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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2022  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.68654 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

“Quem Dança Seus Males Espanta”: Processos Terapêuticos em Práticas Grupais de Dança e Movimento

Dancing Wards Off Worries: Therapeutic Processes in Dance and Movement Group Practices

Bailar Hace Bien para Quitar Dificultades: Procesos Terapéuticos en Prácticas Grupales de Danza y Movimiento

Rafaella Medeiros de Mattos Brito1 

Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Ceará, doutora pela Universidade Federal do Ceará, psicoterapeuta na interface entre clínica e dança.


http://orcid.org/0000-0001-6835-3767

Idilva Maria Pires Germano1 

Doutora em Sociologia, professora titular do Departamento de Psicologia da UFC e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFC.


http://orcid.org/0000-0003-0062-9899

Zulmira Aurea Cruz Bomfim1 

Doutora em Psicologia Social, Professora titular do Departamento de Psicologia da UFC e Membro Titular do Programa de Pós-graduação de Psicologia da UFC.


http://orcid.org/0000-0002-1874-8821

1Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, Brasil


RESUMO

O artigo identifica e discute os processos terapêuticos vivenciados por participantes de práticas grupais com foco na dança e no movimento, com o objetivo de compreender de que forma essas terapias corporais proporcionam benefícios e transformação pessoal. Foram realizadas entrevistas com profissionais e clientes de diferentes práticas terapêuticas no Brasil e no Reino Unido, adotando-se o método do círculo hermenêutico-dialético. Também foi utilizada a observação participante com registro em diário de campo. As entrevistas foram analisadas mediante Análise Hermenêutica Dialética e os dados discutidos à luz das teorizações da Educação Somática; da Dança Movimento Terapia; da Dança Circular Sagrada e da Biodança, além da Teoria Experiencial, de Eugene Gendlin, e da filosofia do corpo de Merleau-Ponty. Os resultados apontam sete principais processos terapêuticos envolvidos nas práticas com dança e movimento: percepção; simbolização; encontro e comunicação; processamento e integração; associação e metáforas; evocação de memórias; totalidade e conexão. Conclui-se que são diferentes os processos de transformação ocorridos a partir de uma terapia baseada na dança e de uma terapia eminentemente focada na fala, cabendo ao cliente escolher a prática terapêutica que melhor se encaixe ao seu estilo e à sua necessidade.

Palavras-chave: dança; movimento; danças terapêuticas; teoria experiencial; corpo.

ABSTRACT

The article identifies and discusses the therapeutic processes experienced by participants of group practices with focus on dance and movement in order to understand how these body therapies yield personal benefits and transformation. Data were collected through interviews with professionals and clients involved in different therapeutic practices in Brazil and UK by use of the hermeneutic-dialectic method. Other data were obtained through participant observation and a field diary. Interviews underwent Dialectical Hermeneutic Analysis and were discussed based on a theoretical framework including Somatic Education; Dance Movement Therapy; Sacred Circle Dance and Biodanza, in addition to Eugene Gendlin's Experiential Theory and Merleau-Ponty's philosophy of the body. The results point to seven main therapeutic processes involved in dance and movement approaches: perception; symbolization; encounter and communication; processing and integration; association and metaphors; evocation of memories; totality and connection. We conclude that the transformation processes that take place on a dance based therapy and on a speech based therapy are fundamentally different, and it is up to the client to choose the therapeutic practice that best fits his/her style and need.

Keywords: dance; movement; therapeutic dances; experiential theory; body.

RESUMEN

El artículo identifica y discute los procesos terapéuticos experimentados por los participantes en las prácticas grupales con enfoque en la danza y el movimiento, con el objetivo de comprender cómo estas terapias corporales proporcionan beneficios y transformación personal. Se realizaron entrevistas con profesionales y clientes de diferentes prácticas terapéuticas en Brasil y el Reino Unido, adoptando el método hermenéutico-dialéctico. La observación participante también se usó y se registró en un diario de campo. Las entrevistas se analizaron mediante el análisis dialéctico hermenéutico y los datos discutidos a la luz de la educación somática; la terapia de movimiento de la danza; la danza circular sagrada y las teorías de Biodanza, además de la teoría experimental de Eugene Gendlin y la filosofía del cuerpo de Merleau-Ponty. Los resultados muestran siete procesos terapéuticos principales involucrados en las prácticas de danza y movimiento: percepción; simbolización; reunión y comunicación; procesamiento e integración; asociación y metáforas; evocación de recuerdos; totalidad y conexión. Concluimos que los procesos de transformación que tienen lugar en base a una terapia basada en la danza y una terapia eminentemente enfocada en el habla son diferentes, dejando al cliente elegir la práctica terapéutica que mejor se adapte a su estilo y necesidad.

Palabras clave: danza; movimiento; danzas terapéuticas; teoría experiencial; cuerpo.

A sabedoria popular comumente lembra o poder curativo da arte em expressões como “quem canta seus males espanta” e “a dançar se esquecem os males”. No senso comum, sabemos o quanto dançar é uma atividade prazerosa que traz bem-estar e alegria. Mas o que faz da dança uma atividade terapêutica? O que ocorre durante os grupos terapêuticos de dança e movimento? Que processos facilitam a transformação das pessoas envolvidas? Essas são as perguntas a serem respondidas pelo presente artigo.

Esta pesquisa teve como objetivo identificar os processos terapêuticos que ocorrem no curso de práticas centradas na dança e no movimento. Buscou-se compreender de que forma essas terapias possuem potencialidades transformadoras, partindo da hipótese de que são distintos os caminhos de cura e transformação pessoal em terapias que priorizam a fala ou a experiência corporal de seus participantes.

Não se tratando, contudo, de uma disputa entre a palavra e o corpo, o ponto em questão é que, diferente de uma psicoterapia convencional, na qual as transformações são alcançadas geralmente por meio de sucessivos ajustes na narrativa dos clientes, nas terapias com dança e movimento os caminhos são outros. Nessas últimas, os exercícios e as vivências geram transformações que muitas vezes não são compreendidas no instante em que ocorrem e nem sempre são acompanhadas de uma fala organizadora. Percebe-se, portanto, que mudanças terapêuticas podem resultar não só da reconstrução discursiva de significados, mas de processos não verbais que se instauram nos movimentos, sentidos e ritmos do corpo.

