Os índices de suicídio vêm aumentando a cada ano. Dados epidemiológicos da Organização Mundial de Saúde apontam que mais de 800.000 pessoas no mundo cometem suicídio a cada ano, o que equivale a uma pessoa a cada 40 segundos, sendo a segunda principal causa de morte em jovens com idade entre 15 e 29 anos (World Health Organization, 2014). No Brasil, entre 2011 e 2015 foram notificados no Sistema de Informação e Agravos de Notificação (SIAN) cerca de 55.649 óbitos por suicídio, com uma média de 5,5/100 mil habitantes, variando de 5,3 em 2011 a 5,7 em 2015, com as maiores taxas nos Estados do Rio Grande do Sul (10,3), Santa Catarina (8,8) e Mato Grosso do Sul (8,5) (Ministério da Saúde, 2017).
O termo ideação suicida se distingue do comportamento suicida (tentativa de suicídio) e ação consumada. O primeiro é descrito como um pensamento, consideração ou planejamento enquanto o segundo pode estar relacionado a autolesão, automutilação e a tentativa de suicídio sendo comportamentos autodirigidos, potencialmente prejudicial e não fatal. A principal diferença entre as autolesões, automutilações e tentativas de suicídio, é que as duas primeiras não costumam apresentar intenção de morte, enquanto na tentativa de suicídio existe a intenção. Já o suicídio é a morte causada por comportamento intencional e lesivo (Baptista, 2019). A presença de ideação suicida e tentativas de suicídio tem aumentado nos últimos anos entre os jovens com a faixa etária que coincide com o período universitário ou ainda a fase de transição do ensino médio para a universidade (World Health Organization, 2014). Uma possível explicação para este fenômeno está relacionada aos desafios pelo novo modo de vida imposto aos estudantes, o qual exige a adaptação à dinâmica grupal bastante flexível. Aqueles que não conseguem estabelecer uma rede de apoio dentro do contexto acadêmico, ou que experienciam um sentimento de não pertencimento, podem vir a desenvolver sofrimento relacionado a dificuldade de adaptação a esta nova realidade (Ariño & Bardagi, 2018).
Apesar de alguns jovens recém-ingressados na vida acadêmica conseguirem ultrapassar várias barreiras (e.g. apego e dependência familiar, experiências afetivas e emocionais infantis), uma parcela chega à universidade com expectativas normalmente irreais (e.g. local de diversão e de encontro de amigos) sobre o que realmente abarca a vida universitária (Zanon et al., 2014). Sabe-se que tais expectativas podem contribuir para o aumento dos níveis de estresse e ansiedade, sobretudo durante o primeiro ano na vida acadêmica, onde os estudantes enfrentam uma série de desafios associados às dimensões acadêmica, social, pessoal, institucional e vocacional (Carlotto et al., 2015).
Nos âmbitos acadêmico e institucional, dificuldades relacionadas ao novo ritmo e estilo de estudo, ao sistema de avaliação e às regras burocráticas da universidade podem ser importantes estressores para os universitários. Da mesma forma, aspectos pessoais e vocacionais, como o desenvolvimento de uma identidade profissional e o comprometimento com a formação acadêmica, representarão importantes desafios para os estudantes (Carlotto et al., 2015), o que pode deixá-los vulneráveis ao desenvolvimento de sintomas psicopatológicos, como estresse, ansiedade e depressão (Hirsch & Barton, 2011; Zanon et al., 2014). De fato, foi sugerido por alguns autores que os sintomas depressivos são os principais mediadores da relação entre estresse e risco de suicídio em estudantes universitários (Hirsch et al., 2019a). No entanto, embora todos os estudantes precisem se adaptar ao contexto universitário, nem todos passarão por dificuldades de adaptação e dentre os que passam por problemas adaptativos, nem todos irão desenvolver transtornos mentais ou apresentar risco de suicídio (Lim & Kim, 2019).
