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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.68638 

PSICOLOGIA SOCIAL

Práxis em Psicologia Social: Experiências de Pesquisa e Extensão na Microrregião de São João del-Rei

Praxis in Social Psychology: Research Experiences and Extension in the Microregion of São João del-Rei

Praxis en Psicología Social: Experiencias de Investigación y Extensión en la Microrregión de São João del-Rei

Maximiliano Rodrigues2 

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário UNA. Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), MG, Brasil. Bolsista da CAPES.


http://orcid.org/0000-0001-9916-3763

Isa Magesti Corrêa Netto1 

Graduada e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista da CAPES.


http://orcid.org/0000-0002-8037-3928

Juliana Silva de Carvalho2 

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves - UNIPTAN; pósgraduada em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Estácio de Sá e Mestra em Psicologia pela UFSJ.


http://orcid.org/0000-0001-7425-6867

Marcos Vieira Silva2 

Graduado e Mestre em Psicologia pela UFMG. Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).


http://orcid.org/0000-0003-0315-004X

1Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

2Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ, São João del-Rei, MG, Brasil


RESUMO

Este artigo visa a destacar a experiência de trabalho em Psicologia Social desenvolvida pelo grupo de ensino, pesquisa e extensão denominado “Processos grupais e articulações identitárias (PGAI), vinculado ao Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Busca-se, sobretudo, relatar como os saberes e fazeres do PGAI amparados pela Psicologia Social Crítica e suas categorias de análise, podem contribuir para a emancipação de algumas populações de São João del-Rei. Pretende-se identificar também como o processo grupal pode fortalecer a construção de políticas públicas locais, de forma a promover transformação social. Foi possível perceber que a práxis que o grupo vem exercendo tem possibilitado a efetivação de mudanças no cotidiano das pessoas envolvidas que, marcadas por alguns eixos de desigualdade e opressão, encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Nesse sentido, as práticas realizadas permitem ao público envolvido tanto desenvolver uma consciência crítica, quanto exercer ações de mudança social, favorecendo, assim, melhores condições de vida e novos sentidos existenciais.

Palavras-chave: processo grupal; políticas públicas; transformação social; emancipação; identidade.

ABSTRACT

This article aims to highlight the work experience in Social Psychology developed by the teaching, research and extension group called "Group processes and identity articulations: possible partnerships and interactions with public health and social inclusion policies" (PGAI), linked to the Laboratory of Research and Psychosocial Intervention (LAPIP) at the Federal University of São João del-Rei (UFSJ). It seeks, above all, to report how the knowledge and actions of the PGAI, supported by Critical Social Psychology and its analysis categories, can contribute to the emancipation of some populations of São João del-Rei. It is also intended to identify how the group process can strengthen the construction of local public policies, in order to promote social transformation. It was possible to notice that the praxis that the group has been exercising has enabled the implementation of changes in the daily lives of the people involved who, marked by some axes of inequality and oppression, are in a situation of social vulnerability. In this sense, the practices carried out allow the public involved to both develop a critical awareness and carry out actions for social change, thus favoring better living conditions and new existential meanings.

Keywords: group process; public policies; social transformation; emancipation; identity.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo resaltar la experiencia laboral en Psicología Social desarrollada por el grupo de docencia, investigación y extensión denominado "Procesos grupales y articulaciones identitarias: posibles alianzas e interacciones con políticas de salud pública e inclusión social" (PGAI), vinculado al Laboratorio de Investigación. e Intervención Psicosocial (LAPIP) en la Universidad Federal de São João del-Rei (UFSJ). Se busca, sobre todo, informar cómo los conocimientos y acciones del PGAI, apoyados por la Psicología Social Crítica y sus categorías de análisis, pueden contribuir a la emancipación de algunas poblaciones de São João del-Rei. También se pretende identificar cómo el proceso grupal puede fortalecer la construcción de políticas públicas locales, con el fin de promover la transformación social. Se pudo notar que la práctica que viene ejerciendo el grupo ha permitido implementar cambios en la vida cotidiana de las personas involucradas que, marcadas por algunos ejes de desigualdad y opresión, se encuentran en una situación de vulnerabilidad social. En este sentido, las prácticas realizadas permiten involucrar a la ciudadanía tanto para desarrollar una conciencia crítica como para realizar acciones de cambio social, favoreciendo así mejores condiciones de vida y nuevos significados existenciales.

