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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022   03--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.68643 

PSICOLOGIA SOCIAL

Estilos de Habitação na Permacultura e as Interações Pessoa-Ambiente

Housing Styles in Permaculture and Person-Environment Interactions

Estilos de Vivienda en la Permacultura y las Interacciones Persona-Entorno

Luana Bezerra Pinheiro1 

Psicóloga, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


http://orcid.org/0000-0002-0366-5935

Raquel Farias Diniz1 

Doutora em Psicologia, professora adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


http://orcid.org/0000-0002-5902-3165

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, RN, Brasil


RESUMO

A crise ecológica tem suscitado movimentos alternativos ao padrão hegemônico das relações humano-natureza no capitalismo. A permacultura surge com a proposta de atrelar a necessidade humana de habitação às necessidades de renovação dos sistemas ecológicos, visando a um conjunto de ações efetivas, deliberadas e antecipadas que objetivam a redução de impactos e o cuidado ambiental. O estilo de vida permacultural envolve, assim, uma experiência de habitação de caráter pró-ecológico e voltado para a sustentabilidade. Neste estudo investigamos experiências de interações pessoa-ambiente a partir da visão de pessoas que aderem a este estilo de vida. Com uso da Teoria Fundamentada, a construção do corpus se deu via entrevistas semiestruturadas com 10 participantes, selecionados/as via indicação por pares. Nas análises, três categorias emergiram: a socioespacialidade em ambientes permaculturais; a rotina permacultural; os espaços permaculturais. Os resultados mostraram uma compreensão ampliada sobre habitação, cuja dimensão socioespacial considera os ecossistemas coabitantes. Identificou-se, também, as especificidades da rotina de manejos dos sistemas da permacultura. Destaca-se ainda desafios, estranhamentos e resistências quanto às formas de bioconstrução e estruturação de espaços permaculturais. Por fim, as pessoas participantes se veem como vitrine, proporcionando experiências tocantes e inspiradoras para despertar o cuidado ambiental.

Palavras-chave: psicologia ambiental; estilo de vida; sustentabilidade; habitação.

ABSTRACT

The ecological crisis has given rise to alternative movements away from the hegemonic pattern of human-nature relationships of the capitalism. Permaculture arises with the proposal of linking the human need for housing to the need for renewal of ecological systems. It is aiming at a set of effective, deliberate, and anticipated actions with the goal to reduce impacts and be environmentally friendly. The lifestyle in permaculture thus involves a pro-ecological housing experience focused on sustainability. In this study, we seek to investigate experiences of person-environment interactions from the perspective of people who adhere to this lifestyle. Using the Grounded Theory, the construction of the corpus took place via semistructured interviews with 10 participants, selected by peer review. In the analyses, three categories emerged: the sociospatiality in permacultural environments; the permacultural routine; the permacultural spaces. The results showed a deeper understanding of housing, whose socio-spatial dimension considers cohabiting ecosystems. The specificities of the routine in this style of housing and management of permaculture systems were identified. It also highlights the challenges, strangeness, and resistance regarding the forms of bioconstruction and structuring of spaces in permaculture. Finally, participants see themselves as inspirations, providing deep and inspiring experiences to bring up environmental care.

Keywords: environmental psychology; lifestyle; sustainability; housing.

RESUMEN

La crisis ecológica ha dado lugar a movimientos alternativos al patrón hegemónico de relaciones humano-naturaleza en el capitalismo. La permacultura vincula la necesidad humana de vivienda a la necesidad de renovación de los sistemas ecológicos, apuntando a un conjunto de acciones efectivas, deliberadas y anticipadas que buscan la reducción de impactos y el cuidado ambiental. El estilo de vida permacultural implica una experiencia de vivienda de carácter proecológico y orientada a la sostenibilidad. Así, buscamos investigar experiencias de interacciones persona-ambiente desde la perspectiva de personas que se adhieren a este estilo de vida. Utilizando la Teoría Fundamentada, fueron conducidas entrevistas semiestructuradas con 10 participantes, seleccionados mediante referencia por pares. En los análisis, surgieron tres categorías: socioespacialidad en entornos permaculturales; la rutina permacultural; espacios permaculturales. Los resultados mostraron una comprensión más profundizada de la vivienda, cuya dimensión socioespacial considera ecosistemas convivientes. También se identificaron las especificidades de la rutina en este estilo de vivienda, del manejo de los sistemas de permacultura. También destaca los desafíos, extrañezas y resistencias en torno a las formas de bioconstrucción y estructuración de los espacios permaculturales. Finalmente, los participantes se ven a sí mismos como un escaparate, brindando experiencias conmovedoras e inspiradoras para despertar el cuidado del medio ambiente.

Palabras clave: psicología ambiental; estilo de vida; sostenibilidad; vivenda.

A crise ecológica, que se intensifica ao longo das últimas décadas, tem demandado múltiplos olhares para as interações entre pessoas e ambientes. Diversas áreas do conhecimento se voltam para a compreensão de movimentos alternativos ao padrão hegemônico das relações humano-natureza no capitalismo, de modo a promover outras formas de relação. Nesse sentido, a Psicologia Ambiental busca contribuir para o conhecimento e promoção de relações mais harmônicas que resultem no bem-estar humano e na sustentabilidade, atentando para o potencial transformador de tais movimentos alternativos e seus impactos socioambientais para as gerações atuais e futuras.

Da necessária ressignificação de valores e práticas para se alcançar uma nova forma de agir no mundo, emerge a demanda pela reconstrução do sentido de comunidade (Simas, 2013). Comunidades alternativas são grupos de pessoas que escolheram viver juntas a partir de um propósito comum, trabalhando cooperativamente para criar um estilo de vida que reflita seus valores compartilhados e enfocando práticas pró-ecológicas, sustentáveis e humanizadas. É importante destacar que o foco para este estudo é essa perspectiva de vida em comum, por estar implicada necessariamente com estilos de vida orientados para a sustentabilidade.

