O insight na esquizofrenia refere-se ao grau de consciência dos pacientes sobre a doença mental, o reconhecimento destes sobre a necessidade de tratamento e suas atribuições aos sinais e sintomas deste transtorno (Beck et al., 2011). De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 97% dos pacientes psicóticos agudos apresentam dificuldades de insight, sendo esta uma variável relevante no curso e tratamento da doença e um indicador no prognóstico da esquizofrenia (Beck et al., 2004; Jacob, 2020).
A partir do início dos anos 1990, a avaliação do insight na esquizofrenia passou a ser realizada por meio de instrumentos padronizados concomitante à identificação clínica de sintomas. Desse modo, foi possível verificar que esse construto varia de um indivíduo para outro e se expressa em mais de uma dimensão (David, 2020). Existem diferentes instrumentos de avaliação do insight para pessoas com sintomas e diagnóstico de esquizofrenia, entre os quais: SUMD - Scale to Assess Unawareness of Mental Disorder (Michel et al., 2013) e SAI-E - Schedule for the Assessment of Insight - Expanded Version (Dantas & Banzato, 2007). Estes instrumentos são administrados como entrevista e foram validados para o contexto brasileiro (Fiss & Chaves, 2005). A SUMD e a SAI-E abordam a perspectiva clínica do insight no que se refere à consciência da doença mental, a necessidade de tratamento e atribuição dos sintomas.
A baixa capacidade de insight está diretamente relacionada à maior duração das crises psicóticas não tratadas. A dificuldade do paciente em reconhecer seus sintomas e o transtorno que o acomete interfere na adesão ao tratamento medicamentoso, o que ocasiona, invariavelmente, aumento e prolongamento das crises e maiores déficits sociais e interpessoais (Birulés et al., 2020). Deste modo, é de suma importância incrementar ações que poderão desenvolver a capacidade de insight cognitivo, tornando o paciente mais ativo em seu próprio tratamento e levando-o à maior autonomia, compromisso com o processo terapêutico e com outras intervenções (Ellett & Kingston, 2020).
Insight Cognitivo e sua Avaliação
O construto insight cognitivo foi introduzido por Beck e colaboradores no ano de 2004 e se refere ao distanciamento que o paciente faz de suas experiências psicóticas, sua reflexão sobre tais experiências, além de sua resposta quanto ao feedback corretivo (Beck et al., 2004). Refere-se ainda à “capacidade de reconhecer as distorções cognitivas, avaliá-las ou testá-las, e considerar interpretações mais realistas para os acontecimentos” (Beck et al., 2011, p. 76).
A avaliação do insight cognitivo inclui as crenças e interpretações dos pacientes sobre seu transtorno e os processos cognitivos relacionados à capacidade de se distanciar do problema, interpretá-lo e reavaliá-lo (Pinho et al., 2021). Para Beck et al. (2004), alguns pacientes, embora aceitem explicações de que suas experiências são anormais e acontecem em função de um transtorno mental, não se convencem disso e, portanto, reduzem a sua capacidade de se distanciar de suas experiências e reavaliá-las, considerando-as sempre como verdadeiras.
O diferencial da avaliação entre o insight cognitivo e clínico está na insuficiência das escalas clínicas em abordar a capacidade limitada que os pacientes com esquizofrenia possuem para avaliar suas experiências e distorções cognitivas. O insight cognitivo abrange as capacidades de distanciamento, de reavaliação de crenças e interpretações, tidas como habilidades metacognitivas. Essas funções são de grande relevância para o diagnóstico e a definição de diretrizes psicossociais de tratamento para pessoas diagnosticadas com esquizofrenia (Stabell et al., 2019). O déficit na consciência sobre os sintomas presentes na esquizofrenia e no reconhecimento da necessidade de tratamento pelo paciente é considerado, por sua vez, um comprometimento do insight clínico (David, 2020; Jacob, 2020).
O insight cognitivo prejudicado compromete o próprio insight clínico dos pacientes, proporcionando um fortalecimento de crenças e pensamentos delirantes, dificultando a vinculação, adesão ao tratamento e avaliação das ideias que vêm imediatamente aos pensamentos dos pacientes e dificuldade de colocar os problemas em perspectiva (Pena-Garijo & Monfort-Escrig, 2020). Neste sentido, tanto o insight clínico quanto o cognitivo possuem relevância como variáveis complementares na avaliação e tratamento da esquizofrenia (Beck & Warman, 2004).
