A Atenção Básica é o pilar que organiza o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (Lei n. 8080, 1990; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2005). Na política de Saúde, a Atenção Básica é regida pelos pressupostos do SUS como a universalidade, a integralidade e a equidade. No SUAS, a Proteção Social Básica é a porta de entrada para os serviços socioassistenciais, garantindo acesso à população pautada em princípios organizativos como o atendimento às necessidades sociais em detrimento da exigência de renda, a universalização dos direitos sociais e a igualdade de direitos no acesso ao atendimento nas diferentes políticas públicas, entre outros (MDS, 2005).
A Estratégia Saúde da Família (ESF), na Atenção Básica de Saúde, é a porta de entrada dos usuários ao SUS, dado o conjunto de ações que oferta ou seu papel de organização na rede de saúde, que vai desde a prevenção e promoção até o tratamento e reabilitação (Ministério da Saúde [MS], 2013). Na Assistência Social, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é o equipamento público e estatal que tem como objetivo a organização e a oferta dos serviços no território no qual está inserido. De maneira semelhante ao que acontece na Saúde, o CRAS é o primeiro acesso a essa política pública, dada sua responsabilidade territorial e seu foco nas áreas de vulnerabilidade e risco social mapeadas pelos municípios e Distrito Federal (MDS, 2009).
Estudos realizados em diferentes países têm apontado para a necessidade de a saúde mental ser integrada à Atenção Básica (Gureje et al, 2015; WHO, 2008). No Brasil, essa aproximação acontece a partir de 2011, com a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que insere a Atenção Básica como ponto de atenção dentro da rede de atendimento em saúde mental no SUS (Portaria n. 3088, 2011). O Ministério da Saúde (MS) passa a orientar que os profissionais de saúde incorporem em suas práticas diárias os cuidados em saúde mental, de modo que a singularidade, a subjetividade e a visão de mundo do usuário sejam consideradas no cuidado integral (MS, 2013).
Um número importante de pessoas com transtorno mental é atendido na Atenção Básica, sendo este, para muitos, o primeiro ou único contato com os serviços de saúde (Hirdes & Scarparo, 2015). Estudos realizados em diferentes contextos de Atenção Básica à Saúde encontraram prevalências de transtornos mentais que variaram de 23,2% a 44,1% entre o público atendido (Borges et al., 2015; Souza et al., 2017). Na Assistência Social, foram encontradas prevalências de 52,1% e 32,2% de transtornos mentais, respectivamente, entre os usuários que frequentavam os serviços (Kaspper & Schermann, 2014; Wiemann & Munhoz, 2015).
É necessário que o diagnóstico precoce e tratamento dos transtornos mentais se inicie na Atenção Básica, a fim de diminuir o sofrimento das pessoas e evitar que consequências mais graves aconteçam. Um exemplo diretamente relacionado à presença de transtornos mentais e cada vez mais presente nos contextos de Atenção Básica é o comportamento suicida, que inclui desde ideias, gestos e tentativas de tirar a própria vida, podendo chegar ao suicídio consumado (Botega, 2015). Estima-se que de 60 a 98% das pessoas que morrem por suicídio tinham algum diagnóstico de transtorno mental no momento da morte (Bachmann, 2018). Além disso, em média 45% destes pacientes foram atendidos em um serviço de Atenção Básica nas semanas ou meses que antecederam o ato suicida (Luoma et al., 2002).
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), no ano de 2012 foram registradas em todo o mundo aproximadamente 804.000 mortes por suicídio, números estes equivalentes à taxa global de 11,4 mortes/100 mil hab. e a uma morte a cada 40 segundos (Bachmann, 2018). Faz-se, portanto, necessário pensar em estratégias de prevenção e controle do número de mortes por suicídio, garantindo que os serviços e os profissionais estejam preparados para atender a esta demanda, uma vez que a proximidade com o território e a longitudinalidade do cuidado possibilitam o reconhecimento precoce e manejo adequado do risco de suicídio tão logo ele se apresente (Hirdes & Scarparo, 2015).
