A violência como problema social e como objeto de conhecimento possui história e as condições que possibilitam que sujeitos, instituições, relações e acontecimentos sejam marcados pelo signo da violência hoje não são as mesmas de outros tempos. O campo dos estudos sobre violência, como aponta Rifiotis (1997), é complexo, diversificado, com múltiplas interfaces temáticas, em constante disputa e construção. A palavra violência carrega uma miríade de sentidos e possibilidades de uso a depender do código penal brasileiro, de quem a enuncia e do contexto em que é enunciada, das pessoas e instituições nomeadas como violentas em detrimento de outras.
No caso das pesquisas sobre as violências que acontecem no contexto escolar, múltiplas abordagens teórico-metodológicas e conceituações se fazem presentes. Compreendemos que a escolha por determinado modo de enunciar a relação entre violência e escola nas pesquisas em psicologia constitui práticas calcadas em posicionamentos epistemológicos e ético-políticos dos(as) pesquisadores(as). Apesar de comumente utilizada por estudiosos(as) das ciências humanas, a expressão “violência escolar” não será utilizada por nós. Posicionamo-nos criticamente e desde uma sensibilidade analítica interseccional (Groff, 2015; Akotirene, 2019; Collins, 2019) sobre este modo de enunciar a problemática, pois concebemos todo conhecimento como atrelado a lugares de poder. Deste modo, a forma como nomeamos o mundo institui verdades, modelos teóricos e interpretativos, os quais afetam as leituras que fazemos sobre determinada realidade. Neste sentido, a palavra violência não pode ser tomada como adjetivação da escola nem como um fenômeno apartado das relações sociais mais amplas que se expressam e são perpetradas no espaço escolar.
Debarbieux (2002) nos ajuda a pensar que um conceito de violência que abarca um campo semântico extenso se torna inoperante devido à sua generalidade. Por outro lado, o autor reflete que um conceito muito restrito ou limitado, por exemplo, ao que o código penal de um país define como sendo violência, é igualmente problemático, em especial, se tratamos de acontecimentos envolvendo crianças e adolescentes no contexto escolar. Acrescentamos a esta reflexão a categoria bullying, que, ao ser utilizado como sinônimo de “violência escolar”, delimita um tipo de violência que acontece entre estudantes na escola desconsiderando, muitas vezes, a cartografia de sua produção (Groff et al., no prelo; Passeti, 2002).
Assim, compreendemos que tanto um conceito amplo de “violência escolar” como um conceito específico como bullying, podem abafar a complexidade das relações sociais e educativas produtoras de violências, em especial, quando apartamos de nossos estudos análises sobre a realidade da escola pública, a relação entre escola e comunidade, as sociabilidades entre crianças, adolescentes e jovens, os múltiplos modos de vivenciar as infâncias e juventudes, o clima escolar e violências estruturais presentes na sociedade brasileira. Contudo, sabemos que as violências que acontecem no cotidiano das escolas persistem e poucas são as mudanças identificadas durante os últimos 20 anos em que o problema vem sendo investigado no Brasil (Abramovay et al., 2018).
Nesta direção, sendo a psicologia uma das áreas de referência nestes estudos, como pesquisadores(as) têm produzido conhecimentos sobre esta problemática? Visando responder esta questão, e buscando compreender as concepções dos(as) autores(as) sobre a relação entre violência e escola, este artigo apresenta e discute os resultados gerais de uma pesquisa bibliográfica, do tipo estado da arte. Este estudo investigou a produção acadêmica da psicologia brasileira sobre violência e escola, publicada em periódicos científicos entre 2003 e 2017, nas bases Scientific Electronic Library Online Brasil (SciELO) e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC).
Método
A pesquisa de estado da arte tem como objetivo mapear uma determinada produção científica e, ao analisá-la, identificar os caminhos teórico-metodológicos realizados pelos estudos, evidenciar as principais categorias abordadas, as possíveis lacunas e as questões emergentes sobre um determinado objeto de estudo (Ferreira, 2002; Vosgerau & Romanowski, 2014). Deste modo, este tipo de investigação pode contribuir significativamente com a produção teórica e prática de uma determinada área do conhecimento.