Pelo exposto, Beck et al. (2004) desenvolveram a Beck Cognitive Insight Scale (BCIS) a partir de entrevistas, observações clínicas e em conceitos sobre automonitoramento derivados de escritos anteriores sobre pacientes com e sem sintomas psicóticos. A amostra deste estudo foi composta por 150 participantes, de ambos os sexos, com 18 anos ou mais, diagnosticados por meio do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 4th edition Text Revised ([DSM-IV-TR], APA, 2000) com sintomas de esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo, transtorno depressivo maior com e sem sintomas psicóticos. A pesquisa foi desenvolvida nos Estados Unidos, em uma unidade psiquiátrica para adultos, com a utilização das escalas Beck Depression Inventory-II (BDI-II) e Scale to Assess Unawareness of Mental Disorder (SUMD-A), além da própria BCIS. A escala apresentou uma solução bifatorial.
Trata-se de uma escala autoaplicável, contendo 15 itens divididos em duas subescalas, a saber: autorreflexão e autocerteza. A primeira subescala é composta por nove itens e avalia a capacidade de reconhecer a possibilidade de que podem estar errados, autoavaliação, receptividade a feedbacks externos e capacidade de levá-los em consideração. A segunda apresenta seis itens e aborda a confiança da pessoa sobre o próprio julgamento, opiniões e interpretações, bem como a substancial inflexibilidade do pensamento e como resistência a mudanças cognitivas (Beck et al., 2004; Birulés et al., 2020).
Os resultados do estudo original da BCIS indicaram que os pacientes psicóticos foram significativamente menos autorreflexivos e apresentaram maior autocerteza do que os não psicóticos, demonstrando maior comprometimento de insight cognitivo no primeiro grupo em relação ao segundo. Pacientes com depressão e pânico, por exemplo, também interpretam os eventos de maneira distorcida: deprimidos podem ver nas interações sociais um modo de inadequação ou rejeição, enquanto pacientes com pânico podem interpretar sensações físicas como prova de uma doença grave (Beck et al., 2004). Porém, esses pacientes mantêm a capacidade de refletir sobre tais experiências e reconhecer que suas conclusões não estão corretas, podendo ser reestruturadas por meio de intervenções fundamentadas pelas Terapias Cognitivas (Ellett & Kingston, 2020; Sauvé et al., 2020).
Além do estudo realizado por Beck et al. (2004), foram encontradas investigações de adaptação da BCIS entre os anos de 2007 e 2021. Kim et al. (2007) testaram as propriedades psicométricas da BCIS para uma amostra sul-coreana formada por 78 participantes diagnosticados com esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo e outros transtornos psicóticos. Favrod et al. (2008), conduziram um estudo na Suíça, França e Bélgica com 158 pacientes ambulatoriais com o diagnóstico de esquizofrenia ou de outros transtornos esquizoafetivos. Uchida et al. (2009) investigaram uma amostra com 213 participantes japoneses; Kao e Liu (2010) em Taiwan, com 180 participantes; Gutiérrez-Zotes et al. (2012) na Espanha com 129; Merlin et al. (2012), na Índia, com 150 pacientes todos diagnosticados com esquizofrenia e/ou outros transtornos esquizoafetivos, e Pinho et al. (2021), em Portugal, formado por uma amostra de 150 participantes institucionalizados e não. A BCIS apresentou duas dimensões em todas essas pesquisas tal como no estudo original da escala.