A partir daí, o objetivo desta pesquisa foi mapear e compreender esses processos terapêuticos geradores de transformações pessoais, explorando os limites e alcances das terapias baseadas na dança e no movimento, por meio de observações e entrevistas com profissionais e clientes dessas abordagens. Na ampla gama de terapias disponíveis, os campos escolhidos para análise, por sua maior prevalência no Brasil e no Reino Unido, foram as abordagens não psicoterápicas de danças terapêuticas, nomeadamente a Biodança, a Dança Circular Sagrada, os grupos de Dança Contemporânea e Educação Somática e as abordagens psicoterápicas de Dança Movimento Terapia (DMT).

Ressaltamos que a qualidade “terapêutica” dessas práticas não significa apenas serem capazes de trazer bem-estar aos envolvidos. Por vezes, o que é terapêutico é justamente uma mobilização angustiante que provoca importantes deslocamentos para as pessoas em terapia. Entende-se por terapêutico, assim, qualquer transformação ou efeito potencialmente benéfico, mesmo que não acompanhado de uma emoção positiva e ainda que não atrelado a uma cura irreversível. Os sentidos dados pelos entrevistados foram tomados como referência, considerando terapêutico o que os próprios participantes compreendem como tendo os auxiliado durante suas experiências nos grupos de dança e movimento. Esta pesquisa, assim, vem colaborar com a produção de conhecimento na área, fornecendo dados empíricos sobre a clínica psicológica centrada no corpo e no movimento.

Método

Para compreender de que forma um trabalho corporal com dança e movimento se faz transformador, recorremos ao relato de clientes e profissionais com experiência em grupos de danças terapêuticas e abordagens psicoterápicas de Dança Movimento Terapia (DMT). Para tanto, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, cujo modelo foi inspirado no método do círculo hermenêutico-dialético (Guba & Lincoln, 1989) assim como apresentado por Oliveira (2001), com um roteiro de perguntas construído de acordo com os objetivos do estudo. Além disso, foi utilizado o diário de campo da pesquisadora (primeira autora) em sua experiência como participante de um grupo de dança terapêutica. A pesquisadora esteve, portanto, imersa no fenômeno estudado, conhecendo-o não somente a partir da descrição dos entrevistados, mas a partir de sua própria vivência. Nesse formato, a pesquisa foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa com CAAE 78793417.0.0000.5054, tendo a fase de coleta de dados sido realizada de dezembro de 2017 a agosto de 2018.

Foram realizados dois ciclos de entrevistas, sendo o primeiro com profissionais que possuem formação em alguma das abordagens de trabalho terapêutico com dança citadas acima e o segundo com clientes que participavam de algum grupo no mesmo sentido. Abarcamos, assim, perspectivas de várias abordagens, a partir de dois diferentes ângulos (profissionais e clientes). Nessas entrevistas, os indivíduos elucidavam as transformações vivenciadas, apontando acontecimentos e processos que explicassem tais mudanças ao longo do tempo.

As entrevistas no método do círculo hermenêutico aconteceram de forma a provocar um diálogo indireto entre as diferentes abordagens, abrindo espaço para que os entrevistados tecessem analogias e distinções entre elas, fortalecendo os conteúdos em comum, que deram origem às categorias de processos terapêuticos estudados. Na prática, o círculo se deu de forma que, após a conclusão de cada entrevista, era apresentada ao entrevistado seguinte a síntese da entrevista anterior, sobre a qual ele deveria tecer comentários, apontando similaridades e diferenças, bem como questões pessoais, vivências ou conceitos rememorados ao ler uma experiência vinda de outra abordagem.

O recorte definido da pesquisa foi de adultos de 25 a 60 anos, de ambos os sexos, englobando indivíduos já graduados e com no mínimo seis meses de experiência em práticas de terapias corporais com dança e movimento. O primeiro ciclo foi composto por oito profissionais e o segundo por cinco clientes. A pesquisa em questão teve, portanto, 13 participantes entrevistados: oito no Brasil (Fortaleza, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) e cinco no Reino Unido (Londres, Chichester e Edimburgo). No Brasil são mais comuns as práticas de danças terapêuticas, enquanto no Reino Unido já está bastante consagrado o campo psicoterápico da Dança Movimento Terapia.

Foram entrevistados profissionais e clientes com formação ou experiência pessoal no campo da Educação Somática, da Dança Movimento Terapia (DMT) e de danças terapêuticas, como a Biodança e a Dança Circular Sagrada. Esse é o cenário de algumas das principais práticas que, atualmente, trabalham terapeuticamente com dança e movimento. Por esse motivo, os pressupostos dessas práticas foram usados como referencial teórico para a compreensão dos dados obtidos nas entrevistas. Além disso, nosso referencial teórico foi enriquecido pela Teoria Experiencial de Eugene Gendlin e pela filosofia de Merleau-Ponty, que dialogam entre si.

Análise de Dados

A filosofia de Gendlin (1997) e a visão de corpo em Merleau-Ponty (1999) sustentam esta pesquisa de três modos: ajudam-nos a compreender a importância de se privilegiar a sabedoria corporal em um trabalho terapêutico; prezam pela expressão da experiência a partir da referência do corpo e não de uma narrativa arbitrária; e apontam para outras formas de simbolizar a experiência, para além da palavra.

A Teoria Experiencial de Eugene Gendlin vem honrar o que, já na década de 1940, afirmava Merleau-Ponty (1999): nosso corpo é um núcleo significativo que impõe sentido. A filosofia de Merleau-Ponty e a Teoria Experiencial de Eugene Gendlin, ao lado dos pressupostos teóricos da Educação Somática, da Dança Movimento Terapia (DMT), da Dança Circular Sagrada e da Biodança, foram os referenciais teóricos utilizados para explicitar de que forma esse corpo sábio, colocado em movimento, é capaz de promover transformações em diversas esferas da vida do sujeito.