O levantamento bibliográfico se deu nas bases de dados SciELO e PePSIC, por se configurarem como fontes importantes de indexação de periódicos de acesso livre. A pesquisa foi realizada considerando quatro combinações de palavras-chave: (A) violência e escola; (B) violência e escolar; (C) violências e escola; (D) violências e escolar, utilizando os campos Resumo e Ano de Publicação como filtros. As combinações A e B correspondem ao maior número de artigos encontrados nas duas bases de dados, o que indica que a palavra violência no plural não é utilizada na maioria das publicações. Dos 578 artigos que apareceram na busca inicial utilizando as quatro combinações da pesquisa, 494 foram publicados entre 2003 e 2017.
Realizamos a seleção, considerando os 494 artigos, a partir dos seguintes critérios de exclusão: a) artigos repetidos; b) artigos que não possuíam nenhum(a) autor(a) com formação em psicologia (graduação, mestrado ou doutorado) ou filiação institucional em departamentos de ensino ou programas de pós-graduação em psicologia e; c) artigos que no resumo não abordavam a relação violência e escola. Após a utilização dos critérios de exclusão, permaneceram para leitura integral 116 artigos. Os artigos foram divididos por ano de publicação e separados por base de dados para realização da leitura e sistematização das informações. Estes foram organizados em tabelas no formato Excel e sistematizados a partir das seguintes categorias: vinculação institucional dos(as) autores(as); periódicos das publicações; tipo do artigo (pesquisa de campo, teórico, relato de experiência); objetivo geral; recursos metodológicos (instrumentos e técnicas); contexto e sujeitos participantes das pesquisas; concepção sobre violência; marcadores sociais das desigualdades (classe, raça, deficiência, gênero, sexualidade) ou temas de interface e; autores(as) mais referenciados(as) considerando as referências bibliográficas dos artigos. Após a leitura integral foram excluídas 15 publicações que não se adequaram ao escopo do estado da arte, pois os estudos não abordavam a relação entre violência e escola especificamente. Alguns apresentavam a palavra escola no resumo, mas a instituição não era o foco da investigação.
Por fim, 101 artigos compuseram o estado da arte sobre violência e escola, produzida pela área da psicologia em periódicos brasileiros, sendo 45 artigos vinculados à base de dados do SciELO e 56 no PePSIC.
Resultados e Discussões
A maior concentração dos artigos que compuseram o estado da arte sobre violência e escola, isto é 42,6%, encontram-se publicados entre 2013 e 2017, seguidos de 40,6% publicados entre 2008 e 2012 e 16,8% entre 2003 e 2007. É possível observar que a partir de 2010 há um crescimento na produção de conhecimento sobre o tema se comparado aos primeiros anos de 2000, sendo que entre 2010 e 2017 foram publicados 72,3% dos artigos. A Figura 1 apresenta a distribuição por ano de publicação.
Os 101 artigos foram publicados em 49 diferentes periódicos científicos. Destes, a maioria, 75,5%, possui entre um e dois artigos publicados no período pesquisado. Na Figura 2 é possível observar a lista de revistas científicas com três ou mais publicações cada.
Os(As) autores(as) dos artigos vinculam-se a 65 diferentes instituições, sendo 62 brasileiras e 3 estrangeiras. Na Figura 3 são destacadas as instituições com a maior frequência de vinculação de autoria.
Juntas, estas 10 instituições concentram 51,8% das vinculações institucionais, a grande maioria universidades públicas. Há uma considerável produção no estado de São Paulo com a presença de diversas universidades, principalmente Federais e Estaduais. Dentro desse cenário, o destaque para a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) está associado ao Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV). As instituições se concentram na região sudeste, com destaque para os estados de São Paulo e também Rio de Janeiro; no nordeste com proeminência para o estado da Bahia e, mais especificamente para a Universidade Federal da Bahia (UFBA); centro-oeste especialmente a Universidade Católica de Brasília (UCB); e sul com realce para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Quanto aos tipos de artigos encontrados neste estado da arte, 63,4% são provenientes de pesquisas de campo realizadas com a participação de seres humanos e/ou análise de documentos, 20,8% são ensaios teóricos, 7,9% são revisões bibliográficas com pesquisa em base de dados e 7,9% se constituem em relatos de experiências.
Apresentaremos os resultados e discussões com foco nos artigos advindos de pesquisas de campo que tiveram a participação de estudantes, familiares, docentes e equipe pedagógica e, na sequência, abordaremos as concepções de violência, os referenciais teóricos mais utilizados e interfaces temáticas considerando o conjunto dos artigos.