A devida adaptação da BCIS é de grande importância para o contexto de saúde pública e coletiva, além de não ter sido adaptada devidamente ao contexto brasileiro. Pelo exposto, o presente estudo tem como objetivo expor o processo de adaptação transcultural para evidência de conteúdo para a versão brasileira da Beck Cognitive Insight Scale (BCIS). A BCIS havia sido traduzida para o português como parte do livro “Terapia Cognitiva da Esquizofrenia” (Beck et al., 2011). Foram contatados a editora de publicação da versão brasileira (ARTMED) e o tradutor (Ronaldo Cataldo Costa) para obter a autorização de uso da escala conforme tradução realizada. Em seguida, contatou-se o autor original da escala (Aaron Timothy Beck) para solicitar a autorização para o uso da BCIS neste estudo e posteriores pesquisas de validação da escala e estudos relacionais. A autorização foi concedida por meio de comunicação via e-mail. Deste modo, a primeira parte (análise dos itens já traduzidos) foi conduzida por dois dos autores desta pesquisa. Ao checar a tradução presente no livro, observou-se que ela teria função didática em primazia da pesquisa, com enfoque apenas em apresentar os itens e a escala a leitores do público em geral, uma vez que o processo de adaptação transcultural não foi apresentado para a língua portuguesa para o contexto brasileiro. Deste modo, optou-se por realizar novo processo de tradução da BCIS.
Método
Trata-se de um processo de adaptação transcultural para ajustar os itens da escala de origem linguística anglo-saxônica para a língua latina portuguesa no contexto brasileiro. Tal como sugere Mertens (2014), este procedimento envolveu cinco etapas: 1) análise do instrumento e sua fundamentação conceitual em relação à primeira versão da escala disponível em língua portuguesa; 2) tradução contextualizada; 3) avaliação por um comitê de especialistas; 4) ajuste dos itens, e 5) retrotradução para a língua original e parecer do(s) autor(es) original(is).
Outros três autores com domínio da língua inglesa que não tiveram contato prévio com a BCIS fizeram a nova tradução da escala. Cada um dos autores traduziu a escala de forma independente, analisaram conjuntamente os itens traduzidos e, por meio de consenso, definiram a versão dos itens em língua portuguesa.
A terceira etapa foi feita por meio da definição de um comitê de juízes-avaliadores, pela análise de concordância desses juízes e ajuste dos itens para validação preliminar de conteúdo da BCIS. Realizou-se um levantamento na plataforma Lattes de pesquisadores com expertise na área. Os juízes-avaliadores foram contatados, diretamente pela plataforma, por ordem de relevância. Seis juízes-avaliadores aceitaram o convite para contribuir na avaliação dos itens; dois eram psicólogos e os demais médicos.
Os itens foram apresentados aos juízes-avaliadores de acordo com modelo proposto por Aiken (1985) no qual a evidência de validade de conteúdo e a homogeneidade da avaliação de um item entre os juízes são realizadas por meio do V e do H de Aiken, respectivamente (Aiken & Groth-Marnat, 2005; Merino-Soto, 2018; Torres-Luque et al., 2018). Os resultados permitem verificar a concordância entre os avaliadores sobre a validade de conteúdo dos itens para cinco ou mais juízes (Lai & Chang, 2007). Por se tratar de uma variável categórica, a análise de adequação do item à dimensão teórica da BCIS foi calculada a partir da concordância entre os juízes-avaliadores pelo coeficiente Kappa numa escala que compreendia os valores “0” (discordância) e “1” (concordância) (Gwet, 2014).
A avaliação do conteúdo da BCIS foi feita item a item numa escala tipo Likert cuja variação apresentou valores entre “1” (nada ou pouquíssima adequada) e “5” (definitivamente adequada) (Hernández-Nieto, 2002). Foi apresentada aos juízes-avaliadores uma planilha contendo os 15 itens desta escala para que fossem avaliados em relação aos critérios de clareza da linguagem, pertinência prática, relevância e dimensão teórica. Além dos quatro critérios avaliados, a planilha apresentou uma sessão de comentários para que os juízes pudessem fazer observações acerca dos itens, o que permitiria a adequação daqueles com baixa pontuação ou dos sugeridos por eles.
O V de Aiken foi calculado a partir de cada item (j), considerando a avaliação de 6 juízes (Vj), da seguinte forma:
Onde:
c = o valor mais alto válido atribuído a um item avaliado (5)
r = pontuação dada por um especialista (variação entre 1 e 5) m = número total de itens da escala (n = 15)
O índice V varia de 0 a 1, onde um valor significativo de p presume que os experts concordam que o item apresenta validade de conteúdo.