Seguindo a sugestão de Oliveira (2001), a coleta de dados da pesquisa foi seguida por uma análise a partir da metodologia da Análise Hermenêutica Dialética proposta por Minayo (2010). Assim, após uma primeira leitura horizontal das sínteses das entrevistas, iniciou-se uma leitura transversal que visou a recortar os textos analisados em unidades de sentido que agrupam temas e conteúdos comuns. Formaram-se, então, junções de conteúdos semelhantes, agrupados em uma mesma denominação. Nesse momento, as estruturas relevantes identificadas no material das entrevistas foram classificadas em categorias (Oliveira, 2001), buscando-se, a cada trecho do texto, classes de processos terapêuticos comuns.

As várias categorias surgidas foram reagrupadas e reduzidas em número, unindo princípios comuns. Após a ordenação e a classificação dos dados, realizou-se, então, a análise final. Esse “é o momento onde se estabelece a articulação entre os dados coletados e os referenciais teóricos da pesquisa, para encontrar os fundamentos às questões e objetivos formulados” (Oliveira, 2001, p. 73).

A seguir, serão apresentados os resultados da pesquisa. Ressaltamos que os nomes citados são fictícios, preservando-se, dessa forma, a identidade dos entrevistados. Suas falas serão apresentadas em intercruzamento com a teoria, possibilitando a compreensão dos dados coletados.

Resultados e Discussão

Foram elencadas sete principais categorias de processos terapêuticos em curso durante os trabalhos que se utilizam do corpo e do movimento. Dançar se faz terapêutico, portanto, na medida em que engendra, provoca e facilita processos de: 1- percepção, 2- simbolização, 3- encontro e comunicação, 4- processamento e integração, 5- associação e metáforas, 6- evocação de memórias, e 7- totalidade e conexão. Cada processo aqui elencado responde a uma faceta específica do que torna a dança, em determinadas condições de manejo, potencialmente terapêutica. Esses processos acontecem de forma interdependente, porém, para fins didáticos, cada processo será aqui apresentado de forma isolada, sendo, cada um, discutido à luz do referencial teórico da pesquisa e exemplificado por trechos das entrevistas e do diário de campo.

1 - Percepção

Um importante efeito terapêutico de se trabalhar com dança é a possibilidade de gerar novas percepções sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo. Uma terapia que trabalha com dança e movimento se mostra capaz de facilitar transformações na medida em que amplia nossas possibilidades de percepção, devolvendo-nos importantes informações sobre nós mesmos e o ambiente circundante. Lena (profissional), a partir de sua experiência com grupos terapêuticos em dança, relata como surgem novas percepções sobre si nesses espaços: “Ah, quer dizer que eu ando desse jeito? Quer dizer que a minha voz é desse jeito? (...) Você vê como você está sem tônus, ou como você está com tônus”.

Assim como a dança fez Lena perceber a tonicidade de seu corpo ou a forma como anda, Aline (profissional), por sua vez, comenta que, em seu processo de prestar mais atenção ao corpo, percebeu algumas fragilidades que não haviam sido notadas até então. A esse respeito, José (profissional) explica que a experiência terapêutica em dança “pode provocar deslocamentos na nossa percepção, na relação que eu tenho comigo, com o mundo, na forma como eu vejo, como eu sinto, como eu percebo, e isso pode ser o começo de uma grande diferença em várias coisas”.

É, portanto, ao desestabilizar percepções arraigadas que o exercício da dança promove seus primeiros efeitos terapêuticos, podendo gerar, por exemplo, mudanças posturais e psíquicas. As pessoas parecem ficar mais atentas ao próprio corpo, e isso lhes permite mudanças e escolhas mais conscientes. Com a Biodança, por exemplo, Duda (cliente) diz ter percebido as suas “mesmices” e medos de atuar de novos modos.

Nesse sentido, Bolsanello (2016), a partir da Educação Somática, explica que “sentir meu corpo é afirmar ‘eu existo’. Eu sou eu. Eu não sou fulano, nem sicrano, nem beltrano. Não sou aquilo que vejo na televisão, nas revistas ou no cinema, eu sou único e meu corpo é testemunho disso” (p. 55). A autora esclarece que a maior parte de nossas dificuldades motoras estão ligadas a uma imagem corporal distorcida, quando não conseguimos sentir e conhecer nosso próprio corpo. A solução seria, então, reajustar a imagem e não corrigir mecanicamente os gestos. Em seu diário de campo, por exemplo, a pesquisadora aponta que a dança a ajudou a perceber tensões, contrações, limitações e posturas antes não notadas, contribuindo para uma autoimagem mais fiel e autêntica. Tais percepções a levaram a refletir: “como é possível habitar erroneamente o corpo e só em raros momentos perceber que estamos desconfortáveis nele...”.

Do ponto de vista filosófico, para Merleau-Ponty (1999), nosso corpo é a maneira como podemos habitar o mundo. Nossa subjetividade está intimamente ligada ao corpo que, por sua vez, encontra-se ligado ao mundo. É o próprio corpo que conhece o mundo, sentindo e percebendo as informações circundantes, organizando-as e dando-lhes sentido. Dessa forma, não é possível perceber o mundo se descolando dele, e a percepção, portanto, sempre se dá a partir do ponto de vista de um corpo situado. Disso decorre que cada posicionamento em que meu corpo se encontra contribuirá para uma diferente percepção do objeto.

Assim, dançar é invariavelmente mudar o ângulo de observação do corpo, o ponto de exploração do espaço e a posição dos membros. Desse modo, a dança constantemente explora e desloca nossa capacidade perceptiva. Chegamos, então, a uma característica importante da percepção proposta por Merleau-Ponty (1999): a percepção é entendida como movimento, dependente da posição do corpo no espaço, e não como um processo mental, estático e passivo. A percepção, portanto, é um ato do corpo, se faz no corpo e pelo corpo.

