Uma das suposições basilares da psicopatologia e psicologia do desenvolvimento infantil é a de que experiências vivenciadas na infância e adolescência influenciam o funcionamento e ajustamento na fase adulta. Dentro do universo dessas experiências, os Eventos Estressores Precoces (EEPs) se referem a diversas experiências traumáticas, tipicamente crônicas e recorrentes, que podem ocorrer no ambiente familiar ou social, associadas a danos, sofrimento e prejuízos ao desenvolvimento cognitivo, comportamental, emocional, social e físico (Kalmakis & Chandler, 2014). Os principais subtipos de EEPs são os abusos físico, emocional e sexual, e as negligências emocional e física, que, frequentemente, ocorrem em conjunto (Costa et al., 2019; Kalmakis & Chandler, 2014).
Stoltenborgh et al. (2015), em uma meta-análise sobre a prevalência mundial de EEPs, apontaram taxas de prevalência de 16,3% para negligência física e 18,4% para a emocional, 22,6% de abuso físico, 36,3% de abuso emocional, e 7,6% de abuso sexual para meninos e 18% para meninas. No Brasil, as crianças e adolescentes constituem o grupo vulnerável de maior número de denúncias registradas, cerca de 55%, através do Disque 100 (Brasil, 2019), que consiste em um serviço telefônico de recebimento, encaminhamento e monitoramento de denúncias de violação de direitos humanos. Em 2019, foram registradas 86.837 denúncias de violações contra crianças e adolescentes, sendo 38% de negligência, 23% de violência psicológica, 21% de agressão física, e 11% de agressão sexual (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2019).
Sabe-se ainda que esses dados são subdimensionados, sendo, provavelmente, os números reais maiores do que os apontados pelos os registros de denúncias. Um dos principais motivos pelos quais a violência contra crianças permanece obscura é a relutância de muitas vítimas em revelar seu abuso, buscar ajuda para lidar com a experiência ou tomar medidas para se proteger de novas vitimizações. Além disso, parte dos maus-tratos infantis são utilizados muitas vezes como formas de castigo e educação, como é o caso dos abusos e negligências emocional e física, vistos em muitos lugares como formas legítimas de disciplina (United Nations Children’s Fund [UNICEF], 2017). As consequências físicas e psicológicas dos EEPs são variadas, e é sabido que adultos com histórico de abuso sexual, físico e/ou emocional, e negligência física e/ou emocional apresentam um risco aumentado de desenvolver distúrbios internalizantes (Lim & Barlas, 2019; Wright et al., 2009).
Estudos atuais têm indicado que o efeito da exposição aos maus tratos na infância não seria direto, mas que haveria diferentes variáveis cognitivas e emocionais que funcionariam como mediadoras dessa relação (Costa et al., 2020). Assim, é possível analisar as consequências dos EEPs a partir de algumas teorias, dentre elas a terapia do esquema (TE) (Young et al., 2008) que, embora inicialmente tivesse restritamente um foco clínico, atualmente é um dos modelos cognitivos atuais de personalidade mais importante (Costa et al., 2020).
Relacionados a sintomatologias disfuncionais e vulnerabilidades para diagnósticos de saúde mental estão os esquemas iniciais desadaptativos (EIDs), foco da TE (Estévez et al., 2017; Young et al., 2008). Frequentemente tratados apenas pelo termo esquemas, os EIDs são entendidos como temas amplos e difundidos sobre si e sobre o relacionamento com os outros; formados por memórias, emoções e sensações corporais; desenvolvidos durante a infância e elaborados ao longo da vida; e disfuncionais em um nível significativo (Young et al., 2008).
Young et al. (2008) identificaram 18 esquemas, organizados em cinco domínios. Quanto à origem destes, a TE propõe que todos os seres humanos, em graus diferentes, têm cinco necessidades emocionais fundamentais (vínculos seguros; autonomia; validação emocional; espontaneidade e lazer; e limites realistas e autocontrole), e quando essas necessidades são frustradas em maior ou menor grau, a partir de uma combinação das primeiras experiências de vida e o temperamento da criança, o indivíduo estará predisposto ao desenvolvimento de um EID (Lim & Barlas, 2019).
