A discriminação decorre da atribuição de valor a uma identidade social com a desvalorização do indivíduo ou de um grupo a partir de diferenças baseadas em alguma característica (Dovidio et al., 2000). Assim, os processos discriminatórios são forjados nas relações de poder que visam manter a dominância dos códigos culturais do grupo que discrimina em relação ao grupo alvo da discriminação (Coelho & Silva, 2019). Essa relação de estigmatização influencia no autoconceito dos grupos discriminados, o que, por sua vez, muitas vezes ameaça o funcionamento psicossocial da pessoa (Siqueira & Cardoso Júnior, 2017). Além disso, envolve situações de rejeição interpessoal que pode restringir o acesso a importantes recursos por meio da segregação institucionalizada (Freitas et al., 2015).
A percepção de discriminação refere-se a uma ação compreendida como injusta pela pessoa que sofre o ato e por estar associada ao pertencimento de um indivíduo a um grupo considerado estigmatizado socialmente ou na incorporação de uma característica, como aspectos étnicos-raciais, gênero, aparência física e orientação sexual (Major & Sawyer, 2009). Cabe ressaltar que a discriminação (ser vítima) é diferente de preconceito (atitudes perantes os outros), embora possam ser interconectados e geram comportamentos e reações negativas sobre um grupo e/ou uma determinada pessoa, comprometendo os sentimentos, a autopercepção, os comportamentos desses que sofrem com essas ações (Major & Sawyer, 2009). Nessa direção, a percepção de discriminação tem sido associada a condições adversas no desenvolvimento, como queda no desempenho escolar e níveis baixos de saúde física e mental, à depressão, à ansiedade, à ideação suicida, à diminuição da autoestima e autoeficácia (Cheref et al., 2018; Freitas et al., 2018; Williams et al., 2019). Quando há recorrência nessa percepção, sob a forma de discriminação cotidiana, são observadasrelações com perturbações psicológicas em maior magnitude, em comparação com outros atos de discriminação de maior severidade, mas mais isolados como, por exemplo, ser negada uma promoção (Williams et al., 1997).
No Brasil existem algumas escalas que avaliam o preconceito étnico-racial, considerando a especificidade da constituição da sociedade brasileira, como a Escala de Atitudes Étnico-Raciais (EAER; Fernandes & Pereira, 2019), e a homofobia, como, por exemplo, a Escala Multidimensional de Preconceito Sexual (Freires et al., 2020). Em relação à avaliação da discriminação, foi identificado apenas a escala de Bastos et al. (2012), que avalia as peculiaridades da discriminação vivenciadas por estudantes universitários, investigando quais são os atos de tratamento negativo percebidos relativos à discriminação explícita e quais são os seus impactos na saúde mental da pessoa.
No contexto internacional, um dos instrumentos mais utilizados mundialmente para avaliar os processos discriminatórios na investigação atual (Krieger et al., 2005) é a Escala de Discriminação Cotidiana (EDC, Everyday Discrimination Scale) (Williams et al., 1997). Este intrumento foi desenvolvido em 1995 nos EUA, com base em estudos qualitativos junto a mulheres negras americanas e holandesas e visa apreender pequenos atos de tratamento injusto que podem ser vivenciados por qualquer pessoa e que podem ocorrer de forma rotineira, crônica e sistemática (Williams et al., 1997). Apesar de ser um dos instrumentos mais usados para os estudos da discriminação, esta escala não havia ainda sido adaptada ao contexto brasileiro. Destaca-se ainda que esta escala, embora tenho sido criada para identificar discriminações vivenciadas por minorias étnicas, traz itens genéricos que capturam experiências cotidianas e diversificadas de discriminação. Desse modo, considerando que a EDC é bastante utilizada mundialmente e a carência de instrumentos que avaliam a discriminação no Brasil, a sua adaptação ao contexto brasileiro poderá permitir uma comparação mais direta dos resultados encontrados no Brasil com os observados em outros países, facilitando a realização de estudos multinacionais.