Pesquisas de Campo sobre Violência e Escola
Entre os artigos provenientes de pesquisas de campo, 64,1% foram realizados em escolas de educação básica das redes públicas de ensino, 23,4% abarcam tanto escolas públicas quanto privadas, 3,1% investigaram escolas privadas, 4,7% realizaram análise somente de documentos, 3,1% estudos foram em Instituição de Ensino Superior com foco nas situações de violência vividas por universitários(as) quando estes(as) estavam na educação básica, e em um artigo não foi possível identificar o tipo de instituição. Assim, a maioria das pesquisas de campo toma a escola pública como o contexto privilegiado de seus estudos. Contudo, observamos uma escassez de reflexões teóricas e análises sobre a instituição escolar, sobre sua constituição histórica na modernidade, sua função social no contemporâneo, sobre políticas educacionais, sobre a relação entre escola, território e comunidade ou clima escolar.
Compreendemos que ao investigar a violência em âmbito escolar, não podemos abrir mão de uma contextualização histórica, social e geográfica, pois corremos o risco de essencializar nosso objeto de estudo. As relações sociais e educativas em uma escola no centro ou na periferia urbana, em pequenas e grandes cidades ou no espaço rural, possuem configurações significativamente distintas. Demarcar estas múltiplas realidades, situando o contexto pesquisado, contribui com o próprio campo dos estudos sobre violência e escola, evita generalizações, determinismos e a ideia de que a violência é característica da escola pública ou que a escola pública é violenta (Universidade Federal de Mato Grosso [UFMG] et al., 2018).
Sobre os(as) participantes das pesquisas, 49,2% dos estudos foram realizados com estudantes, 26,3% com docentes, 9,8% incluíram estudantes e docentes, 4,9% pesquisaram com docentes e equipe pedagógica, 3,3% com a equipe pedagógica, docentes e estudantes, 4,9% incluíram a equipe pedagógica, docentes, estudantes e famílias, e 1,6% com estudantes e suas mães. No que diz respeito ao nível de ensino dos(as) estudantes, foi possível identificar que somente 4,8% das pesquisas foram realizadas na educação infantil e 7,1% com estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental (EF) (1º ao 5º ano). Por outro lado, 40,5% dos(as) estudantes eram dos anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), 16,7% do Ensino Médio (EM), e 11,9% incluíam estudantes dos anos finais do EF e EM. Quando agregamos os estudos que combinaram a participação de estudantes e outros atores da comunidade escolar, constatamos que 69,1% dos(as) estudantes participantes das pesquisas são dos anos finais do EF e EM, com idades entre 11 e 18 anos. Este resultado encontra consonância com outras pesquisas de revisão bibliográfica sobre o tema, onde há a predominância de estudos com estudantes destes níveis de ensino (UFMG et al., 2018).
Embora haja uma predominância de pesquisas sobre violências nas escolas com este grupo de sujeitos, não há, na maioria dos estudos, um investimento teórico sobre as categorias adolescência ou juventude. O artigo de Andrade (2015), em contrapartida, destaca que as situações de violências entre jovens nas escolas precisam ser explicadas considerando a deterioração da imagem da escola como promessa de ascensão social para a juventude, a negação de direitos fundamentais a este grupo e a necessidade de afirmação de identidades sociais a partir dos processos de subjetivação que constituem a juventude brasileira. Entendemos que esta é uma questão de extrema importância para ser discutida, pois, ao que parece, esta faixa etária é escolhida por considerar que é neste período da vida que o problema da violência se evidencia. Compreendemos que esta mirada não deixa de ser uma realidade nos espaços escolares, porém, a falta de análises sobre as juventudes no Brasil, seus anseios, oportunidades e formas de socialização podem naturalizar as causas das violências e estigmatizar estudantes pobres, os(as) quais são a maioria nas escolas públicas (Patto, 2009).
