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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022   03--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.68636 

PSICOLOGIA SOCIAL

Atletas de Mixed Martial Arts (MMA): Trabalhadores Precários e Invisíveis

Mixed Martial Arts (MMA) athletes: Precarious and Invisible Workers

Deportistas de Mixed Martial Arts (MMA): Trabajadores Precarios e Invisibles

Juliana Aparecida de Oliveira Camilo1 

Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professora titular de mestrado em Psicologia na Universidade Ibirapuera e Professora de Psicologia Organizacional e do Trabalho na PUC-SP.


http://orcid.org/0000-0003-3369-2878

Livia Gomes Viana-Meireles2 

Psicóloga, mestre em Psicologia (UFC), doutora em Psicologia Social (UERJ). Professora adjunta do Instituto de Educação Física e Esportes (IEFES) da Universidade Federal do Ceará (UFC).


http://orcid.org/0000-0002-5367-7774

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, São Paulo, SP, Brasil

2Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil


RESUMO

A atuação vigorosa dos lutadores de Mixed Martial Arts (MMA), amplamente explorada pelas mídias, patrocinadores e academias, oculta a fragilidade dos vínculos laborais e as condições incertas de trabalho. Mediante este cenário foi nosso objetivo compreender as condições laborais dos lutadores de MMA no Brasil. Metodologicamente, seguimos os pressupostos da etnografia, com observações e conversações, que foram registradas em um diário de campo ao acompanhar a rotina de dois atletas em um evento de expressão nacional. Estes registros foram analisados por meio da análise de conteúdo e passaram por um processo de síntese, análise e discussão. As análises foram apoiadas na psicodinâmica do trabalho. Compreendemos aqui que o trabalho destes lutadores estava envolvido em uma complexa situação de precariedade e invisibilidade laboral perante diferentes atores sociais: patrocinadores, mídia, academias, fãs e até mesmo para eles próprios. Tal situação gerava a manutenção de extrema exploração, fragilidade em vínculos laborais e a consequente banalização das injustiças sociais por eles sofridas. A precariedade e invisibilidade do trabalho dos lutadores de MMA, a despeito do que a mídia mostra, estampa um contingente de atletas profissionais que estão longe de condições mínimas laborais e/ou das cifras milionárias que constantemente as mídias exibem.

Palavras-chave: psicologia social do esporte; psicologia do esporte; psicologia social do trabalho; MMA.

ABSTRACT

The vigorous performance of Mixed Martial Arts (MMA) fighters, widely exploited by the media, sponsors and gyms, hides the fragility of employment relationships and uncertain working conditions. Through this scenario, it was our objective to understand the working conditions of MMA fighters in Brazil. Methodologically, we followed the assumptions of ethnography, with observations and conversations recorded in a field diary when following the routine of two athletes in an event of national expression. These records were analyzed through content analysis and underwent a process of synthesis, analysis and discussion. The analyses were based on the psychodynamics of work. We understand the work of these fighters was involved in a complex situation of precariousness and labor invisibility before different social actors: sponsors, media, gyms, fans and even for themselves. This situation generated the maintenance of extreme exploitation, fragility in employment relationships and the consequent trivialization of social injustices suffered by them. The precariousness and invisibility of the work of MMA fighters, despite what the media shows, expose a contingent of professional athletes who are far from minimal working conditions and/or the millionaire figures the media constantly display.

Keywords: social psychology of sport; sport psychology; social psychology of work; MMA.

RESUMEN

La vigorosa actuación de los luchadores de Artes Marciales Mixtas (MMA), ampliamente explotada por los medios de comunicación, patrocinadores y gimnasios, oculta la fragilidad de los vínculos laborales y las inciertas condiciones de trabajo. Mediante este escenario, objetivamos en esta investigación comprender las condiciones de trabajo de los luchadores de MMA en Brasil. Metodológicamente, seguimos los supuestos de la etnografía, con observaciones y conversaciones, que se registraron en un diario de campo mientras se seguía la rutina de dos luchadores en un evento de expresión nacional. Estos registros fueron analizados por medio del análisis de contenido y pasaron por un proceso de síntesis, análisis y de discusión. El análisis siguió la psicodinámica del trabajo. Comprendemos aquí que el trabajo de estos luchadores estaba envuelto en una compleja situación de precariedad e invisibilidad laboral ante diferentes actores sociales: patrocinadores, los medios de comunicación, gimnasios, hinchas y hasta para ellos mismos. Dicha situación generaba el mantenimiento de la explotación extrema, la fragilidad en los vínculos laborales y la consiguiente banalización de las injusticias sociales sufridas por ellos.. La precariedad e invisibilidad del trabajo de los luchadores de MMA, a pesar de lo que muestran los medios, estampa un contingente de atletas profesionales que están lejos de las mínimas condiciones laborales y/o de las cifras millonarias que los medios constantemente exhiben.

Palabras clave: psicología social del deporte; psicología del deporte; psicología social del trabajo; MMA.

O MMA é uma modalidade esportiva de combate que se caracteriza por misturar várias artes marciais como Jiu-Jitsu, Boxe, Kickboxing, Muai Thay, luta greco-romana, Kung Fu, Karatê, Capoeira, Judô, entre outras (Alonso & Nagao, 2013; Awi, 2012; Franchini et al., 2011). Ganhou notoriedade nos últimos anos, principalmente por sua forma de competição que se dá em um ringue chamado de octógono que se assemelha a uma jaula e a plateia fica ao redor vendo os lutadores em 360º. Por conta dessa visibilidade, é desejável que os lutadores mostrem suas habilidades em diferentes artes marciais, não só para ganhar a luta, mas também para envolver o público com o desempenho e reivindicar um lugar de destaque entre os outros lutadores (Wells, 2012).