Porém, a postura dos profissionais frente à demanda trazida pelo paciente que apresenta comportamento suicida é determinante para a adesão e continuidade do tratamento e seu prognóstico. O estigma e o preconceito por parte das equipes aparecem como importantes barreiras que impedem as pessoas de receberem o cuidado que necessitam (Hirdes & Scarparo, 2015; Storino et al, 2018). O suicídio aparece na sociedade ocidental como algo vergonhoso, manipulativo e menos aceito que as mortes por causas orgânicas, como por exemplo, o câncer (Hirdes & Scarparo, 2015). A falta de preparo dos profissionais e de capacitação sobre saúde mental e suicídio produzem condutas inadequadas que, somadas à presença de atitudes negativas como pouca empatia ou desejo de afastar-se do paciente, interferem negativamente na formação do vínculo e no cuidado (Botega, 2015; Freitas & Martins-Borges, 2017).
Pesquisas recentes que investigaram atitudes em relação ao comportamento suicida na Atenção Básica à Saúde (Spagnolo et al., 2018, Storino et al., 2018; Silva et al., 2018; Saini et al., 2020; Silva & Souza, 2021) demonstraram que os profissionais, após participarem de cursos de capacitação sobre a temática, indicaram se sentir mais capazes para lidar com a usuários com risco de suicídio e apresentaram atitudes mais positivas em relação a eles. No contexto da Assistência Social, não foram encontradas pesquisas sobre o comportamento suicida e as atitudes dos profissionais.
Neste último contexto citado, embora não seja seu foco de atuação, a saúde mental tem sido apontada como demanda constante para atendimento, resultados de um modelo socioeconômico excludente e iatrogênico. Fatores como desemprego, falta de renda e insegurança alimentar, presentes nas situações de vulnerabilidade social atendidas pelos serviços do SUAS, impactam diretamente sobre como os indivíduos vivenciam a ansiedade e a depressão (Wiemann & Munhoz, 2015).
O atendimento que é realizado pelos profissionais de saúde em qualquer ponto da rede, incide sobre o aumento ou a diminuição dos casos de suicídio (Vidal & Gontijo, 2013). Isso porque atitudes mais positivas indicam a disponibilidade dos profissionais para o engajamento no cuidado e influenciam diretamente na procura dos usuários pela continuidade do tratamento. A revisão realizada por Boukouvalas et al. (2019) mostrou que quanto mais os profissionais têm conhecimento sobre o comportamento suicida, mais positivas são suas atitudes em relação ao paciente e mais seguro eles se sentem para investigar sua presença. No sentido oposto, a falta de capacitação produz desconforto, hesitação e atitudes negativas nos profissionais.
Desta forma, observado o impacto das atitudes dos profissionais diante do comportamento suicida e seus desdobramentos bem como o papel da Atenção Básica no atendimento a esta demanda, este estudo teve como objetivo investigar as atitudes de profissionais que atuam na Atenção Básica das políticas de Saúde e de Assistência Social em relação ao comportamento suicida. Tem-se como hipótese que os profissionais têm diferentes atitudes, a depender da política pública na qual estão inseridos e de sua formação profissional, e que tais atitudes são determinantes para o cuidado que é disponibilizado à população.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa 80 profissionais da Atenção Básica que atuavam no SUS e no SUAS no momento da pesquisa. Dentre eles, 44 trabalhavam em UBS ou NASF e 36 trabalhavam em CRAS de um município de grande porte do sul do país. A organização da amostra se deu de forma intencional e por conveniência, considerando o local de atuação de interesse para responder aos objetivos propostos. Foram convidados a participar da pesquisa todos os profissionais vinculados aos CRAS (uma vez que as equipes são em menor número que nos serviços de saúde) e número equivalente entre os profissionais de saúde. Os critérios de inclusão adotados foram a) curso superior completo e b) atuar nas equipes das UBS/NASF ou de CRAS nas funções de médico, psicólogo, enfermeiro ou assistente social, profissões estas que, em parte, são encontradas nos dois equipamentos listados.
Instrumentos
Utilizou-se o Questionário de Atitudes em Relação ao Comportamento Suicida (QUACS) (Botega et al., 2005) e um Questionário Sociodemográfico. O QUACS consiste em 21 afirmativas dispostas em uma escala analógica de 10 cm, em cujas extremidades estão discordo plenamente e concordo plenamente. O participante deve se posicionar em relação a cada uma das afirmativas com um traço perpendicular à linha. Este instrumento permite conhecer as atitudes dos profissionais frente ao comportamento suicida a partir de três fatores: 1) Sentimentos negativos em relação ao paciente (7 questões, que somam 70 pontos), 2) Capacidade profissional (4 questões, que somam 40 pontos) e 3) Direito ao suicídio (5 questões, que somam 50 pontos); cinco questões da escala não fazem parte dos fatores acima mencionados (Q8, Q11, Q14, Q20 e Q21) e foram excluídas da análise.