Palabras clave: proceso grupal; políticas públicas; transformación social; emancipación; identidade.

O presente artigo traz o relato da experiência de trabalho em Psicologia Social desenvolvida pelo grupo denominado “Processos grupais e articulações identitárias (PGAI)’’. Este é vinculado ao Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Trata-se de um coletivo que, desde 2007, vem desenvolvendo práticas de ensino, pesquisa e extensão na microrregião de São João delRei.

A microrregião de São João del-Rei, com extensão territorial de 5.774,000 km2, possui 15 municípios e uma população de 182.686 habitantes. Trata-se de uma região com diversas cachoeiras, grutas, casarões e fazendas coloniais e, devido a isso, marcada pelo turismo ecológico. As principais atividades econômicas do local são o comércio, a mineração e a pecuária. A microrregião também se destaca pela forte tradição musical, religiosa e artesã (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020).

A partir disso, é importante pontuar que as atividades extensionistas e de pesquisa desenvolvidas pelo grupo são amparadas pelo campo teórico, metodológico, político e ético da Psicologia Social Crítica e por algumas de suas categorias centrais, as quais também são abordadas aqui - processo grupal, afetividade, identidade, consciência, atividade e emancipação. Essas categorias analíticas, articuladas às contribuições de autores clássicos e contemporâneos da Psicologia Social, têm colaborado para o desenvolvimento dos nossos saberes e fazeres nos territórios de São João del-Rei.

O grupo em questão é coordenado por Marcos Vieira-Silva, que vem compartilhando conosco - graduandos, mestrandos e doutorandos - a sua ampla trajetória acadêmica, profissional e de militância. Marcos Vieira-Silva foi orientando de Doutorado da professora e doutora Silvia Lane, experiência que o levou a adotar uma maneira muito particular de produzir e compartilhar conhecimento. Isso fica evidenciado no cotidiano do nosso processo grupal, que é pautado no que Sawaia (2006, p. 88) chamou de um estilo “laneano”, “uma forma de trabalhar artesanalmente a teoria, de criar bons encontros, dos quais ninguém sai o mesmo”.

Por não termos saído os mesmos desses encontros, é que pretendemos apresentar aqui como o grupo vem atuando junto à comunidade da microrregião de São João del-Rei com vistas a transformá-la. Mantendo a esperança utópica de colaborar para a construção de uma sociedade justa e igualitária, lembramo-nos sempre de uma frase proferida por Galeano (1994, p. 310): ‘‘A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar’’.

Em tempos de incontáveis retrocessos políticos, não deixar de caminhar torna-se uma tarefa ainda mais imprescindível. O avanço do autoritarismo, do negacionismo científico e do neoliberalismo traz consequências negativas diretas à democracia e à igualdade. De maneira mais acentuada, o Estado patriarcal, capitalista e racista reproduz opressões de gênero, raça, classe, território e outras. Por isso, faz-se urgente discutir sobre práxis em Psicologia Social que contribuam para a consolidação de todas as lutas democráticas, plurais e igualitárias (Ribeiro, 2018).

O Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (LAPIP)

O LAPIP é um laboratório interdisciplinar, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei. Trata-se de um espaço de ensino, pesquisa e extensão, que desenvolve um conjunto de atividades teóricas e práticas voltadas para a comunidade em geral. Lançando mão de diversas metodologias de estudo e intervenção em Psicologia Social, o principal objetivo do LAPIP consiste em realizar análises e intervenções psicossociais na sociedade, buscando efetivar uma práxis transformadora da realidade.

O trabalho do laboratório é desenvolvido em parceria com instituições presentes na microrregião de São João del-Rei, tais como a Associação dos Portadores de Diabetes, as Secretarias Municipais de Saúde e de Assistência Social. Ademais, o LAPIP estabelece intercâmbio com Programas de Pós-Graduação de outras universidades brasileiras, como Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro e de São Paulo, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade Federal Fluminense (UFF).

