver algum direito, assim né, que pudesse me ajudar, eu até agradeceria né” (Sandra, 53 anos, auxiliar de serviços gerais, atendida há três anos).

Diante do exposto, constatam-se visões de uma assistência social historicamente construída no Brasil, marcada por práticas assistencialistas, higienistas e clientelistas, perpassadas por ideologias de caridade e de filantropia construídas por movimentos como o primeiro damismo, que manteve caráter religioso, nacionalista e populista na assistência social após a Segunda Guerra Mundial (Yazbek, 2012; Rodrigues, 2016). Percebe-se, nos subtextos das narrativas, o quanto tais visões ainda marcam as práticas frente à vulnerabilidade social, vindo a reproduzir relações de dominação e servidão.

Em torno das construções históricas que permeiam as práticas psicossociais, outro aspecto que perpassa as motivações e os afetos acerca da participação no serviço é a provisão de benefícios eventuais. Tendo presente que a articulação do PAEFI como serviço de proteção social também acontece com programas de transferência de renda e demais benefícios e serviços em prol do acesso a direitos, salienta-se a problematização em torno da provisão de cesta básica.

De acordo com Fonseca (2018), a fome traz consequências na formação da subjetividade dos sujeitos, uma vez que, em muitos casos, é uma realidade transgeracional nas famílias mais pobres que acessam ou deveriam acessar os serviços. Não obstante, concordamos com Sawaia (2003) ao depreender que todo ser humano tem fome de dignidade, de reconhecimento, de afeto, de confiança, sendo que “suas necessidades e desejos não se esgotam na luta pela sobrevivência biológica” (p. 55). Para a autora, negar tais necessidades gera sofrimento ético-político - manifesto por dor, angústia, tristeza e humilhação -, o qual se produz no processo de desigualdade social, em que os excluídos são perversamente incluídos como estratégia de adaptação à ordem social excludente. Tendo Sawaia como uma das interlocutoras, Gesser (2013) propõe uma atuação ético-política nas políticas públicas, voltada à garantia dos direitos humanos. A autora propõe que essa tenha como norte o rompimento dos padrões normativos e opressores de ser humano; a incorporação da dimensão subjetiva no trabalho junto às políticas públicas, a potencialização do sujeito para superar o processo de exclusão cotidianamente experienciado e a garantia da participação social dos usuários na construção e implementação das políticas públicas.

Embora a provisão de cesta básica seja elemento importante às famílias para lidar com seus problemas cotidianos, quando a insegurança alimentar se torna demanda diante da complexidade que envolve o trabalho frente a violações de direitos, cabe problematizar a função da cesta básica no acompanhamento psicossocial, pois, atrelada ao atendimento, “concedida” de forma descontextualizada e pessoalizada, pode reproduzir práticas assistencialistas e clientelistas, marcadas por relações de dominação e servidão. Uma vez pontuada sua percepção de ser obrigada a comparecer no serviço, a usuária Carla menciona o pedido de cesta básica e material escolar, associando-o com barganha para comparecer nos atendimentos e “fazer o que mandam”: “Daí eu fui no PAEFI, pedi cesta básica, eles não me deram e eu peguei e falei pra eles isso [...] ‘Vocês mandam, eu vou e faço. Agora o momento que eu peço uma coisa, vocês não me dão!’” (Carla).

Tendo presente a construção analítica dos relatos dos usuários acerca de suas motivações voltadas ao serviço investigado, percebe-se que sobressaíram afetos de gratidão e satisfação, assim como sentimentos de desinteresse, indiferença, receio, apreensão, medo, obrigação, perturbação e raiva diante da atuação do PAEFI junto às famílias dos entrevistados. A partir das reflexões baseadas em Espinosa e Sawaia (2001), considera-se que tais manifestações são expressões da intersubjetividade que se dá nos encontros dos usuários com o serviço. Ora por demanda própria, ora por demanda voltada a um outro - seja familiar, seja por ser chamado ou pelo poder judiciário, conforme apontado nos excertos - a articulação dos indicadores incita a refletir sobre a participação do usuário a partir dos encontros e das relações, considerando que, por trás dessa variedade de sentidos, está a dialética exclusão/inclusão, em que os sujeitos são excluídos para estarem inclusos numa ordem desigual (Sawaia, 1999).

Conforme Cruz e Guareschi (2014, p. 23), a “tensão entre o ‘sujeito de direito’ e o ‘sujeito de caridade’ está presente no campo da assistência social, em que os usuários, muitas vezes, se veem como sujeitos da caridade, ‘pedintes’” de benefícios e auxílios. Nesse sentido, quando se associa a assistência social à benemerência, suscita-se uma lógica de inclusão perversa das pessoas e de refilantropização das políticas sociais, ao destinar ações de caridade à população, fortalecendo esquemas tradicionais de poder, com práticas de clientelismo, nepotismo e favor (Yasbek, 1995; Andrade, 2014).

Ansara e Dantas (2010) revelam as contradições existentes nas práticas sociais comunitárias, as quais visam o compromisso social com as classes mais pobres e excluídas, porém as exigências dos planos e programas das políticas públicas muitas vezes impõem sérios limites aos processos de fortalecimento e autonomia da comunidade. Esses limites frequentemente mantêm as posições de resignação com a condição de vulnerabilidade na qual o sujeito se encontra, acentuando uma “relação clientelista e paternalista que permeia as iniciativas do poder público” (Ansara & Dantas, 2010, p.100). Sendo assim, reitera-se a necessidade de romper com a ideia de que a assistência social é política “pobre para pobres”, caindo no retrocesso ao associar a noção de direito como favor ou ajuda emergencial prestada sem regularidade (Yazbek, 2012; Couto, 2015).