As qualidades psicométricas desse instrumento têm sido avaliadas em estudos focados na discriminação étnico-racial, testando semelhanças estruturais e a variância de alguns itens da escala entre pessoas negras e brancas (Barnes et al., 2004; Guyll et al., 2001; Kim & Ford, 2014). A escala utiliza uma terminologia neutra em seus itens, uma vez que tem sido sugerido que a utilização de termos étnico-raciais pode superestimar a frequência de relatos de experiências discriminatórias nos grupos minoritários (Bastos et al., 2012). De fato, são raras as suas utilizações no estudo da discriminação em função da pertença a outros grupos estigmatizados. Uma das críticas a esse instrumento é que, por não ser específico o suficiente, não capta bem as experiências de discriminação de outros grupos, por exemplo, um estudo investigou a sua validação em função do gênero (Stucky et al., 2011) e, outra pesquisa realizada em Portugal, foi feita a sua aplicação para averiguar a percepção de discriminação por jovens de minorias sexuais (Freitas et al., 2015). Deve-se também considerar que a maior parte das investigações realizadas com a EDC foi conduzida com amostras provenientes dos EUA, de forma que se faz necessário o estudo das propriedades da escala em outras culturas, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde, como referido, não foi identificado nenhum estudo que tenha analisado as qualidades psicométricas desse instrumento.
A discriminação é avaliada na escala a partir da frequência que os participantes experienciam nove situações de tratamento injusto (Williams et al., 1997). Quando as situações ocorrem com alguma frequência, os participantes devem selecionar de uma lista de características (por exemplo, sexo, etnia-raça, orientação sexual e peso), qual consideram ser o principal motivo desse tratamento. Portanto, ainda que haja uma predominância de pesquisas que utilizaram a escala para investigar a discriminação étnico-racial (Barnes et al., 2004; Guyll et al., 2001; Kim & Ford, 2014), é possível avaliar, segundo Freitas et al. (2015), a frequência da percepção de discriminação em diversas vítimas potenciais de discriminação com base nos motivos enunciados.
Estudos que empregaram a EDC têm mostrado que os respondentes selecionam várias características indicadas como motivadoras da discriminação, uma vez que essas não são mutuamente excludentes (Freitas et al., 2015; Kessler et al., 1999). A pesquisa de Kessler et al. (1999), realizada numa amostra norte-americana formada por adultos (idade entre 25 e 70 anos), indicou que os motivos mais frequentes da discriminação cotidiana foram raça-etnia (37,1%), gênero (32,9%), aspectos associados à aparência física (27,5%) e idade (23,95), sendo que os outros motivos juntos (por exemplo, religião, nível socioeconômico, orientação sexual e problema mental ou físico) tiveram porcentagem entre 3,6% a 7,3%. Já a pesquisa de Freitas et al. (2015) encontrou que adolescentes e jovens portugueses (idade entre 13 e 26 anos) atribuíam à aparência física (12,1%), à idade (11,1%) e ao peso (6%) os maiores motivos para o tratamento considerado injusto, sendo que a raça ou etnia (4,2%), nível socioeconômico (3,8%) e orientação sexual (2,0%) apareceram de forma mais discreta, sendo que essas diferenças podem ser devido às especificidades etárias ou culturais.
De modo geral, a maior parte das pesquisas tem encontrado uma estrutura unifatorial para a EDC (Kessler et al., 1999; Kim & Ford, 2014; Krieger et al., 2005; Seaton et al., 2010; Williams et al., 1997). Contudo, Freitas et al. (2015), Barnes et al. (2004) e Guyll et al. (2001) evidenciaram uma estrutura com dois fatores para o instrumento, sendo que um investigava comportamentos explícitos de tratamento ofensivo (tratamento injusto) e o outro descrevia uma discriminação mais sutil (rejeição pessoal).