Atuar no domínio da percepção é, por fim, promover autoconhecimento: quanto melhor nos percebermos, melhor nos conheceremos e melhor poderemos responder ao ambiente. Assim, o corpo apresentado por Merleau-Ponty (1999) como sujeito e objeto, como corpo situado, que existe comigo e nunca diante de mim, que é feito do mesmo estofo do mundo e que já é em si cognoscente, possibilita o fenômeno da percepção, ampliando nossa consciência corporal e assim nos ajudando a aprimorar nosso funcionamento no cotidiano, diminuindo tensões desnecessárias, remodelando posturas e atendendo às necessidades observadas.

2 - Simbolização

Partindo da Teoria Experiencial, entendemos a simbolização como o ato de diferenciar, apontar, aludir, sintetizar ou configurar algo da “experienciação”. Para Gendlin (1997), experienciação é o termo que se refere ao fluxo de experiências sentidas pelo sujeito no aqui e agora. Simbolizar, portanto, é dar forma ou símbolo a esse fluxo experiencial que se apresenta inicialmente difuso. Gendlin (1997) defende, porém, que símbolos podem ser mais que palavras: “algumas vezes, não só um nome, mas uma imagem poética é necessária” (p. 79, tradução nossa). Assim, Gendlin (1997) acredita que, além do uso das palavras e da construção de histórias, como comumente acontece nas abordagens psicoterápicas tradicionais, podemos também nos apropriar de nossa experienciação por meio de um símbolo visual, uma ação, um objeto ou mesmo a partir da atenção focada ao corpo, mostrando outras maneiras de dar forma à experienciação que não sejam pela conceituação.

Portanto, tomando a perspectiva de Gendlin (1997), a dança abre duas novas formas de simbolização que se dão pela via da ação: ação como atenção (referência direta) e ação como movimento (expressão). Quando os clientes dançam, se dá um processo de simbolização por via da ação como uma expressão diferente da linguagem verbal. Por outro lado, quando os clientes se conectam ao corpo e sentem seu fluxo de experienciação, ocorre um processo de simbolização mediado pela atenção, ou ainda, pela referência direta.

No processo de referência direta, ao prestarmos atenção ao corpo, nos tornamos conscientes de um “algo” que ainda não estava formulado antes de receber atenção, pois, segundo Merleau-Ponty (1999), “prestar atenção não é apenas iluminar mais dados preexistentes, é realizar neles uma articulação nova considerando-os como figuras. Eles só estão pré-formados enquanto horizontes” (p. 58). A partir dessa articulação, esse “algo” percebido pode ser, então, finalmente sentido, ou ainda, conscientemente experienciado. Sol (cliente) parece explicar o processo de referência direta quando comenta que a dança lhe dá estratégias para se observar: “como se quando eu estivesse dançando fosse um momento de fechar os olhos e entender o que é que está acontecendo comigo em relação a outras coisas”.

A dança, então, parece propiciar uma conexão mais íntima com o próprio corpo, permitindo que as pessoas possam dar-se conta de como estão se sentindo. Este é um princípio fundamental apresentado por Gendlin (1997): o que gera mudança na psicoterapia é a experienciação, o sentir a experiência no corpo, e não o saber racional. Em aparente consonância com Gendlin (1997), Bernstein (1979), por exemplo, ao tratar da Dança Movimento Terapia, defende que “é mais provável que aconteça crescimento se um indivíduo está envolvido na experiência que está sentindo em vez de apenas falar sobre ela. É importante viver a experiência” (p. 111, tradução nossa).

Além de favorecer uma maior conexão com o corpo, o movimento “diz” a experiência de forma diferente de como a palavra o faz. A pioneira Marian Chace, segundo Chaiklin (1975), por exemplo, entende a “dança básica” como a “externalização desses sentimentos interiores que não podem ser expressos em discurso racional, mas podem apenas ser partilhados em ação simbólica, rítmica” (p. 203, tradução nossa). O movimento permite, assim, “trazer o conflito emocional subjetivo a uma forma física objetiva. Na qual ele pode ser percebido e lidado construtivamente” (Schoop & Mitchell, 1979, p. 44, tradução nossa).

Para serem percebidas e lidadas construtivamente, é importante que, em alguns momentos, nossas experiências possam ser não apenas referidas diretamente, mas também expressas, pois, como aponta Gendlin (1965), “somente em um processo expressivo os significados se tornam totalmente formados” (p. 240, tradução nossa). Para serem expressas, portanto, as experiências necessitam de um símbolo.

Simone (cliente), por exemplo, conta como expressou sua saudade do pai por meio da dança, quando decidiu ouvir pela primeira vez, após seu falecimento, a canção “Pavão Mysteriozo”, do compositor cearense Ednardo. Desde a morte do pai, cujo apelido era “Pavão”, Simone havia se esquivado de escutar essa música, pois isso a fazia chorar. Quando ela, então, decidiu escutá-la novamente, exprimiu seu sentimento de outra forma. Em suas palavras: “ao invés de chorar a música, eu dancei a música, eu dancei aquela saudade, eu dancei aquela dor, eu dancei aquele sentimento, eu dancei as coisas boas que a gente passou”. Conta ainda que essa atividade trouxe alívio, transformando a saudade em algo mais suave, e que acredita que a dança tem uma conotação de alegria, que a fez conseguir reagir diferente diante da música.

Partindo dos processos terapêuticos já apresentados, observamos, assim, que primeiro é preciso perceber o corpo, para então senti-lo. Ao sentir, é possível então expressar. Por fim, ao expressar, somos capazes de comunicar. Comunicar, por sua vez, é o que permite ao homem se relacionar.

3 - Encontro e Comunicação

No tópico anterior, apresentamos a dança como um sistema simbólico em si, diferente da linguagem verbal, capaz de expressar a experiência humana. Porém, por vezes, não basta às pessoas exprimir a experiência de outra forma, mas há também uma necessidade de se fazerem entender, de se comunicarem, de serem vistas, compreendidas e aceitas pelo grupo. Schoop e Mitchell (1979), no campo da Dança Movimento Terapia, apontam que a exploração de movimentos leva a pessoa a tanto experienciar seus sentimentos como a comunicar-se de forma que os outros possam reconhecer e reagir à sua comunicação. Os autores assinalam que a capacidade de se comunicar em grupo promove um maior senso de si mesmo e de pertencimento a um coletivo, pois, “quando eles podem dar ritmo, forma, direção, melodia a um sentimento à tona, eles estão partilhando-se com outros. Não estão mais sozinhos” (p. 42, tradução nossa). Dessa forma, a categoria “encontro e comunicação” alude ao caráter terapêutico do grupo em si, no que tange ao favorecimento da comunicação e também do contato, da convivência, do suporte, da relação terapêutica e da presença de testemunhas para os processos vividos.