Cabe esclarecer que entendemos gênero, sexualidade, raça, classe e deficiência como marcadores sociais que interseccionam em determinados corpos desigualdades, opressões e violências, vinculadas a matrizes de dominação estruturais em nossa sociedade (Akotirene, 2019; Collins, 2019). No entanto, nos artigos não se fazem presentes reflexões sobre estas marcas sociais que constituem os corpos e a vida dos(as) estudantes investigados(as). Há artigos em que a informação oferecida é somente a de sexo biológico. Encontramos estudos que sinalizam em seus resultados a existência da diferença na posição de meninas e meninos quando nomeados(as) como vítimas ou agressores(as), sobretudo em artigos que estudam o bullying. Todavia, são escassas análises que incluem o campo teórico dos estudos de gênero, sobre o qual a psicologia brasileira tem produzido significativas contribuições. Não é possível identificar também se há estudantes com deficiência, se são brancos(as), negros(as) ou indígenas, e a classe social destes(as). O artigo de Oliveira e Martins (2007), no entanto, reflete sobre a díade violência-escola situando a correlação entre uma sociedade desigual, sexista, adultocêntrica, classista e as violências que ocorrem nas escolas, bem como aquelas perpetradas pela própria instituição e pelo Estado contra docentes, estudantes e suas famílias.
Decorre da ausência destas discussões no processo de produção de conhecimento sobre violência e escola a pressuposição de um sujeito universal como referencial de humano para a humanidade, o sujeito da norma. Compreendemos que esta perspectiva efetua uma posição política de neutralidade que naturaliza a ideia de um sujeito padrão e descreve o problema da violência entre estudantes dando centralidade para o que acontece do muro da escola para dentro, em detrimento das condições educacionais e sociais constituidoras da sociedade. A presença deste viés, mesmo não sendo uníssono, revela que o estado do conhecimento em psicologia sobre violência e escola possui aderências a um tipo de “pesquisa acadêmica brasileira que, ao negar-se a problematizar ou ao menos considerar esses componentes da subjetividade, acabam por reforçar e perpetuar visões heteronormativas e eurocêntricas, que engendram perspectivas racistas, homofóbicas e excludentes” (UFMG et al., 2018, p. 72).
Em relação aos instrumentos e técnicas utilizadas nas pesquisas de campo, prevalece em 40,6% dos estudos a utilização de questionários com questões fechadas e instrumentos psicométricos, como escalas e inventários. Em 34,4% há a utilização de entrevista semiestruturada ou questionário com questões abertas e fechadas. Somente duas pesquisas utilizaram entrevistas abertas, duas trabalharam com oficinas com estudantes e outras quatro com a técnica do grupo focal. Combinado a estes procedimentos metodológicos, seis estudos utilizaram a observação participante com registro em diário de campo.
A partir destes achados, compreendemos que o modo como a psicologia tem produzido conhecimentos sobre violência e escola expõe que o lugar epistêmico ocupado por boa parte dos(as) pesquisadores(as) se vincula, em sua maioria, a matrizes hegemônicas da ciência psicológica. Os(As) autores(as), apesar de nem sempre demarcarem explicitamente a perspectiva epistemológica que os(as) fundamenta, a expressam na forma como abordam o conceito de violência e nas escolhas metodológicas que engendram o conhecimento científico.
Consideramos importante discutir a relação entre a prevalência de estudos sobre violência e escola com estudantes e os tipos de procedimentos metodológicos escolhidos para realização das investigações. O uso da entrevista prevalece nos estudos com adultos (docentes, equipe pedagógica, família), enquanto no caso das pesquisas com estudantes é recorrente o uso de questionários com questões fechadas, escalas e inventários. Destacamos a presença da Escala de Violência Escolar - versão estudantes (EVE) que permite o levantamento da posição dos(as) estudantes enquanto vítimas e agressores(as), tipos de violência, intensidade e frequência, bem como outros instrumentos, tais como: Inventário de Depressão Infantil, Escala de Hierarquias Escolares, Escala de Avaliação de Agressão pelos Colegas, Escala Tática de Conflitos.
Os caminhos metodológicos escolhidos pela área da psicologia para investigações com estudantes nos provocam perguntar pelos efeitos epistemológicos, éticos e políticos destes instrumentos na produção de conhecimentos sobre violência e escola. Junto a outros(as) pesquisadores(as), consideramos que os(as) estudantes acabam sendo sujeitos dos estudos sobre violência, mas ainda são pouco escutados e sua participação nas decisões e na gestão escolar ainda é ceifada (Abramovay, et al., 2018; Meireles & Guzzo, 2019). Deste modo, há implicações significativas na compreensão das violências que acontecem nas escolas quando trabalhamos com medidas padronizadas e dados estatísticos sobre o fenômeno e quando optamos pela escuta sobre o que os(as) estudantes têm a dizer, a partir de suas experiências e narrativas. Nesta direção, Abramovay et al. (2018) sugere que as pesquisas sobre violência e escola combinem o uso de instrumentos e técnicas como questionários, grupos focais e entrevistas em profundidade, buscando compreender o clima escolar e os significados que os sujeitos possuem sobre as violências.