Considerando a necessidade de dispor de instrumentos confiáveis para avaliar a discriminação e dadas as promissoras características psicométricas da Escala de Discriminação Cotidiana, o presente estudo tem por objetivo adaptar e validar a Escala de Discriminação Cotidiana em uma amostra de adolescentes e jovens brasileiros de nível socioeconômico baixo e descrever os motivos de discriminação mais prevalentes. Compreende-se que a identificação dos motivos é relevante ao estudo deste constructo no que se refere à especificidade da população com desvantagem socioeconômica, alvo da investigação. Para tanto, foi utilizada a versão do instrumento adaptado por Freitas et al. (2015) para jovens portugueses. A análise da validade estrutural da escala foi realizada por meio de uma Análise Fatorial Exploratória (AFE) e indicadores de consistência interna. Além disso, foram analisadas as frequências dos motivos atribuídos à percepção de discriminação cotidiana. No que concerne à amostra definida pela presente pesquisa, ela é formada por adolescentes e jovens de escolas e universidades públicas brasileiras. Os adolescentes eram provenientes de escolas públicas situadas em regiões pauperizadas e suas famílias tinham nível socioeconômico baixo. Entre os universitários, ser pobre, por declaração de renda familiar ou por ser cotista social, foi critério de seleção. Na Universidade onde havia política de cotas, o critério de ser cotista foi utilizado para caracterizar a pobreza, já que essa condição perpassa os critérios de renda. Na outra Universidade, onde não havia cotistas, o critério renda foi utilizado. Para Abreu (2019), isto caracteriza que os participantes constituem um público vulnerável a múltiplas formas de discriminação por vivenciarem contextos de pobreza, por meio das diversas opressões, tais como de gênero, etnia, raça, sexualidade que se intersectam e potencializam na compreensão das desigualdades sociais. Nesse sentido, adolescentes e jovens brasileiros do sexo masculino, negros e pobres são mais associados à violência e estigmatizados do que os demais (Sacco et al., 2016). Comumente, esses jovens são alvo de tratamentos e atitudes injustos que se configuram como discriminação. Para tanto, faz-se relevante considerar os diferentes motivos de segregação e estigmatização vivenciados cotidianamente pelos adolescentes e jovens pobres brasileiros. Somado a isso, a maioria das pesquisas sobre preconceito e discriminação no Brasil é realizada com adultos universitários (Sacco et al., 2016). Dessa forma, investigar a discriminação cotidiana, seus motivos e consequências entre estudantes adolescentes e jovens brasileiros que vivenciam contextos de pobreza assume relevância para as práticas e intervenções no campo psicológico.
Método
Participantes
A amostra foi composta por 955 jovens, com idade compreendida entre 11 e 29 anos (M = 15,81; DP = 3,55). Dentre esses, 721 eram alunos dos anos finais (7º ao 9º ano) do Ensino Fundamental de cinco escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro, advindos de regiões pauperizadas, onde prevalecem famílias de nível socioeconômico baixo. Os outros 234 eram estudantes de duas universidades públicas do Estado do Ceará. Essa amostra foi formada por 54,8% de mulheres (n = 522), 44,6% de homens (n = 425), 0,5% (n = 5) de outros gêneros; três participantes não declararam a identidade de gênero. A composição racial-étnica dos participantes foi de 37,5% de Brancos (n = 349), 31,1% de Pardos (n = 289), 23,2% de Pretos (n = 216), 4,8% de Amarelos (n = 45), 3,3% de Indígenas (n = 31) e 25 participantes não responderam à autodeclaração étnica.
Para fins de Análise Fatorial Exploratória (AFE), foram excluídos 87 (9,1%) sujeitos que não selecionaram nenhum motivo para a percepção de discriminação (pois nunca ou raramente viveram tais atos). Essa exclusão evita que a estrutura da escala seja fortemente condicionada pelas associações entre os itens de valor nulo entre os participantes que não são alvo de discrminação. Tal procedimento foi também adotado por Freitas et al. (2015) com o objetivo de validação da escala, ao considerar em seu estudo apenas os sujeitos que mencionaram um motivo para a vitimização sofrida. Sendo assim, a amostra para AFE foi formada por 868 adolescentes e jovens adultos, com idade entre 11 e 29 anos (M = 16,0, DP = 3,5). Quanto ao gênero, 55% da amostra foi composta por mulheres (n = 475), 44% (n = 385) por homens e 0,6% (n = 5) por outros gêneros. Quanto à raça/etnia autodeclarada, a amostra tem a seguinte composição: 37% Brancos (n = 320), 30% Pardos (n = 259), 23% Pretos (n = 197), 5% Amarelos (n = 42), 3% Indígenas (n = 27) e 3% não responderam (n = 23).
Instrumentos
Questionário Sociodemográfico. Instrumento elaborado para a presente pesquisa que abordou algumas perguntas para caracterização da amostra, tais como, sexo, raça/etnia autodeclarada e idade.