Nesse sentido, uma revisão sistemática evidenciou que os estudantes universitários que apresentam histórico de eventos pessoais traumáticos, insônia e desesperança costumam apresentar maior risco para o desenvolvimento de ideação e/ou tentativas de suicídio (Li et al., 2020). No entanto, os autores(as) não incluíram estudos que tenham investigado exclusivamente a ideação suicida e nem exploraram os fatores de risco acadêmicos associados a ideação e tentativas de suicídio.
Alguns autores sugerem que, além dos fatores pessoais, os fatores acadêmicos e contextuais influenciam significativamente a adaptação do estudante à vida universitária. Esses fatores estão mais associados à vida acadêmica, como por exemplo, à relação que o estudante estabelece com a universidade e o curso, o processo de aprendizado, a relação com o corpo docente, a adaptação com a estrutura física da instituição e o conhecimento de informações básicas do meio universitário (McLaughlin & Gunnell, 2020; Pinho et al., 2015), sendo sugerido que estudantes com dificuldades acadêmicas (e.g. notas baixas e reprovações) apresentam entre 5 e 30 vezes mais risco de suicídio (McLaughlin & Gunnell, 2020).
Observa-se assim, a existência de diversos fatores de risco relacionados à ideação e tentativas de suicídio em estudantes universitários. No entanto, até onde se tem conhecimento, não existem estudos de revisão integrativa, sistemática ou de escopo que tenham reunido e sintetizado os fatores de risco acadêmico. Assim, considerando a vulnerabilidade dos estudantes universitários face aos desafios que encontram no ambiente acadêmico, o presente estudo objetiva investigar os fatores de risco acadêmicos associados à ideação suicida e tentativas de suicídio em estudantes universitários.
Método
Foi conduzida uma revisão de escopo, seguindo os passos propostos pelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses: Scoping review extension (PRISMA-SCR) (Page et al., 2021; Tricco et al., 2018), com o intuito de responder a seguinte questão: “Quais são os fatores de risco acadêmico associados à ideação suicida e tentativas suicida em estudantes universitários?”. As buscas por artigos foram realizadas em setembro de 2020 nas seis principais bases de dados que indexam publicações da área da saúde (Pubmed, BVS, PsycINFO, Web of Science, Science Direct e Scopus) usando as seguintes palavras-chave: ("Suicidal Idea*" or "suicide attempt*" or "suicidal thought*" or "suicidal behavior*" or suicide or suicidal) and ("risk factors") and ("university students" or "college students"), com exceção da base “Science Direct” na qual foi necessário remover as aspas porque as palavras-chave não eram reconhecidas. Todos os descritores foram consultados nos dicionários de descritores na área da saúde MeSH da base de dados PubMed e Thesaurus, da PsycINFO.
Após realização das buscas nas bases de dados, os artigos foram exportados para o “Rayyan QCRI” (um website gratuito que ajuda autores de Revisões Sistemáticas, integrativas ou de escopo a realizar o processo de seleção dos artigos de forma rápida e prática). Todo o processo de seleção e elegibilidade dos estudos foram conduzidos no Rayyan (Olofsson et al., 2017; Ouzzani et al., 2016). O processo de seleção dos artigos foi realizado de forma independente inicialmente por 4 juízes, e posteriormente outros 2 juízes mais experientes solucionaram os casos de discordância. Foram utilizados como critérios de inclusão dos artigos: 1) estudos com amostra de estudantes universitários (graduação) com idade igual ou superior a 18 anos; 2) que discorressem sobre os estressores acadêmicos associados à ideação e/ou tentativa de suicídio. Já os critérios de exclusão foram excluídos: 1) os artigos repetidos; 2) revisões de literatura; 3) teses, dissertações e outros tipos de publicações que não passaram pelo processo de revisão por pares; 4) estudos que abordaram exclusivamente autolesão ou automutilação sem intenção suicida.
Foram encontrados inicialmente 1901 artigos. Após aplicação dos critérios de inclusão e exclusão restaram 10 artigos para inclusão e análise nos resultados desta revisão. A Figura 1 ilustra como foi o processo de busca e tratamento dos artigos.