O Fator 1 é resultado da soma dos itens Q2, Q5, Q9, Q13, Q15, Q17 e Q19. O Fator 2, dos itens Q1, Q7, Q10 e Q12 (invertido) e o Fator 3, é a soma dos fatores Q3 (invertido), Q4, Q6, Q16 e Q18. Maiores médias no Fator 1 indicam maior a presença de sentimentos negativos em relação ao paciente. Maiores médias no Fator 2 indicam maior percepção de capacidade profissional bem como maiores médias no Fator 3, indicam atitudes mais moralistas em relação ao suicídio (Botega et al., 2005).
O questionário sociodemográfico (15 questões) rastreou as seguintes variáveis: idade, sexo, estado civil, religião, formação, escolaridade, tempo de serviço, porcentagem de atendimentos que apresentam comportamento suicida e se possuíam formação ou receberam, por parte do serviço ao qual estão vinculados, capacitação sobre a temática.
Procedimentos de Coleta de Dados
A coleta de dados aconteceu entre os meses de agosto e dezembro de 2017. Entre os profissionais da Saúde, a maior parte dos questionários foi aplicada de forma coletiva (quando cada participante preenchia individualmente os instrumentos), em espaços cedidos pelas equipes. Profissionais que porventura não estavam presentes puderam preenchê-los posteriormente e entregar às pesquisadoras. Entre os trabalhadores da política de Assistência Social, os instrumentos foram encaminhados aos equipamentos cujos profissionais, em consulta prévia, manifestaram interesse em participar da pesquisa. Estes foram enviados em envelopes lacrados através do serviço de malote disponível na referida secretaria, retornando da mesma forma para as pesquisadoras. Tal logística foi possível uma vez que a pesquisadora principal era trabalhadora de um dos CRAS.
Procedimentos de Análise de Dados
Tabelas para a distribuição de frequências, médias, medianas e desvio padrão (DP) foram construídas para as variáveis sociodemográficas e para os três fatores do QUACS. No primeiro momento, as análises foram feitas com as amostras parciais, conforme o grupo de interesse - Saúde (n=44) e Assistência Social (n=36), permitindo assim compará-los. Um segundo momento relacionou os escores do QUACS da amostra total de participantes (n=80) às variáveis independentes.
Os fatores 2 e 3 apresentaram distribuição normal, verificada através do teste de Kolmogorov-Smirnov. Os testes t de Student e Mann-Whitney foram utilizados para comparar as médias entre dois grupos (variáveis política pública na qual trabalha, sexo, possuir uma religião e se o participante já recebeu alguma capacitação). ANOVA (Análise de Variância) e Kruskal-Wallis foram utilizados para analisar a relação entre as variáveis estado civil, a religião que frequenta, a frequência em instituição religiosa, formação acadêmica, nível de escolaridade e o tipo de vínculo profissional em cada um dos fatores da escala. Por fim, as variáveis contínuas - idade e tempo de serviço na atual política pública - foram avaliadas através das correlações de Pearson e de Spearman. O nível de significância considerado foi de p<0,05. O software utilizado foi o SPSS v.23.
Resultados
Dentre os profissionais da Saúde, cerca de 80% eram do sexo feminino, mais da metade (55,9%) estavam casados ou em união estável e aproximadamente 80% tinham religião (sendo 62,5% católicos) e nunca receberam capacitação para lidar com a temática do suicídio. A média de idade dos profissionais foi de 34,4 anos (variando entre 25 e 57 anos). Entre os profissionais da Assistência Social, 91,7% eram do sexo feminino e 75% eram casados/união estável. Aproximadamente 64% tinham uma religião (57,1% católicos) e 16,7% declararam que receberam capacitação para lidar com a temática do suicídio. As idades variaram entre 28 e 55 anos, com média de 38,5 anos.