O nível de homogeneidade de avaliação entre os itens feita pelos juízes-avaliadores será computado pelo índice ou valor H de Aiken para cada item j (Hj), a partir da seguinte fórmula:
Onde:
Hj = valor de conformidade entre os avaliadores em relação a como um item em particular (j) deve ser medido
n = quantidade de avaliadores (n = 6) c = valor mais alto válido (5)
k = é uma variável fictícia, na qual k = 0 se n for par, k = 1 se n for ímpar
Sj = soma dos valores absolutos entre as diferenças na classificação atribuída por dois especialistas
O índice H varia entre 0 e 1 e o resultado do índice H é considerado satisfatório quando se obtém um valor significativo, o que demonstra homogeneidade na resposta entre os observadores e boa consistência interna entre as observações.
Os resultados tanto para o V quanto para o H de Aiken devem atingir valores significativos considerando p < 0,05 (Yu, 1993). Valores não significativos devem contemplar uma revisão, reformulação ou exclusão do item. No entanto, para cada uma dessas decisões, o referencial teórico deve ser considerado (Lai & Chang, 2007).
A dimensão teórica a qual o item pertence é uma variável categórica. Por este motivo, o coeficiente Kappa será utilizado para calcular a concordância entre juízes para a relação item-dimensão teórica. O Kappa será calculado a partir da seguinte fórmula (Popping, 2019):
Onde:
Po = proporção observada de concordâncias
Pe = proporção esperada de concordâncias
Os valores do coeficiente de Kappa serão interpretados da seguinte forma: ausente (< 0), pobre (entre 0 e 0,20), leve (entre 0,21 e 0,40), moderada (0,41 e 0,60), substancial (0,61 e 0,80) ou quase perfeita (> 0,80) (Landis & Koch,1977; Popping, 2019).
A quarta etapa consistiu no ajuste dos itens em relação a análise das avaliações dos juízes e suas sugestões e, por fim, o procedimento de retrotradução foi realizado por outros três autores desta pesquisa que não tiveram contato prévio com a versão original e traduzida para o português brasileiro da BCIS, com o devido encaminhamento para um dos autores originais da escala para a sua avaliação. Debbie M. Warman foi a autora que fez a avaliação e concordou com a versão retrotraduzida da escala (contato, avaliação e autorização via e-mail).
Resultados
A tabela 1 apresenta os resultados para cada item relacionado aos critérios de 1) clareza da linguagem (CL), 2) pertinência prática (PP) e 3) relevância teórica (RT). A mesma tabela mostra a atribuição dos seis juízes-avaliadores e do autor original (AB) da escala para as dimensões teóricas (DT) - autorreflexão (AR) e autocerteza (AC) - para cada item.
Itens | VC | DT | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
CL | PP | RT | AR | AC | AB | K | |||||
V | H | V | H | V | H | ||||||
1 | As vezes, eu não entenda a atitude das pessoas em relação a mim |
0,79* | 0,64 | 0,88* | 0,64 | 0,88* | 0,64 | 5 | i | AR | 0,67 |
2 | A forma como eu entendo asminhas experiências estã definitivamente certa |
0,75* | 0,72 | 0,92* | 0,72* | 0,92* | 0,72 | 0 | 6 | AC | 1.00 |
3 | As outraspessoaspodem entendermelhor que eu as minhas experiências incomuns | 0,88* | 0,64 | 0,71 | 0,64 | 0,71 | 0,64 | 5 | 1 | AR | 0,67 |
4 | Eu já tirei concluso es de forma pre cipita da | 0,96* | 0,86* | 1,00* | 1,00* | 1,00* | 1,00* | 4 | 2 | AR | 0,34 |
5 | Algumas das minhas experiências que me pareceram muito reais podem teraconteeido por causa da minha imaginação | 0,92* | 0,78 | 1,00* | 1,00* | 1,00* | 1,00* | 5 | 1 | AR | 0,67 |