Dentre essas primeiras experiências, encontram-se as nocivas, que configuram a origem básica dos EIDs (Young et al., 2008). Essas experiências são divididas em quatro categorias: frustração nociva das necessidades; traumatização/vitimização; indulgência/superproteção; internalização seletiva. As vivências de abuso e negligência, que constituem os EEPs, estão relacionadas aos dois primeiros tipos.
Na frustração nociva das necessidades, incluem-se os dois tipos de negligência (física e emocional), na medida em que as necessidades emocionais de uma criança são negligenciadas, e seu ambiente carece de sensações importantes, como estabilidade, compreensão ou amor. Já os três tipos de abuso (físico, emocional e sexual) estão relacionados à traumatização e vitimização, onde é causado um dano à criança (Lim & Barlas, 2019; Young et al., 2008).
Sabe-se que raramente os diferentes tipos de abuso e negligência acontecem isoladamente (Kalmakis & Chandler, 2014), e que ainda não está claro se os efeitos dos maustratos são impulsionados pelo que é comum a eles (i.e. variância compartilhada) ou pelo que é específico para cada tipo de maus-tratos (i.e. variância única) (Cecil et al., 2017), ou seja, se cada tipo exerce uma influência específica na saúde mental, ou se é o conjunto deles que tem maior influência.
O abuso emocional tem se mostrado particularmente relevante, sendo possivelmente a forma mais comum de maus-tratos infantis, embora menos notificada e estudada, que acarreta sequelas psicológicas poderosas e duradouras, e parece estar subjacente a outras formas de maus-tratos como uma “questão central” (Wright et al., 2009). Segundo Estévez et al. (2017), cada tipo de abuso e negligência pode acarretar danos emocionais diferentes, de forma que, apesar de frequentemente concomitantes, é importante analisar as diferenças entre eles. A presença de efeitos diferenciais pode ter implicações importantes para a avaliação de risco, formulação de tratamento e estratégias de prevenção mais direcionadas (Cecil et al., 2017).
Alguns estudos buscaram fazer relações entre EEPs e domínios de esquemas (Tezel et al., 2015; Yiğit et al., 2018; Estévez et al., 2019; Lanctôt, 2020) e entre EEPs e parte dos EIDs (Cecero et al., 2004; Lumley & Harkness, 2007; Wright et al., 2009; Wesley & Manjula, 2015; Estévez et al., 2017; Boyda et al., 2018), embora nenhum tenha investigado a totalidade dos 18 esquemas, variando investigações com 3 a 16 deles, e exista divergência na investigação dos EEPs. Em sua maioria, os estudos focam em abusos específicos (Wright et al., 2009; Boyda et al., 2018; Yiğit et al., 2018; Estévez et al., 2019) ou agregam abuso e negligência em uma categoria (Lumley & Harkness, 2007; Tezel et al., 2015; Wesley & Manjula, 2015).
Nesse sentido, considerando o impacto que os eventos estressores precoces têm enquanto experiências nocivas na formação de esquemas, esse estudo tem como objetivo principal investigar a relação entre esses subtipos de eventos estressores e os 18 esquemas iniciais desadaptativos em adultos. Além disso, apesar dos altos dados de violações contra crianças e adolescentes no Brasil, em nosso levantamento bibliográfico, não foram encontrados estudos que investigassem essa relação com dados brasileiros.
Método
Amostra
Para compor a amostra do presente estudo, os pesquisadores envolvidos na coleta de dados convidaram diretamente, ou através de redes sociais, sujeitos acima de 18 anos a participar da pesquisa. No total, participaram 247 pessoas, dos quais 47 foram excluídos da amostra final por preenchimento incorreto dos instrumentos, resultando em uma amostra final de 200 participantes, com idade média de 22,70 (DP=3.52), variando de 18 a 30 anos, e composta em sua maioria por mulheres (n=130; 65%).
Instrumentos
Para obtenção dos dados sociodemográficos, foi utilizado um questionário elaborado pelos pesquisadores, com informações que versavam sobre idade, sexo, religião, estado civil, nível de educação, situação de emprego, renda familiar. Esses dados podem ser consultados na Tabela 1.