Simone (cliente) observa que a linguagem corporal é anterior à fala, entendendo que “o corpo expressa independentemente de você ter isso consciente ou não”, e essa expressão pode ser apreendida pelos outros. Nos grupos de danças terapêuticas, no entanto, não existe a necessidade de interpretação lógica dos movimentos. Isso acontece porque a dança deixa de ser uma representação (dramatização) e passa a ser uma apresentação vivencial. Ou seja, o corpo deixa de representar as emoções e passa a diretamente apresentá-las em sua própria tonicidade corporal, o que permite que as emoções sejam não mais caricaturadas, mas passem a ser o próprio corpo em movimento. O caráter corporificado das emoções, assim, faz da dança uma estratégia independente de comunicação humana, uma comunicação que se dá pela via do sentido: “a dança não exprime, portanto, o sentido, ela é o sentido” (Gil, 2001, p. 97).

Além disso, na dimensão do encontro e da comunicação, o que as pessoas percebem como terapêutico, para além de serem compreendidas, é a sensação de fazerem parte de um grupo, de serem acolhidas, aceitas, às vezes até mesmo seguidas ou imitadas. Ariadne (cliente), por exemplo, considera que, em sua experiência na abordagem de DMT denominada Movimento Autêntico, foi extremamente transformador ter alguém testemunhando-a e autorizando-a a sentir e expressar seus sentimentos. O olhar do outro parece dar legitimidade às vivências das pessoas, facilitando o contato com sentimentos antes negados ou distorcidos.

Vê-se que a estrutura grupal, em si, responde e abarca uma necessidade humana vital de afetividade e vínculo. Para Beatrice (profissional), por exemplo, trabalhar fisicamente com o tato e o movimento em espelho (em que um participante reproduz o movimento de outro, de forma que este se veja refletido) leva ao cumprimento de certas necessidades físicas presentes desde a infância e que provavelmente não seriam atendidas por meio de terapias de cura pela fala. A Biodança, em consonância, afirma que “os animais de estruturas nervosas mais complexas necessitam de contato, principalmente os mamíferos. Experimentos revelam a importância do contato tanto quanto do alimento e do movimento” (Góis, 1995, p. 79). Nesse mesmo sentido, a pesquisadora registra, em seu diário de campo, que o grupo tem cumprido “o papel de garantir uma necessidade básica de contato íntimo e profundo”.

Além disso, Sara (profissional) relembra que “o que acontece no relacionamento comigo, como terapeuta, significa que há semelhanças com o que acontece na vida real do cliente e é nisso que estamos tentando trabalhar”. Ela assinala que existem momentos em que o cliente posiciona o terapeuta em um papel que pertence à vida particular do cliente. Por exemplo, um cliente que se apresenta bastante controlador em suas relações pessoais pode demonstrar o mesmo padrão com o terapeuta. Dessa forma, Sara e seus clientes traçam paralelos entre o que acontece na relação terapêutica e nos relacionamentos do cliente fora da terapia, facilitando, assim, o processamento de informações ainda não integradas à consciência.

4 - Processamento e integração

Além de promover processos de percepção, referência direta à experienciação, à expressão, à comunicação e ao encontro humano, Stanton-Jones (1992) assinala que o movimento improvisado e espontâneo é terapêutico em si, não precisando facilitar nenhum outro processo para além dele mesmo. Se a pessoa está se movimentando espontaneamente, um processo curativo já está acontecendo. Mais importante que entender ou interpretar, portanto, é deixar que o processo de cada pessoa se desenvolva. Sol (cliente), ao explicar o que considera terapêutico na Dança Circular, parece ilustrar esse princípio: “às vezes eu chego de uma certa forma assim menos empolgada e eu começo a dançar, e termina e eu percebo que eu estou em outro canto, que eu esvaziei um monte de coisa”.

Nesse sentido, Merleau-Ponty (1999) acredita que o corpo, em si, tem a capacidade de criar ordem, responder ao mundo e formar conhecimento a partir da experiência. Ao falar sobre o processamento de conhecimento, o autor revela que é o corpo, e não o sujeito epistemológico, que realiza a síntese. Para o autor, o corpo, “quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele” (p. 312).

Gil (2001), por sua vez, ao construir coreografias que reúnem elementos aparentemente aleatórios, também notou tal característica ordenadora do corpo: “devemos crer que o corpo tenha um tal poder integrador, ou assimilador, que transforme tudo o que dele se aproxima no espaço e no tempo, num todo homogéneo e unificado, quer dizer orgânico” (p. 85).

Desta forma, dotado de uma sabedoria imanente também apontada pela Teoria Experiencial, o corpo possui a capacidade de agregar e processar informações anteriormente dissociadas. Por processamento, entendemos o ato de tratar, reconfigurar e transformar conteúdos emocionais, como um luto que é, aos poucos, processado para ser integrado. Integração, por sua vez, sugere a ideia de unidade, consistência, coerência e conexão. Referese ao ato de reconectar partes dissociadas, estruturando o indivíduo. Esses dois processos comumente acontecem juntos, assemelhando-se ao processo físico da digestão, em que conteúdos maiores são triturados, modificados e reorganizados. O corpo exclui, então, uma parte em excrementos, absorvendo outra parte, já processada, que será integrada ao organismo, distribuindo os nutrientes em prol de sua homeostase. A partir dessa ideia, sugerimos que o movimento teria, em si, a capacidade de processar, integrar, regular e reorganizar o organismo de acordo com suas necessidades, reequilibrando os padrões rítmicos da vida.