6 | Algumas das ideias que eu tinha certeza de que eram verdadeiras se mostraram falsas | 1,00* | 1,00* | 0,96* | 0,86* | 0,96* | 0,36* | 4 | 2 | AR | 0,34 |
7 | Se algo parece estar certo. então está coneto |
0,79* | 0,42 | 0,79* | 0,53 | 0,81* | 0,61 | 0 | 6 | AC | 1,00 |
8 | Eu posso estar errado, mesmo que eu acredite estar muito certo | 0,96* | 0,86* | 1,00* | 1,00* | 1,00* | 1,00* | 4 | 2 | AP. | 034 |
9 | Eu sei melhor do que ninguém quais são os meus problemas | 0 96* | 0,86* | 0,92* | 0.72 | 0,92* | 0,72 | 1 | S | AC | 0,67 |
10 | Quando as pessoas discordam demim. geralmente elas estão erradas |
0,96* | 0,86* | 0,96* | 0,86* | 0,96' | 0,86* | 0 | 6 | AC | 1,00 |
11 | Eunão posso confiar na opinião das outras pessoas sobre minhas experiências | 0 96* | 0,86* | 0,86* | 0,64 | 0,86* | 0,64 | 2 | 4 | AC | 034 |
12 | Se alguém disser que as minhas ideias/crenças estão erradas, eu estou disposto(a)a considerar a opinião dele(a) | 0,92* | 0,72 | 0,96* | 0,86* | 0,96* | 0,86* | 6 | 0 | AR | 1,00 |
13 | Sempre posso confiarno meujulgamento |
0.83* | 0,61 | 0,96* | 0,86* | 0,96* | 0.86* | 0 | 6 | AC | 1,00 |
14 | Sempre hà mais de uma explicação do porquè as pessoas agem do jeito que agem | 0,96* | 0,86* | 0,88* | 0,64 | 0,79* | 0,53 | 6 | 0 | AR | 1,00 |
15 Minha s experiências incomuns podem ser por causa de eu estar chateado ou irritado Total |
0,96* | 0,86* | 0,96* | 0,86* | 0,92* | 0,78 | 6 | 0 | AR | 1,00 0,78 |
Nota. V = V de Aiken; H = H de Aiken; CL = clareza de linguagem; PP = pertinência prática; RT = relevância teórica; DT = dimensão teórica; AR = autorreflexão; AC = autocerteza; AB = dimensão teórica proposta por Aaron Beck et al. (2004); K = coeficiente Kappa para a concordância entre juízes para as dimensões teóricas, e p < 0,05.
Todos os itens (n = 15) da escala foram avaliados por seis juízes nos quesitos propostos. Observou-se que os resultados para os índices H e V de Aiken iguais ou superiores a 0,75 e 0,86, respectivamente, apresentaram valores significativos.
Foi possível observar que todos os itens apresentaram valores significativos para o V em relação à clareza da linguagem (CL), pertinência prática (PP) e relevância teórica (RT). A exceção aconteceu para o item 3 tanto em relação à PP quanto para à RT. Os itens 1, 2, 3 e 7 apresentaram valores não significativos para todos os critérios avaliados, e os itens 11 e 14 para PP e RT. Os itens 5, 12 e 13 não apresentaram H significativo para CL, 9 para PP e 15 para RT.
Os itens 4, 6, 8 e 11 apresentaram valor de Kappa igual a 0,34 interpretado como leve concordância entre os juízes relativa à dimensão teórica, apesar de 67% deles terem concordado com a dimensão teórica original a qual o item pertence. Os itens 1, 3, 5 e 9 apresentaram valores substanciais de concordância entre os juízes, Kappa entre 0,60 e 0,80, com 84% de concordância quanto à dimensão teórica do item avaliado. Os demais itens (2, 7, 10, 12, 13 e 14 e 15) apresentaram valores de concordância absoluta entre os juízes. Por fim, em relação à dimensão teórica, a análise de concordância entre os juízes-avaliadores pelo coeficiente Kappa de Cohen pode ser considerada substancialmente adequada, com valor igual a 0,78. Sendo, também, aceitável a relação entre a concordância dos juízes-avaliadores e a dimensão teórica dos itens proposta pelo autor original da escala.