Escala de Discriminação Cotidiana (EDC, Williams et al., 1997). A escala aplicada nesse estudo é composta por 11 itens que descrevem situações de discriminação, sendo nove delas oriunda da escala original (Willliams et al., 1997), tais como “As pessoas insultam você” e “As pessoas agem como se fossem melhores do que você”, acrescidos de mais dois itens que foram especificamente criados para espelhar experiências típicas de discriminação associadas à pertença a uma orientação sexual minoritária (Freitas et al., 2015), de acordo com os objetivos do estudo com jovens portugueses (“As pessoas agem como se houvesse algo de errado contigo” e “As pessoas tratam-te de forma negativa por acharem que te pareces com uma pessoa do sexo oposto”). Tal qual a versão original do instrumento e versão adaptada para adolescentes e jovens portugueses, os sujeitos assinalam a frequência com que vivenciam cada situação de discriminação em uma escala tipo Likert de 6 pontos, que pontuam de 0 a 5 [0 = Nunca; 1 = Raramente (Menos de 1 vez/ano); 2 = Poucas vezes (algumas vezes/ano); 3 = Algumas vezes (Algumas vezes/mês); 4 - Muitas vezes (Pelo menos 1 vez/semana); 5 - Quase sempre (Quase todos os dias)]. Ademais, caso uma ou mais dessas situações ocorresse(m) várias vezes ao ano, os participantes foram instruídos a assinalar qual “o principal motivo” atribuído a essas vivências (por exemplo, nível educacional, gênero, nível econômico e aparência física).
Para seguir as etapas necessárias à adaptação e validação da escala, conforme Borsa et al. (2012), as pesquisadoras contactaram a primeira autora do artigo do instrumento adaptado para adolescentes e jovens portugueses, que concedeu autorização para utilização dessa versão no Brasil e orientou sobre a aplicação que deveria ser feita com os 11 itens inicialmente propostos. Primeiramente, foi iniciada a adaptação semântica da escala a partir da versão para os adolescentes e jovens portugueses por meio da reflexão falada, com estudantes nos dois Estados. No Estado do Ceará, a reflexão falada foi realizada com sete jovens universitários (idade entre 18 e 24 anos), pobres e/ou cotistas, de uma universidade pública. Já no Estado do Rio de Janeiro, a reflexão falada foi realizada com 10 adolescentes (idade entre 12 e 17 anos) de uma escola pública localizada numa região de baixo nível socioeconômico. Posteriormente, a versão final das escalas foi traduzida em ambos os Estados e coadunadas em uma versão única por uma professora de Português, com graduação em Letras e Mestranda em Educação, considerando a coerência semântica e gramatical, em conformidade às normas cultas da Língua Portuguesa. Os critérios de equivalência linguística e conceitual, com a versão original em Inglês também foram observados. O resultado desse trabalho de unificação foi ainda repassado para a primeira autora da versão da escala traduzida para jovens portugueses que fez a revisão final, com observância aos objetivos e normas de aplicabilidade do instrumento. A descrição de cada item da adaptação brasileira da EDC é apresentada na Tabela 1.
Itens | FATOR 1 | |
---|---|---|
λ | E | |
EDC_6 (As pessoas agem como se houvesse algo de errado com você.) | 0,74 | 0,45 |
EDC_5 (Você é tratado/a com menos respeito do que as outras pessoas) | 0,74 | 0,45 |
EDC_7 (As pessoas ameaçam ou provocam você.) | 0,68 | 0,54 |
EDC_8 (As pessoas agem como se fossem melhores do que você.) | 0,65 | 0,58 |
EDC_3 (Você ê tratado/a com menos simpatia do que as outras pessoas) | 0,65 | 0,58 |
EDC_4(As pessoas agem como se pensassem que você é desonesto/a.) | 0,62 | 0,62 |
EDC_1 (As pessoas insultam você.) | 0,57 | 0,68 |
EDC_2 (As pessoas agem como se pensassem que você não é inteligente.) | 0,56 | 0,69 |
EDC_ll(As pessoas tratam você de forma negativa por acharem | ||
0,45 | 0,80 | |
que você parece com uma pessoa do sexo oposto.) | ||
EDC_ 10 (As pessoas agem como se tivessem medo de você.) | 0,45 | 0,80 |
EDC_9 (Emlojas, restaurantes, ou em outros serviços, você é menos | ||
0,39 | 0,85 | |
bern atendido/a do que as outras pessoas.) | ||
VME | 0,36 | |
FC | ||
0,86 | ||
M | 0,99 | |
(0,65) |
Nota. N= 868. λ = peso fatorial estandardizado. e= resíduo estandardizado VME (Variância Média Extraida) = Σλi2/(Σλi2 + Σe).