Característica | n(%) | M(DP) |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 130(65) | |
Masculino | 70(35) | |
Idade, M (DP) | 22,70(3,52) | |
Cor,n(%) | ||
Parda(o) | 88 (44) | |
Branca(o) | 84 (42) | |
Preta(o) | 19, (9,5) | |
Renda ,M (DP) | 3666,00 (2444,00) | |
Religiã o | ||
Católica | 95 (47,5) | |
Evangélica | 57 (28,5) | |
Outras | 25(12,5) | |
Ateu | 14(7) | |
Espirita | 8(4) | |
Situação conjugal | ||
Solteira(o) | 171(85,5} | |
Casada(o)/Parceiria fixa | 27(13,5) | |
Separa da(o)/Divorciada(o) | 2(10) | |
Ocupação | ||
Estudante | 155(77,5) | |
Com ocupação remunerada | 38(19) | |
Desemprega da (o) | 6(3) | |
Moradia | ||
Compais | 136(68) | |
Com amigos | 26(13) | |
Sozinho | 22(11) | |
Cônjuge/filhos | 15(7,5) | |
Escolaridade | ||
Superior incompleto | 124 (62) | |
Superior completo | 32(16) | |
Médio incompleto | 8(4) | |
Médio completo | 32(16) |
Nota.n: número total da amostra ;M: Média; DP: Desvio Padrão
Na investigação da presença de eventos traumáticos ocorridos na infância, foi utilizado o Questionário sobre Traumas na Infância (QUESI), desenvolvido por Bernstein et al. (2003), uma entrevista retrospectiva e autoaplicável, composta por 28 itens em uma escala Likert, de 1 (nunca) a 5 (muito frequentemente). Cinco subtipos de traumas na infância são avaliados pelo QUESI: abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física e negligência emocional, com pontuações variando de 5 a 25 para cada subtipo.
De acordo com os escores, o grau de severidade de cada EEP é categorizado em quatro níveis: nenhum a mínimo; leve a moderado; moderado a severo; e severo a extremo. Indivíduos que pontuam na terceira ou quarta categoria, em qualquer subtipo de trauma, são identificados com histórico de EEPs. Caso seus escores permaneçam nos dois primeiros níveis, “nenhum a mínimo” e “leve a moderado”, são considerados sem histórico de EEPs. O QUESI foi traduzido e adaptado à população brasileira e apresenta boas características psicométricas (Grassi-Oliveira et al., 2014).
Na avaliação dos esquemas, foi utilizado o Questionário de Esquemas de Young - forma reduzida (YSQ-SF3) (Young et al., 2008), cujo objetivo é avaliar os 18 Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs). O instrumento consiste em uma autoavaliação, composta por 90 itens em frases afirmativas, a serem respondidos em escala tipo Likert, que varia de 1 (completamente falso) a 6 (descreve-me perfeitamente). Os escores para cada esquema vão de 5 a 30, totalizando de 90 a 540 pontos. A versão do YSQ utilizada neste estudo foi traduzida e submetida a um processo de validação semântica para a população brasileira (Seixas, 2014).
Procedimentos
Os dados foram coletados presencialmente, de forma individual ou coletiva (em grupos de 3 a 5 participantes por vez). Na ocasião, os participantes receberam, leram e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Em seguida, responderam ao questionário sociodemográfico, o YSQ-SF3 e, por fim, o QUESI. O estudo foi previamente submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) (CAAE 43221215.6.00005188.
Análise dos Dados
Os dados foram processados e analisados no software IBM SPSS Statistics - versão 22, através de estatística descritiva, com estabelecimento de médias, desvio-padrão, frequências e porcentagem. Como os dados atenderam aos critérios na realização do teste de normalidade, passou-se a análise de testes paramétricos. Na comparação de médias entre os grupos com e sem estresse precoce, em relação aos EEPs, domínios de esquemas e EIDs, foi realizado o teste t de amostras independentes. Para as análises de correlação entre os EEPs e os domínios de esquemas, bem como os EEPs e os EIDs, foi utilizado o teste de Pearson.
Resultados
No que diz respeito à presença de EEPs, a amostra foi dividida em dois grupos, um descrito como “com estresse precoce” (n=100, 50%) e outro “sem estresse precoce” (n=100, 50%), de acordo com os escores obtidos no QUESI, conforme mencionado na seção de instrumentos. Dos 200 participantes, 27% sofreram abuso emocional, 19,5% negligência emocional, 19% abuso físico, 14,5% negligência física e 9,6% abuso sexual em graus moderados a extremos.