A capacitação sobre a temática do suicídio apareceu associada à busca particular dos profissionais em ter mais conhecimento sobre o tema. Sete deles apontaram que esta aconteceu em cursos de graduação e pós-graduação (estágios e residências), enquanto os demais indicaram centros de formação, associações de classe, ensino à distância e atividades de educação permanente como os locais onde tiveram acesso a discussões sobre o tema. Dentre as mudanças observadas pelos participantes sobre sua prática profissional foram apontadas a desmistificação do comportamento suicida e maior sensibilidade no atendimento ao paciente. Indicaram maior segurança para realização das anamneses e avaliações de risco, levando assim a melhores condutas técnicas e encaminhamentos.
Na Tabela 1 estão descritos os resultados dos itens que compõem cada fator do QUACS de acordo com as políticas públicas investigadas, Saúde ou Assistência Social.
Subescalas | Saúde | Assistência Social | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Média | (DP) | (Mín.-Máx.) | Média | (DΡ) | (Mín.-Máx.) | |
Fator 1: Sentimentos negativos em relação ao paciente Q2 - Quem fica ameaçando geralmente não se mata |
1,5 | 2,2 | (0 - 8,3) | 2,3 | 2,5 | (0 - 8,3) |
Q5 - No fundo, prefiro não me envolver muito com pacientes que tentaram o suicídio | 1,7 | 2,6 | (0-9,1) | 2,7 | 3,0 | (0 -10,0) |
Q9 - Tenho receio de perguntar sobre ideias de suicídio e acabar induzindo o paciente a isso | 1,4 | 2,1 | (0 -7,0) | 2,2 | 2,4 | (0 - 8,4) |
Q13 - As vezes dá raiva porque com tanta gente querendo viver...e aquele paciente querendo morrer | 1,1 | 1,9 | (0 - 6,6) | 0,9 | 1,9 | (0-9,0) |
Q15 - A gente se sente impotente diante de uma pessoa que quer se matar Q17 - No caso de pacientes que estejam sofrendo |
3,5 | 2,8 | (0-9,2) | 4,5 | 3,2 | (0 -10,0) |
muito devido a uma doença física, acho mais | 2,4 | 3,0 | (0 -10,0) | 2,8 | 2,5 | (0 - 8,9) |
aceitável a ideia de suicídio Q19 - Quem quer se matar mesmo, não fica “tentando” se matar |
l,6 | 2,3 | (0 - 8,0) | 1,9 | 2,3 | (0-8,5) |
Fator 2: Capacidade profissional Ql- Sinto-me capaz de ajudar uma pessoa que tentou se matar |
7,3 | 2,1 | (1,6 -10,0) | 6,4 | 2,6 | (0 -10,0) |
Q7 - Sinto-me capaz de perceber quando uma pessoa tem risco de se matar | 6,3 | 1,9 | (1,3 -10.0) | 6,0 | 2,8 | (0-10,0) |
Q10 - Acho que tenho preparo profissional para lidar com pacientes com risco de suicídio | 5,7 | 2,8 | (0 -10,0) | 4,7 | 3,6 | (0-10,0) |
Q12 - Sinto-me inseguro(a) para cuidar de pacientes com risco de suicídio | 6,1 | 3,3 | (0 - 10,0) | 4,5 | 3,3 | (0 - 10,0) |
Fator 3: Direito ao suicídio Q3 - Apesar de tudo, penso que uma pessoa tem o direito de se matar Q4 - Diante de um suicídio: penso: se alguém |
6.1 | 3,0 | (0 -10,0) | 5,5 | 3,4 | (0 -10,0) |
tivesse conversado, a pessoa teria encontrado outro | 7,2 | 1,9 | (2,3 -10,0) | 6,8 | 2,1 | (2,0 -10,0) |
caminho? | ||||||
Q6 - A vida é um dom de Deus, e só ele pode tirar | 3,7 | 3,3 | (0 -10,0) | 3,2 | 3,1 | (0 -10,0) |
Q16- Quem tem Deus no coração,não vai tentar se matar | 1,8 | 2,4 | (0-9,8) | 1,1 | 1,9 | (0-5,3) |
Q18 - Quando uma pessoa fala empôr fim à vida, tento tirar aquilo da cabeça dela. | 5,9 | 3,0 | (0 -10,0) | 4,9 | 3,3 | (0 -10,0) |
Nota: Tabela elaborada pelas pesq uisadoras.