Resultados
A Tabela 1 resume os dez estudos usados na análise. Nela consta método e objetivo de cada pesquisa, resultados alcançados, os fatores de risco ao suicídio e as comorbidades associadas aos estressores acadêmicos. Em geral, os estudos foram desenvolvidos seguindo método transversal e quasi-experimental, cujos resultados apontam, na sua maioria, que os estressores acadêmicos geram sofrimento e estão associados a aumentos no risco de ideação e tentativas de suicídio.
Referência | Método | Objetivo | Resultado | Indicador de risco ao suicídio |
---|---|---|---|---|
1 McLaughlin & Gunnell (2020) |
Documental(n = 37 registros de mortes de universitários, Reino Unido) |
Identificar fatores de risco para suicídio entre universitários do Reino Unido entre 2010 e 2018 | A maioria dos alunos falecidos não tinha companheiro atual (n= 32, 86.5%); (243%) apresentavam dificuldades recentes de relacionamento e (2 7.0%) apresentavam alguma evidência de isolamento social | Tentativas de suicidio |
2. Duffy et al. (2020) |
Longitudinal (n -1 530 universitários do primeiro ano, Canadá) | Examinara persistência dos sintomas de saude mental e dos fatores psicossociais e de estilo de vida do s estudantes |
14% dos estudantes relat aram pensamentos suicidas e 1.6% tentativas de suicídio. Fatores psicossociais e de estilo de vida foram associados saúde mental positiva na conclusão do primeiro ano | Ideação suicida e Tentativas de suicídio |
3. Bakken (2020) |
Transversal (n=1.153 universitarios, EUA) |
Examinar os fatores de risco psicossociais de autolesão e de idea ção suicida em universitário s | 8% dos estudantes relataram ideação suicida. Oricntação não heterossexual, vitimização sexual. usd de substâncias, depressão, baixa autoestima e autoeficácia foram associa dos com maior probabilidade de ideação suicida | Ideação suicida |
4.Nieto et al. (2018) |
Transversal (n=1842 universitãrios_ Porto Rico) | Descrever o peifil de estudantes universitários que tentaram suicídio | 2.5 % tentaram suicidio. Esses estudantes reportaram sentimentos de ande da de e solidão, além de dificuldade para controlar as emoçòes | Tentativas dc suicidio |
5 Km e Cha (2018) |
Transversal (291 universitários, Corea do Suf) |
Desenvolver um modelo teõrico para explicara ideação suicida em universitários | O pertencimento e a depressão apresentaramalta capacidade preditiva de ideação suicida. Somente o pertencimcnto explica 37% da ideação suicida | Ideação suicida |
6.Drum et al. (2017) |
Transversal (26742 universitários. EUA) |
Explorar a relação entre o senso de coerência, conectivida de e o comportamerto suicida | Senso de coerência mitigou o impacto de vulnerabilidades preexistentes, enquant o a conectividade mitigou o impacto da angústia | Ideação suicida e Tent ativas de suicídio |
7. De Luca et al. (2016) |
Transversal <26451 universitários, EUA) |
Examinar as associações entre ideação suicida e desempenho acadêmico nos universitários dos primeiros dois anos. | Universitários combaixo desempenho acadêmico apresentarampior saúde mental e maiorideação suicida. Maior conectividade atua como fator protetivo a ideação suicida c aumenta o desempenho academico | Ideação suicida |
8.Cala e Casmllòn (2010) |
Transversal (172 universitários, Colômbia) |
Explorar componentes do estilo de vida dos estudante s da Faculdade de Psicologia da Universidade de Manizales | 14.8% apresentaram risco de suicídio. Desses, 92% eram, de Manizalese apresentavam problemas de funcionalidade familiar e social | Ideação suicida |
9.Engin et al. (2fl®9) |
Transversal (1992 universitários. Turquia) |
Examinara prevalência de pensamentos suicidas de universitários do primeiro ano |
2.4% dos estudantes apresentaram ideação suicida e 11,2% já haviam tentado suicídio. Os principais fatores de risco para ideação suicida foram: transtornos mentais, problema s emocionais, ac adêmic os e familiares | Ideação suicida e Tentativas de suicídio |
10.Poch, et al (2004) |
Transversal (1277 universitários, Espanha) |