A comparação dos grupos com e sem estresse precoce quanto à prevalência de esquemas e seus domínios pode ser observada na Tabela 2. Observando os domínios, percebese que a ordem de prevalência de cada um foi semelhante nos grupos sem e com estresse precoce, entretanto houve diferença significativa (p<0,001) entre as médias de todos os domínios para os dois grupos, sendo as médias do grupo com estresse precoce maiores em todos os domínios, com tamanhos de efeito médios (d=0,6 e d=0,7) e grande, no caso do primeiro domínio (d=0,8).
EIDs | Sem EPPs | Com EPPs | d |
---|---|---|---|
M | M | ||
DI-Desconexão e rejeição | 1,81 (0,71) | 2,51 (0,96) | 0,8*** |
Abandono/instabilidade | 11,47(4,96) | 13,85 (6,56) | 0,6*** |
Desconfiança/abuso | 10,15(4,43) | 13,72 (5,81) | 0,7*** |
Privação emocional | 7,95 (3,69) | 11,92 (5,78) | 0,8*** |
Defectividade/vergonha | 7,04 (3,84) | 10,14(5,68) | 0,6*** |
Isolamento social/alienação | 9,63 (4,87) | 13,15(6,49) | 0,6*** |
DII- Autonomia e desempenhos prejudicados | 1,74(0,55) | 2,24(0,89) | 0,7*** |
Dependência incompetência | 7,71 (3,12) | 9,97(4,86) | 0.6*** |
Vulnerabilidade ao dano ou à doença | 9,77 (4,02) | 12,79 (5,70) | 06*** |
Emaranhamento/selfsubdesenv olvido | 9,00(3,38) | 10,48 (4,80) | 0,4* |
Fracasso | 8,32 (4,78) | 11,71(6,66) | 0,6*** |
DIII - Limites prejudicados | 2,27 (0,79) | 2,81(1,00) | 0,6*** |
Arrogo/grandiosidade | 11,58(4,06) | 13,52(4,93) | 0,4** |
Auto controle/ autodisciplina insuficientes | 11,17(5,13) | 14,67 (6,26) | 0,6*** |
DIV - Orientação para o outro | 2,25 (0,7) | 2,82(0,89) | 0,7*** |
Subjugação | 8,31(3,62) | 11,74(5,49) | 0,7*** |
Autossacrificio | 13,48(5,39) | 15,78(6,25) | 0,4** |
Busca de aprovação/reconhecimento | 11,96(5,27) | 14,80 (5,86) | 0,5*** |
DV - Hipervigilãncia e inibição | 2,38(0,73) | 2,94(0,96) | 0,7*** |
Negativismo/pestimismo | 10,98(4,00) | 15,10(6,01) | 0,8*** |
Inibição emocional | 11,99 (5,37) | 14,89 (6,69) | 0,5** |
Padroesinflexiveis/postura critica exagerada | 15,13 (5,63) | 16,69 (5,88) | 0,3 |
Postura punitiva | 9,60 (4,04) | 12,17(5,00) | 0,6*** |
Nota. M: Média: DP: Desvio Padrão: EPPs: Eventos Estressores Precoces; EIDs: Esquemas Inicias Desadaptativos; DI: primeiro domínio: DII: segundo domínio; DIII: terceiro domínio; DIV: quarto domínio: DV: quinto domínio, d: tamanho do efeito;
*p <0,05,
**p <0,01,
***p <0,001
Mais detalhadamente quanto aos EIDs (Tabela 2), apenas o esquema “padrões inflexíveis/postura crítica exagerada” não apresentou diferença significativa entre os dois grupos. A prevalência dos demais dezessete esquemas diferiram entre os grupos, e os tamanhos de efeito variaram de pequenos (d=0,4), no caso dos esquemas “emaranhamento/self subdesenvolvido”, “arrogo/grandiosidade” e “autossacrifício”, a grandes (d=0,8), no caso de “privação emocional” e “negativismo/pessimismo”. Para os demais esquemas, os tamanhos de efeito foram médios (d=0,5 a d=0,7).
A relação dos subtipos de EEPs e os domínios e EIDs pode ser observada na Tabela 3. Entre os subtipos em cada domínio de esquema, o destaque foi o abuso emocional, que obteve correlações positivas com todos os domínios. Já o abuso sexual se correlacionou ao quarto e quinto domínio.