Amado e odiado por muitos, o MMA vem se impondo no cenário esportivo brasileiro com um número crescente de fãs, patrocinadores, praticantes, profissionais em geral, eventos, artigos esportivos e espaços nos meios de comunicação (Deloitte, 2011). Os atletas de MMA são apresentados frequentemente de modo forte e viril em diferentes canais de comunicação: revistas, programas televisivos, sites, blogs e, evidentemente, durante as lutas. Parecem não sentir dor, medo ou angústia, apresentando-se, quase sempre, com feições duras e fazendo ameaças para os adversários.

O principal evento de MMA mundial foi criado em 1993 por um brasileiro que residia nos Estados Unidos, Rorion Gracie, e foi chamado de Ultimate Fighting Championship (UFC). Atualmente é o maior evento de MMA e tem volumes de negócios que impressionam. O UFC compõe o seleto grupo da Revista Forbes, que avalia as marcas esportivas mais valiosas no mundo. De acordo com este ranking, em 2014, a empresa valia US$1.65 bilhões de dólares e, sua marca, US$ 440 milhões de dólares (Ozanian, 2014). Contudo, já em julho de 2016, o UFC foi vendido por U$$ 4 bilhões de dólares (cerca de R$ 13 bilhões de reais), para o grupo chinês William Morris Endeavor (IMG). Além do futebol, o MMA é o único esporte com um canal predominantemente direcionado a ele na TV por assinatura no Brasil: o Combate.

No Brasil, os eventos ocorrem em locais bem distintos, tendo registro de competições ocorrendo em casas de shows (Balada Kombat, CWB Party Fight, W1 Fight Party), igreja evangélica (Ultimate Reborn Fight) e na praia (W1 Fight Party). Algumas ligas se vinculam com a tentativa de retirar jovens das drogas ou do crime (Pinhais Nocauteando As Drogas, Favela Kombat, Lutando Pela Paz); outras, com as questões de gênero (Cabra Macho MMA Circuit, Coronel Combat, Iron Man Vale Tudo, Iron Girl Fight, Victory Iron Girls, Pink Fight).

Contudo, os holofotes e a visibilidade do MMA acabam não dando destaque à precariedade em que muitos atletas estão envolvidos. São treinamentos intensos que colocam o corpo em seu limite (vômitos, desmaios, descontrole dos esfíncteres), alimentação inadequada (e por vezes escassa), falta de oportunidades para lutar (pois não há eventos esportivos para todos), falta de pagamento depois das lutas (em eventos nacionais o valor médio, em 2015, era quinhentos reais, muitas vezes revertido em ingressos), falta de assistência de serviços de saúde especializados para o atendimento esportivo, convívio com as inúmeras e dolorosas lesões, substâncias ilegais que são consumidas para aumentar o rendimento (sem quaisquer cuidados em sua prescrição), apenas para citar alguns. Todos esses elementos associados fazem com que o cotidiano desses atletas seja repleto de imprevisibilidades e angústias.

Defende-se aqui que os lutadores de MMA, assim como os atletas de outras tantas modalidades profissionais, são trabalhadores (Bourdieu, 1983; Caillois, 1990; Wacquant, 2000). São pessoas que vendem seu trabalho, que se convertem em um produto comercializável em eventos de MMA e igualmente descartável se não são rentáveis. Por essa razão, muitos buscam nos diferentes estereótipos marcações de si mesmo, tais como: um corpo musculoso, a espetacularização da lesão, a agressividade verbal e os apelidos curiosos (“The Gun”, Spider, Paulada, Cachorro Louco, Deus da Guerra, Sanguinário, entre outros).

Os números de lutadores e as cifras envolvidas no mundo do MMA impressionam, mas escondem a tensão constante envolvendo patrocinadores, atletas, ligas esportivas, produtos para aumentar o desempenho e diferentes especialistas em ação. Tudo entra em jogo quando as questões financeiras estão na agenda. Se for importante transmitir a ideia de fair play (jogo limpo) para um evento, a fim de ganhar novos aliados (e patrocinadores), então assim será feito, muito embora concomitantemente em alguma agência de marketing especializada, haja um esforço para vender no mesmo evento a ideia de que o combate será "o mais agressivo de todos os tempos".

Os valores disseminados no esporte partem do aprendizado pedagógico do ganhar, do perder, da socialização, da organização da rotina e da vida. Mas ainda assim, igualmente, obrigam sobretudo os atletas de alto-rendimento a atingir metas arrojadas e a se engajar pela vitória a todo o custo. Isso porque se “tem que” atingir os objetivos estabelecidos pelos técnicos, clubes, patrocinadores e até pelos familiares (sobretudo quando se analisa a atuação de crianças/adolescentes). Nesse sentido, os atletas de MMA vivem em um ambiente laboral muito exigente e que em nada se assemelha ao prazer ou à diversão, mas aponta para uma precariedade que muitas vezes não ganha destaque para o grande público ou organizadores dos eventos mais famosos.

Ainda que sejam os atores principais do espetáculo, os atletas são invisibilizados e desprotegidos pelas diferentes políticas públicas. Parece assim ser impensável cogitar contratos de trabalho ou registro em carteira profissional, regulação ou reconhecimento de sua profissão, seguro de vida ou cuidados médicos especializados, salário-mínimo e, obviamente, uma aposentadoria. É importante dizer que, esporadicamente, alguns atletas assinam contratos com os eventos que participam ou com os clubes que representam, elaborados a olhos vistos de modo unilateral e com cláusulas protetivas aos contratantes.