Atualmente, o LAPIP conta com um total de sete programas de pesquisa e/ou extensão, os quais se mantêm integrados ao Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). São eles: São eles: (i) Diversidade e Trabalho - aspectos Psicossociais e Organizacionais; (ii) Estudos sobre formação Cultural e Teoria Crítica da Sociedade; (iii) Fundamentos teórico-práticos da Psicologia Escolar/Educacional; (iv) História da Psicologia e Intervenção em contexto escolar; (v) Linguagem, Cultura e Cognição: (vi) Processos Grupais e Articulações Identitárias; e (vii) Trabalho, Saúde e Inserção Social (LAPIP, 2017).

No tocante à estrutura física, o LAPIP é um prédio de dois andares que conta com uma sala de informática, duas salas para realização de reuniões gerais e nove salas individuais para uso dos professores/pesquisadores. Possui também uma academia de musculação e uma brinquedoteca, fundamentais para algumas intervenções junto à comunidade, principalmente aquelas que são realizadas com crianças e adolescentes institucionalizados, idosos e pessoas com deficiência. Vale ressaltar que todo o espaço desse laboratório oferece acessibilidade - elevadores e rampas - para pessoas com mobilidade reduzida/comprometida.

O Grupo “Processos Grupais e Articulações Identitárias’’ (PGAI)

O grupo de pesquisa e extensão intitulado “Processos Grupais e articulações identitárias’’, vinculado ao laboratório mencionado acima, foi fundado no ano de 2007 pelo professor doutor Marcos Vieira-Silva. Este é docente adjunto da Universidade Federal de São João del-Rei e há tempos tem protagonizado trabalhos dentro da instituição. O processo grupal coordenado por ele vem desenvolvendo um conjunto de práxis que buscam contribuir tanto com as demandas de algumas populações e/ou instituições quanto com o compromisso de uma Psicologia historicamente situada e politicamente posicionada.

Em relação às pesquisas desenvolvidas por esse coletivo, elas contemplam principalmente os seguintes grupos e organizações: (a) corporações musicais - orquestras e bandas; (b) pessoas com diabetes mellitus; (c) idosos institucionalizados; (d) instituições e serviços ligados às políticas públicas de saúde e assistência social; (e) organizações e associações comunitárias; e (f) movimentos sociais. As metodologias utilizadas em tais investigações são, em sua maioria, revisões de literatura, entrevistas, observações participantes, grupos de reflexão, história oral, pesquisa-ação e pesquisa-intervenção.

Vieira-Silva (2020) destaca quatro principais pontos que o grupo tem investigado, sendo que o primeiro diz respeito ao processo grupal e às produções identitárias em corporações musicais. Os resultados das pesquisas demonstram que, por São João del-Rei ser uma cidade que possui forte tradição musical, a participação em bandas e orquestras pode contribuir para que as pessoas desenvolvam sentimentos de pertença grupal e cultural. Isso possibilita a produção de novos afetos, novas identidades e novos projetos de vida. Nas palavras do próprio Vieira-Silva (2020), “a música distingue socialmente os músicos; a participação nos grupos cria um espaço de socialização; a música é, também, um projeto de vida”.

O segundo ponto que vem sendo estudado pelo grupo refere-se às implicações psicossociais da diabetes mellitus, à análise das constituições identitárias, dos processos de consciência e participação social dos diabéticos. Através de dinâmicas grupais realizadas em conjunto com a Associação dos Portadores de Diabetes da cidade, os usuários desenvolveram um saber significativo em relação aos riscos que a doença envolve. A partir dessa conscientização, eles assumiram também posturas mais ativas no que tange à busca de seus direitos, à aquisição de medicamentos gratuitos e ao acesso a serviços públicos de saúde.

A terceira temática concerne ao estudo das relações de ludicidade, afetividade e memória de idosos institucionalizados, assim como das políticas e instituições que amparam essa população. As pesquisas/ações realizadas com a população idosa têm proporcionado a efetivação de grupos de reflexão e convivência, os quais favorecem o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Os resultados evidenciam que ao participarem das pesquisas e intervenções, as pessoas idosas desenvolvem, muitas vezes, consciência de seus direitos e assumem atitudes reivindicatórias. Ou seja, assim como no caso dos diabéticos, essas pessoas passam a exercer suas cidadanias de maneira mais consciente, ativa e autônoma.