Partindo da perspectiva de viver em comum, esta pode acontecer em um território limitado com a participação de um grupo restrito de pessoas ou, de forma mais abrangente, pode circular por vários espaços como uma ideia de comunidade. Assim, Ferreira Neto (2018) discorre sobre a ciência da permacultura, que tem contribuído para criar soluções para a existência material, desnaturalizando ações banalizadas, como a alimentação e a produção de resíduos, trazendo possibilidades distintas dos padrões atuais, questionando ações automatizadas, derivadas de sólidas construções sociais.

Permacultura é uma ciência para planejamento de assentamentos humanos sustentáveis. É utilizada para desenhar espaços (desde casas até cidades) de modo que os elementos sejam posicionados de acordo com uma visão sistêmica, onde tudo existe em relação, criando ciclos sustentáveis de aproveitamento energético e benefício mútuo. É uma maneira de intervir na realidade propondo uma nova ética, uma nova maneira de ser e estar no mundo, opondo-se à tônica individualizante da sociedade de consumo e da lógica da produção industrial. A perspectiva em si acaba por aproximar várias áreas do conhecimento, de forma transversal e transdisciplinar em sua essência (Ferreira Neto, 2018).

Esta ciência tem por intenção corresponsabilizar os indivíduos no que se refere à sua vida material, na produção e reprodução de suas necessidades básicas, gerando uma nova relação entre as pessoas e o entorno, questionando a posição de consumidor passivo (Ferreira Neto, 2018). Bill Mollison e David Holmgren criaram a permacultura inspirados no modelo das comunidades aborígenes tradicionais da Austrália, em 1970. A princípio, o termo surgiu de “agricultura permanente”, por ter sido inicialmente criado para a agricultura e para ambientes rurais. Mais adiante, com a expansão do método passou a significar cultura da permanência. Para Mollison (1988), a filosofia de base da permacultura é trabalhar com a natureza e não contra ela. Trata-se da adoção de uma postura de observação do mundo natural, com conclusões transferidas para o ambiente planejado. Observar os sistemas em todas as suas funções, ao contrário de exigir somente um produto destes e permitir que os sistemas produtivos apresentem suas evoluções próprias.

Metodologicamente, a permacultura possui uma ética regida por três premissas e doze princípios. As premissas são: cuidar da terra, cuidar dos outros e partilhar os excedentes. Já os princípios guia são: observe e interaja, capte e armazene a energia, obtenha rendimento, pratique auto-regulação e aceite feedback, use e valorize os recursos renováveis, não produza desperdícios, design partindo de padrões para chegar aos detalhes, interagir ao invés de segregar, use soluções pequenas e lentas, use e valorize a diversidade, use as bordas e valorize os elementos marginais, utilize e responda criativamente à mudança. Finalmente, os quatro eixos: água, energia, habitação e alimentos (Mollison & Slay, 1991).

Mais do que uma técnica de desenho para planejar e destacar uma sociedade ou ambiente mais sustentável e as tecnologias relacionadas, é também uma necessidade e caminho por desenhar culturas, modos de vida e convivências, comportamento, sentimentos de conexão com o meio e todos os seres que nele habitam, de modo que possamos permanecer e viver o território equilibradamente. Desse modo, a comunidade permacultural, formada por aqueles que aderiram de algum modo a essa nova forma de estar no mundo, se expande a partir de 1980, com a realização periódica de encontros biorregionais, nacionais e internacionais (as convergências), com o intuito de discutir os desafios locais e as possibilidades de superação dos mesmos.

Os encontros que congregam tais comunidades e pessoas permacultoras atraem, de forma espontânea, interessados e interessadas ou praticantes. Sejam aqueles que já incluíram em suas rotinas princípios e ética de cuidados ambientais ou mesmo aqueles que estão dispostos a conhecer e aprender a respeito. Esses eventos selecionam naturalmente um público específico com características importantes para o presente estudo, pois propiciam trocas de conhecimento, fortalecimento do movimento e avanços na busca por alternativas efetivas e razoáveis, a médio e longo prazo, na construção de novas - ou o resgate de outras - formas de se relacionar com os ambientes.

Diante do exposto, é possível situar as comunidades alternativas e, especialmente, os estilos de vida que se orientam pela permacultura como objeto de interesse da psicologia ambiental na sua interface com a sustentabilidade (Corral-Verdugo, 2010; Pol, 2007). Como subárea da psicologia que busca compreender e intervir sobre aspectos psicossocioambientais que impactam a subjetividade, e inserida no campo interdisciplinar dos estudos pessoaambiente, é uma ciência que pode contribuir socialmente para avanços na compreensão da questão ambiental a partir da perspectiva da ação humana em contato com o entorno, seja ela positiva ou negativa.

Assim, este estudo tem como foco os sujeitos que incorporaram práticas de sustentabilidade em suas rotinas, compondo um estilo de vida, que envolve um modo de viver característico de um indivíduo ou grupo (Diniz & Araújo, 2018). Nos interessa discutir o processo de tomada de consciência e o compromisso com a prática de ações pró-ecológicas - com ênfase no fenômeno do habitar - com vistas às iniciativas que refletem noções como interdependência, apreço pela diversidade, altruísmo, perspectiva de futuro (Corral-Verdugo, 2010).