Vale ressaltar que o processo de profissionalização no esporte ocorreu de forma significativamente desigual ao redor do mundo (Camilo & Rubio, 2020). Nos países com tradição em gestão esportiva, houve auxílio aos atletas na realização de contratos profissionais com clubes e empresas, facilitando o acesso à profissionalização. Além disso, eles vieram a se tornar importantes mercados de trabalho para atletas estrangeiros, como os do Brasil, onde esse processo tardou a se realizar ou simplesmente não aconteceu. Este fato talvez nos ajude a compreender o êxodo e o desejo de atletas de lutas, sobretudo de MMA, por serem contratados para os eventos internacionais, como o UFC.

Isso acontece também porque, no esporte de alto rendimento, para que o atleta possa se manter entre os melhores da modalidade é fundamental que tenham locais adequados para o treinamento, possibilidade de participar de competições constantes, acesso a treinamentos especializados, alimentação apropriada, dentre outros fatores (Silva & Fleith, 2010). Por isso, os feitos atléticos em um contexto com tamanho desinvestimento - como no Brasil - tornam os atletas que se diferenciam pessoas comprometidas, autoconfiantes, resistentes, obstinadas e que manifestam coping sobre pressão (MacNamara, Button & Collins, 2010). Talvez por isso, muitos atletas brasileiros que conseguem se destacar em sua modalidade sejam frequentemente vistos como um modelo a ser seguido, carregando também este rótulo como uma possibilidade de obter patrocínio e/ou, no caso do MMA, ser contratado por um evento mais estruturado e com maior remuneração.

Esta equação parece ser semelhante aos tradicionais discursos organizacionais sobre eficiência, em que estão implicados valores próprios da sociedade atual com o trabalho alienante, no qual o trabalhador é usado e manipulado para alcançar o rendimento máximo, em um curto espaço de tempo. Por esta razão, na concretização do objetivo da performance máxima, observa-se o quanto está implicado o uso integral do potencial físico e emocional do protagonista do espetáculo esportivo, que, muitas vezes, pode encontrar nos maximizadores externos (substâncias ilegais) o elemento para seguir na prática esportiva (Camilo & Furtado, 2017).

A precariedade e a fragilização dos vínculos contratuais geram tensões e vivências de insegurança, coexistindo ao lado da intensificação do rendimento máximo no trabalho (Franco et al., 2010). No contexto do MMA, tais questões aparecem quando a vitória em um combate se sobrepõe a vida e aos limites do corpo, assim como na necessidade de formar o maior número possível de fãs vinculados ao lutador, que são consumidores e irão gerar rentabilidade, como foi possível identificar em estudos anteriores (Camilo & Spink, 2018). O estímulo à competição excessiva entre lutadores e academias tem levado à quebra dos laços de companheirismo e prejudicado a cooperação entre os atores sociais que transitam nesse espaço, aumentando os riscos de lesões físicas e estreitamento de laços sociais. Tal como ocorre com outras categorias profissionais, a maximização do desempenho e o temor da falta de oportunidades de lutar (equivalente ao desemprego) geram também a submissão a condições de trabalho degradantes.

Portanto, relacionar a vivência desses lutadores às pressões envolvidas no meio em que lutam e treinam e, assim, apresentar a precariedade e a invisibilidade do trabalho dos lutadores de Mixed Martial Arts (MMA) é o objetivo deste artigo. Ele será fundamentado na vivência de lutadores participantes de um evento nacional, realizado em 2015, na cidade de São Paulo.

Método

Esta é uma pesquisa exploratória e de natureza qualitativa em que seguimos os caminhos etnográficos propostos por Wacquant (2000), assim como as discussões feitas pela psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1997, 2012; Dejours & Jayet, 2009). Nesta vertente, só é possível falar sobre o trabalho a partir das vivências dos trabalhadores, seu contexto, seu discurso, angústias e enfrentamentos. Cabe dizer que partimos de outros arranjos metodológicos postulados por pesquisadores vinculados à Psicodinâmica do Trabalho (Merlo & Mendes, 2009). Esta foi a razão de apresentarmos aqui as ações na qual esteve envolvida a primeira autora desse artigo, quando realizava uma pesquisa etnográfica que teve um ano de duração. Nesta, a pesquisadora acompanhava uma equipe de MMA profissional localizada na cidade de São Paulo, a partir das diferentes práticas que envolviam a comissão técnica, os atletas com diferentes níveis de experiência e relações contratuais, assim como as diversas pessoas que se vinculavam ao cotidiano dos atletas (familiares, amigos, namoradas, profissionais de saúde).

Procedimentos

Para o presente artigo, recortamos desta pesquisa etnográfica, três atos que envolveram dois atletas profissionais: a) a semana que antecede a luta, b) o dia da luta e, c) o dia imediatamente após a luta. Esses três momentos apresentaram diferentes expressões de invisibilidade e precariedade dos atletas, como será explorado aqui. É importante dizer que no dia da luta a primeira pesquisadora deste artigo recebeu uma credencial para que fosse possível acompanhar os atletas em todas as fases da luta e em todos os setores em que eles teriam acesso.

O evento que inspirou as práticas e a preparação dos atletas em questão ocorreu no ano de 2015. Foi televisionado por uma emissora de canal aberto e foi amplamente divulgado na cidade, nas redes sociais e na televisão. Cabe dizer que, no dia do evento, o ginásio em que ocorreram as lutas estava completamente lotado pelo público, jornalistas, trabalhadores de apoio, lutadores e suas equipes.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CAAE 27149614.5.0000.5482), recebendo o número do protocolo 014647/2014.

Instrumentos

Todas as interações foram registradas em um diário de campo, contendo dia, local, pessoas que participaram das interações, as relações que foram travadas entre elas, as conversas da qual se participou diretamente ou indiretamente, assim como os demais elementos que chamavam a atenção (fisionomias, gritos, situações dilemáticas). A proposta do diário de campo era servir de guia e de ordenamento da complexidade vivenciada, descrevendo o máximo possível de detalhes. Ao final da semana de preparação, do dia da luta e do dia pós-luta, foi possível coletar 65 páginas descritivas para análise, que refletem o acompanhamento de cinco dias de vivências junto aos diferentes atores.