Concepções de Violência, Referenciais Teóricos e Temas de Interface
Nos artigos decorrentes de pesquisas de campo, ficou evidenciado que os(as) autores(as), em sua grande maioria, não se dedicam a explicitar um posicionamento epistemológico sobre violência e/ou sobre violência no contexto escolar. Nem sempre há uma definição conceitual clara e delimitada e, por vezes, são lançadas múltiplas definições de violência considerando suas classificações (física, verbal, psicológica, simbólica, entre outras) ou concepções de violência a partir de vários referenciais teóricos. Há também estudos que trabalham com a noção de “violência escolar” como sinônimo de bullying. Esta análise vai ao encontro de outros estudos sobre o tema onde se observa que:
A violência é conceituada, na literatura, de muitas formas diferentes; os vários rótulos e classificações são apresentados sem especificação de critérios, ou com critérios confusos, de forma a dificultar seu uso por outros pesquisadores... Muitos estudos não apresentam abordagens nomeadas e bem especificadas, e adotam a citação eclética de autores como referencial conceitual e teórico. Tal fato é explicado para tentar evitar abordagens fechadas, com o objetivo de alcançar interdisciplinaridade. Por outro lado, em muitos estudos esse procedimento pode levar a compreender que o fato de demarcar o fundamento teórico é considerado desnecessário, porque o mais importante é descrever o fenômeno, e não explicá-lo, o que é bem aceito em uma visão positivista. (UFMG et al., 2018, pp. 87-89)
Em contrapartida, encontramos nos artigos do tipo ensaio teórico e de revisão bibliográfica importantes reflexões conceituais. É o caso do artigo de Pino (2007) que reflete sobre a polissemia da palavra violência e sobre parâmetros necessários para compreensão do seu impacto em contextos educativos e escolares; o trabalho de Magalhães e Santos (2016, p. 176) que, ao investigar o modo como expressões da violência na escola são problematizadas em publicações científicas nacionais, aponta que o fenômeno não pode ser estudado de forma restrita à escola ou a indivíduos, mas sim relacionado a aspectos sociais e históricos que constituem determinada sociedade, concluindo “que trabalhos futuros sobre a temática da violência na escola devem avançar em aspectos até o momento pouco desenvolvidos nas pesquisas existentes”. E também os artigos de Antunes e Zuin (2008) e Brito e Rocha (2016) que problematizam a categoria bullying trazendo para cena discussões sobre os preconceitos no contexto escolar e as violências entre estudantes como produzidas nas malhas das relações instituídas pela escola e atreladas a violências estruturais.
Nesta direção, apesar dos limites encontrados em muitos artigos acerca da definição conceitual de violência, a forma deste posicionamento pode ser analisada, em parte, a partir dos(as) autores(as) referenciados(as) nos artigos. A análise dos referenciais teóricos mais utilizados no conjunto dos 101 artigos aqui investigados nos permite concluir, em consonância com Sastre (2009), que permanece a prevalência de autores(as) das ciências sociais, da educação e da psicologia. A Figura 4 apresenta a lista de autores(as) que foram referenciados(as) com uma frequência acima de vinte vezes no conjunto dos artigos que compuseram o estado da arte.
Merecem destaque as autoras da área da psicologia Lúcia C. de Albuquerque Williams e Ana C. Stelko-Pereira. Williams foi a autora mais citada nas referências bibliográficas analisadas, incluindo neste montante as citações nos artigos vinculados ao próprio LAPREV do qual a autora é coordenadora. Stelko-Pereira, a quarta autora mais citada nas referências bibliográficas, integrou também o LAPREV produzindo diversos trabalhos em conjunto com Williams. Percebe-se que a violência doméstica e o bullying são dois temas de interface presentes em muitos dos estudos destas autoras.
Tal levantamento evidencia também a presença das autoras Miriam Abramovay e Maria Cecília Minayo, ambas da área da sociologia. Abramovay é uma referência nos estudos sobre violências nas escolas, possui diversas publicações sobre o tema e coordenou o Observatório de Violência nas Escolas - Brasil. A psicóloga Marilena Ristum e o autor francês da área da educação Eric Debarbieux compartilham o quinto lugar na frequência das referências bibliográficas dos artigos. Os estudos de Ristum fundamentam-se na psicologia histórico-cultural, sendo violência e escola, bullying, violência e família, violências contra crianças e adolescentes e inclusão escolar alguns dos seus interesses de pesquisa.