Analisar as relações entre desesperança, depressão, psicopatologia e ideação Suicida | Foi observada associação positiva significativa entre desesperança, depressão eideação suicida | Ideação suicida |
Categorias de Análise
A partir da análise criteriosa dos 10 artigos incluídos, os principais fatores acadêmicos associados a ideação e tentativas de suicídio foram agrupados em três categorias para a apresentação e discussão dos resultados: 1) relacionamento social com pares; 2) relacionamento social com professores e orientador; e 3) adaptação ao ambiente acadêmico (Tabela 2). Ademais, os artigos abordam ainda fatores ambientais extra-acadêmicos (e.g. suporte familiar inseguro, falta de afiliação religiosa ou partidária, vulnerabilidade socioeconômica) e fatores psicopatológicos (e.g. transtornos de ansiedade e depressão). Contudo, a análise destes fatores extra-acadêmicos não foi o objetivo do presente estudo.
Nr | Relacionamento social com pares | Relacionamento social com professores e orientador | Adaptação ao ambiente académico |
---|---|---|---|
1 | A maioria dos estudantes que morreram não tinha companheiro atual (n = 32, 86,5%);pelo menosnove (24.3%) tiveram dificuldades de relacionamento ou rompimentos recentes e pelo memos 10 (27,0%) apresentaram alguma evidencia de isolamento social (morar sozinho outer poucas amizades). | N3o avaliado | Dificulda des acadêmkas (ano s repetidos, mudança de curso e Suspensão de estudos foram todas asso ciadas a umrisco aumentado de 5 a 30 vezes). |
2 | Niveisbaixos de conexão e esfotço social na academia. | Não avaliado | Não avaliado |
3 | Apoio social e de pares prejudica do | Não avaliado | Níveis elevados de ansiedade acadêmica |
4 | Isolamento social/relacionamentos pessoais. | Não avaliado | Não avaliado |
5 | Não avaliado | Não avaliado | Pertencimento adaptação |
6 | C onectividade | Não avaliado | Não avaliado |
7 | Conectividade | Não avaliado | Desempenho academico = propósito de estudo. |
8 | Relacionamento com amigos e colegas da universidade. | Relacionamento com professores e tutores da universidade | Estilo de vida dos estudantes da Faculdade. |
9 | Não avaliado | Não avaliado | Problema scorn a escola. estudantes com um perfil escolar baixo. |
10 | Não avaliado | Não avaliado | Processo de adaptação a universidade |
Relacionamento Social com Pares
Nesta categoria, sete artigos (arts.1-4, 6-8) abordam os estressores relacionados com a conectividade e/ou relacionamento social nas interações entre os universitários. Os resultados do art.4 demostram que cerca da metade da amostra informou necessitar da aprovação de pessoas próximas para avançar em seus projetos. Foi observado que indivíduos que tentaram suicídio frequentemente reportavam sentimento de solidão, apresentando dificuldade em fazer amizades e se sentiam insatisfeitos com seus relacionamentos pessoais (Nieto et al., 2018).
O art.1 aponta que a maioria dos estudantes que morreram por suicídio não tinha companheiro atual (n = 32, 86,5%), pelo menos nove (24,3%) tiveram dificuldades de relacionamento ou rompimentos recentes e 10 (27,0%) apresentaram alguma evidência de isolamento social (i.e. morar sozinho ou ter poucas amizades - McLaughlin & Gunnell, 2020). Já, o art.2 ao analisar os fatores como autoestima, estresse, suporte social, qualidade do sono e frequência de exercícios, no final do primeiro ano de graduação, indica que os sintomas de ansiedade e depressão foram associados a notas mais baixas, enquanto a ansiedade e os sintomas depressivos, foram associados a níveis mais baixos de conexão escolar no final do ano letivo. Ademais, os autores(as) destacam que, para alguns, as adversidades durante o período de adaptação podem aumentar as chances de desenvolvimento de sintomas clinicamente significativos, como ideação suicida e/ou tentativas de suicídio. No entanto, a conectividade e outros fatores psicossociais (e.g. suporte social) estavam associados a melhor saúde mental ao final do primeiro ano de graduação (Duffy et al., 2020).