EIDs | AE | AF | AS | NE | NE |
---|---|---|---|---|---|
r | |||||
DI-Desconexão e rejeição | 034** | -0,09 | 0,17 | 0,10 | 0,18 |
Abandono Instabilidade | 0,18 | -0,15 | 0,15 | 0,01 | -0,04 |
Desconfiança/ Abuso | 0,36*** | -0,09 | 0,17 | -0,01 | 0,08 |
Privação emocional | 0,23* | 0,01 | 0,16 | 037** | 0,38*** |
Defectividade/Vergonha | 0,24* | -0,08 | 0,12 | 0,02 | 0,18 |
Isolamento social | 0,31** | -0,06 | 0,06 | 0,13 | 0,15 |
DII - Autonomia e desempenhos prejudicados | 0,31** | 0,01 | 0,15 | 0,12 | 0,14 |
Dependência/ Incompetência | 0,24* | -0,14 | 0,05 | 0,12 | 0,12 |
Vulnerabilidade ao dano ou à doença |
0,32*** | 0,06 | 0,25* | 0,06 | 0,18 |
Emaranhamento | 0,22* | 0,14 | 0,17 | -0,04 | 0,03 |
Fracasso | 0,20* | -0,03 | 0,03 | 0,18 | 0,08 |
DIII-Limites prejudicados | 0,31** | -0,01 | 0,08 | 0,05 | 0,16 |
Arrogo/Grandiosidade | 0,31** | 0,00 | 0,08 | 0,00 | 0,22* |
Autocontrole/Auto disciplina insuficiente | 0,26** | -0,02 | 0,06 | 0,08 | 0,08 |
DIV - Orientação para o outro | 0,24* | -0,07 | 0,31** | -0,07 | 0,11 |
Subjugação | 0,21* | -0,10 | 0,27** | 0,02 | 0,04 |
Autossacrifício | 0,16 | 0,02 | 0,22* | -0,14 | 0,00 |
Busca de aprovação/reconheciment o |
0,19 | -0,09 | 0,20* | -0,04 | 0,22* |
DV - Hipervigilãncia e inibição | 0,30** | -0,05 | 0,24* | -0,04 | 0,14 |
Negativismo Pessimismo | 0,32*** | 0,06 | 0,19 | -0,02 | 0,14 |
Inibição emocional | 0,25* | -0,15 | 0,15 | 0,09 | 0,12 |
Padrões inflexíveis/Postura crítica exagerada | 0,21* | -0,06 | 0,21* | -0,12 | 0,13 |
Postura punitiva | 0,16 | 0,00 | 0,23* | -0,13 | 0,05 |
Nota, r. Correlação de Pearson: DI: primeiro domínio: DII: segundo domínio: DIII: terceiro domínio; DIV: quarto domínio; DV: quinto domínio; AE: abuso emocional; AF: abuso físico; AS: abuso sexual; NE: negligência emocional; NE: negligência física.
*p < 0,05,
**p< 0,01,
***p< 0,001.
Coerentemente, na relação dos EIDs com os subtipos de EEPs, o abuso emocional se destacou com a maior quantidade de correlações. Apenas quatro dos 18 EIDs não obtiveram correlação com o abuso emocional (Tabela 3) - abandono/instabilidade, autossacrifício, busca de aprovação/reconhecimento e postura punitiva. Os 14 demais obtiveram correlações positivas.
Com relação ao abuso sexual, estiveram positivamente correlacionados seis EIDs (Tabela 3) - vulnerabilidade ao dano ou à doença (p<0,05, r=0,25), subjugação (p<0,01, r=0,27), autossacrifício (p<0,05, r=0,22), busca de aprovação/reconhecimento (p<0,05, r=0,20), padrões inflexíveis (p<0,05, r=0,21) e postura punitiva (p<0,05, r=0,23). A negligência emocional obteve correlação apenas com o esquema privação emocional (p<0,01, r=0,27), enquanto a negligência física se correlacionou além de privação emocional (p<0,001, r=0,38), com arrogo/grandiosidade (p<0,05, r=0,22), e busca de aprovação/reconhecimento (p<0,05, r=0,22) (Tabela 3).
Discussão
O principal objetivo desse estudo foi investigar a relação entre os eventos estressores precoces, de negligência e abusos físico, emocional e sexual, e os esquemas iniciais desadaptativos em adultos. Relações importantes foram encontradas sobretudo entre o abuso emocional e a manifestação desses esquemas.