A busca por estas pessoas nos levou a um encontro nacional de permacultura, onde foi possível ver aspectos estudados na psicologia ambiental acontecendo durante todo o evento. A proposta em si e a configuração que se mostra nesses encontros expressa interações de grupos de pessoas-ambientes a todo momento. As pessoas participantes do encontro estão empenhadas em ensinar e aprender formas sustentáveis e permaculturais de interagir com os ambientes. Ao pensarmos nas inter-relações considerando todo o complexo efeito de reciprocidade contínua, pode-se dizer que pessoas reunidas com esse ideal têm um real potencial de transformação dos ambientes, de si próprias, do coletivo considerando seus próprios estilos de vida.

De acordo com Portes (2011), a Organização Mundial da Saúde (OMS) define estilo de vida como o conjunto de hábitos e costumes que são influenciados, modificados, encorajados ou inibidos pelo prolongado processo de socialização. Estilo de vida é portanto uma expressão que se refere à estratificação da sociedade por meio de aspectos comportamentais, expressos geralmente sob a forma de padrões de consumo, rotinas, hábitos ou uma forma de vida adaptada ao dia a dia. De forma específica, o estilo de vida sustentável se refere ao conjunto de ações efetivas, deliberadas e antecipadas que resultam na preservação dos recursos naturais, incluindo a integridade das espécies animais e vegetais, assim como o bem-estar individual e social das gerações atuais e futuras (Corral-Verdugo & Pinheiro, 2004; Corral-Verdugo, 2010).

A psicologia ambiental investiga as percepções, atitudes, motivações, crenças, normas, valores, conhecimentos e habilidades que levam as pessoas a atuarem de maneira pró-social e pró-ecológica. Estas dimensões psicológicas podem levar à adoção de estilos de vida sustentáveis. A psicologia da sustentabilidade estuda o comportamento pró-ecológico, as ações altruístas e os comportamentos de busca por equidade. Além dos fatores situacionais que afetam os estilos de vida sustentáveis, bem como as variáveis relacionadas ao bem-estar experimentado em práticas pró-ecológicas (Corral-Verdugo, 2010; Diniz & Pinheiro, 2017).

A dimensão socioespacial humana estudada na psicologia ambiental considera a referência das próprias estruturas e funcionalidades, a atribuição de sentido e representação do espaço e a dimensão de tempo que perpassa a experiência espacial humana (Pinheiro & Elali, 2011). A autopercepção e percepção e a atribuição de sentido ao entorno se mostram como elementos essenciais para a interação humano-ambiental. Assim, buscamos nesta investigação analisar a experiência socioespacial humana na relação com os ambientes dentro de uma proposta de design permacultural. A configuração dos espaços permaculturais permite uma relação recíproca de participação ativa nos ecossistemas que constituem o entorno. Os princípios e a proposta de zoneamento no design permacultural implicam diretamente o humano com seu habitat, como peça fundamental para a manutenção dos ciclos do solo, da água, da geração de energia e materiais, desde a construção até sua manutenção periódica (Diniz & Araújo, 2018).

Em face da complexidade que envolve a questão ambiental e de como as relações pessoa-ambiente podem ser pensadas à luz da sustentabilidade, questiona-se: como se dão as interações pessoa-ambiente e práticas cotidianas em espaços não normatizados pela lógica individualista e depredadora dos modos de vida hegemônicos em nossa sociedade? O que podemos aprender a partir de experiências de habitar que buscam romper com essa lógica dominante? Para responder a esta indagação, apresentamos (e discutimos) uma perspectiva alternativa ao modelo hegemônico de construção de habitações e de estilos de vida, por via da experiência de praticantes e habitantes de espaços permaculturais.

Aspectos Metodológicos

O presente estudo teve caráter exploratório e interpretativo. Para tanto, recorreu-se ao método de condução da pesquisa qualitativa da Teoria Fundamentada. Diferentemente de outros métodos qualitativos, a teoria fundamentada privilegia a análise e não a descrição, as categorias novas e não o uso de categorias preconcebidas e teorias existentes, e considera que a produção de dados pode ocorrer de forma sequenciada, focada no aprimoramento da compreensão de dada experiência (Charmaz, 2009).

Nessa perspectiva, os dados foram coletados, codificados e analisados de forma sistemática e simultânea com vistas a atingir a saturação teórica. Quando dados novos ou relevantes não foram mais encontrados ou começaram a se repetir, foram encerradas as idas a campo. A "sensibilidade teórica" nos permitiu identificar a necessidade de investidas na busca de novos dados, discernindo o que era ou não pertinente ao estudo (Strauss & Corbin, 1990).

Assim, a construção do corpus ocorreu durante o encontro de permacultura, realizado no distrito rural do Baixio das Palmeiras (CE), durante três dias em outubro de 2018, e que reuniu cerca de 100 pessoas entre moradoras/es locais e interessadas/os de diferentes regiões do país. Foi sediado numa escola pública da região, que dispunha de um terreno amplo onde foram desenvolvidas práticas de educação ambiental, agrofloresta, compostagem, dentre outras. O encontro de permacultura, escolhido como campo de investigação, proporcionou o contato com uma diversidade de expressões e práticas em cuidado ambiental. As temáticas abordadas em rodas de conversa, oficinas e exposições levaram à imersão em discussões do coletivo atuante na permacultura local e nacional, o que reverberou positivamente na produção dos dados nesta pesquisa.

As 10 pessoas que compuseram o grupo de participantes foram indicadas pela estratégia da hetero-avaliação (Diniz & Pinheiro, 2017), a partir da percepção social de uma colaboradora, que desenvolve práticas de cuidado ambiental e que esteve em edições anteriores do encontro de permacultura. As/os respondentes tinham idades entre 25 e 42 anos, sendo cinco homens e cinco mulheres. Todas/os possuíam graduação ou pós-graduação e nove destas/es já realizaram o Curso de Design Permacultural - PDC pelo menos uma vez e/ou ministram PDCs gratuitos na região.