O último ponto investigado diz respeito à inserção da Psicologia em determinadas políticas públicas de saúde, assistência social e outras. Nos últimos três anos o grupo vem realizando trabalhos em cinco Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) da microrregião, analisando alguns dos principais problemas e desafios, possibilidades e avanços que atravessam a atuação dos psicólogos dos CRAS. Tais análises estão sendo usadas para sistematizar as especificidades de atuação da Psicologia no campo da Assistência Social, na busca de contribuir para práticas mais eficazes e emancipatórias.

Já no campo da extensão, algumas atividades desenvolvidas pelo grupo têm colaborado com questões importantes para o desenvolvimento da Psicologia enquanto ciência e profissão, assim como para a concretização da universidade enquanto instituição social e científica. Segundo Ferraz e Del Ciampa (2019) e Vieira-Silva (2020), a extensão universitária propicia a produção de conhecimento e a efetivação de ações de mudança; tratase de um dispositivo potente para promover o diálogo e a interação entre conhecimento científico e comunidade. Para ilustrar, serão apresentados dois projetos de extensão que vêm sendo executados coletivamente no momento presente.

O primeiro, intitulado “Doce Vida”, tem como objetivo principal contribuir para a promoção do bem-estar e da qualidade de vida de pessoas diabéticas através de reflexões sobre a forma de lidar com a doença. Para isso, são promovidos grupos de reflexão, palestras e rodas de conversa com os indivíduos, que contam com a participação de estudantes e profissionais da saúde e de áreas afins. Essas ações têm favorecido uma maior adesão dos sujeitos aos tratamentos, assim como os auxiliado na busca por serviços de saúde públicos de qualidade. Os encontros também possibilitam o compartilhamento de experiências e a produção coletiva de novos modos de lidar com as dificuldades provenientes da diabetes.

O segundo projeto extensionista foi construído e desenvolvido junto às populações artesãs. Cabe pontuar que o artesanato é uma importante expressão cultural da microrregião em questão. Diante disso, foram realizados grupos com o objetivo de resgatar e valorizar a identidade cultural dos artesãos, buscando colaborar para que eles desenvolvessem uma consciência crítica em relação à importância de suas atividades para a região. Além disso, atividades de certificação de produtos e capacitação profissional foram executadas para fins de fortalecer o trabalho artesanal.

Diante do exposto, é possível afirmar que as atividades extensionistas e de pesquisa protagonizadas pelo grupo impactam positivamente os territórios atendidos. Cabe frisar também que, além de vir assumindo uma postura prática orientada à transformação social, o grupo tem sido responsável por um número significativo de produções teóricas e científicas no campo da Psicologia Social - artigos, dissertações, teses e livros. Atualmente estão sendo desenvolvidas três dissertações de Mestrado e três teses de Doutorado no grupo, bem como parcerias com outros coletivos, movimentos e campos de conhecimento da Universidade Federal de São João del-Rei e outras instituições.

É fundamental pontuarmos também os inúmeros desafios e limitações que o coletivo também vem enfrentando atualmente, influenciados principalmente: (a) pelas políticas e ações neoliberalistas, que criam processos de subjetivação cada vez mais individualizante; (b) pelo negacionismo científico que assola o país atualmente, implicando no corte de verbas referentes às pesquisas e extensões universitárias; (c) pela rotatividade de alunos no grupo, o que acaba dificultando a continuidade de alguns projetos; e (d) pelas limitações teóricas e metodológicas com as quais nos deparamos diante das imprevisibilidades presente no cotidiano das comunidades.

Categorias Orientadoras da Práxis do Grupo “Processos Grupais e Articulações Identitárias”

Tendo em vista que o trabalho do grupo PGAI parte da perspectiva da Psicologia Social Crítica, durante a realização das atividades lançamos mão de algumas categorias analíticas consideradas centrais para o campo - processo grupal, afetividade, identidade, consciência, atividade e emancipação. Estas nos auxiliam no processo de análise das situações cotidianas presentes no contexto comunitário e na construção de ações e intervenções coerentes com as necessidades das populações envolvidas. Abordaremos a seguir tais categorias temáticas, apontando também as relações destas com os saberes e fazeres do coletivo.

Processo Grupal

Partimos da concepção de que todo ser humano, enquanto ser histórico e social, vivencia diversas experiências de participação grupal. As pessoas pertencem a diferentes grupos, sejam eles formais ou informais. Dito isso, Lane (2012a) destaca a importância que os grupos têm na sociedade, tendo em vista que a maioria das atividades humanas é exercida na dimensão da coletividade.