Participantes

Aqui é importante dizer que a proposta inicial do estudo foi acompanhar dois atletas da academia pesquisada, mas que, partindo de uma proposta etnográfica, as observações e análises extrapolaram o olhar exclusivamente sobre eles. Ainda assim as interações, observações e falas aqui trazidas para debate partiram de um lugar em que eles transitaram. Chamaremos aqui de Fernando e Tadeu os lutadores que seguimos (nomes fictícios para a garantia do sigilo). Eram atletas profissionais de MMA, com idade de 22 e 24 anos, respectivamente, e sonhavam em ocupar um lugar de destaque na modalidade, assim como ter recursos para custear as despesas de suas famílias (ambos vinham de situação de vulnerabilidade social). Tadeu era profissional de MMA há quatro anos e Fernando há dois anos.

Também será destacada aqui a figura do treinador principal, que receberá o nome de Leandro. Ele era jovem e obstinado, trabalhando arduamente para auxiliar os diferentes atletas a conseguirem acessar uma melhor condição de vida. Para isso, não media esforços, colocando até sua saúde em risco, em função dos intensos treinamentos dos quais era o responsável.

Análise de Dados

Os dados foram analisados a partir da leitura do diário de observação, que continha diversas conversas entre diferentes atores. Este material foi discutido amplamente em grupo de pesquisa, para que fosse possível tecer a compreensão do trabalho dos atletas.

Os discursos foram analisados a partir de temáticas que emergiram nas observações e interações que, para as pesquisadoras, indicaram e sinalizaram a invisibilidade e a precariedade do trabalho dos atletas, refletidas na pressão, na ansiedade, na falta de assistência/cuidado com os atletas e organização da competição.

Resultados e Discussão

O ordenamento da complexidade que será aqui apresentada seguirá as três práticas em que foi possível o acompanhamento: a) os treinamentos antes do evento, b) o dia do evento e, c) o pós-evento. Vale dizer que a narrativa descritiva da análise a seguir, corresponde a interação da primeira pesquisadora deste artigo, responsável pela pesquisa no campo.

Sobre os Treinamentos na Semana da Luta

Ainda que o público leigo possa ter a impressão de que um atleta de MMA não sente dor física, esta é na realidade uma das principais causas de angústia e medo. Também por isso, a semana da luta é um momento de extrema tensão, onde os medos são acrescidos às inúmeras precariedades e o corpo é levado ao limite do suportável.

“Eu tenho medo de me machucar. Quem gosta de tomar porrada na cara, né? As pessoas acham que gostamos do gosto do sangue, mas a verdade é que sangue é sangue. Dor é dor. Às vezes não sentimos durante a luta, mas nos treinamentos....afff Maria! Mas o principal é que eu fico com muito medo de me quebrar, sabe? Eu não tenho convênio e no Hospital Público a fila é enorme. Imagina ficar 1 ano esperando para operar após uma fratura? Minha carreira iria para o lixo.” (Lutador Fernando, registrado no diário de campo).

Para Molinier (2016), após situações de grave impacto, como os acidentes de trabalho, as consequências psicológicas podem ser devastadoras. Os efeitos podem se traduzir em angústias permanentes, dos quais o sujeito pode reviver, dia e noite, a cena do acidente. Por isso, para a autora, são comuns os casos de distúrbio do sono, alimentação, entre outros. A experiência traumática, por ocasião de um acidente-lesão, deve ser um tema explorado pelos diferentes profissionais envolvidos no contexto do esporte, para além da equação do ganharperder. Há de se considerar ainda que esta possibilidade de ampliação dos olhares sobre a performance está apenas agora ganhando espaço no Brasil (Camilo & Rubio, 2020).

O medo do risco físico e das lesões sérias caminha lado a lado com a necessidade de perder líquidos do corpo até chegar no peso em que se foi contratado para lutar. Neste sentido, a fala do treinador Leandro é impactante: “Dra. olha....eu já vivo de tudo quando esses meninos precisam perder peso para a luta. Às vezes são mais de 10 quilos em uma semana. Eles entram na sauna várias vezes, com capa de motoboy de chuva, fazem 5 rounds de 5 minutos, com outro lutador da equipe. Vomitam, desmaiam, defecam. Para quem não está acostumado é uma cena muito forte” (Treinador Leandro. Diário de Campo).

Trata-se de uma profissão de risco, que leva o corpo ao limite da vida, tendo na semana da luta um dos momentos de maior tensão. Temos aqui um corpo que é naturalizado como máquina, pensado para ser eficiente, forte, convicto e adaptável, mas que o sujeito é desconsiderado. Suas reações fisiológicas (vômito, desmaio, descontrole dos esfíncteres) são vistas apenas como uma adversidade.

Talvez por isso, uma das questões pontuadas por Tadeu tenha sido o controle absoluto de seu cotidiano: “Sabe o que me cansa? Sempre tem alguém para me dizer o que fazer, o que comer, o que treinar, a hora de dormir, a hora de acordar, se bebi água, se fiquei triste, se estou motivado. É muito cansativo”.

O sofrimento que o indivíduo relata diante do controle absoluto de seu cotidiano repercute em seu estado emocional, podendo gerar exaustão e desencadear problemas em seu desempenho profissional e em sua vida como um todo. A busca exacerbada pela vitória se choca com o limite intransponível próprio do ser humano, em função do gerenciamento sem medidas, sem horas extras ou benefício extra laboral.