Ressaltam-se as práticas de cuidado ambiental e contribuições para a comunidade local, bem como atuações mais abrangente. O grupo de pessoas entrevistadas promove, individualmente e coletivamente, oficinas sobre horta, alimentação vegana e crua, lixo zero, bioconstrução, medicinas naturais, educação ambiental. Os participantes 4 e 8 e as participantes 1, 3 e 10 disponibilizam seus espaços permaculturais para visitações e voluntariados; A participante 3 e o participante 4 contribuem em projeto de reciclagem na região; A participante 1 e os participantes 2, 5 e 8 ministram o curso PDC gratuitamente; A participante 7 é atuante na proteção de animais abandonados; As participantes 1, 3 e 9 e o participante 5 atuam na área acadêmica, suscitando debates políticos, feministas e próecológicos. A participante 10 reside em uma kombipermacultural, e circula por diferentes cidades ofertando seus conhecimentos sobre alimentação crua e permacultura. As trajetórias que as/os conduziram aos estilos de vida sustentáveis são variadas, e foram construídas a partir de experiências significativas e sensibilização com as questões do entorno. De forma geral, essas pessoas atuam de maneira informal ou formal em projetos sociais e pessoais há mais de um ano, algumas delas há mais de uma década.

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, cujo roteiro foi sendo alterado durante o processo, de modo a cobrir temas emergentes identificados em entrevistas anteriores. Desse modo, foram abordados temas como: motivações para realizar práticas pró-ecológicas no cotidiano; desafios na transformação de hábitos e estratégias para superá-los; como conheceu a permacultura; tipos de práticas permaculturais e os espaços onde acontecem. As entrevistas foram todas realizadas durante o encontro permacultural, e duraram cerca de 1 hora e 30 minutos em média. Os áudios foram gravados e transcritos posteriormente. Todos os procedimentos de coleta e tratamento dos dados foram conduzidos pela primeira autora.

Na sequência, o corpus, composto pelas transcrições das entrevistas, foi submetido às etapas de análise da teoria fundamentada. Foi feita a codificação inicial, codificação focalizada e a redação de memorandos teóricos (Charmaz, 2009). Na codificação inicial, realizada incidente por incidente, foram atribuídos títulos a segmentos de dados, de maneira mais sintetizada e representativa possível. Na codificação focalizada os códigos iniciais foram triados e condensados, selecionando os mais significativos para o estudo. A partir do refinamento dos códigos foram elaboradas categorias conceituais, que delinearam a redação dos memorandos teóricos. Os memorandos contemplavam uma definição da categoria inicialmente e, em seguida, uma análise interpretativa dos códigos e extratos do corpus que a ilustravam.

Dentre as categorias emergentes, a Habitação Permacultural se tornou o mote deste estudo, contemplando códigos que convergiram em três subcategorias que serão discutidas na sequência: a socioespacialidade em ambientes permaculturais: coabitar como expressão de cuidado ambiental; a rotina permacultural: motivações e desafios; espaços permaculturais: vitrines de cuidado ambiental. O primeiro conjunto de códigos revelou uma compreensão ampliada sobre habitar, considerando os ciclos, hábitos e condicionantes climáticas da região. O segundo conjunto de códigos contempla as demandas e implicação direta e diária nas manutenções dos sistemas permaculturais para quem o habita. E o terceiro conjunto de códigos mostrou os aspectos promovedores de exemplo e contato com espaços permaculturais, como realidade possível e sustentável. Habitar um espaço não convencional implica desprendimento e flexibilidade cultural, social. A compreensão de que coabita e que precisa respeitar o meio em que estão inseridas se desdobra em esquemas de rotinas diferenciadas. Estas pessoas assumem um papel de transformação e por consequência ofertam experiências significativas de cuidado ambiental.

Finalmente, cabe ressaltar que foram seguidos todos os preceitos éticos previstos para a pesquisa com seres humanos. As/os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização de Gravação de Áudio. Foram explicados o tema e os objetivos da pesquisa e informados os possíveis riscos e benefícios da mesma, assim como a garantia do anonimato.

Resultados e Discussão

Das comunidades alternativas à permacultura, destacam-se elementos que convergem no sentido da busca e promoção de uma experiência de partilha ética, de valores e visões de mundo, de compreensão e vivência das relações humano-ambientais. Um segundo elemento diz respeito à materialidade dessas experiências, tendo em vista que sua ocorrência se dá em espaços pensados e construídos com vistas a uma forma de habitar que seja coerente com a dimensão ética proposta. Sob o olhar da psicologia ambiental, vemos uma expressão singular das relações pessoa-ambiente que abrange tanto a dimensão simbólica e afetiva de contato com a natureza quanto sua dimensão objetivada nos espaços construídos que incorporam elementos da natureza, de interesse tanto para a interface com a sustentabilidade quanto para a vertente arquitetural da área (Pol, 2007).

Pudemos observar que a adoção de estilos de vida permaculturais, em diferentes contextos (e.g. casas, sítios), coletivos ou não, proporcionou para o grupo de participantes a possibilidade de desenvolver espaços e modos de habitar que evidenciam tipos de relações pessoa-ambiente pautadas por uma visão sistêmica, considerando a interdependência entre os diferentes elementos que compõem esse sistema (Ferreira Neto, 2018). Nesse sentido, discutimos, a seguir, a dimensão socioespacial em ambientes permaculturais, compreendendo a coabitação entre diferentes espécies como expressão de cuidado ambiental. Observamos também as motivações e desafios que envolvem a rotina permacultural. E finalizamos apresentando os espaços permaculturais percebidos como vitrines de cuidado ambiental.