Já o art. 3, destaca que universitários de minorias sexuais são três vezes mais propensos a lesões não suicidas e apresentam duas vezes mais chances de relatar ideação suicida. Tal achado demonstra a necessidade de se oferecer educação em saúde mental, especialmente para calouros, sobretudo considerando que isso pode fornecer aos estudantes uma maior compreensão dos sintomas de depressão, ansiedade ou baixa autoestima, reduzindo o estigma dos transtornos mentais e trazendo conscientização aos estudantes demais estudantes do campus (Bakken, 2020).
Na mesma linha, o art.6 explora a relação entre senso de coerência e conectividade com ideação suicida e tentativas de suicídio entre estudantes universitários. Este estudo examinou duas qualidades que refletem como os alunos vivenciam seu mundo e, subsequentemente, incorporam essas experiências em suas autoavaliações. Cada qualidade do self (senso de coerência e conexão social) demostrou ter propriedades protetoras capazes de moderar os efeitos da vulnerabilidade e inibir processos patológicos (i.e. risco de suicídio). Enquanto o senso de coerência apresentou associação mais robusta com a redução da tendência suicida, ambas as qualidades protetoras do self demonstraram a capacidade de moderar o impacto da vulnerabilidade e angústia no desenvolvimento de pensamentos e comportamentos suicidas, sendo sugerido que a conexão social e o senso de coerência devem ser incluídos em futuros programas de prevenção ao suicídio (Drum et al., 2017).
O art.7 parte de uma perspectiva similar ao examinar as associações entre ideação suicida e desempenho acadêmico, focando na influência do nível de conexões sociais dos estudantes. Observou-se que a ausência de conexão social está associada a maior risco de suicídio e a baixo desempenho acadêmico. Ademais, os alunos que relataram menos atividades extracurriculares, especialmente aqueles com ideação suicida recente, também relataram uma média de notas mais baixa. Constatou-se ainda que as relações sociais mais complexas geralmente se intensificam durante a faculdade e esses mecanismos oferecem oportunidades para gerenciar transições de desenvolvimento, podendo trazer benefícios para a saúde mental e os resultados acadêmicos. Nesse sentido, as atividades extracurriculares foram apontadas como fatores de proteção, sobretudo por estarem associadas ao apoio de colegas (De Luca et al., 2016).
Por fim, o art. 8 buscou explorar alguns componentes do estilo de vida de estudantes universitários sob o ponto de vista da interação com colegas, professores e tutores. No que diz respeito ao relacionamento com colegas da universidade, a pesquisa mostra que a ideação suicida estava comumente associada aos universitários com pouco suporte social (Cala & Castrillón, 2010).
Relacionamento Social com Professores e Orientador
O relacionamento social com professores e orientador é uma categoria menos encontrada nos artigos analisados. No entanto, isso não significa que esse fator seja menos importante. Embora os professores e/ou orientadores sejam elementos promotores da motivação e integração dos estudantes, este fator acadêmico foi investigado somente no art.8, o qual observou ascendência significativa no índice de relacionamento entre os estudantes e os professores, de 23,53% no primeiro semestre, para 46,67% no último semestre da graduação (Cala & Castrillón, 2010).