O Fator 1, Sentimentos negativos em relação ao paciente, teve médias inferiores a 2,5 para todos os itens entre os profissionais da Saúde. Cada item pode assumir valores entre 0 e 10 e quanto menor a média atingida, menor a presença de sentimentos negativos, menor a percepção de capacidade profissional e menor a presença de atitudes moralistas diante do paciente. Houve exceção apenas na questão 15 (A gente se sente impotente diante de uma pessoa que quer se matar), cuja média foi 3,5. A percepção da Capacidade profissional (Fator 2) teve médias maiores que 5,5 para todos os itens e o Fator 3, Direito ao suicídio apresentou as maiores médias para os itens que relacionavam o suicídio a uma escolha objetiva (Q3 = 6,1 e Q18 = 5,9). Para os itens que associavam o direito ao suicídio a crenças religiosas, as médias foram as menores encontradas no Fator 3 (Q6 = 3,7 e Q16 = 1,8). Destaca-se o item 4 que relaciona acolhimento e diferentes desfechos da situação na qual há risco de suicídio, que alcançou a média de 7,2.
Dentre os profissionais da Assistência Social, todos os itens do Fator 1 tiveram médias inferiores a 3,0, com exceção do item 15 (Q15 = 4,5), que relaciona os sentimentos diante do paciente e o sentimento de impotência. O item 13 (Q13 = 0,9) apresentou a menor média e refere-se à raiva diante das pessoas que “escolhem morrer” enquanto outras lutam para viver. No Fator 2, Capacidade profissional, as médias dos itens foram de 4,5 a 6,4 e no Fator 3, semelhante aos profissionais da Saúde, as menores médias se repetiram para os itens Q6 (média = 3,2) e Q16 (média = 1,1), que relacionam a crença em Deus e o direito de tirar a própria vida. Os demais itens deste fator apresentaram médias de 5,5 (Q3), 6,8 (Q4) e 4,9 (Q18).
A Tabela 2 apresenta as médias gerais dos fatores do QUACS de acordo com cada política pública. Para o Fator 1, Sentimentos negativos em relação ao paciente, a média dos profissionais da Saúde foi de 13,1 e 17,4 para os da Assistência Social. No Fator 2, Capacidade profissional, profissionais da Saúde obtiveram média de 25,4 e da Assistência Social atingiram a média de 21,1. No Fator 3, Direito ao suicídio, os profissionais da Assistência Social apresentaram média menor (21,8) em comparação aos profissionais de Saúde (24,9).
Fatores do QUACS | Pontuação máxima |
Saúde | Assistência Social | ||
---|---|---|---|---|---|
Média | (»P) | Média | (DP) | ||
1. Sentimentos negativos em | 70 | ||||
relação ao paciente (questões 2+5+9-15+17+19) |
13,1 | (10,4) | 17,4 | (8,8) | |
2. Capacidade profissional | |||||
(questões 1+7+10+12) | 40 | 25,4 | (8,4) | 21.1 | (10,1) |
3. Direito ao suicídio | |||||
(questões 3+4+6+16+18) | 50 | 24,9 | (8,5) | 21,8 | (8,7) |
Nota'. Tabela elaborada pelas pesquisadoras.
A última análise, que teve como base a amostra total de 80 participantes, relacionou as variáveis independentes do questionário sociodemográfico aos três fatores do QUACS. Idade, sexo, estado civil, possuir uma religião, a religião que frequenta e sua frequência, o nível de escolaridade, o tempo de atuação na política pública em que está e o tipo de vínculo profissional não foram estatisticamente significativos para o Fator 1. Já as variáveis política pública na qual trabalha (p = 0,02), formação acadêmica (p = 0,01) e se o participante recebeu alguma capacitação (p = 0,02) sobre o tema apresentaram relevância estatística (p < 0,05), como apresentado na Tabela 3.
Variável sociodemográfica (independentes) | Fator 1 - Sentimentos negativos em relação ao paciente | Fator 2 - Capacidade profissional | Fator 3 - Direito ao Suicídio |
---|---|---|---|
Política pública | p value | p value | p value |
Saúde | 0,02* | 0,042 | 0,112 |
Assistência Social Sexo feminino |
0,73* | 0,012 | 0,292 |
masculino Possui alguma religião? Sim |
0.521 | 0.992 | 0,012 |
Não Formação acadêmica Psicologia Medicina |
0.013 | 0,034 | 0.414 |
Enfermagem Serviço Social Recebeu capacitação? Sim Não |
0,021 | 0,012 | 0,152 |
Nota: Ta bela elaborada pelas pesquisadoras.