A Socioespacialidade em Ambientes Permaculturais: Coabitar como Expressão de Cuidado Ambiental

Estilo de habitat permacultural se refere a uma perspectiva de vida pró-ecológica inspirada nos preceitos da permacultura. Busca-se preservar uma ética específica de cuidado com o planeta, cuidado com as pessoas e compartilhamento dos excedentes de tempo, dinheiro e materiais (Mollison & Slay, 1991). Para as/os participantes deste estudo é uma visão sobre estar em espaços, sobre habitar, que as/os acompanha por onde transitam. O plano de design deste estilo de habitação envolve a implantação e organização de estruturas e sistemas, edificações constituídas a partir de biomateriais. Trata-se de um espaço que requer uma rotina de cuidados, manejos e conformações, que considera os seres coabitantes e suas necessidades buscando estabelecer uma relação recíproca, de retornos ao ambiente em detrimento do impacto gerado, como se pode observar na fala:

(...) a gente construiu nosso espaço todo dentro da permacultura, do reuso de água, do não consumo de produtos que agridam o solo na cozinha porque a água tá sendo utilizada para a produção, quem vai lá pra casa não pode lavar cabelo com shampoo natural porque a água é direcionada para o solo, então é uma proposta mesmo de experimentação de outro tipo de existência, de permanência aqui (...) (Participante 4, homem, 33 anos)

Sobre a relação com o espaço físico, de forma consciente ou não, estamos a todo momento envolvidas/os em algum tipo de transação espacial que reflete nossos ânimos afetivos, o status das pessoas envolvidas e a natureza da interação social pretendida/obtida, o que corresponde ao que, em psicologia ambiental, se define por comportamento socioespacial humano. Tal comportamento tem como base a experiência com a anatomia do próprio corpo, a percepção do espaço, o uso do tempo, e a atribuição de sentidos socialmente construídos (Pinheiro & Elali, 2011). Ao atentarmos para o comportamento socioespacial humano na relação com ambientes construídos dentro de uma proposta de design permacultural, é possível identificar diferenças quando comparadas às formas convencionais de moradia. Observamos maior aproximação com a natureza incorporada à própria rotina doméstica, devido à participação ativa nos sistemas que constituem o entorno. A interação pessoaambiente, nesse caso, subentende compreender e considerar os ciclos da água, do solo, do clima, de modo a despertar a sensação de integração, de ser parte do todo, parte do ecossistema local.

A proposta da permacultura, feita a partir de observações do funcionamento dos ecossistemas naturais, considerando diversidade, estabilidade e resiliência, busca situar os elementos do sistema de maneira adequada, numa proposta de zoneamentos, que tendam a se auxiliarem mutuamente (Diniz & Araújo, 2018). O zoneamento é organizado a partir de duas premissas: o número de vezes que se precisa visitar os elementos (planta, animal ou estrutura) e o número de vezes que os elementos necessitam ser visitados (Soares, 1998, p. 22). Nesse contexto complexo que envolve a organização do espaço, de forma ativa e constante, o comportamento socioespacial humano implica, de forma direta, a anatomia do próprio corpo e de uma certa capacidade física, a percepção ampliada do espaço e de suas relações entre diferentes agentes, e o uso consciente e atento do tempo que atravessa os diferentes elementos do sistema. Implica, ainda, o envolvimento com o espaço de forma a mediar processos naturais geradores dos ciclos de vida, de destinação e abastecimento de insumos orgânicos, como a produção de adubo que irá contribuir para a produção de alimentos, na manutenção dos sistemas que proporcionam a geração de energia, irrigação, dentre outros.

De forma mais específica, uma participante (mulher, 40 anos) expôs sua visão quanto à proposta da permacultura de organização da habitação humana em zonas, partindo da compreensão do corpo não como algo implícito no design permacultural, mas sim como o ponto de partida. Assim, denominou a permacultura que desenvolve de “biopermacultura” ou “cultura de permanência da vida”, defendendo uma visão diferenciada quanto à criação de animais nos zoneamentos, pois reconhece uma desigualdade na relação humano-natureza e critica a visão utilitária dos elementos e seres. Numa linha distinta de outras pessoas, a participante situa a perspectiva da alimentação viva como proposta de aproximação e cuidado com o meio ambiente, que também é o nosso corpo, e defendeu que a alimentação viva pode ser compreendida como uma via de mão dupla, através da qual é possível cuidar do próprio corpo e mente, e do entorno.

Desse modo, foi possível observar que as interações pessoa-ambiente em espaços permaculturais são permeadas pela noção de socioespacialidade. O design e organização dos ambientes se mostram de maneira a considerar os ecossistemas locais, incluindo as pessoas como parte do processo. A disposição das zonas e estruturas, que envolve uma bidirecionalidade na interação socioespacial, tem como meta o cuidado ambiental.

Segundo Pinheiro e Elali (2011), ao usarmos um ambiente sociofísico expressamos posse por porções de espaço, o que nos coloca num lugar de poder relativo sobre este, do que se depreende que seres humanos têm um status superior em relação aos demais elementos que compõem uma dada situação sociofísica. No entanto, a ideia de coabitar de forma horizontalizada com os ecossistemas presentes no espaço escolhido para a bioconstrução do lar exprime uma ideia diferenciada desse grupo na interação pessoa-ambiente. As/os respondentes relataram ter uma visão ampliada a respeito da compreensão de habitat, posto que não se sentem “os donos do espaço”, e consideram a existência de muitos seres vivos morando conjuntamente. Assim, se dispõem a compreender os seres coabitantes e suas necessidades e se organizam no ambiente de modo a interferir o mínimo possível nas necessidades destes. Uma respondente relatou que sua moradia não tem portas, com o propósito de possibilitar o trânsito livre de seres vivos no espaço interno da casa. Como expressado:

(...) um dia desse uma coralzinha passou assim, do ladinho do meu pé, porque lá é tudo aberto, lá não tem porta, você entra e sai, se a gente tá em casa ou não você pode entrar e sair do espaço, então você tá sentado e pode, pode passar, você vai ver, do seu ladinho (...) (Participante 3, mulher, 38 anos)

Já a noção de privacidade, outro elemento que compõe o comportamento socioespacial humano, constitui um recurso para reflexão a respeito da interação a ser estabelecida com os demais seres e a ponderação sobre contatos futuros, reconhecendo os limites de contato interpessoal (Pinheiro & Elali, 2011). Nas relações que se estabelecem no modelo de moradia permacultural, tal como apontado pela Participante 3, é possível identificar um controle mais poroso da interação entre pessoa e outros seres (não necessariamente humanos), em ambientes abertos, com fluxo livre para os seres coabitantes.

Outro aspecto relativo a esse controle seletivo das interações se coloca quando não há um espaço físico de uso exclusivo. Duas pessoas participantes expuseram não ter um local de residência fixo. Um participante (homem, 42 anos) disse “há dois anos não moro, só ando”. “Ser movimento”, como uma participante (mulher, 31 anos) afirmou, “é se desprender da lógica da permanência, da propriedade privada”. Estas falas demonstram que o estilo de vida permacultural pode ultrapassar a ideia de ter uma habitação numa perspectiva sedentária, ele se apresenta como uma visão de mundo que acompanha, inclusive numa perspectiva de mobilidade, as pessoas que dele se inspiram.

Assim, pode-se observar que a ideia de coabitar um espaço apresentada por este grupo demonstra desprendimento de noções convencionais de interação com o espaço de moradia. As noções de territorialidade e privacidade são então alteradas junto com as mudanças no estilo de vida. Desse modo, os limites interpessoais e a intimidade tendem a ser estabelecidos através de normas mais ou menos explícitas, pela ausência de barreiras físicas evidentes (Pinheiro & Elali, 2011).

A Rotina Permacultural: Motivações e Desafios

O dia a dia em espaços de vivência idealizados dentro dos princípios da permacultura descrito pelas/os participantes contemplaram tarefas como: alimentar animais, destinar os resíduos, ligar a irrigação, adubar canteiros e cuidar da horta. Outra atividade relatada foi a necessidade de manejar algumas estruturas ou sistemas, como por exemplo a fertirrigação natural - um sistema de redirecionamento da água da criação de peixes e patos para as plantas. Ademais, em paralelo, ocorrem alguns trabalhos de formação, como oficinas de agrofloresta, de alimentação viva e outros temas. Cabe ressaltar que tais práticas se configuram como comportamentos pró-ecológicos, porém vão além do lugar comum quando se consideram as práticas comumente relatadas entre o público geral, como não jogar lixo no chão, ou economizar a água do banho (Corral-Verdugo, 2010; Diniz & Pinheiro, 2017).

Assim como outros estudos já apontam, as pessoas participantes relataram que o sentimento de amor e afeto pela natureza é uma das principais motivações para a mudança de estilo de vida, envolvendo a escolha de moradia (Corral-Verdugo, 2012). As/os respondentes descreveram histórias de identificações muito fortes com a natureza, através de experiências com animais de estimação e pelo sentimento de apego a ambientes naturais significativos. Apontaram também para uma busca por justiça socioambiental, para o sentimento de poder contribuir para a terra e compartilhar conhecimentos que a beneficie (Chawla, 1999). Outras motivações decorrem de reconsiderações e reavaliações, de busca por sentido na vida. Como expressado por um participante:

(...) sair do miolo da cidade pra ter um contato maior com o ambiente natural e pra ter, pra relaxar um pouco mais do estresse da cidade, partiu de uma preocupação com o ambiente interior, foi o que motivou (...) (Participante 8, homem, 36 anos)

A reavaliação de hábitos alimentares fez parte do processo de mudança de estilo de vida e consequentemente se tornou parte do dia a dia para as/os respondentes. As pessoas participantes relataram ter mudado suas dietas por motivos pessoais, por saúde e bem-estar e como ato de redução de impactos ambientais. Falaram que estar atentas/os a alimentação é uma atividade diária, que engloba desde o manejo com horta, colheita de frutos, germinação de grãos até a preparação das refeições. Desse modo, a alimentação tem influência significativa para as práticas cotidianas e de interação no estilo de habitação permacultural.

Atreladas à alimentação estão as práticas de manejo e cuidado com o que, em tese, “sobra”. Assim, observamos que a interação com o entorno também é influenciada, nestes ambientes, pelas dinâmicas de redução e destinação adequada de resíduos, considerando a lógica de um sistema autossustentável, que preza pela não geração de excedente e pelo aproveitamento de tudo que é produzido. De acordo com Roysen (2018), as formas como as pessoas lidam com os resíduos, utilizam água e energia, consomem e se locomovem são práticas sociais inscritas em seus corpos, possibilitadas pela infraestrutura e objetos disponíveis e ligadas a formas de entender, sentir e querer. Nessa direção, as/os respondentes disseram optar pela utilização de sacolas de pano, pela compra de produtos a granel, pela escolha por embalagens biodegradáveis, dentre outras ações. A saber:

(...) por exemplo, a gente não usa mais esponja normal, essa esponja que a gente compra em supermercado, a gente não usa, a gente usa bucha vegetal, pra lavar louça, pra vários outros fins, nossa pasta de dente a gente faz a nossa pasta de dente, a gente parou de comprar pasta de dente (...) a gente mudou geral também nos utensílios da cozinha, a gente passou a comprar muita coisa de madeira, não comprar mais plástico, comprar mais vidro, reutilizar vidro, a gente passou a comprar acho que 90% dos nossos grãos, tudo a granel então a gente sai de casa e leva todas as embalagens (...) (Participante 4, homem, 33 anos)