Adaptação ao Ambiente Acadêmico
Cinco artigos discorreram sobre esse fator (art.1, art.3, art.5, art.9 e art.10). Dentro desta categoria se destaca o nível de exigências em relação ao processo de formação, a adaptação a um novo contexto, ansiedade acadêmica, novas rotinas de sono, novas demandas de organização de tempo e estratégias de estudo. Tais aspectos podem ser considerados fatores de risco porque demandam do estudante um amadurecimento comportamental para enfrentar as exigências acadêmicas. No art.1 quase metade (n = 18; 48,6%) das vítimas de suicídio experimentaram um ou mais dos três indicadores de dificuldade acadêmica: 1) repetiu de ano; 2) mudou de curso; 3) suspendeu os estudos (McLaughlin & Gunnell, 2020). Por outro lado, no art.3 níveis mais elevados de ansiedade acadêmica foram observados em estudantes com autolesão não suicida (7%) e ideação suicida (8%), sendo observado que os fatores orientação sexual não heterossexual, vitimização sexual, uso de substâncias, depressão, baixa autoestima e autoeficácia estavam associados com probabilidade significativamente maior de autolesão não suicida e ideação suicida, além de contribuem para o aumento da ansiedade e dificuldade de adaptação ao meio acadêmico (Bakken, 2020).
Na mesma linha, o art.5, ao analisar os fatores de risco para ideação suicida, sugere associação entre a ideação suicida de estudantes universitários, e os fatores depressão, pertencimento e adaptação ao ambiente acadêmico. Os resultados deste estudo apontam ainda que o sentimento de pertencimento ao meio acadêmico foi capaz de predizer em até 37% a ideação suicida em estudantes universitários coreanos, ou seja, indivíduos com baixo sentimento de pertencimento estão em maior risco para o surgimento de ideação suicida (Kim & Cha, 2018).
Já o art.9 foi realizado com a participação de estudantes do primeiro ano universitário. Em relação a adaptação ao meio acadêmico, o estudo descreve que mais da metade (63,7%) dos estudantes universitários apresentaram problemas com a universidade, sendo demonstrado que além do problema com a adaptação na universidade comprometer o aproveitamento acadêmico, também é um fator de risco para ideação suicida (Engin et al., 2009). Outrossim, o art.10 avaliou a relação de desesperança com o processo de adaptação à universidade. Os resultados obtidos indicam que 13,9% dos estudantes apresentam níveis moderados ou altos de desesperança. Os autores(as) destacam que os estudantes com maiores níveis de desesperança estavam insatisfeitos com diferentes aspectos da vida universitária, gastavam menos tempo em atividades extracurriculares, costumavam faltar em dias de atividades avaliativas e eram mais propensos a apresentarem ideação suicida (Poch et al., 2004).
Discussão
Essa revisão objetivou investigar os fatores de risco acadêmicos associados à ideação e tentativas de suicídio em estudantes universitários. Embora a literatura sobre essa temática seja escassa, os resultados de 10 estudos foram recuperados e sintetizados. Essa revisão de escopo constatou que os principais fatores acadêmicos associados a maior risco de ideação suicida e tentativas de suicídio foram as redes de relacionamento ou de interação social inadequadas, principalmente com os pares e familiares, somente um estudo discorreu sobre a relação com os professores e orientador. Ademais, também foram localizadas correlações positivas e significativas entre dificuldade de se adaptar ao meio acadêmico, ideação suicida e tentativas de suicídio.
Esses achados estão alinhados com os pressupostos teóricos de autores clássicos no campo do suicido. Nesse sentido, Durkheim (2000) defende que o relacionamento social desempenha um papel importante na vida das pessoas sendo, um importante fator protetor aos comportamentos suicidas. Nesse mesmo sentido, o isolamento social é um fator de risco ao suicídio, pois o ser humano necessita de conexões sociais para manter o seu bem-estar. Nessa mesma linha Hirsch et al. (2019b) observou que a falta de integração social entre os estudantes em ambientes acadêmicos pode gerar sofrimento e impactar no comportamento suicida, seja ele de ideação ou de tentativa de suicídio.