Por este motivo, para Dejours (2004), a inteligência no trabalho - que tanto contribuiu para a saúde mental - está condenada à discrição, às sombras, à clandestinidade, fazendo com que o trabalho efetivo não possa ser avaliado. Nessa perspectiva, ganhar uma luta, reflete apenas uma parcela minúscula da complexidade que envolve o trabalho de um atleta de rendimento.

“É mais um dia de trabalho”, os atletas prestes a lutar diziam. Talvez por isso, o pequeno espelho presente no tatame de treinamento não era muito consultado, assim como os celulares. Os lutadores estavam muito ocupados e preocupados com a assimilação do treinamento e com tudo o que envolvia a luta. Frequentemente, se ouvia um “pofff”, que apontava que alguém havia derrubado o adversário no chão. Ou ainda o barulho dos corpos sendo pressionados pelas grades do octógono (local onde as lutas acontecem). Apesar do clima ameno de maio, a umidade do ar estava baixa e dava a sensação de sufocamento, o que fazia com que o suor dos atletas fosse abundante. Talvez por esse motivo, Fernando tenha excedido sua capacidade física e começado a vomitar no tatame, indo para o banheiro solitariamente no meio do treinamento. Tal fato não pareceu ter surpreendido os demais que terminaram seus exercícios, para só depois limpar o local e prestar assistências ao lutador.

Temos aqui o que Molinier (2016) nos aponta ser uma defesa coletiva: a virilidade. Esta oferece uma compensação narcísica para a exploração, se constituindo como uma ideologia defensiva que coíbe o medo, o sofrimento e a exploração do trabalho. Em consequência, não há o questionamento dos motivos que levam os atletas a passar por situações como esta (vomitar no tatame), apenas a indiferença expressa nas fisionomias e atitudes, como se, para se tornar um campeão e “vencer na vida” fosse preciso vivenciar eventos extremos. Por isso, quando um trabalhador sofre, passa mal e não consegue cumprir com o prescrito, deve se calar, sair de cena (como ir ao banheiro solitariamente), caso contrário, poderá ser considerado fraco ou ainda “mulherzinha” (Molinier, 2016).

Sobre o Dia da Luta

Mediante as cenas já narradas na semana de preparação, salienta-se que o futuro do trabalho é também o futuro dos sujeitos e da própria civilização, tendo em vista a centralidade do trabalho na nossa configuração de sociedade (Dejours, 2011, 2012; Dejours & Abdoucheli, 1993; Heloani, 2019; Molinier, 2016). Um segundo ponto é que o trabalho jamais é neutro diante dos trabalhadores e, tampouco, diante da saúde mental. Ele pode se constituir como uma importante ferramenta mediadora para a construção da saúde, da criatividade e dos coletivos. No entanto, também é por meio dele que se pode acessar o que há de pior nas relações sociais e de exploração, resultando em grave ameaça à saúde, colaborando para as inúmeras exclusões sociais.

Em relação à pressão sofrida por eles e a sua relação com a ansiedade, percebeu-se que elas não estavam associadas apenas ao momento da luta ou a preparação efetiva para esta. Neste sentido, a observação do dia da competição foi particularmente esclarecedora, já que havia uma algazarra na academia, misturada ao sentimento de poder e de orgulho dos atletas, junto ao temor da derrota, que sinalizava e tentava esconder a tensão presente em todos. Outro elemento particularmente interessante foi notar que os atletas demonstravam estar duplamente preocupados, primeiramente com suas ações para a luta e, segundo, para receber o valor correspondente aos ingressos vendidos, para entrada no evento, que estavam sob sua responsabilidade. Ou seja, os próprios atletas, além de se prepararem para a luta, deveriam também vender os bilhetes aos amigos, familiares, alunos e fãs. Isso porque, a “bolsa”, como gostavam de chamar, era um valor de cerca de quatrocentos reais para que o atleta lutasse no evento, que eram pagos em ingressos. Assim, a ansiedade pré-competitiva, tão comumente citada por atletas de alto-rendimento e estudada pela psicologia do esporte (Lantyer et al., 2013; Leite et al., 2016), ficava em segundo plano e era substituída pelo medo de não conseguir receber nenhum numerário. É importante dizer que os dois lutadores da academia pesquisada que iam competir tinham se comprometido financeiramente e precisavam receber o valor dos ingressos. Por este motivo, em um certo momento, foi necessária a intervenção do treinador Leandro para a contenção dos ânimos, ao chamar a atenção dos lutadores que estavam com medo de não receber o valor correspondente à luta. Tadeu, atleta que iria competir, respondeu: “É que se eu não receber professor, não consigo dinheiro para vir treinar depois” (Lutador Tadeu, diário de Campo, fevereiro de 2015).

Há um outro elemento que se podia ouvir com entusiasmo: “Esse evento vai ter transmissão da TV. Isso é mais patrocínio para a gente!” A expectativa e o sonho bloquearam a razão do lutador para o que era iminente: o patrocinador seria mais visibilizado, ele mesmo, não. O que seria visualizado era o pedaço de carne no ringue, que deveria dar sua energia e sua saúde, espetacularizando ao máximo seus movimentos para atender aos sedentos fãs, mídias e empresários. Ao que pareceu ao longo da noite, assim como nas rotinas que procederam ao evento. Tanto fazia se o atleta era X ou Y, se carregava a história A ou B, ou ainda, se vivia em extrema precariedade no seu cotidiano e treinamento.

Para Dejours este trabalhador invisibilizado não suscita a indignação, cólera ou ação coletiva. Até porque isso só poderá ocorrer quando se estabelece um elo entre a percepção de sofrimento alheio e a convicção que este sofrimento resulta em uma injustiça (Dejours, 2006). Mas como suscitar a indignação coletiva se os lutadores são sempre apresentados de modo forte e viril como apontado anteriormente? O trabalhador-atleta, em sua subjetividade e complexidade, não pode ser reduzido a um número, uma vitória, uma medalha ou um troféu. Tal como destacam Lancman e Uchida (2003) os sujeitos possuem contradições, mudam, têm sentimentos imprevisíveis, são angustiados, têm desejo e medo.