1teste de Mann-Whitney
2teste t de Student
3teste de Kruskal-Wallis
4ANOVA
5correlação de Pearson
6Correlação de Speearrnan
As variáveis política pública na qual trabalha (p = 0,04), sexo (p = 0,01), formação acadêmica (p = 0,03) e capacitação sobre a temática (p = 0,01) apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre os grupos para o Fator 2 (teste à posteriori de Tukey). Os participantes com formação em Psicologia e Medicina (p = 0,01 para ambos) apresentaram diferenças na percepção da capacidade profissional em comparação ao Serviço Social, bem como a formação em Enfermagem quando comparada aos mesmos dois grupos (p = 0,02 para ambos). Medicina e Psicologia (p = 0,93) bem como Enfermagem e Serviço Social (p = 0,20) não apresentaram diferenças estatisticamente significativas entre si neste fator. Para as demais variáveis houve ausência de diferenças estatisticamente significativas.
O Fator 3, Direito ao suicídio, apresentou diferença estatística apenas para a variável possui uma religião (p = 0,01). As demais variáveis do estudo não apresentaram diferenças em relação a este fator.
Discussão
Neste estudo que comparou as atitudes dos profissionais de duas políticas públicas frente ao suicídio, tanto profissionais de Saúde quanto de Assistência Social apresentaram médias baixas para os itens do Fator 1 (Tabela 1), um indicativo da fraca presença de atitudes negativas em relação aos pacientes que apresentam comportamento suicida. Para o Fator 2, porém, os profissionais de Saúde sentem-se mais capacitados para lidar com esta demanda, cujas médias para todos os itens foram mais altas que as do outro grupo. E no Fator 3, profissionais da Assistência Social apresentaram pontuações mais baixas nos itens referentes ao direito ao suicídio, o que sugere a presença de atitudes menos moralistas em relação aos usuários.
O escore geral encontrado para o Fator 1 (Tabela 2) foi um escore baixo em ambas as políticas públicas, embora maior entre os profissionais da Assistência Social, indicando neste grupo maiores sentimentos negativos frente ao paciente suicida. Tais sentimentos podem implicar na atuação profissional e na qualidade do cuidado que é ofertado, levando o usuário a se sentir mal acolhido no serviço (Botega, 2015). Falta de empatia, desejo de afastar-se do paciente ou condutas que invalidam ou diminuem o sofrimento apresentado são maneiras como as atitudes negativas podem se manifestar (Botega, 2015; Frey et al., 2016; Obando et al., 2014).
Os profissionais da Saúde apresentaram maior percepção da capacidade profissional (Fator 2) para lidar com pacientes em risco de suicídio, ainda que os dois grupos apresentem pontuação superior à média possível para o fator. Em contrapartida, profissionais da Assistência Social apresentaram atitudes menos moralistas em relação ao direito ao suicídio (Fator 3). Tendo em vista que o Fator 3 tem itens que questionam a crença em Deus e o direito à vida ser reservado à Ele, uma porcentagem menor entre os profissionais desta política pública declarou ter religião (63,9%), o que pode ter impactado no resultado do fator.
A política pública de atuação foi uma variável que apresentou atitudes distintas dos profissionais frente ao comportamento suicida. Profissionais que trabalham na política de Saúde indicaram a presença de atitudes mais positivas em relação ao paciente suicida que os profissionais da Assistência Social (escore de 35,95 e 46,92, p = 0,02). Estes mesmos profissionais apresentaram maior percepção da capacidade profissional (escore de 25,49 na Saúde e 21,16 na Assistência Social, p = 0,04) em comparação ao outro grupo, informações estas já encontradas na comparação simples entre os grupos para os mesmos fatores da escala.
As formações profissionais dos participantes apresentaram diferenças significativas para os Fatores 1 e 2. Profissionais da Enfermagem e do Serviço Social indicaram mais sentimentos negativos em relação ao paciente (26,5 e 25,75 respectivamente, p = 0,01) em comparação aos profissionais de Psicologia e Medicina (11,9 e 17,46, p = 0,01). Da mesma forma, a formação em Serviço Social e Enfermagem (16,14 e 20,68, p = 0,03) indicou entre seus profissionais uma menor percepção de capacidade profissional em comparação ao grupo de médicos e psicólogos (30,74 e 29,22, p = 0,03). Contudo, apesar das diferenças encontradas entre médicos e enfermeiros neste estudo, outras pesquisas realizadas na Atenção Primária à Saúde concluíram que tais profissionais apresentavam atitudes mais positivas frente ao suicídio que profissionais de nível médio (Santos et al., 2014; Storino et al., 2018).