Ainda sobre as redes de relacionamento, entre os pares, a atitude de competitividade é comum em ambientes universitários e uma das principais dificuldades dos estudantes em relação aos colegas costumam ser a percepção de postura individualista. Não é incomum que assumam posturas de falta de apoio e até mesmo de rivalidade ao invés de os colegas cooperarem entre si. A postura competitiva durante a academia se verifica não só entre os calouros mas também entre aqueles que estão na fase final de formação, fazendo com que a rivalidade seja uma atitude recorrente impactando assim a vida emocional (Santos et al., 2015). Assim, ambientes acadêmicos pouco colaborativos e com conflitos entre os pares ou entre estudante e professor/orientador podem contribuir para criar uma postura negativa em relação à universidade levando ao isolamento social, clima de ódio, frustração, sentimentos de solidão, desesperança, medo e estresse (Leite Filho & Martins, 2006).
Nesse sentido, observa-se que nossos achados estão alinhados com os estressores acadêmicos comumente reportados na literatura. Ademais, o sentimento de desesperança associado as dificuldades nas relações sociais, o qual foi apontado ao longo de nossa revisão como um importante fator de risco, é corroborado por Hirsch et al. (2019b) que, ao examinarem a desesperança como mediadora da relação entre eventos negativos de vida e comportamento suicida, concluíram que quanto maior for o número de eventos negativos, maior é a desesperança e maior ainda é o risco de suicídio.
Embora separada em categoria diferente para apresentação de nossos resultados, a adaptação ao meio acadêmico está associada as redes de relacionamento social, sendo sugerido por alguns autores que a adaptação ao ambiente universitário é elemento crucial na saúde mental dos universitários. Existindo evidências de que indivíduos com problemas sociais, com pares, familiares tendem a estar mais vulneráveis aos conflitos existenciais, sintomas psicopatológicos e, em casos extremos, a ideação suicida (Machado et al., 2020).
Ainda sobre a adaptação, nossos achados são corroborados por Porto e Soares (2017), os quais sugerem que o ingresso no ensino superior representa para muitos discentes a esperança de encontrar um cenário diferente do frequentado no ensino médio, com perspectiva de encontrar atitudes acolhedoras dos docentes e da instituição para solucionar problemas prévios (e.g. familiares, sociais). Tais expectativas comumente não são atendidas o que leva os estudantes à frustração e, em alguns casos, ao desenvolvimento de sintomas psicopatológicos.
Como possível forma de aprimoramento as relações entre os colegas e a adaptação ao meio acadêmico, alguns autores sugerem que as universidades deveriam investir mais na promoção de um clima de interação saudável, buscando formas de motivar os estudantes a colaborarem entre si para tornar mais fácil o desafiante processo de construção de conhecimentos e atitudes. Nesse sentido, encoraja-se a criação de centros de diversão/recreação onde os estudantes possam se conectar e desenvolver uma atitude de pertencimento ao grupo e cooperação nas atividades acadêmicas (Mahoney, 2004; Santos & Soares, 2011).
Na mesma linha, outros pesquisadores destacam a importância de compreender a natureza dos vínculos formados entre os colegas de graduação para que as coordenações de cursos e os professores estimulem o desenvolvimento de atividades extracurriculares em grupo. Estes por sua vez devem garantir uma hierarquia menos rígida, pautando-se na formação de laços de amizade e, por conseguinte, na adaptação acadêmica, uma vez que os amigos, muitas vezes, facilitam o entendimento de conteúdos e de processos burocráticos dentro da universidade. É relevante ainda que coordenações de cursos e docentes atentem para a criação de um ambiente de interações saudáveis, já que é mais difícil a criação de vínculos sinceros e de uma cultura de ajuda mútua em contextos de relacionamentos hostis. Ademais, além de atitudes mais acolhedoras por parte das coordenações de curso e professores, também é importante encontrar formas de tornar mais acessíveis as informações básicas sobre regras da universidade e obrigações acadêmicas dos jovens calouros (Santos, Oliveira & Dias, 2015).