Como visibilizar o trabalho e o sofrimento desses atletas? Como mostrar para o público que eles não são tão fortes assim? Que eles são humanos que lutam, sentem dor e medo como um humano “normal”? Como compreender amplamente o atleta em sua complexidade se a imagem amplamente difundida é idealizada e fundamental para que se vendam produtos esportivos (Bourdieu, 1983)? Temos aqui as contradições presentes no esporte de rendimento.

Já presentes no ginásio onde seria realizado o evento, a pesquisadora nota um lutador, de outra academia, com tremores em seu corpo, sinalizando, aparentemente e superficialmente, um mal-estar generalizado, que é comumente atribuído no contexto esportivo, como ansiedade. Por este motivo, a pesquisadora se dirige ao atleta e o questiona se precisa de ajuda, ao que foi respondida com: “Estou bem, é que almocei às 11:00 e não tive dinheiro para trazer um lanche. Daí o evento atrasou e estou aqui assim. Mas daqui a pouco me chamam para lutar”. Cabe aqui enfatizar que já eram cerca de 23:30 e não havia qualquer indício de que ele seria chamado para a luta.

A dura realidade desse atleta, de não ter dinheiro para lanchar, é comum a muitos outros, mesmo para atletas de alto rendimento. Não há condições mínimas de trabalho e de feitos atléticos, ainda que o julgamento ávido do público, da mídia ou do empresariado, reivindique excelência na performance.

Outra dimensão que foi possível notar nessas interações é que o local em que os atletas faziam seus aquecimentos era relativamente distante do ringue, em um local escuro no ginásio e próximo a uma saída de emergência. Fazia muito frio em São Paulo e não havia qualquer tipo de suporte de saúde, além de alguma proteção contra o frio e, mais básico ainda, algum alimento ou água.

Em outro momento do evento, por ocasião do encerramento de uma luta, foi possível notar que um lutador, ao ser derrotado e supostamente nocauteado (perdendo assim a consciência), sai do local do combate, ensanguentado e aparentando uma lesão séria, como uma fratura. Este foi levado pelo seu técnico, junto a uma enfermeira, até o local de aquecimento onde estava a pesquisadora. O procedimento feito pela enfermeira não passou de uma limpeza no rosto e a recomendação que procurasse um médico. Desta forma, o atleta foi abruptamente retirado do ginásio sem uma assistência mais cuidadosa, tendo no papel da enfermeira, além do estancamento do sangue, um apoio até a porta de saída dos fundos do ginásio. Cabe dizer ainda que ela volta apressada para seu posto próximo ao ringue, já que ninguém poderia ficar “sem atendimento”. Por este motivo, a pesquisadora interpela um dos treinadores sobre a situação de descaso em relação ao estado de saúde do atleta sendo respondida que essa é uma situação comum e que já não chama mais a atenção:

“É o que sempre acontece nos eventos. Deve estar esperando alguém levá-lo até o hospital. Mas o evento nunca se responsabiliza. É o atleta que tem que buscar o tratamento. Esse aí, coitado, vai ficar horas para ser atendido. Tomara que tenha sorte de achar um bom médico” (Treinador Leandro, registrado no diário de campo).

Nessa direção, em uma modalidade tão intensa como o MMA, seria possível pensar em uma remuneração por acidente de trabalho? Seria possível um afastamento? Ao menos uma corresponsabilidade dos donos dos eventos? Se não bastassem essas inquietações, ainda vale destacar que não houve qualquer incômodo das pessoas ali presentes perante o que havia acontecido. O pedaço de carne foi derrotado e uma nova luta precisaria iniciar. Com isso, se reforça a lógica do trabalho invisível estabelecido: para a lei, para os proprietários dos eventos de MMA, para o público e até mesmo perante os próprios lutadores e suas comissões técnicas.

Os dois atletas que acompanhamos lutaram com absoluto atraso. O primeiro com quatro horas e o outro após seis horas do horário previsto. Isso ocorreu em função de uma intercorrência na transmissão e da suposta relação contratual não prevista entre a emissora e o dono do evento de MMA. O motivo do atraso ou encaminhamentos possíveis para minimizar os impactos não foi clarificado para as equipes e atletas. Por isso, eles ficaram ali, com fome, cansados e sem saber muito bem o que fazer. Por volta das duas horas da madrugada foi possível ver atletas deitados no chão (fazia frio em SP). “Eu quero é acabar logo com isso daqui. Ganhar logo e ir embora para casa” (Tadeu, diário de campo). Aqui não se via ansiedade pré-competição, tudo aconteceu de forma a não ter um olhar cuidadoso com o atleta.

Dejours (2012) apresenta a distância irredutível entre a realidade (real do trabalho) e, de um outro lado, as previsões, prescrições e os procedimentos (trabalho prescrito). Um atleta é contratado para lutar com algum acordo prescrito, ainda que feito de modo precário (por mensagens, telefonemas e, na melhor das hipóteses, formalizado por e-mail). É esse trabalho prescrito que apresenta um acordo que propicia ao lutador vincular seus objetivos de carreira, como se tornar um atleta de destaque, lutar em um evento maior, com mais visibilidade e remuneração. No entanto, é na atuação em si, no dia da luta, que o prescrito fracassa, apresentando a dura realidade dos eventos nacionais e suas limitações.