O conceito de grupo é definido por Pichon-Rivière (1998) como um conjunto de pessoas ligadas no tempo e no espaço que se propõem à realização de uma tarefa, de modo que para alcançá-la estabelecem vínculos entre si e assumem diferentes papéis. O trabalho de todo grupo acontece tanto de forma vertical quanto horizontal, pois, sendo uma atividade coletiva, integra a história de vida de cada integrante, bem como a trajetória de desenvolvimento do grupo como uma totalidade.

Levando em consideração tais características inerentes ao grupo, Martín-Baró (1989) e Lane (2012a) ampliaram o conceito justificando que é mais coerente se falar em “processo grupal”, em virtude do caráter histórico e dialético do mesmo. Ademais, quando falamos em processo pensamos em movimento, em algo que caminha e se transforma permanentemente, sendo que nessa trajetória vão surgindo outros elementos e novas situações.

O grupo é mais que a soma de seus membros, é lugar de pluralidade, de troca de informações e experiências onde as pessoas criam vínculos e estabelecem identificações. Assim, o processo grupal se constrói em um espaço e tempo específico, que é interseccionado com várias dimensões sociais, articulado às vivências subjetivas e à realidade objetiva (Martins, 2007). O PGAI, por exemplo, vem criando sua própria maneira de ser grupo ao longo dos anos, pautado pela resistência, pela abertura de frestas e pela junção de saberes e experiências que impulsionam o nosso fazer cotidiano.

Partindo de Lane e Pichón-Riviére, venho trabalhando e considerando processo grupal como as maneiras/estratégias pelas quais o grupo vai produzindo, criticamente, o seu próprio modo de ser grupo, o processo de se organizar para desenvolver o seu fazer, realizar suas tarefas, sejam as que lhe foram propostas ou as que ele se propõe por vontade própria, em razão de suas atividades cotidianas. Vale ressaltar que grupo é gerúndio, ou seja, ele não está pronto, ele está sempre se fazendo, sempre em processo de produção de si mesmo e de seus modos de ser grupo. (Vieira-Silva, 2020, pp. 677)

Trabalhar na perspectiva grupal atualmente tem sido um desafio constante. Como colocado por Han (2018, 2019), o avanço do neoliberalismo vem esvaziando as atividades coletivas - que sempre foram fundamentais à luta contra os sistemas de opressão -, levando as pessoas à condição de empreendedoras de si mesmas. O sucesso, o fracasso e os problemas passam a ser entendidos como responsabilidades individuais. Tais fatos fazem com que os sujeitos minimizem as críticas em relação ao capitalismo e naturalizem as profundas desigualdades de gênero, raça e classe que esse sistema sustenta.

Afetividade

A afetividade diz das emoções e sentimentos que são vivenciados pelas pessoas em suas relações cotidianas. De acordo com Miura e Sawaia (2013), o ser humano compreende sua realidade externa, também, por meio de suas experiências afetivas, construídas sempre na relação com o outro. É por meio do contato com os pares e com a comunidade que as pessoas são afetadas e, ao mesmo tempo, afetam as demais. Além disso, os afetos contribuem para que os indivíduos expressem seus diversos modos de ser e estar no mundo.

Vieira-Silva (2015) ressalta que o afeto pode ser uma dimensão fundamental para o processo grupal e para a execução de ações coletivas, especialmente nas perspectivas de organização e coesão, favorecendo o cumprimento das tarefas e objetivos estabelecidos pelos participantes de um grupo. Nas palavras do próprio autor, “em várias situações, apenas a possibilidade de expressão das emoções e dos sentimentos já é fator de mobilização ou até mesmo de integração” (Vieira-Silva, 2015, p. 317).

A afetividade, contudo, não se limita apenas às emoções positivas e agradáveis. Isso porque da mesma forma que o afeto pode impulsionar atividades coletivas, gerando sentimentos de pertença, alegria e desejo, pode também paralisar ações e provocar sentimentos de ódio, tristeza, medo e raiva. Assim, o conhecimento das dimensões afetivas que atravessam indivíduos e grupos permite compreender, por exemplo, algumas instâncias de determinadas ações e/ou omissões.