É a partir de construção do vínculo e do acolhimento que os profissionais conseguem intervir de forma positiva e resolutiva junto aos seus pacientes (Botega, 2015; Hirdes & Scarparo, 2015). Implica dizer que as equipes precisam estar preparadas para lidar com as diferentes demandas que aparecem, inclusive de saúde mental, a fim de garantir ao usuário o cuidado integral. Contudo a percepção de estar insuficientemente capacitado gera nos profissionais sentimentos de frustração, incompetência, impotência e de não ter nada a oferecer ao paciente, o que faz que sejam ignorados os sinais de risco ou que seja rejeitado o pedido de ajuda (Freitas & Martins-Borges, 2017).
As quatro categorias profissionais presentes neste estudo têm diferentes currículos acadêmicos, que muitas vezes não incluem ou pouco discutem a saúde mental e o comportamento suicida. Mesmo nos cursos de enfermagem e medicina, reconhecidamente da área da Saúde, há pouco acesso às discussões sobre como avaliar ou atender pacientes que apresentem risco de suicídio (Moraes et al., 2016; Vedana & Zanetti, 2019). Porém, considerando que na UBS e no CRAS o primeiro contato do usuário é, geralmente, com o profissional de enfermagem ou de serviço social, faz-se necessário investir na formação e qualificação destes dois profissionais, a fim de aprimorar sua compreensão sobre o fenômeno do suicídio e qualificar suas práticas de cuidado.
A capacitação para lidar com o comportamento suicida é uma importante ferramenta que impacta positivamente nas atitudes dos profissionais, independente de formação ou de local de trabalho (Marcolan, 2018; Moraes et al., 2016; Santos et al., 2014). Estudos apontam que graduandos e profissionais que tiveram acesso a algum tipo de capacitação sobre o comportamento suicida apresentam atitudes mais positivas em relação ao paciente e têm ideias menos moralistas e estigmatizantes (Kirchner & Queluz, 2019; Santos et al., 2014), o que torna necessária a inclusão desta temática nos currículos desde a graduação (Botti, Araujo, Costa, & Machado, 2015; Marcolan, 2018).
Porém, entende-se que as capacitações nos moldes atuais, cujo repasse de informações e protocolos visam a instrumentalizar os profissionais técnica e objetivamente, precisam de um novo elemento para que produzam efeito. É necessário que os profissionais estejam disponíveis para entrar em contato com o outro, o paciente. Que saiam do seu lugar de conforto para ir ao encontro deste outro e do sofrimento que ele apresenta, pois sem este investimento subjetivo e sem disponibilidade interna, acredita-se que pouca mudança será produzida.
Este estudo também encontrou diferenças entre a variável sexo e a percepção da capacidade profissional. Participantes do sexo masculino perceberam-se mais preparados para lidar com o comportamento suicida (homens = 28,91 e mulheres = 22,6, respectivamente; p = 0,01), dado este corroborado por outras pesquisas que utilizaram o mesmo instrumento (Moraes et al., 2016; Storino et al., 2018). Profissionais que receberam capacitação sobre a temática também apresentaram menos sentimentos negativos em relação aos pacientes (Fator 1) bem como maior percepção de sua capacidade profissional (Fator 2), reiterando o papel da capacitação conforme discutido acima.
Por fim, participantes que tinham uma religião apresentaram atitudes mais moralistas sobre o direito ao suicídio (Fator 3) em detrimento dos que declararam não ter (escores de 25,59 e 18,32; p = 0,01). Nas sociedades ocidentais e cristãs, a religião ocupa lugar de destaque na vida das pessoas e desempenha um papel importante na organização psíquica do sujeito. A crença de que Deus pode sustentar o indivíduo diante do desespero e do desamparo, leva à hipótese de que não há motivos que justifiquem o suicídio.