Observa-se assim que para os jovens calouros a conexão e/ou boas relações sociais com os pares, professores ou orientador pode garantir o suporte social na universidade e evitar situações de estresse, ansiedade, ideação suicida e tentativas de suicídio. Neste contexto, a conectividade e o apoio social são fatores de proteção à ideação e tentativa ao suicídio. Tal achado é corroborado pela teoria das três etapas de Klonsky e May (2015), a qual descreve que a conectividade (apoio social, a manutenção de boas relações familiares, com os pares, na escola e noutros campos de âmbito social) protegem contra a ideação e tentativa ao suicídio. Portanto, estar conectado com outros (pares, professores, outros funcionários da universidade) impedem que o estudante fique no isolamento social o que pode impactar na frustração e pensamentos de sofrimento e até de ideação suicida.
Destaca-se que a teoria dos três fatores foi testada e confirmada empiricamente por Dhingra et al. (2019) em uma amostra de estudantes universitários do Reino Unido. A pesquisa envolveu 665 estudantes, com idade entre 17 a 67 anos e uma das principais conclusões foi que a conectividade é um fator chave de proteção contra a ideação suicida, tanto nos estudantes com altos escores de dor psicológica (sofrimento) quanto de desesperança. Houve uma correlação de magnitude moderada entre conectividade (escore reverso, i.e. quanto maior o escore menor a percepção de conectividade) e o desejo suicida (r = 0,51). Portanto, em situações em que o sujeito (estudante) vive numa situação de sofrimento ou dor por algumas circunstâncias acadêmicas (e.g. adaptação ao nível de exigência e novas demandas de organização de tempo escolar, novas rotinas de sono, etc), a conectividade com os pares, professores e pessoal técnico administrativo pode auxiliar os indivíduos a não apresentarem respostas que põe risco a sua vida, como a ideação e a tentativa ao suicídio (Dhingra et al., 2019). Sendo assim, observa-se que os principais achados dessa revisão de escopo estão alinhados com a teoria dos três fatores de Klonsky e May (2015).
Ainda que o estudo tenha proporcionado contribuições para a identificação dos fatores de risco acadêmicos associados a ideação e tentativa de suicídio em estudantes universitários, algumas limitações foram identificadas como o fato dos artigos não abordarem exclusiva e especificamente os estressores acadêmicos sem envolver outros fatores de risco (extra academia). Em relação às limitações desta revisão, embora as buscas por artigos científicos tenham sido realizadas em seis das principais bases de dados da área da saúde, é possível que outros estudos relevantes estejam indexados em outras bases. Ademais, não foram utilizadas ferramentas para análise da qualidade dos estudos incluídos nessa revisão (e.g. ROBINS-I, ROB-2) e não realizamos nenhum tipo de análise quantitativa dos resultados (e.g. metanálises). Sendo assim, recomenda-se tanto a realização de revisões sistemáticas com ou sem metanálises que analisem a qualidade e o risco de viés da literatura disponível sobre fatores de risco acadêmicos associados à ideação e tentativas de suicídio em estudantes universitários, como o desenvolvimento de novos estudos empíricos que busquem explorar de forma mais aprofundada os estressores acadêmicos, pois conforme exposto nessa revisão, existe pouca literatura sobre o assunto.
Ademais, aconselha-se a realização de novos estudos preditivos que confirmem o achado de que o sentimento de pertencimento é capaz de predizer 1/3 da ideação suicida em universitários (Kim & Cha, 2018), como o desenvolvimento de programas de intervenção ao suicídio em universitários que abordem e auxiliem no manejo do sentimento de pertencimento. Nesse sentido, recomenda-se que novos programas de prevenção e/ou intervenção ao suicídio em universidades utilizem tanto estratégias para o aprimoramento da conectividade como do senso de coerência, visto que as evidências sugerem que esses fatores podem aprimorar a eficácia dos programas de prevenção/intervenção ao suicídio nas universidades. Por fim, o desenvolvimento de atividades recreativas no campus universitários é incentivado, visto que existem evidências de que o envolvimento em atividades extracurriculares pode aprimorar a relação entre os pares e por consequência o sentimento de pertencimento a universidade, auxiliando na prevenção ao suicídio.