Diante do exposto, consideramos que a categoria “afetividade” tem um papel muito importante na práxis da Psicologia Social, visto que as ações grupais são profundamente influenciadas por emoções e sentimentos, sejam positivos ou negativos. Nesse sentido, atividades realizadas em grupo, quando amparadas por determinados afetos, podem aumentar a potência do coletivo e contribuir para o alcance dos objetivos estabelecidos. Tomemos como exemplo uma pesquisa-intervenção desenvolvida no grupo PGAI.

Foram realizados alguns grupos de reflexão com protagonistas de uma banda que, por diversos motivos, se encontrava em um momento de hiato. As reflexões realizadas coletivamente possibilitaram aos integrantes compreender e elaborar os motivos que os levaram a interromper os ensaios e apresentações musicais. A partir do desejo dos envolvidos, dos sentimentos de pertença e da mobilização de afetos, foi possível delimitar tarefas individuais para fins de atingir o objetivo grupal de retomar as atividades musicais.

Identidade

O conceito de identidade remete às particularidades e características de uma pessoa, aos atributos que lhe são próprios e que, portanto, possibilitam reconhecê-la e distingui-la de outras. A identidade é constituída por diferentes personagens, pois cada indivíduo pode exercer, simultaneamente, vários papéis sociais. Além disso, existe uma infinidade de novas posições a serem, possivelmente, assumidas por um mesmo indivíduo ao longo de sua existência.

Ciampa (1990) formulou uma teoria clássica no campo da Psicologia Social latinoamericana para se pensar o conceito de identidade, que segundo ele refere-se a uma questão constitutivamente social em razão de que é produzida a partir das relações humanas. O autor propôs o sintagma identidade-metamorfose-emancipação, definindo a identidade como metamorfose humana em busca de emancipação, uma vez que se caracteriza como algo que está em constante processo de transformação durante toda a vida do homem.

Lima (2009) faz uma releitura das ideias propostas pelo referido autor, tecendo uma atualização teórica esclarecedora acerca do sintagma e chamando atenção para outra ideia levantada por Ciampa (1990): a possibilidade de as pessoas vivenciarem uma nãometamorfose e de não experimentarem o sentido emancipatório da identidade. Podem ocorrer dois movimentos distintos e contrários no processo de constituição identitária: a mesmice, fenômeno decorrente da reposição constante da mesma identidade, que culmina na fetichização da personagem; e a mesmidade, que se caracteriza pelas transformações e emancipação da identidade, isto é, pela superação de uma personagem e assunção de outras.

O processo de ‘‘mesmidade’’ pôde ser observado em uma pesquisa desenvolvida no grupo PGAI. Ao investigar uma banda protagonizada por usuários dos serviços de saúde mental, verificou-se que eles vivenciaram processos de metamorfose por meio da música, o que lhes possibilitou experimentar o sentido emancipatório da identidade. Através do fazer musical em grupo, esses sujeitos em sofrimento psíquico assumiram novas identidades para além da loucura, de modo que começaram a se enxergar não só como loucos, mas também como músicos, e a transitar de um papel social a outro - de louco a músico.

Portanto, considerando a identidade enquanto transformação em busca de emancipação é pertinente pensarmos o conceito, também, enquanto possibilidade de resistência. Isso porque, ser outras coisas para além das limitações que o sistema capitalista e a sociedade esperam/impõem que cada pessoa seja, são formas de resistir. E esse é justamente um dos objetivos da Psicologia Social: possibilitar a emancipação e a metamorfose identitária dos sujeitos, sobretudo daqueles que estão à margem de diversos processos sociais e que, por vezes, encontram-se limitados e/ou impossibilitados para assumir novos papéis.

Consciência

A consciência, que também é uma categoria central para o campo da Psicologia Social, é própria do ser humano e não de outros animais. Desenvolve-se através da linguagem, do pensamento, de ações, análises e reflexões que o homem realiza ao relacionarse socialmente (Lane, 2012b). Refere-se à habilidade que as pessoas têm de conhecer e lidar com o mundo objetivo, bem como à capacidade de posicionar-se criticamente diante do mesmo. Aqui nos interessa, principalmente, pensar e discutir consciência enquanto um saber crítico que o indivíduo elabora sobre si mesmo e sobre a realidade (Martín Baró, 1997; Góis, 2004).