O suicídio, enquanto tema ainda cercado de tabus, impacta na reação das pessoas frente à morte planejada. Ele desvela a impotência dos profissionais frente à morte buscada pelo sujeito e se choca com o dever quase divino dos profissionais de salvar vidas (Freitas & Martins-Borges, 2017). Para além disso, a morte se tornou algo silencioso, hospitalizado e tecnicamente assistido. O gesto suicida aparece então como um transgressor a essa ordem dada, trazendo à tona a finitude da vida, algo que a sociedade luta para não enfrentar (Botega, 2015; Marcolan, 2018).
Este estudo apresentou como limitações o número de participantes e o recorte de categorias profissionais. Na política de Assistência Social, por exemplo, embora as pesquisadoras tenham acessado a todos os profissionais disponíveis no momento da pesquisa, este número ainda foi pequeno. Dentre os profissionais que constavam no organograma da secretaria no momento da pesquisa, ficaram de fora apenas aqueles que estavam de férias ou afastados (licença ou motivos de saúde). Porém, apesar do tamanho da amostra, este estudo permitiu dar visibilidade às realidades de duas políticas públicas que precisam se organizar para atender às demandas referentes ao comportamento suicida, a despeito de suas particularidades e especificidades.
Quanto às categorias profissionais, foram incluídas apenas quatro categorias profissionais dentre tantas que fazem parte dos serviços. Ficaram de fora do desenho deste estudo outras categorias profissionais de nível superior como farmacêuticos, terapeutas ocupacionais, dentistas, fisioterapeutas etc e profissionais de nível fundamental e médio. Estes últimos são importantes atores no acolhimento e atendimento à população e nas situações nas quais o risco de suicídio está presente. Agentes comunitários de saúde, técnicos de enfermagem e educadores sociais têm um contato direito com o dia a dia das pessoas e por isso não devem ser negligenciados.
Considerações Finais
A Atenção Básica é a porta de entrada para os serviços de Saúde e de Assistência Social e muitas vezes o primeiro contato do usuário com os serviços e profissionais. Nesse sentido, crenças e valores dos profissionais podem interferir de forma decisiva na relação que é estabelecida com o usuário. Profissionais da Saúde apresentaram atitudes mais positivas em relação ao paciente que apresenta comportamento suicida e maior percepção de capacidade profissional para lidar com esta demanda. Já profissionais da Assistência Social tiveram atitudes menos moralistas com relação ao direito ao suicídio.
Profissionais que tiveram capacitação sobre a temática, que atuam na política de Saúde e com formação superior em Psicologia e Medicina também tiveram atitudes mais positivas em relação ao paciente. Profissionais do sexo masculino, que atuam na política de Saúde e das áreas de Psicologia e Medicina apresentaram maior percepção de capacidade profissional; profissionais que tinham religião apresentaram atitudes mais moralistas sobre o direito ao suicídio.
Todavia, os resultados encontrados indicam a necessidade de um diálogo mais próximo entre os gestores duas políticas públicas em tela, Saúde e Assistência Social. Faz-se necessário elencar prioridades e formas de intervenção que permitam que as pessoas tenham acesso ao atendimento em saúde mental, independente do serviço e da política que acessem. Para tal, faz-se necessária uma ampliação dos equipamentos disponíveis para a atenção especializada e uma melhor articulação entre os serviços, diminuindo assim a sobrecarga dos profissionais e evitando a absorção da demanda reprimida de uma política pela outra. Cada vez mais se observa o sofrimento psíquico como resposta a questões sociais como acesso a trabalho e renda, preconceitos e desigualdades, que vão impactar diretamente sobre a saúde mental das pessoas.
A falta de preparo dos profissionais para atender pacientes que apresentam demandas relativas à saúde mental indica uma fragilidade importante dos serviços, que impacta na correta avaliação do risco de suicídio e consequente conduta das ações necessárias para garantir a segurança do paciente. Por isso, a capacitação dos profissionais apresenta-se como uma demanda urgente e necessária. Ela permite a troca de experiências, a construção de estratégias conjuntas e ainda, a discussão de questões que extrapolam os aspectos de saúde e doença. Porém, é preciso considerar a necessidade de investimento subjetivo e a disponibilidade interna dos profissionais para estar em contato com o paciente, para que as capacitações produzam resultados verdadeiramente efetivos. Tais características, que fazem parte dos valores pessoais e éticos de cada profissional, não são ensinadas, mas tornam-se prérequisitos para que as capacitações produzam efeito.