Procedimentos
Coleta de Dados. Os dados foram coletados em dois projetos (Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aprovados Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará - UFC (CAEE: 80921517.3.0000.5054) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (CAAE: 74416117.0.0000.5282).. No Estado do Ceará, a coleta ocorreu on-line por meio de convite divulgado nas redes sociais e nos e-mails dos estudantes para responderem ao questionário do formulário do Google Docs. Os participantes das duas universidades deveriam aceitar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para ter acesso ao questionário. No Estado do Rio de Janeiro, a coleta ocorreu de forma coletiva nas salas de aula das escolas dos estudantes, em horário de aula combinado com os professores, mediante a entrega do TCLE, assinado pelos responsáveis legais pelos estudantes. No início de cada aplicação, foi apresentado o objetivo da pesquisa, garantida a confidencialidade dos dados e reiterada a participação voluntária na pesquisa, bem como os alunos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O tempo de resposta ao questionário foi de aproximadamente 10 minutos nos dois estados. A coleta de dados foi realizada durante os meses de maio a setembro de 2018 no Ceará e entre os meses de março a maio de 2018 no Rio de Janeiro.
Análise de Dados. A aferição da validade fatorial da escala começou pela análise da distribuição dos resultados e pela consideração dos valores absolutos de assimetria e curtose (sk < 2, ku < 7; Marôco, 2018), para identificar possíveis desvios na distribuição dos itens e identificar itens sem poder discriminatório. Seguiu-se a análise fatorial exploratória (AFE) com a verificação a priori do procedimento de análise paralela (O'Connor, 2000), selecionando o número de fatores com valores próprios maiores que 1,0 (critério de Kaiser). O procedimento foi realizado a posteriori pelo método do eixo principal com rotação oblíqua, análise da matriz padrão e teste gráfico de Cattell. Para verificação dos resultados, considerou-se o valor da estatística Kaiser-Meyer-Olkin de homogeneidade dos itens para saber se eles são fatorizáveis (Kaiser-Meyer-Olkin ≥ 0,70), o teste de esfericidade de Bartlett (p < 0,05) e os pesos fatoriais dos itens (λ > 0,36).
Para avaliação da consistência interna de cada fator, analisou-se a Fiabilidade Compósita dos fatores (FC > 0,70), além do alfa de Cronbach (α > 0,70; Marôco, 2018). Verificou-se ainda a Variância Média Extraída dos itens pelo respectivo fator (VME), desejável que a VME > 0,50 para um resultado satisfatório. As frequências da presença dos motivos da EDC foram verificadas por meio de porcentagens. Todas as análises foram realizadas no IBM SPSS Statistics for Windows (versão 22.0).
Resultados
Foi realizada Análise Fatorial Exploratória (AFE) com os 11 itens da Escala de Discriminação Cotidiana, satisfeitos os critérios de normalidade por meio da verificação dos desvios máximos (sk < 2,01 e ku < 2,78). A AFE a priori revelou um fator com valores próprios de 3,93; o procedimento realizado a posteriori, a partir da análise da matriz padrão, resultou em dois fatores, KMO = 0,91; Barlett p < 0,001, com valores próprios de 4,56 e 1,09. No entanto, foram apontados apenas um fator na análise paralela e no Gráfico de Cattell, correspondentes ao número de pontos que antecedem o de inflexão da curva assintótica que os define, conforme seta no gráfico da Figura 1, menos um.