Falar de consciência implica pensar no termo ‘‘conscientização’’, amplamente difundido por Paulo Freire. Freire (2019) utiliza o conceito para caracterizar o processo de transformação pessoal e social que o povo oprimido experimenta quando se alfabetiza, o que não significa somente aprender a ler e escrever. Para além disso, consiste na capacidade de as pessoas conhecerem e analisarem criticamente as situações de exploração e opressão que atravessam a sociedade na qual estão inseridas para, então, vislumbrarem a possibilidade de alcançarem autonomia e emancipação.

A conscientização diz da tomada de conhecimento das diferentes formas de dominação existentes em nossa sociedade, isto é, do entendimento das ideologias que a permeiam e impedem a mobilização das pessoas em busca de melhores condições de vida.

Para pensar as relações de opressão é necessário refletir sobre o privilégio de determinados grupos sociais em detrimento da exploração de outros.

Para isso é fundamental, como salienta Mayorga (2014) e Ribeiro (2018), partir de uma perspectiva interseccional, dando enfoque aos marcadores sociais que estão imbricados entre si e atravessam os processos de opressão - tais como classe, gênero, raça, etnia, sexualidade, e território, etc. Caso contrário, corre-se o risco de mascarar as diferentes realidades existentes, (re)afirmando uma ideia de opressão comum e (re)produzindo ideologias fundamentadas em pressupostos sexistas, classistas e racistas.

Podemos inferir, então, que a conscientização significa um desenvolvimento da consciência crítica, o que permite ao homem compreender a realidade e atuar ativamente sobre ela, constituindo-se como sujeito autônomo e agente de mudança. Pois, a partir do momento em que as pessoas se tornam conscientes dos sistemas opressores e são capazes de questioná-los, faz-se possível transformar a realidade social das classes subalternas.

Atividade

O ser humano, através de uma constante interseção dialética com a natureza, constrói seu contexto social e, ao mesmo tempo, é construído por ele. Partindo dessa perspectiva ontológica priorizada pela Psicologia Social, o indivíduo é concebido enquanto ser histórico e social. Segundo Lane (2012b), a pessoa é história na medida em que desempenha atividades de transformação a partir das suas relações sociais. Nesse sentido, a categoria atividade diz de práticas conjuntas, que articuladas com a conscientização crítica, são capazes de satisfazer as necessidades de uma população/grupo.

A atividade humana é, de fato, um sistema especial de ação que inclui os processos de apropriação, interiorização e transformação da realidade. Por meio da atividade, o indivíduo não só se identifica, mas consegue mudar a realidade objetiva e dar significado ao mundo e a ele mesmo, assim como fazer a história, criar a cultura e formar sua consciência no mundo (Góis, 2004).

É por meio da consciência e da atividade que as pessoas conseguem compreender criticamente a sociedade - suas dimensões políticas e sociais - e agir perante ela, visando superar os problemas sociais e comunitários. A atividade grupal, então, torna-se fundamental para produzir mudanças que impactam significativamente na qualidade de vida das pessoas e de seus territórios de existência. É nesse sentido que é valoroso para os psicólogos que atuam subsidiados pala Psicologia Social Comunitária e/ou as outras referências críticas em Psicologia Social, incluir a categoria em questão no campo de análise e intervenção.

Em algumas atividades desenvolvidos pelo grupo PGAI com adultos e idosos de uma periferia de São João del-Rei, foi possível perceber que as pessoas começaram a discutir sobre os problemas comunitários, compreendendo alguns direitos e deveres e criando ações de posicionamento, reivindicação e atividade. A partir das ações grupais realizadas,os residentes da região que são diagnosticados com diabetes melllitus tomaram conhecimento de seus direitos em relação à aquisição de insumos e medicamentos aos quais não tinham acesso até então. Logo, esses indivíduos passaram a comparecer mensalmente às farmácias populares da cidade para fins de retirar remédios, seringas, bombas de insulina e demais materiais necessários à efetivação de seus tratamentos.