Nesse sentido, cabe a reflexão a respeito do papel do serviço, sobre o quanto o PAEFI promove potência de ação a partir da vivência de bons encontros ou colabora para a reprodução de relações de dominação e servidão. Conforme Sawaia (2001), “não se pode pensar a participação, a reforma da participação sem antes ter reformado subjetividade e intersubjetividade. Por outro lado, ‘não se pode reformar os espíritos e a afetividade sem antes reformar as instituições’” (p. 127), pois a promoção de bons encontros só é possível com justiça, sem dominação ou desmesura de poder.

Assim, verificam-se limites do serviço do PAEFI, sendo que, por vezes, o peso dos afetos diante da desigualdade social - manifestados em superstição, medo, diminuição de autocontrole (Sawaia, 2001), dentre outras emoções enunciadas acima - pode vir a recair sobre os profissionais, quando também as instâncias do Estado deveriam se responsabilizar pelos efeitos do sofrimento, elegendo-o como indicador de participação social e alvo de ação. Reitera-se o papel do Estado frente às necessidades da população, demonstrando-se, em diversas situações, incoerente pela não garantia do acesso a direitos, conquanto, em inúmeras ocasiões o Estado por meio de seus agentes torna-se negligente, vigilante e violador.

Contudo, apesar das contradições e limitações inerentes às políticas públicas, ressaltam-se potencialidades no movimento entre o universal, o singular e o particular, tendo presente a potência criadora dos sujeitos envolvidos. Ou seja, apropriar-se do contexto, do modo de funcionamento de serviços públicos como o PAEFI e das necessidades da população torna-se fundamental para compreender o processo de vinculação dos usuários junto ao serviço e, assim, contribuir para a suplantação das violências e para a emancipação das vidas.

Considerações Finais

A partir da investigação dos sentidos sobre a inserção e a participação dos usuários no PAEFI pesquisado, foi possível apreender a adesão das pessoas atendidas como processo de vinculação permeado por diversas questões estruturais, institucionais, relacionais e históricas. Diante da análise, de modo geral, o PAEFI se apresenta como espaço potente para construção de vínculo com os usuários, o que corrobora com estudos de Andrade (2018). Entretanto, além da relação com os profissionais e com a instituição, fica evidente o quanto há atravessamentos do fluxo da rede, do tempo de espera para atendimento, das condições objetivas de trabalho, dentre outras questões de gestão e planejamento que repercutem transversalmente na vinculação para com o serviço em questão. Reitera-se que a ausência do serviço verificada em torno do tempo de espera compromete a análise do processo de vinculação do usuário, sendo grave a naturalização da prestação de uma proteção social que chega descontextualizada e que viola os direitos das famílias.

As falas dos usuários apontam para a importância do vínculo entre profissional e usuário, ao mesmo tempo em que revelam a personificação do serviço no trabalhador. Nesse sentido, convém não “reduzir uma política ao trabalhador e tampouco a uma ação isolada e individualizada” (Andrade, 2018, p. 123), mas construir espaços de participação social dos usuários acerca do funcionamento e da construção das políticas públicas, de modo a fomentar a ampliação do acesso a direitos. Com isso, reitera-se a importância da efetivação de espaços de controle social, como os fóruns dos usuários que visam à construção coletiva das políticas sociais. Assim como propõe Sawaia (2001), dentre as estratégias participativas, é importante diversificar os espaços de ação, sendo que o planejamento da participação deve abarcar as esferas da vida cotidiana.

No intuito de problematizar a atuação em Psicologia junto aos usuários do PAEFI, esta pesquisa se demonstra relevante na medida em que buscou dar visibilidade às concepções que estes têm acerca desse serviço. Acredita-se que a identificação do modo como se concebe o atendimento psicossocial pode contribuir para a construção de propostas de atuação em Psicologia, com base em uma perspectiva ético-política, pautada na desconstrução de práticas clientelistas, assistencialistas, normativas e disciplinadoras. Assim, poderemos deslocar o acompanhamento psicossocial, de práticas pautadas no moralismo, no monitoramento e no julgamento para processos de trabalho que têm como norte a potencialização do sujeito em direção ao porvir.

Considerando que a estrutura e a dinâmica do PAEFI mudam substancialmente em cada município, bem como as características contextuais constituintes das subjetividades dos profissionais e dos usuários, destacamos a necessidade de realizar mais estudos em diferentes regiões do Brasil, visando a abarcar a amplitude e a heterogeneidade dos PAEFIs no país. Do mesmo modo, considerando que as situações de violações de direitos atendidas pelo serviço são atravessadas pela interseção de processos opressivos tais como sexismo, racismo, capacitismo, LGBTIfobia e classismo - os quais se reproduzem no contexto sócio-histórico de forma naturalizada -, destaca-se a relevância de que as pesquisas futuras aprofundem a dimensão interseccional.

Por fim, embora sejam identificados limites e contradições do PAEFI em torno do papel do Estado historicamente negligente e violador frente às necessidades da população - sendo que, por vezes, o peso dos afetos diante da desigualdade social recai sobre os profissionais -, propõe-se um trabalho voltado à construção de bons encontros como possibilidades políticas de existência. Nesse sentido, reitera-se a importância da potência de ação gerada pelo encontro em nível micropolítico, quando pautado numa ética do cuidado, do envolvimento, da vinculação e da participação das pessoas no seu processo de transformação e emancipação. Em vista disso, o termo “acompanhamento” psicossocial faz sentido quando os profissionais se colocam num movimento de “estar junto” com os usuários, atentos às suas necessidades como sujeitos de direitos e de desejos.

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Recebido: 06 de Novembro de 2020; Revisado: 26 de Março de 2021; Aceito: 29 de Março de 2021

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