Isa (cliente) fala de momentos, no grupo, em que parece que “alguma coisa aconteceu”. A categoria “processamento e integração” implica os momentos em que a dança possibilita um entendimento próprio do corpo, assim como assinalado por Isa: “Quando a entrega acontece de tal forma que eu sinto vibrar no meu corpo e arrepia aqui, aí eu digo assim: funcionou”. Para ela, é a sua entrega ao momento presente que favorece os “acontecimentos”, como Isa chama os episódios em que se opera uma mudança: “esse arrepio, para mim, é o momento do bum! O momento que acontece, o momento que você entra no estado que a dança te favorece”.

Como exemplo de uma sessão em que “algo aconteceu”, Isa cita um dia em que trouxe o neto pequeno para a sessão do seu grupo de dança terapêutica. A proposta era fazer uma apresentação diante de todos e Isa deixou que o neto conduzisse aquele momento. “Foi incrível, realmente... ele se soltou, eu me soltei, a gente se soltou de tal jeito que foi contagiante! A gente contagiou a sala, foi lindo!”. Questionada sobre o que ela considera que “aconteceu” ali, Isa responde: “nesse momento eu senti que eu me aproximei dele”. Explica que sempre existiram algumas barreiras em sua relação com o neto, e que naquele momento algo “aconteceu”, uma aproximação se deu. Esse “algo” não precisou ser construído ou explicado com palavras, mas foi vivido e demarcado por meio do corpo em movimento. Existem, ainda, episódios em que a integração e o processamento de informações e emoções pela via do corpo geram insights e novas construções, que podem ser acompanhados por imagens e metáforas.

5 - Associação e Metáforas

A categoria “associação e metáforas” diz respeito a momentos em que a prática da dança evoca imagens e figuras de linguagem que trazem uma súbita compreensão ou uma nova ligação entre eventos. Muitas vezes, o cliente, ao se mover pelo salão, percebe em si certos padrões de comportamento. A partir daí, o cliente é capaz de fazer uma ligação entre o que lhe ocorre no momento da sessão e sua vida cotidiana. A pesquisadora em seu diário de campo, por exemplo, compreendeu que seus movimentos apressados revelavam sua ânsia constante pelo próximo passo, na dança e na vida.

Dessa forma, a dança parece promover novos insights, assim como explica Reis (2012) ao falar do que acontece na Biodança. A autora aponta que o insight, comumente associado a uma tomada de consciência a respeito da ligação entre elementos antes desconectados, “poderia também ser compreendido como a emergência de um sentido vivido, que se dá em um ato da percepção e que amplia a consciência do sujeito acerca de seus processos e relações” (Reis, 2012, p. 29). Assim, ao dançar e explorar movimentos, as pessoas podem perceber novas ligações e experienciar um insight vivido, que não se dá racionalmente, mas a partir do corpo.

A interação por meio dos movimentos, então, permite aos clientes tornarem-se conscientes de seus padrões de comportamento e relações interpessoais, a partir de situações que podem evocar estados emocionais, relações e acontecimentos. O afastamento de um colega no decorrer de uma dança, por exemplo, pode gerar a associação com uma rejeição já experimentada na vida.

Lena (profissional) relata uma vivência em que os participantes exploravam movimentos com cordas. Nessa ocasião, foi amarrada pelo facilitador. Durante a sessão, a situação de ser dominada pelo profissional e estar presa sem conseguir se desamarrar foi então associada à sua vida amorosa. Conta que o fato de o facilitador continuar a lhe dominar com as cordas, contra suas tentativas de se desvencilhar, provocou-lhe muita raiva e indignação. “Aí ali caiu logo todas as fichas... ele mexeu corporalmente comigo para eu sentir essa raiva...”.

Lena conta que, ao experimentar corporalmente o que vivia emocionalmente em seu relacionamento (estar presa, submissa), teve “pleno significado” de como se sentia. Pouco depois dessa vivência, conseguiu finalmente terminar a relação. Relata que, a partir daquele episódio, “um marco”, teve consciência de que precisava se “reconectar com a vida” e que tal trabalho corporal lhe permitiu “poder lidar com coisas bem significativas, poder compreender os seus limites, ter força para avançar nos seus limites, aprender a dizer não”. A experiência de Lena é um exemplo de momentos em que, por meio de uma associação, os sentimentos se tornam substanciais, incorporados, sentidos na própria pele, tangíveis na musculatura.

Em sua entrevista, Lena volta a demonstrar o quanto as posturas corporais podem revelar estados emocionais: as costas curvadas podem evidenciar, por exemplo, um estado de submissão diante da vida. Ou ainda, no exercício corporal de cair para que outro o ampare, a recusa de se abandonar à experiência pode remeter à dificuldade de conseguir se entregar em uma relação amorosa.

Na vivência corporal, as pessoas ganham acesso a sentimentos que não conseguem ser verbalizados (Stanton-Jones, 1992) ou que, embora verbalizados, não produzem mudanças. Isso porque, para a Teoria Experiencial, a mudança é fruto da real experienciação do conteúdo em questão, e não de sua compreensão racional (Gendlin, 1997). Lena, por exemplo, compreendia que sua relação era aprisionadora, mas somente quando a experienciou metaforicamente em seu corpo, a mudança foi possível.

Por fim, algumas dessas associações provocadas pelo movimento dizem respeito não a um modo de funcionamento global, a formas de se relacionar ou a posturas corporais, mas a memórias específicas, na maioria das vezes, memórias traumáticas.

6 - Evocação de Memórias

O corpo absorve as experiências de uma forma particular, podendo gravar memórias de situações que passam despercebidas. Esse pensamento está presente em muitos autores do campo da psicoterapia, da Educação Somática e da dança. Adler (2003), expoente do Movimento Autêntico, afirma que existe uma sabedoria natural e uma capacidade do corpo de guardar memórias. Gil (2001) acredita que acontecimentos se inscrevem no corpo gerando uma memória corporal inconsciente. A Dança Movimento Terapia também assevera que “podemos nunca ser conscientes do nosso sofrimento na infância, mas nossos corpos podem lembrar. Podemos nunca ser conscientes dos sofrimentos de nossos pais, mas nossos corpos o receberam no útero e o carregaram” (Hayes, 2007, p. 26, tradução nossa).