Será, portanto, no real do trabalho que o rompimento dos acordos firmados confronta o sujeito com o fracasso, de onde surge um sentimento de impotência, que ataca a virilidade e causa a visível irritação, cólera, decepção e esmorecimento. O real é assim apresentado para o atleta por meio de um efeito surpresa desagradável, ou seja, de um modo afetivo. Ao confrontar o prescrito com o real do trabalho, o lutador é assim arremessado inevitavelmente ao sofrimento, que é a condição necessária para a transformação e a luta por melhores condições. Será assim nesse momento que os trabalhadores poderão se mobilizar, não a partir de um sonho de esperança de felicidade, já que sempre duvidamos dos resultados de uma transformação política, mas na cólera contra o sofrimento e a injustiça considerados intoleráveis. Dito de outro modo, a ação coletiva seria mais reação do que ação, reação contra o intolerável, mais que ação voltada para a felicidade (Dejours, 2006).

Os atletas estavam visualmente cansados e com sono, com o lutador Fernando ainda se culpando por não estar “ativado” o suficiente para o combate. Tal como um trabalhador assalariado, um lutador de MMA, tem sua subjetividade gerida e controlada pela organização em que atua. Práticas de controle individualizantes são introduzidas, a fim de maximizar o rendimento e reduzir as críticas coletivas. Nesse sentido, sobra pouco espaço para o vacilo, para a derrota, para a recusa de uma luta quando se está cansado ou se foi assediado por uma organização esportiva.

O cansaço, o sono sentido, é convertido em mais culpabilização do atleta quando a pesquisadora escuta da namorada de um deles que espera que ele não faça “corpo mole como da última vez”. Impossível dissociar os processos psicofisiológicos da performance. Na concepção aqui adotada não há “treinamento mental” possível para “adestrar” o atleta e garantir sua melhor atuação, considerando as inúmeras intercorrências do evento esportivo que é aqui apresentado. Tampouco o conhecido “tapinha nas costas” ou os inúmeros apelos à masculinidade (ex: vai lá e mostra para ele que quem manda aqui é você; você é um monstro! Destrua tudo!) são capazes de se sobrepor aos processos primários fisiológicos (sono, fome).

Além disso, a vida psíquica não pode ser dissociada do corpo e deve ser entendida de modo integrado ao funcionamento do organismo. A dissociação entre as exigências do trabalho e as necessidades psicofisiológicas podem gerar inúmeros eventos psicossomáticos. Para Dejours (2012), o que está implicado no sofrimento no trabalho é, antes de tudo, o corpo, já que é nele que se instala o sofrimento por meio da restrição de condutas: seja nas lesões, na dor da incapacitação de movimentos, na autoagressão, no estresse ou na fadiga.

Sobre o Pós-luta: Aos Derrotados a Solidão

Neste dia de competição, após dois anos de vitórias, a academia perdeu sua invencibilidade em ambas as lutas. Mas o resultado não pode ser compreendido apenas como expressão de força, destreza, aspectos técnicos e táticos dos oponentes ou a incompetência dos demais. Ao exigir dos atletas uma performance além do corpo, do previsto ou do razoável, os contratantes ultrapassam barreiras importantes, beirando as fronteiras que resultam em assédio moral. Se, por um lado, as equipes conseguem tecer críticas aos eventos e contratantes, por outro, a fim de atender as demandas do mercado (substancialmente os patrocinadores e a televisão), as equipes passam a ser coniventes com as ações aviltantes ao atleta como, por exemplo, os deixando sem alimentação, no frio e exigindo sua performance máxima. Tal realidade passa despercebida pelo público cliente, sem desencadear reivindicações ou senso de solidariedade.

O primeiro atleta que lutou e foi derrotado, Tadeu, perdeu por pontos, o que significa que ele lutou três “assaltos” de 5 minutos e que, não tendo um vencedor neste período (por nocaute ou “submissão”), a decisão da vitória foi tomada pelos três juízes responsáveis. Por unanimidade, o adversário de Tadeu foi sagrado vencedor. Não foi possível falar com ele após a luta, já que ele rapidamente pegou sua mochila e saiu, solitariamente, do local do evento. Já Fernando foi nocauteado, o que significa que sofreu um golpe que o fez perder a consciência e o impossibilitou de continuar no combate. Ao descer do ringue, ele me procura, agradece e pede desculpas pela “atuação decepcionante”. Ele acreditava ter perdido também para o “psicológico”: “Dra. acho que não estou com a cabeça boa, perdi para o meu psicológico”.

Ser um atleta de elite requer desempenhos mais e mais espetaculares, à altura do que acredita ser sua capacidade e de suas obrigações morais para com a equipe, os patrocinadores e a audiência. Na lógica meritocrática, se o atleta se aplicar “como se deve”, com afinco, determinação, foco, motivação, ele terá uma bela carreira e sairá vencedor de (todos) os combates (Camilo, 2020). Evidentemente, a derrota, a desclassificação, o baixo “salário” são exclusiva culpa de seu desempenho, tendo “o psicológico” como antagonista. Os fatores psicológicos atuam como uma espécie de sabotador: algo que, sem pedir licença, invade o sujeito e faz com o que ele não consiga o mesmo rendimento.

É aqui que os corpos exaustos representam o fim de um longo ciclo de preparação, deixando no ar angústias de diversas ordens. Dentre elas, o medo de não mais ser convidado para lutar, de nunca poder custear as despesas da família e o sentimento de ser fracassado. A derrota deixou o trabalhador relegado ao abandono, sem ajuda, união ou solidariedade. Nenhuma foto, nenhum abraço ou acolhimento. Era a hora de vivenciar a derrota, voltar para a academia e treinar mais, mais, mais, como se pode ouvir de modos variados pela equipe técnica, torcida e pelo lutador Fernando. Naquele momento, não havia espaço para o questionamento das mazelas que envolveram os atletas durante toda a preparação, apenas que a lógica do ganhar e perder, dependeria única e exclusivamente deles.