Com foco nos estudos sobre bullying, destacam-se Dan Olweus, professor e pesquisador da área da psicologia na Universidade de Bergen - Noruega, o médico Aramis Antonio Lopes Neto e a pedagoga Cleo Fante, idealizadora do Programa Antibullying "Educar para a Paz". Estudiosa da área da sociologia da educação, Marília Sposito aparece como a sétima autora mais referenciada, em especial seu artigo publicado em 2001 que faz um breve balanço das pesquisas sobre violência escolar no Brasil. Apontamos também a presença da pedagoga Maria Amélia Azevedo e da assistente social Viviane N. de A. Guerra, que integraram o Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) no Instituto de Psicologia da USP, desenvolvendo pesquisas sobre violência doméstica contra crianças e adolescentes.
Deste modo, vemos figurar a violência doméstica relacionada à violência na escola e ao bullying como temas que adquirem certa centralidade para os(as) autores(as) mais presentes nas referências bibliográficas dos artigos em análise. Estes interesses de pesquisa, em certa medida, vão ao encontro dos resultados do mapeamento sobre as interfaces temáticas dos artigos. Como podemos observar na Figura 5, resulta que 35,6% dos 101 artigos analisados trabalham com violência e escola sem destaque para uma temática de interface ou marcador social da desigualdade, seja como objeto de estudo ou como enfoque na análise de resultados. E em relação aos demais artigos, 22,8% são sobre bullying, 14,9% relacionam violência familiar/doméstica e a violência que acontece na escola, 14,9% abordam a concepção de professores(as) sobre violências, 8,9% abordam questões de gênero e sexualidade, 2,9% trabalham com análises sobre educação e pobreza, e nenhum artigo investe discussões sobre relações raciais ou sobre deficiência ao investigar violência e escola.
Bullying e violência doméstica aparecem como temas em realce no estado da arte, sendo que alguns artigos buscam identificar se há relação entre vivenciar violência familiar e ser autor(a) ou vítima de bullying. Os artigos que fazem este tipo de investigação, segundo Oliveira et al. (2015), não são conclusivos acerca desta correlação, possuem limites em seus delineamentos metodológicos e fragilidades teóricas na análise dos dados, mas indicam que alguns aspectos familiares estão associados às violências que acontecem entre estudantes. O interesse em compreender a concepção de docentes sobre as violências também é relevante para pesquisadores(as) da psicologia, os(as) quais buscaram investigar, sobretudo, a concepção dos(as) professores(as) sobre as violências em âmbito escolar.
Assim, encontramos um grupo de artigos onde a violência aparece de forma genérica, enquanto outros focam no bullying e na relação entre violência doméstica e violência na escola. Por outro lado, há uma inópia de investigações que fazem interface com preconceitos e violências como racismo, classismo, homofobia, sexismo e discriminações que afetam as pessoas com deficiência na escola. Estes silêncios, na maioria dos estudos, nos fazem perguntar: Quando falamos em bullying, por exemplo, o que há nesta forma de violência entre estudantes? Trata-se de agressões físicas e/ou verbais racistas, homofóbicas, gordofóbicas, capacitistas? Quais preconceitos mobilizam agressões entre estudantes? Quais violências e opressões estruturais em nossa sociedade também são reproduzidas nas práticas escolares? Como a violência institucional afeta os processos de avaliação da aprendizagem e a relação entre docentes e estudantes? Quais violências estão presentes nos olhares lançados sobre as famílias e seus locais de residência?
Considerações Finais
O objetivo deste estudo foi mapear e discutir a produção de conhecimento em psicologia sobre violência e escola. Compreendemos que este estado da arte não contempla todo o conhecimento produzido sobre a temática devido à delimitação do período, recorte metodológico e área de conhecimento investigada. Contudo, os resultados produzidos vão ao encontro da ampla revisão bibliográfica e documental realizada sobre o tema publicada no livro “Violência e preconceitos na escola: contribuições da Psicologia” (UFMG et al., 2018), bem como amplia o período investigado.