A organização bifatorial da escala apresenta baixo índice de validade convergente em ambos os fatores (VME Fator 1 = 0,41; VME Fator 2 = 0,41), bom resultado de fiabilidade no fator 1 (FC = 0,85) e baixo índice no fator 2 (FC = 0,68). Todos os pesos fatoriais dos itens são satisfatórios (λ > 0,36), a percentagem de variância acumulada retida pelos fatores é de 51,33%, sendo 41,44% do Fator 1 e 9, 89% do Fator 2. Contudo, observamos que a distribuição da maioria dos itens entre os fatores é diferente da escala utilizada como referência para esse estudo (Freitas et al., 2015) e também de outros estudos (Barnes et al., 2004; Guyll et al., 2001). No primeiro fator, foram agregados sete itens, quatro da rejeição pessoal e três do tratamento injusto. No segundo fator, foram agregados quatro itens, dois de cada um dos fatores originais. Assim, de acordo com os resultados apresentados, decidiu-se, então, seguir a determinação unifatorial, já que a validade discriminante entre fatores na organização bifatorial da escala, variância partilhada (r2 = 0,48), calculada a partir da matriz de correlação entre os fatores, é maior do que a VME de cada fator o que, para além da baixa inteligibilidade psicológica da configuração bifatorial, justifica unir os dois fatores indicados pela matriz padrão da análise a posteriori em apenas um, confirmando a natureza unifatorial da escala, indicada pela análise paralela e gráfico Scree plot (Fornell & Larcker, 1981).
A Tabela 1 apresenta a AFE da escala com a extração de um fator. Os resultados da Tabela 1 mostram que a organização unifatorial da escala apesenta bom resultado de Fiabilidade Compósita (FC), sendo todos os pesos fatoriais dos itens satisfatórios (λ > 0,36). No entanto, apresenta índice baixo de Validade Convergente (VME = 0,36), sendo desejável acima de 0,50, e percentagem de variância acumulada de 41.44%, enquanto o ideal é acima de 50%. Mesmo com estes últimos dois índices abaixo do desejável, a disposição dos itens em um só fator apresenta resultados mais satisfatórios do que a organização bifatorial. O alfa de Cronbach é satisfatório com valor de 0,85.
Foram excluídos anteriormente 87 sujeitos para a aferição das propriedades psicométricas da escala, mas para avaliar a frequência de motivos que levaram a vitimização ou ausência dela, foi utilizada a amostra total (N = 955), neste grupo de pessoas com baixas condições econômicas. Os resultados indicam que 9 em cada 10 adolescentes e jovens adultos (n = 868, f = 90,8%) sofreram vitimização com regularidade, tendo apresentado algum dos motivos para um ato discriminatório. Adicionalmente, um número expressivo de participantes marcaram mais de um motivo (n = 151, f = 15,8%). Como fatores singulares dominantes associados à percepção de discriminação, os resultados mostram que aparência física (n = 201, f = 21%) e nível socioeconômico (n = 181, f = 18,%) são os mais relatados, seguidos de peso (n = 137, f = 14,3%), etnia/raça (n = 98, f = 10,3%), sexo/gênero (n = 94, f = 9,8%), altura (n = 92, f = 9,6%), idade (n = 91, f = 8,5%), nível educacional (n = 75, f = 7,9%), outros (n = 69, f = 7,2%), religião (n = 53, f = 5,5 %), orientação sexual (n = 51, f = 5,3% ), nacionalidade (n = 3, 3%), problema metal (n = 12, f = 1,3%) e problema físico (n = 5, f = 0,5%).
Discussão
A discriminação cotidiana tem um efeito negativo na saúde física e mental de adolescentes, jovens e adultos, levando tanto a prejuízos intrapessoais, mas também relacionais afetando toda a sociedade (Cheref et al., 2018; Freitas et al., 2015; Williams et al., 2019). Sendo assim, é pertinente ter um instrumento adequado para investigar esse fenômeno na realidade brasileira. Desse modo, foi realizada a adaptação e validação da Escala de Discriminação Cotidiana (EDC) em uma amostra de adolescentes e jovens brasileiros, seguindo-se a avaliação psicométrica de suas propriedades. Primeiramente, foi realizada a adaptação semântica da versão do instrumento com 11 itens aferidos por Freitas et al. (2015) para adolescentes e jovens portugueses, contribuindo para sua validade ecológica (Borsa et al., 2012).