A partir dessa perspectiva, emoções seriam expostas na medida em que o corpo se movimenta, encontrando mais conexão e conforto e, assim, liberando tensões e sintomas, que seriam nossas próprias experiências mantidas no corpo. Nesse sentido, Govine (1979) explica que traços de memória de experiências e relações anteriores são retidos em nosso corpo em nível celular: “A fáscia, o tecido de conexão que une o corpo e envolve todos os músculos e órgãos internos, é um meio primário de reter essa informação” (p. 156, tradução nossa). Afirma, ainda, que “impressões de informação, especialmente mensagens parentais, injunções e atribuições, a respeito de uma pessoa e seu corpo são igualmente retidas celularmente. A forma como alguém se move reflete a composição de sua história” (p. 156, tradução nossa).

O conceito de memória, no entanto, não diz apenas da explícita lembrança de eventos passados, mas também de disposições, habilidades, padrões e hábitos incorporados que influenciam nossas experiências e nossos comportamentos diários. Se não tivéssemos algum tipo de memória corporal para habilidades e hábitos, teríamos que aprender a andar de novo todos os dias (Fuchs, 2012). Merleau-Ponty (1999) também observa que o datilógrafo e o organista, por exemplo, sendo capazes de datilografar e tocar um instrumento de maneira tão habitual, nem pensada nem automática, possuem um tipo de conhecimento que advém não do corpo objetivo, mas do corpo vivido como mediador do mundo. Tal memória corporal, assim, é implícita, e permite a intencionalidade operativa do corpo, sendo direcionada à ação.

Para Fuchs (2012), as impressões mais indeléveis no corpo são aquelas causadas pelo trauma. Além disso, tais memórias não estão sob o domínio da consciência, podendo surgir espontaneamente diante de algum gatilho. Ocorre, portanto, que algumas experimentações, em dança, surgem como momentos de gatilho para o trauma. O processo terapêutico não se trata, no entanto, de apenas reviver o momento traumático, pois a pura catarse pode reproduzir o trauma, sem qualquer auxílio. Acontece, assim, que em ambiente terapêutico a pessoa encontra segurança e suporte para atravessar os momentos de dor e chegar a um novo lugar, podendo experienciar o episódio traumático sem as deformações típicas de reações de defesa (como prender a respiração ou contrair os músculos). A partir daí, o indivíduo é capaz de finalmente processar e reintegrar o episódio traumático.

Nesse sentido, Beatrice (profissional) relata uma sessão especial de Movimento Autêntico, quando viveu uma experiência física e emocional muito intensa. Relata que estava muito cansada no dia seguinte, sentindo o impacto físico da experiência anterior: “E de repente ... algo clicou, que o que tinha sido acionado no dia anterior, de repente, me lembrou uma experiência que eu tive dezenove anos atrás, uma experiência muito difícil”. Após tal associação, Beatrice voltou a se envolver com esta memória evocada, não apenas reconhecendo que ela estava lá e que ainda doía, mas também, em suas palavras, “eu fui capaz de realmente deixar ir e processar isso de novo... então eu tive um grande e longo choro (...) e então não havia mais dor ou nada no meu corpo, eu não me sentia tão pesada...”.

A partir desse momento, em que não apenas seu corpo acessou a memória, mas Beatrice pôde também tomar consciência desta, foi preciso chorar, liberar e prosseguir o movimento que não foi possível de ser realizado durante a situação traumática. Para Beatrice, um aspecto importante que facilita a mudança na Dança Movimento Terapia e no Movimento Autêntico é exatamente a possibilidade de mover respostas incompletas ao trauma, que não foram capazes de serem expressas, anteriormente, na situação assustadora. Por meio do movimento, posteriormente, a pessoa pode expressar sentimentos dissociados ou não expressos, que foram suprimidos no momento do trauma, visto que, para suportar a situação, a pessoa se desconecta de seu próprio corpo. A reconexão entre corpo, sentimentos e memórias, então, é um dos aspectos terapêuticos mais fortes trazidos pela dança.

7 - Totalidade e Conexão

Comum na fala de participantes de abordagens corporais e na literatura especializada é a partilha de um sentimento de inteireza e unidade, fruto da conexão entre corpo, mente e espírito, advinda dos trabalhos com dança e movimento. Trata-se de um sentimento de se estar ancorado no corpo, plenamente presente, de ser inteiro, de ser quem se é, de ser autêntico, uma unidade indivisível. Esses sentimentos são aqui incluídos na categoria “totalidade e conexão”.

A relação com o tempo e com sua própria presença foi um dos maiores desafios expressos pela pesquisadora em seu diário de campo. Ela relata que a dança terapêutica lhe permitiu tanto perceber sua aceleração e seu desejo pelo novo, como exercitar a constância e a entrega ao momento presente.

A experiência do movimento nos permite estar plenamente no presente temporal, no “aqui e agora”. Reis (2012) explica que a Biodança é sentida pelos participantes como uma nova vivência do tempo, sendo uma abordagem que os ensina a viver no presente momento: “ao priorizar a vivência, a Biodança permite aos sujeitos uma experiência transformadora, em que (re)aprendem a viver o aqui-e-agora como abertura” (p. 30). Esse estado também é comumente relatado pelos entrevistados.

Lena (profissional) faz um paralelo entre a improvisação e o estado de presença, afirmando que, ao improvisar, “você vai estar sempre atualizando a presença”. Ariadne (cliente), por sua vez, comenta que “a dimensão terapêutica vem, para mim, de uma outra forma de você se presentificar. Presentificar no sentido de você estar inteira naquilo que você está vivendo naquele momento”. Isa (cliente) comenta, ainda, que o grupo favorece um ciclo de confiança entre as pessoas, permitindo que elas possam dançar, como igualmente ter liberdade para não dançar: “É um lugar onde a gente pode exercer o nosso estado de presença, essa possibilidade de deixar acontecer”.