A derrota estampada traz a ideia de “cada um por si”, de tal maneira que finalmente o sucesso, a vitória do meu colega é ruim para o meu futuro. Se a avaliação individualizada do ofício coloca em concorrência todos contra todos, aquele que tem um bom resultado do meu lado (o que vence a luta), passa a ser uma ameaça para mim. Então, a cooperação da qual falamos é destruída. Este profundo desamparo coletivo que é ainda reforçado pelo próprio escopo da tarefa do ser atleta: competição contínua e busca da eficiência e excelência, dia após dia, competição pós competição. Não há uma mobilização consistente da categoria atleta em prol de melhores condições laborais, já que estes trabalhadores são constantemente incentivados à rivalidade.

É nesse sentido que relatamos que as perspectivas de solidariedade entre atletas e todos aqueles que vivem do esporte precisam ser resgatadas, reduzindo as barreiras entre sujeitos, para afirmar uma luta coletiva por melhores condições laborais.

Isso leva ao “cada um por si”, de tal maneira que finalmente o sucesso e a vitória do colega sejam ruins para o futuro do atleta. Se a avaliação individualizada de performance coloca em concorrência todos contra todos, aquele que tem um bom resultado do meu lado, passa a ser uma ameaça para mim, então a cooperação da qual falamos é destruída, assim como o viver junto. E tudo que dissemos sobre a democracia desaparece e, finalmente, o respeito pelo outro, a ajuda, a união e a solidariedade desaparecem.

Assim, o atleta derrotado é frequentemente e publicamente levado a lutar contra o seu próprio sofrimento, gerando posteriormente, nas palavras de Dejours (2006), uma postura de indisponibilidade e de intolerância para com o sofrimento alheio. As metas, os rankings, os recordes são cada vez mais irreais, mas não há uma postura crítica quanto a isso. A luta continua sendo para que seja possível a superação do outro em combate.

Considerações Finais

A falta de olhares cuidadosos e de um senso mínimo de solidariedade contribuirão para o que Dejours (2006) chama de banalização da injustiça social. Para o autor, nem todos partilham do mesmo ponto de vista, segundo o qual as vítimas do trabalho precário, do desemprego (ou a falta de um contrato mínimo de trabalho), seriam vítimas também de uma injustiça. Esta é uma das razões que leva a um entendimento coletivo de que os problemas enfrentados pelos atletas são meras adversidades. Por isso, não se reclama necessariamente uma ação política, de compaixão ou de piedade. Isso acarreta, a indiferença pelo sofrimento psíquico e físico do outro e, portanto, à tolerância social perante a exploração desmedida.

Agrega-se a isso outra variável: a crise econômica e o aumento do desemprego no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) teve-se em 2016 (um ano depois do evento analisado) um incremento de 3,269 milhões de desempregados em comparação com 2015, o que correspondia a 12% da população ativa em dezembro de 2016 (12,342 milhões de pessoas), caracterizando um crescimento de 36% de um ano para o outro. As consequências disso versam sobre a redução dos eventos de luta, diminuição de torcida pagante, menos possibilidade de conquistar condições mínimas de trabalho, assim como menor possibilidade de se inserir em outras atividades profissionais.

O fim do crescimento do MMA traz a perda da esperança, do sonho de se tornar um superstar, do progresso social ou da possibilidade de certa estabilidade de vida. Com isso, muitos atletas vivem limitando-se aos ganhos necessários para sua sobrevivência. Pedem patrocínios mínimos, tais como um suplemento alimentar, um equipamento para a prática da luta ou atendimento médico. Em troca, estampam a marca do patrocinador em uma camiseta, tiram fotos ou fazem uma postagem nas redes sociais e aceitam as condições mínimas oferecidas pelos eventos de luta.

Assim, a precariedade e invisibilidade do trabalho dos lutadores de MMA que foi aqui possível de ser vivenciada - a despeito do que a mídia mostra - estampa um contingente de atletas profissionais que estão longe de condições mínimas laborais e/ou das cifras milionárias que constantemente as mídias exibem. Retomam-se aqui as questões iniciais: como suportar o cotidiano de ser um atleta de MMA, invisibilizado e precarizado como trabalhador? Como tolerar um trabalho que implica o uso do corpo no limite da lesão, pelo medo da derrota ou pelo medo de não ser convidado para lutar?

Diante do exposto no presente trabalho, percebe-se a importância do Estado e seu papel regulador, tanto na formulação das políticas públicas do esporte no Brasil, quanto no estabelecimento de regulação quanto ao trabalho dos atletas. Deve-se ressaltar, contudo, que diferentes interesses históricos, comerciais, políticos e sociais permeiam o esporte e dificultam mudanças estruturais.

Ao investigar as práticas que permearam uma equipe de MMA na cidade de São Paulo, no ano de 2015, tivemos um retrato das condições aviltantes a que estes profissionais são submetidos. No entanto, faz-se fundamental abrir novas investigações, em diferentes estados do Brasil, tanto nas capitais, quanto nos interiores, buscando aprofundar e compreender nuances peculiares em diferentes territórios. Além disso, há tantos outros profissionais no entorno de um atleta de rendimento, no nosso caso no contexto das lutas, que merecem pesquisas e análises sobre suas condições laborais. Falamos aqui especificamente dos profissionais de educação física, instrutores de lutas e dos profissionais de saúde (enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos). Estas são lacunas que convidamos os diferentes campos da ciência para debate e aprofundamento, sobretudo a psicologia social, a psicologia do trabalho e a psicologia do esporte.

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi parcialmente financiada pelo Pipeq/PUCSP da primeira autora.

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Recebido: 07 de Novembro de 2020; Revisado: 01 de Abril de 2021; Aceito: 08 de Maio de 2021

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