Os resultados da análise da validade estrutural da escala, realizada por meio de uma Análise Fatorial Exploratória (AFE) evidenciou uma estrutura unifatorial com as cargas fatoriais dos itens com índices satisfatórios. Antes de chegar a essa estrutura, foi analisada a configuração com dois fatores. Essa estrutura não possibilitou identificar fatores que, do ponto de vista semântico e psicológico, apresentassem um estrutura coerente. Por sua vez, a escala com estrutura unifatorial da EDC, analisada nesta amostra, apresentou bons índices de confiabilidade e índices satisfatórios de validade. Essa solução unidimensional é corroborada pela maioria dos estudos prévios (Kessler et al., 1999; Kim & Ford, 2014; Krieger et al., 2005; Seaton et al., 2010; Williams et al., 1997).
Destarte, a decisão foi tomada nessa pesquisa baseou-se numa justificativa metodológica e substância teórica. Todavia, tanto a validação de Freitas et al. (2015) quanto de Barnes et al. (2004) e Guyll et al. (2001) indicaram uma estrutura com dois fatores para a EDC. Tais divergências na estrutura da escala podem ser devidas às características amostrais, como tamanho, faixas etárias e aspectos éticos-raciais, culturais e socioeconômicos. Somado a isso, no estudo de Freitas et al. (2015), a escala utilizada incluiu ainda a adição de dois novos itens desenvolvidos pelas autoras, com o propósito de avaliar a discriminação em função da orientação sexual. Pode-se sugerir que para a amostra brasileira não houve uma percepção diferenciada entre um tipo de discriminação mais explícito e outro sutil. Assim, futuros estudos transculturais devem ser realizados para verificar o impacto da diversidade contextual sobre a variação da estrutura da EDC.
O presente estudo também explorou a frequência dos motivos de discriminação. Os resultados indicaram que a aparência física (21%) e o nível socioeconômico (18,7%) foram os motivos de discriminação mais relatados pela amostra total. Resultados semelhantes foram encontrados por Freitas et al. (2015), que verificou que entre os adolescentes e jovens portugueses que reportaram um motivo para a percepção de discriminação (66, 9% da amostra total do estudo), o motivo singular mais frequente foi a aparência física. Na mesma direção, Kessler et al. (1999) verificou que a aparência física foi um dos motivos mais frequentes relatados numa amostra com pessoas norte-americanas.
Num estudo prévio, Kessler et al. (1999), observaram que tanto os atos de discriminação cotidiana como os atos de discriminação flagrante (ser despedido ou ser mandado parar pela polícia) era mais prevalecente nas pessoas com baixo nível socioeconômico. Os achados do presente estudo indicam que as pessoas pobres são tratadas de forma injusta e negativa com frequência, pois 95% apontaram um motivo para algum tipo de ato discriminatório que ocorre pelo menos algumas vezes por ano. Em estudos prévios com amostras economicamnete diversificadas a proporção de pessoas afetadas por discriminação cotidiana foi bem menor: 60.9% em Kessel et al. (1999), e 66, 9% em Freitas et al., (2015). Como a presente pesquisa não contemplou pessoas de diferentes níveis socioeconômicos, não é possivel conduzir análises estatísticas que permitem inferir um comparativo entre pobres e não pobres; não obstante, o nível socioeconômico foi apontado como um dos motivos mais prevalentes.
A pobreza condiciona diversas dimenções do modo de vida juvenil, incluindo a apresentação física. Cardoso e Yamaguti (2017) indicam que a discriminação por aparência física, muitas vezes encoberta, pode falsamente pressupor condições justas, sendo de difícil identificação. Os autores ressaltam a relevância da aparência na construção das relações sociais, já que nas impressões positivas ou negativas e na formação de estereótipos. Estas questões também estão relacionadas ao status socioeconômico real ou presumido. Ressalta-se que a amostra foi composta majoritariamente por adolescentes e jovens Pardos e Pretos, que na nossa sociedade são mais expostos à violência e discriminação (Lins et al., 2017; Sacco et al., 2016). Deste modo, a discriminação por aparência física pode se intersectar a outros motivos de discriminação, tais como a étnica/racial, ou a discriminação por peso (Mensorio & Costa Júnior, 2016).