No que diz respeito à relação entre os EEPs e os domínios de esquema, foi possível observar um destaque no abuso emocional, que se correlacionou com todos os domínios. Alguns estudos têm apontado maior impacto e prevalência do abuso emocional nos esquemas e na saúde mental em relação a outros tipos de abuso (Boyda et al., 2018; Cecil et al., 2017). O abuso emocional também se destacou em Lanctôt (2020) e Yiğit et al. (2018), que analisaram as relações dos EEPs no primeiro domínio e primeiro e segundo domínio, respectivamente.
Observando as correlações encontradas entre os EIDs e EEPs na literatura, há uma variação entre os trabalhos, sobretudo porque a maior parte dos estudos seleciona esquemas ou domínios específicos, ou agregam atos de comissão (abuso) e omissão (negligência) em uma categoria denominada de maus-tratos ou trauma (p. ex. maus-tratos físicos, trauma emocional), dificultando comparações. Não obstante, foi possível traçar alguns paralelos. Lumley e Harkness (2007) encontraram correlações entre maus-tratos emocionais com os EIDs privação emocional, dependência/incompetência, isolamento social, fracasso, vulnerabilidade ao dano ou à doença, subjugação e autossacrifício. No nosso estudo, quase todos esses EIDs encontraram correlações com o abuso emocional, sendo a privação emocional correlacionada também à negligência emocional. Apenas o autossacrifício não se correlacionou ao abuso ou negligência emocional.
Wright et al. (2009) observaram correlações entre o abuso emocional e os esquemas vulnerabilidade ao dano ou à doença, autossacrifício e defectividade/vergonha. Novamente, os achados diferem apenas em relação ao esquema de autossacrifício. Já Estévez et al. (2017) apontam correlações entre o abuso emocional e os EIDs fracasso, vulnerabilidade ao dano e isolamento social, todos esses também encontrados nos nossos resultados.
Wesley e Manjula (2015) encontram relações entre o trauma emocional e os esquemas de privação emocional, isolamento social, emaranhamento, autocontrole/autodisciplina insuficiente e abandono/instabilidade. Desses, apenas o último não foi encontrado nas correlações com abuso emocional ou negligência emocional no presente estudo. Mais recentemente, Boyda et al. (2018) correlacionaram o abuso emocional com os esquemas defectividade/vergonha, fracasso e emaranhamento, todos os quais também foram correlacionados ao abuso emocional no nosso estudo. Além de apresentar mais correlações entre os EIDs e o abuso emocional, nossos resultados apontam um efeito diferencial entre o abuso e a negligência emocional, ou seja, a percepção de maus-tratos emocionais por comissão (abuso) se relacionou mais com os EIDs do que a de os maus-tratos emocionais por omissão (negligência), sugerindo a necessidade e estudá-los como categorias de trauma distintas.
Quanto ao abuso sexual, eram esperadas correlações com defectividade/vergonha, fracasso, abuso, isolamento social e vulnerabilidade ao dano ou à doença, conforme Lumley e Harkness (2007), Estévez et al. (2017) e Boyda et al. (2018). Entretanto, apenas a correlação com vulnerabilidade ao dano coincidente com os achados nesse trabalho.
Além da vulnerabilidade ao dano ou à doença, o abuso sexual também se correlacionou com a subjugação, o autossacrifício e a busca de aprovação/reconhecimento, os quais estão voltados para obter aprovação, manter conexão emocional e evitar retaliações (Young et al., 2008), e com os esquemas padrões inflexíveis e postura punitiva, ambos tipicamente originados de infância severa, reprimida e rígida (Young et al., 2008). Experienciar abuso sexual pode gerar sentimentos de impotência e pouco controle sobre o que acontece (Hornor, 2010), baixa autoestima, desamparo, medo, vergonha e culpa (Sigurdardottir et al., 2012; Sigurdardottir & Halldorsdottir, 2013). É possível relacionar esses sentimentos de impotência, desamparo e pouco controle ao esquema de vulnerabilidade ao dano (“Não consigo escapar da sensação de que algo ruim está para acontecer”) (Lumley & Harkness, 2007). Já os esquemas de subjugação e o autossacrifício podem estar relacionados à baixa autoestima e sentimentos de medo e culpa (Young & Klosko, 1994).