Estas ações demandam uma forma de se organizar no tempo e no espaço de maneira a prever a necessidade de recipientes e considerar o tempo da compostagem, por exemplo. Segundo Carvalho (2018, p. 5461), a implicação com as atividades domésticas trata-se de uma mediação entre o lugar de habitação e o resto do mundo e por assim ser está relacionada ao cuidado ambiental. Esse saber-fazer na relação pessoa-ambiente considera efeitos socioambientais daquilo que é gerado no ambiente de moradia. Efeitos estes quanto ao que é consumido, descartado, os tipos de materiais e substâncias, seus processos desde a origem até após o uso, bem como escolhas, gestos, corpos e subjetividades, que se delineiam a partir dessas relações. Assim, ainda que estejam inseridas numa sociedade cuja cultura alimentar hegemônica tem base industrial e danosa aos ecossistemas, essas pessoas têm a seu dispor um repertório de práticas que lhes servem de caminho para uma transição à ecogastronomia, que pauta a produção, consumo e o destino dos alimentos numa prática ecossistêmica, fundamentada no alimento bom, limpo e justo, respeitando as pessoas e a natureza (Campos-Filho & Matos, 2021).

Pensar um espaço permacultural requer considerar suas repercussões sistêmicas e uma reflexão complexa, que leve em conta questões físicas, químicas, temporais, causais, pessoais, dentre tantas outras, articuladas entre si. Uma participante descreveu que para a reutilização da água em seu espaço ela utiliza produtos de higiene pessoal e de higiene da casa apenas de origem natural para não contaminar a água que é redirecionada para o solo em forma de irrigação. Neste caso, os sistemas de saneamento e o armazenando de água da chuva estão diretamente ligados aos ciclos de uso de águas da casa. Portanto, tendo em vista que a utilização de água em um domicílio perpassa as interações pessoa-ambiente, estas adaptações implicam na rotina de atividades básicas neste espaço físico.

Para o grupo estudado, morar em um espaço diferente do convencional e praticar hábitos diferentes do culturalmente estabelecido quanto a alimentação e redução da geração de resíduos são aspectos frequentemente questionados. De acordo com Diniz e Pinheiro (2017), o comportamento pró-ecológico compreende uma atuação incomum para o padrão típico em nossa sociedade, ocasionando um estranhamento, destoando dos contextos de convivência de modo a serem percebidas socialmente. Por assim ser, destoar do modelo hegemônico tem despertado experiências desafiantes em outros espaços de convívio e demanda estratégias no diálogo com a diferença.

As/os participantes relataram perceber estranhamentos e resistências com o modelo de design da permacultura por parte de trabalhadores da construção civil. Falaram que por vezes estes profissionais não aceitam o uso de materiais alternativos ao que está posto no mercado, como o superadobe, por exemplo. Limitam-se em experimentar e aprender técnicas de edificações da permacultura. Como exprimiu o participante 4 em: “(…) a imposição né, do modelo de construção civil e tal, você convida as pessoas pra experimentar e é difícil, assim, aceitarem”. Desse modo, por vezes, a confecção de materiais para a construção e a obra em si é realizada através da organização de mutirões e pelas/os próprias/os permacultora/es.

Além disso, as/os respondentes revelaram como se deu para elas/eles o processo de planejamento de construções e estruturas dentro da ideia da permacultura. Como relatado pelo participante 7 “a gente desenvolveu um primeiro modelo de design, um planejamento, que foi reformulado várias vezes, ele vai amadurecendo com o tempo e a partir desse espaço a gente delimitou os locais onde seriam implantadas as principais estruturas”. Este expôs sobre a experiência desafiante de planejar e construir um modelo de design que concilie especificidades ambientais com as necessidades humanas. Considerar a ventilação, a iluminação natural, o reaproveitamento das águas, a disposição das bioconstruções, a instalação de sanitários secos, a delimitação dos espaços para compostagem e horta, dentre outras nuances, gerando menor impacto e buscando estabelecer uma relação recíproca com o ambiente, foram observações mencionadas visando ao equilíbrio com os ciclos naturais. Para isso, relataram realizar algumas conformações no cuidado com o entorno, como deixar a vegetação nativa voltar a cobrir o solo e evitar o empobrecimento deste e acumular a matéria orgânica para destiná-la à compostagem.

As experiências aqui relatadas se conectam com debates mais amplos a respeito de outras formas de habitar, em diálogo com os princípios do decrescimento e a perspectiva das cidades em transição (transitiontowns), que se configuram como uma alternativa de desenvolvimento viável quando implantado em agrupamentos populacionais com escala reduzida, e tem como base a própria permacultura (Alcântara & Sampaio, 2021). Ao amplificar tais experiências, vemos possíveis caminhos de transição para outros modos de vida sustentáveis envolvendo investigações e experimentações locais e comunitárias.

Espaços Permaculturais: Vitrines de Cuidado Ambiental

Uma última categoria que expressa algo inovador a respeito desse grupo de participantes diz respeito ao seu caráter educador, ou seja, que promove processos formativos, podendo ser de caráter formal ou informal. Nesse sentido, as vitrines se configuram a partir das atividades de formação e propostas de vivências, recebendo visitantes e pessoas voluntárias, a fim de despertar mudanças de ponto de vista quanto a valores e ideias do que seria viver bem.