Dos 101 artigos que adentraram este estado da arte, a maioria decorre de pesquisas de campo, sendo a escola pública e os(as) estudantes dos anos finais do ensino fundamental e médio, respectivamente, o contexto e os sujeitos mais investigados. Questionários, inventários e escalas são os instrumentos mais utilizados nestas pesquisas de campo. O bullying destacase como tema de estudo, enquanto houve uma escassez de investigações sobre racismo, classismo, sexismo, homofobia e capacitismo. Poucos estudos apresentam possibilidades de enfrentamento às violências que acontecem nas escolas, sendo que boa parte das pesquisas indica a necessidade de novos estudos e aprofundamentos sobre a problemática.
Estas lacunas e ênfases nos estudos, atreladas ao silenciamento sobre os marcadores sociais da desigualdade, configura-se em uma forma de não reconhecimento de determinados grupos sociais e das violências vividas por estes nos contextos escolares, reforçando, por consequência, um modo hegemônico de produzir conhecimento em psicologia legitimado por um suposto sujeito universal representante da humanidade. Deste modo, em acordo com Collins (2019), compreendemos que as posições epistemológicas determinam o foco dos estudos, o método, o tipo de análise e a intencionalidade do conhecimento produzido e, por isso, precisam ser problematizadas.
Considerando o conjunto dos artigos analisados, aqueles decorrentes de pesquisas de campo são os que, em sua maioria, fundamentam os caminhos metodológicos em paradigmas positivistas, enquanto os artigos teóricos buscam problematizar estas perspectivas, a conceituação sobre violências e os aspectos que são evidenciados nas pesquisas sobre o tema desde um viés naturalizante, ancorado na culpabilização individualizante e descolado de uma análise social e histórica sobre a relação entre violências, escola e sociedade. Cabe sempre considerar que a escola pública brasileira é composta por uma maioria de estudantes pobres e negros(as) e por mais de 1 milhão de estudantes com deficiência (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2020). Estas escolas habitam um país com extrema desigualdade social, onde boa parte da população vivencia cotidianamente violências interpessoais, institucionais e de Estado. Preconceitos e violências contra população pobre e não branca modelam, historicamente, as relações sociais e educativas em nossa sociedade. Portanto, estudar as violências que acontecem especificamente na instituição escolar exige investigar o modo como estas e outras formas de violências se articulam e operam nas relações e experiências dos sujeitos que compõe a escola.
Evidencia-se, neste sentido, a necessidade de trabalharmos com epistemologias contrahegemônicas que interroguem o lugar social e de poder ocupado pelas(os) pesquisadores(as), bem como a necessidade de estratégias metodológicas que possibilitem a análise dos aspectos que compõem as relações e os acontecimentos nomeados como violências nas escolas (Groff, 2015). Olhar para a cartografia das violências nos aproxima de uma est(é)tica argumentativa que concebe a palavra violência como uma categoria de análise das narrativas e dos modos qualitativos de existência em contextos escolares (Groff, 2015). E nesta direção, propomos um modo de pesquisar e de produzir conhecimento em psicologia que intenciona compreender a composição das relações entre estudantes, entre estudantes e docentes, escola e comunidade, em estreita articulação com as violências históricas, institucionais e estruturais constituidoras da sociedade brasileira. Consideramos importante romper com estratégias teórico-metodológicas que buscam a caracterização e classificação das violências que acontecem nas escolas sem a necessária explicação sobre como estas são produzidas, bem como uma ruptura com a busca pela causalidade das violências nos indivíduos e suas famílias, sem a explicitação dos fundamentos teóricos desta possível relação.
Precisamos investir em práticas investigativas entendendo que as violências que acontecem nas escolas possuem uma gênese social e não individual, e que interpretações fundadas nos binômios causa-efeito e vítima-agressor não dão conta da complexidade do fenômeno. Enquanto proposição para este complexo campo de estudos e intervenção, destacamos a potência ética e analítica da interseccionalidade (Akotirene, 2019) como fundamental para as pesquisas sobre violência e escola, assim como a criação de métodos de pesquisa alternativos (Freire, 1999). Esta composição, a nosso ver, amplia a compreensão sobre os significados contextualizados das violências que acontecem nas escolas e instrumentaliza pesquisadores(as) da psicologia e psicólogas(os) sociais e escolares para a escuta das narrativas dos sujeitos sobre suas experiências de opressão e violências, incluindo a participação destes na elaboração de estratégias educativas e políticas de enfrentamento da problemática nas escolas.