Emancipação

Trabalhar com a categoria “Emancipação” em Psicologia Social Crítica é sustentar um compromisso ético e político, sobretudo em relação às pessoas que estão em situação de vulnerabilidade e opressão. Para Almeida (2017), a categoria emancipação não pode ser pensada como:

[...] algo abstrato ou como uma promessa utópica, mas sim como inscrita na realidade social e na existência das pessoas e grupos, referida à liberdade subjetiva, ao reconhecimento nas relações interpessoais, ao acesso a direitos e à cidadania, à superação de situações de heteronomia, ou seja, de situações de sujeição a uma lei exterior ou à vontade de outrem. Só aí a emancipação pode ganhar sentido. (Almeida, 2017, pp. 2)

A partir disso, ressalta-se que atuar objetivando a emancipação requer um compromisso com a superação de contextos de opressão, sujeição e violência. Quer dizer, para realizar ações emancipatórias é fundamental uma análise contextual da sociedade. Os cenários de desigualdades, conflitos, dominação e violência, existentes no mundo atual, devem ser compreendidos a partir de uma reflexão crítica e bem fundamentada (Almeida, 2017).

É importante compreender, também, que alguns grupos sociais - mulheres, pobres, negros, gays, lésbicas, travestis, entre outros - são profundamente oprimidos na atual sociedade capitalista de supremacia branca, tendo em vista que ocupam diferentes posições de vulnerabilidade (Mayorga, 2014). Deste modo, a lógica de desigualdade e da exploração envolve várias categorias/grupos sociais, os quais devem ser considerados e articulados no campo de análise e intervenção da Psicologia Social.

Portanto, para construir ações que favoreçam a emancipação social, sobretudo desses grupos, é preciso contemplar dois aspectos principais. O primeiro diz do desenvolvimento de uma consciência crítica acerca das relações de violência e opressão. A segunda concerne à criação de estratégias e ações de enfrentamento. Assim, a categoria em questão relaciona-se profundamente com as demais tratadas acima. Vale ressaltar, ainda, que a emancipação social se torna, também, um desafio para a Psicologia, sobretudo com o avanço do neoliberalismo que não só aprofunda as relações desiguais entre os povos como cria estratégias ideológicas para dificultar questionamentos e mudanças.

Considerações Finais

Desde o ano de 2007, o grupo PGAI vem desenvolvendo uma práxis em Psicologia Social. Nesse sentido, é fundamental analisarmos constantemente as relações que nós, integrantes e pesquisadores, estabelecemos com a produção de conhecimento e intervenção. Ao longo das atividades, o grupo tem levantado e problematizado determinados questionamentos, os quais podem ser traduzidos em uma pergunta geral - a qual colocamos aqui, também, como uma provocação: como trabalhar, através da pesquisa e da extensão, buscando a emancipação das populações, amparados pela Psicologia Social Crítica e suas categorias de análise?

Embora não tenhamos uma única resposta, tampouco uma direção específica para nossas inquietações, estamos certos de que as práticas grupais nas perspectivas assumidas pelo "Oculto - inserir após avaliação pelos pares" - processos educativos no sentido ‘‘paulofreireano’’e processos grupais no sentido ‘‘laneano -, são provocações dialógicas e transformadoras por natureza. Ou seja, o trabalho do grupo (e com grupos) pode produzir mudanças significativas nas populações envolvidas, visto que sob a ótica de uma práxis socialmente comprometida, historicamente situada e politicamente posicionada, as pesquisasintervenções buscam atuar na comunidade para fins de transformá-la.

Todavia, também são muitos os desafios enfrentados pelo PGAI, assim como as limitações impostas por situações internas e externas. A rotatividade de alunos no grupo é relativamente alta, o que enfraquece os vínculos com as populações atendidas, dificulta a inserção de novos pesquisadores nas comunidades e prejudica a continuidade de alguns projetos iniciados. Ademais, como salienta Sakurada (2017), o crescente corte de verbas tanto das instituições públicas quanto das políticas sociais vem impactando o financiamento de estudos e intervenções, principalmente em comunidades mais pobres.

Diante do exposto, esperamos que o relato das atividades e experiências do coletivo, carregado de histórias e estórias, possa incentivar novas frentes de trabalho na mesma direção. E, assim, fazer pensar e delinear outras possibilidades de atuação comprometidas com a transformação social. Por fim, almejamos instigar os leitores a refletirem sobre algumas categorias temáticas da Psicologia Social, que são ainda absolutamente atuais, pertinentes e necessárias para pensar pesquisas, análises e intervenções em nossa sociedade.

Referências

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Recebido: 23 de Dezembro de 2020; Revisado: 07 de Novembro de 2021; Aceito: 25 de Novembro de 2021

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