Assim, as/os respondentes observam que são influências locais a partir suas iniciativas de espaços permaculturais e acreditam que estes ambientes podem ser “vitrines de cuidado ambiental”. Estimulam debates, por estas ocasiões, sobre o que é necessário consumir e os impactos que nós humanos geramos sobre a terra. Reforçam que seus espaços de moradia se mostram como uma intervenção pró-ecológica que reverbera em níveis socioculturais. O participante 4 relatou: “a gente recebeu uma escola com crianças de 11 anos e a gente falou de todo o processo de ter uma fossa ecológica, de reutilizar a água, da nossa alimentação (...)”. Além de ser vitrine pelo design e proposição de estilo de vida, acabam por atrair pessoas interessadas através de projetos e vivências que se propõem a realizar.

(...) aí tem a fossa verde né, a verde e as águas cinzas a gente tem também o ciclo de bananeiras e a ideia é essa, é cada vez mais a gente ir incrementando e usar as ideias da permacultura e ser uma vitrine também né, a gente, logo depois que a gente construiu, muitas pessoas foram visitar (...) (Participante 4, homem, 33 anos)

A perspectiva de ser vitrine de cuidado ambiental vai além de ser um espaço aberto a pessoas que queiram conhecer. Este grupo demonstrou bastante interesse em se aprofundar em estudos através do curso PDC, que foi mencionado como a base de estudo e aplicação de modelos de intervenção, demonstrando interesse na oferta de cursos, vivências e até uma especialização em permacultura.

Já se discute a respeito das limitações das propostas de educação ambiental, de caráter cognitivista, pautadas de forma central pela promoção de crenças e conhecimentos próecológicos, posto que não se efetivam em práticas concretas ou mudanças de hábitos, em longo prazo (Gaspar de Carvalho, Palma-Oliveira & Corral-Verdugo, 2010). As pessoas participantes do estudo apontam para a importância da experiência, que envolve presencialidade e contato direto com novas práticas, ou práticas distintas do modo de vida padrão. Nesse sentido, creem que espaços de formação que contemplem a imersão em experiências permaculturais possam promover processos transformadores, que tenham impacto mais direto para a mudança nas outras pessoas.

Embora as pessoas participantes deste estudo tenham ensino superior completo, o que as diferencia da maior parte da população brasileira, vislumbram a disseminação e a popularização dessas práticas, de modo a abranger outros grupos que não tenham acesso aos conhecimentos técnico-científicos que embasam seus estilos de vida. Estudos e relatos de experiência vêm demonstrando os resultados positivos das formações permaculturais, associadas com a agroecologia, no campo da educação de forma mais ampla, da educação ambiental e das políticas públicas, sendo vistas como uma ferramenta filosófica e pedagógica, considerando seu potencial transformador em diferentes contextos (Bassan, 2021; Calvão, 2020; Couto, 2021).

Considerações Finais

O trabalho buscou conhecer as experiências de habitantes de espaços permaculturais e suas interações com o ambiente sociofísico. As falas das/os participantes evidenciaram: uma noção de dimensão socioespacial que considera os ecossistemas coabitantes; uma rotina de manejos dos sistemas da permacultura; os desafios e resistências quanto ao modelo alternativo de bioconstrução e estruturação de espaços permaculturais; e ser exemplo de cuidado ambiental ao ser resistência e inspiração de práticas pró-ecológicas.

A análise do corpus produzido a partir das entrevistas, via teoria fundamentada, nos permitiu elencar aspectos destacados pelo grupo que o situa num lugar específico em relação ao que se sabe sobre estilos de vida sustentáveis, o que representa uma contribuição importante para o campo da psicologia ambiental. Refletir sobre a dimensão socioespacial em ambientes permaculturais contribui para compreender as implicações e atribuições de sentido que permeiam a relação pessoa-ambiente em tal configuração.

A ideia de habitação, que tem como centro a atenção prioritária das necessidades humanas e, por assim ser, uma ideia de habitação individualizante e desresponsabilizada pelos impactos ao entorno, pode ser bastante destoante da perspectiva de habitat permacultural. Pois neste espaço sociofísico, ao mover os sistemas e tecnologias propostos, ao redirecionar resíduos naturais para o melhor aproveitamento energético, ao produzir parte da alimentação, dentre outras atividades, se intenciona a implicação humana nos ciclos locais como parte do todo.

Finalmente, acreditamos que este estudo contribui para ampliar o conhecimento sobre as relações pessoa-ambiente como objeto de interesse transdisciplinar e, de modo específico, para o campo da Psicologia Ambiental em interface com a sustentabilidade. Tal contribuição se situa entre os avanços da área no contexto latino-americano, onde tais debates ganham força e são mais expressivos nos países de língua espanhola, e se intensificam a partir dos anos 2010 com a visibilidade e crescente interesse pelos temas ambientais e pelos efeitos da crise ecológica no continente (Moisés, Barbosa, & Diniz, 2020). Embora, nos cenários norteamericano e europeu, a agenda de pesquisa da área já tenha tais interesses historicamente consolidados (ver Corral-Verdugo, 2010; Scott, Amel, Koger, & Manning, 2021), se faz imprescindível construir conhecimentos que fomentem mudanças nas relações humanonatureza em países periféricos a partir de suas especificidades.

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Recebido: 13 de Janeiro de 2021; Revisado: 18 de Novembro de 2021; Aceito: 30 de Novembro de 2021

Luana Bezerra Pinheiro Departamento de Psicologia, CCHLA - UFRN, Lagoa Nova, Campus Universitário, Natal - RN, Brasil. CEP 59078-970, Endereço eletrônico: luanapinheiro931987@gmail.com

Raquel Farias Diniz Departamento de Psicologia, CCHLA - UFRN, Lagoa Nova, Campus Universitário, Natal - RN, Brasil. CEP 59078-970 Endereço eletrônico: raquelfdiniz@gmail.com

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