A discriminação por nível socioeconômico implica na compreensão de que a condição de pobreza gera diversos sofrimentos sociais, tais como a estigmatização, preconceito, discriminação, não reconhecimento, humilhação e vergonha, muitas vezes invisibilizados, que são produzidos a partir das assimetrias entre grupos (Almeida, 2019). Nesse sentido, Moura Júnior e Sarriera (2016) afirmam que a relação entre classes sociais é regida por ideologias que desqualificam e desvalorizam os mais pobres. A nossa amostra foi composta por adolescentes e jovens adultos, o que pode sugerir uma percepção mais aguçada desse fenômeno nessa faixa etária. Assim como uma inserção em redes de sociabilidade com maior complexidade, como o mercado de trabalho e a frequência aos cursos técnicos e de nível superior, e, consequentemente, com mais assimetrias socioeconômicas. Ademais, na sociedade contemporânea, os aspectos psicossociais da juventude são perpassados pela questão do consumo, portanto, os códigos sociais dos grupos com maior poder de consumo são valorizados (Coelho & Silva, 2019). Não poder consumir potencializa atitudes discriminatórias entre adolescentes e jovens, já que o consumo perpassa o acesso a bens, como os tecnológicos ou vestuário, que são aspectos valorizados no mundo das redes sociais virtuais, o que ocupa centralidade nos modos de vida dos adolescentes e jovens da atualidade.
Considerações Finais
Considera-se que a versão adaptada da escala da Escala de Discriminação Cotidiana (EDC) para adolescentes e jovens brasileiros de nível socioeconômico baixo foi estruturada de forma contemplar as especificidades da discriminação cotidiana vivenciada, assim como dos seus motivos mais recorrentes (aparência física e nível socioeconômico). Compreende-se ainda a relevância em se estudar os processos discriminatórios na juventude pobre, realidade da maior parte dos jovens do país, a partir de suas particularidades e diferentes momentos de vida. Já no que se refere à diversidade cultural e geográfica do Brasil, um país com dimensões continentais, o fato de pesquisar jovens de duas regiões diferentes (Nordeste e Sudeste) auxiliou na busca em dar abrangência às diferenças regionais.
Dentre os limites do presente estudo, destaca-se que a amostra se referiu a adolescentes e jovens adultos que viviam em contextos de pobreza. Além disso, os participantes frequentavam sistemas educativos (escolas e universidades públicas). Desse modo, sugere-se que essa versão adaptada seja aplicada em outros grupos etários (por exemplo, adultos e ou idosos) de diferentes níveis socioeconômicos em outros contextos do cenário brasileiro, a fim de que seja possível comparar os resultados. Considerando que milhões de adolescentes e jovens brasileiros não frequentam as escolas e as universidades, seria importante incluí-los em futuras investigações, uma vez que as vivências em diferentes realidades podem trazer experiências de discriminação diversas. Por fim, futuros estudos podem investir na validade de constructo, por meio da realização de Análise Fatorial Confirmatória e análise de invariância entre diferentes grupos sociais. Do mesmo modo, seria importante associar a EDC com outros constructos psicossociais, por exemplo, a sáude mental, a imagem corporal, satisfação com a vida, autoestima e autoeficácia.
Este estudo indicou que a versão adaptada da EDC demostrou sua relevância teóricametodológica ao validar um instrumento para mensuração e visibilidade de atitudes discriminatórias com adolescentes e jovens brasileiros de contextos economicamente desfavorecidos. A maior parte das investigações sobre a percepção de discriminação é realizada com adultos. Assim, o instrumento poderá ser utilizado em futuras intervenções com foco na prevenção com adolescentes e jovens, psicólogos e educadores para o combate à discriminação e ao preconceito, dado o seu impacto negativo na saúde física e mental. Desta forma, fortalecendo o compromisso ético-político da psicologia, torna-se possível conscientizar e sensibilizar a sociedade para esses mecanismos opressores, muitas vezes invisibilizados. De tão frequentes, as ações de discriminação em relação a diferentes grupos socialmente desvalorizados por motivos socioeconômicos, étnico-raciais, sexuais, físicos etc., acabam por tornar menos evidente a gravidade do seu impacto, por parte de quem discrimina, de quem assiste e, mesmo, de quem é discriminado. Torna-se, portanto, fundamental desenvolver instrumentos válidos que auxiliem na prioritária tarefa de identificar e denunciar essas agressões cotidianas cujo impacto pessoal e social insidioso está solidamente documentado na literatura.