A negligência parental muitas vezes leva ao desenvolvimento de esquemas com temas de perda e inutilidade, como é o caso da privação emocional ("Não recebi amor e afeto") (Lumley & Harkness, 2007), a qual se correlacionou positivamente tanto com a negligência física quanto com a emocional. Na direção do que foi encontrado por Cecero et al. (2004) e Wesley e Manjula (2015), não foram encontradas correlações positivas entre o abuso físico e nenhum dos EIDs. Uma possível explicação para isso estaria relacionada à ideia de que a punição corporal é uma prática educativa aceitável e, muitas vezes, considerada adequada, sendo possível constatar essa crença nas próprias crianças e adolescentes (Vasconcelos & Souza, 2006), que passam a enxergar medidas coercitivas como algo normal e rotineiro da parentalidade, ou até mesmo uma forma de cuidado parental. Na medida em que a formação de um EID se dá pela sensação subjetiva da não satisfação de uma necessidade emocional, é possível, em parte, que percepções dessa natureza influenciem a elaboração do esquema.
Similar ao resultado encontrado no presente estudo, diversos autores têm indicado o abuso emocional como a forma de estresse precoce mais frequente, mais fortemente relacionada com os EIDs, e possivelmente com impactos psicológicos mais profundos do que outras formas de abuso (Dias et al., 2015; Cecil et al., 2017; Boyda et al., 2018; Gong & Chan, 2018). Uma possível explicação a respeito desse maior impacto, seria que a experiência de abuso e negligência emocional difere do abuso físico e sexual em aspectos importantes, por descreverem uma relação que existe entre pais e filhos, ao invés de um evento específico ou série de eventos (Wright et al., 2009). Esse padrão de interações prejudiciais pode transmitir à criança a ideia de ser inútil, não amada, falha, indesejada, ou que apenas teria valor para atender às necessidades de outra pessoa, caracterizando um “ambiente relacional patogênico”, que pode produzir consequências perniciosas e destrutivas (Glaser, 2002; Lumley & Harkness, 2007; Wright et al., 2009).
Considerações Finais
As conclusões retiradas desse estudo devem ser consideradas à luz de algumas limitações. Nesse estudo foram considerados cinco tipos de estressores precoces bem difundidos na literatura, entretanto, sabe-se que outras adversidades como morte, dependência química e doença mental de cuidadores, ou mesmo o divórcio dos pais também podem exercer influência na formação de esquemas.
Uma segunda limitação diz respeito à forma de coleta dos dados de estresse precoce. Embora a recordação de eventos específicos na infância e a obtenção dessas informações através de instrumentos retrospectivos tenham se mostrado razoavelmente precisas e confiáveis, a coleta de dados baseada na lembrança autorrelatada do participante de casos de maus-tratos, influenciada pelo teor emocional dos eventos, está sujeita a vieses de codificação, armazenamento, e até reconsolidação da informação, além de viés associado à congruência com o humor durante o resgate da informação. Por outro lado, para a TE, não é o evento em si, mas sim a sensação do clima familiar ou mesmo a percepção que o indivíduo tem sobre a existência de tais eventos que deve ser considerado.
A não delimitação do período em que os eventos ocorreram, quem foi/foram o(s) perpetrador(es) e a pontualidade ou recorrência dos eventos em questão também impõem limitações no entendimento da influência desses maus-tratos no desenvolvimento dessas construções subjetivas que compreendem padrão de memórias, emoções e cognições, relevantes para o padrão de comportamentos, denominadas esquemas. Não obstante, confirmando as hipóteses iniciais do estudo, foi possível perceber através dos resultados a estreita relação entre a presença de estresse precoce e a maior prevalência de esquemas iniciais desadaptativos, em consonância ao proposto pela teoria da terapia dos esquemas. Além disso, observou-se que cada subtipo de evento estressor contribuiu de diferentes formas e proporções no desenvolvimento dos esquemas, sugerindo que a influência diferencial de cada tipo de abuso deve ser estudada.
Por fim, embora ainda seja pouco estudado em relação às demais formas de abuso, o abuso emocional exerce efeitos tão ou mais tóxicos sobre o desenvolvimento psíquico e, no presente estudo, consoante aos resultados de outras pesquisas, apresentou importante relação com maior presença de esquemas iniciais desadaptativos.