As entrevistas revelam que a conexão com o próprio corpo traz um forte grau de presença e vitalidade, juntamente com a sensação de ser e ter todas as partes de si unidas e integradas, sem nada negar. As pessoas se sentem unas e coesas, espontâneas, funcionando de forma saudável na vida. Esse é o passo inicial para nos sentirmos, também, unos e conectados com tudo ao redor. Dessa forma, a consequência última da plena conexão consigo mesmo parece ser a conquista de um estado de transcendência e conexão com os outros e com o todo. Bernstein (1979), expoente da Dança Movimento Terapia, por exemplo, afirma que: “eu sinto que um dos mais importantes princípios em ambos processos rumo à unidade espiritual e à unidade pessoal é o conceito de estar no presente” (p. 112, tradução nossa).

O ápice da presentificação e da conexão com o próprio corpo é comumente relatado como uma experiência sagrada, um verdadeiro encontro com o numinoso: “estar completamente consciente (aware) do que existe no presente, tanto internamente como externamente, é a porta para experienciar o que existe em outros níveis de realidade, incluindo o mais básico: o eterno agora - energia pura” (Bernstein, 1979, p. 112, tradução nossa).

Portanto, é também a partir da epifania de fazer parte de um todo que um trabalho grupal com dança mostra sua potencialidade terapêutica. À medida que cada membro desenvolve uma qualidade de presentificação e aterramento ao próprio corpo e ao aqui e agora, o processo grupal vai ganhando força, impulsionando os processos individuais. Assim, dentro da totalidade de um grupo, processos de maior inteireza, autenticidade e aceitação de cada indivíduo vão ganhando corpo ao se conectarem com outros, como em um encontro de águas, em que se perdem as fronteiras.

Considerações Finais

Este trabalho teve como objetivo compreender como a dança, no âmbito de grupos terapêuticos, revela novas possibilidades de transformação. A partir dos achados empíricos discutidos à luz das teorias de base, identificaram-se tendências e convergências que deram origem a sete categorias de processos potencialmente transformadores no uso da dança e do movimento para fins terapêuticos. Dessa forma, esta pesquisa revelou que dançar se faz terapêutico na medida em que:

  1. Coloca o corpo em movimento, mudando perspectivas, criando novas realidades ainda não vistas e assim refinando nossa percepção de nós mesmos e do entorno;

  2. Permite uma maior conexão com o próprio corpo, levando-nos a focar atenção em sensações antes não identificadas, propiciando, assim, um processo de simbolização por referência direta. Além disso, o movimento surge como forma de expressão e sistema simbólico capaz de mediatizar a experiência humana para além da linguagem verbal;

  3. Propicia encontro e comunicação entre os membros do grupo, devolvendo-lhes um senso de reconhecimento, como um ser provido de valor, que faz parte de uma coletividade e tem algo a dizer. Além disso, a empática relação com o terapeuta e com os demais membros do grupo devolve importantes informações sobre cada indivíduo, que passa a estar mais consciente de seus padrões relacionais;

  4. A partir da interligação corpo-mente, os movimentos podem contribuir para o processamento e a integração de conteúdos até então não organizados;

  5. Sendo o movimento um grande espelho de nossos modos de funcionamento habituais, as atividades no salão podem revelar importantes associações e metáforas sobre características comumente presentes no cotidiano;

  6. Sendo o corpo ao mesmo tempo o invólucro e a própria mensagem retida e não processada após um evento traumático, o movimento pode funcionar como um gatilho capaz de desencadear a evocação de memórias;

  7. Propicia aterramento, presentificação e unidade, fortalecendo uma sensação de totalidade e conexão consigo mesmo e com tudo ao redor.

Diante desses processos, chegamos à conclusão de que são diferentes os caminhos de transformação trilhados a partir de uma terapia baseada na dança e no movimento em comparação com uma terapia eminentemente focada na fala. Aqui, não estabelecemos uma relação de hierarquia entres esses tipos de abordagem, mas sublinhamos que processos terapêuticos distintos acontecem quando falamos e quando dançamos. A partir daí, cabe a cada indivíduo identificar qual perspectiva terapêutica mais se afina ao seu estilo e à sua necessidade.

Entender o que acontece nas práticas aqui apresentadas nos ajuda a compreender como funcionam, lançando luz sobre o que é útil do ponto de vista de participantes e facilitadores. Visitando esses trabalhos, pudemos construir um conhecimento dialogado entre ciência e vivência, contribuindo, assim, para a formação de futuros profissionais interessados na potencialidade terapêutica do corpo em movimento na clínica.

Aqui, buscou-se oferecer uma visão global e didática dos resultados alcançados, auxiliando, assim, os terapeutas na construção de possíveis intervenções clínicas inspiradas nos processos apresentados. Por fim, pode-se dizer que toda jornada de autoconhecimento passa por momentos de fixação de sentido, de estagnação existencial e de paralisação diante das dificuldades. Assim sendo, até mesmo uma psicoterapia prioritariamente focada na fala pode se beneficiar dos aprendizados trazidos pelas terapias com foco na dança. Afinal, toda psicoterapia é, independentemente da abordagem, um modo de recolocar a vida em Movimento.

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de doutorado da primeira autora (FUNCAP - Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), com período de Doutorado Sanduíche no Exterior financiado pela CAPES (PDSE).

Referências

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Recebido: 16 de Abril de 2020; Revisado: 01 de Abril de 2022; Aceito: 15 de Abril de 2022

Rafaella Medeiros de Mattos Brito Rua Barbosa de Freitas, 200 apt. 2000, Meireles, Fortaleza - CE, Brasil. CEP 60170-020, Endereço eletrônico: rafaellammb@gmail.com

Idilva Maria Pires Germano Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Avenida da Universidade, 2762, Benfica, Fortaleza - CE, Brasil. CEP 60020-180, Endereço eletrônico: idilvapg@gmail.com

Zulmira Aurea Cruz Bomfim Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Avenida da Universidade, 2762, Benfica, Fortaleza - CE, Brasil. CEP 60.020-180 Endereço eletrônico: zulaurea@gmail.com

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