Apesar de alguns itens não terem apresentado valores de V e H de Aiken significativos e a concordância entre juízes ter sido leve em relação à dimensão-item para ao menos quatro deles, considerou-se manter os itens por três motivos, a saber pela: 1) decisão teórica; 2) evidências de validade da escala formada por todos os itens em diferentes estudos internacionais e 3) sugestão dos juízes em manter os itens, porém com modificações. Quatro juízes sugeriram modificações no item 2; três nos itens 1 e 13; dois para o item 3, e um para os itens 4, 5, 6, 7, 12 e 15. Os comentários feitos pelos avaliadores estão divididos entre 1) reformulação das frases, 2) adequação do vocabulário e 3) acréscimo de palavras para que o público-alvo pudesse ter maior compreensão e acesso aos itens. Após a conclusão desse processo - a reformulação dos itens -, a retrotradução da escala para a língua original foi feita e encaminhada a uma das autoras para a avaliação e aprovação, com sua devida aprovação. Pode-se observar, na tabela 2, os itens traduzidos com ajustes e sua respectiva retrotradução.
Versão original | Tradução para avaliação | Tradução com ajustes | Retrotradução | |
---|---|---|---|---|
1* | At times. I have misunderstood other people's attitudes towards me | As vezes. eu não entendo a atitude das pessoas em relação a mim | As vezes, eu não entendo o porquê as pessoas têm certas atitudes comigo | Sometimes I don't understand why people have some attitudes towards me |
2* | My interpretations of my experiences are definitely right | A forma como eu entendo as minhas experiências está definitivamente cena | A forma coma eu entendo as minhas experiências pessoais esta definitivamente certa | The way I understand my personal experiences is definitely right |
3* | Other people can understand the cause of mv unusual experiences better than I can | As outras pessoas podem entender melhor que eu as minha s experiências incomuns | As outras pessoas podem entender melhor que eu as minha s experiências incomuns | Other people can understand my unusual experiences better than I do |
4* | I have jumped to conclusions too fast |
Eujà tirei conclusoes de forma precipitada | Eu tirei concluoes precipitadas muito rapidamente | 1 have jumped to conclusions too fast |
5* | Some of my experiences that have seemed very real may have been due to my imagination | Algumasdas minhas experiências que me pareceram muito reais podem ter acontecido por causa da minha imagjnação | Algumas das minhas experiências pessoais, que pareciam ser muito reais, podem ter sido causadas pela minha. imagmação |
Some of my personal experiences, which seemed very real, may have happened be cause of my imagination |
6* | Some of the ideas I was certain were true turned out to be false | Algumas das ideias que eu tinha certeza de que eram verdadeiras se mostraram falsas | Algumas das ideias que eu tinha certeza serem verdadeiras se mostraram falsas | Some of the ideas I was sure were true turned out to be fake |
7* | If something feels right, it means that it is tight |
Se algo parece estar certo, então está coneto | Se algo parece certo, então é porque está certo | If something feels right right, it means it is right |
8 | Even though I feel strongly that I am right, I could be wrong | Eu posso estar errado, mesmo que eu acredite estar rnuito certo | Eu posso estar errado(a), mesma que eu acredite estar muito certo(a) | I may be wrong, even though I strongly believe I am right |
9 | I know better than anyone else what my problems are |
Eu sei melhor do que ninguém quais são os meus problemas | Eu sei melhor do que ninguém quais são os meus problemas | I know better than anyone else what my problems are |
10 | When people disagree with me. they are generally wrong | Quando as pessoas discordam de mim. geralmente elas estão erra das |
Quando as pessoas discordam de mim. geralmente elas estão erradas |
When people disagree with me, they are usually wrong |
11 | I cannot trust other people’s opinion about my experiences | Eu não posso confiar na opinião das outras pessoas sobre minhas experiências | Eu não posso confer na opinião das outras pessoas sobre minhas experiências | I cannot trust other people's opinions about my experiences |
12* | If somebody points out that my beliefs are wrong, I am wiling to consider it | Se alguém disser que as minhas ideias/crenças estão erradas, eu estou disposto(a) a considerar a opinião dele(a) | Eu estou disposto(a) a refletir sobre as minhas ideias/crenças quando alguém me diz que elas estão erradas | I am willing to consider my ideas/b eliefs when someone tells me they are wrong |
13· | I can trust my own judgment at all tunes | Sempre posso confiar no meu julgamento | Eu sempre posso confiar na minha capacidade de julgamento | I can always trust on my own judgment |
14 | There is often more than one possible explanation for why people act the way they do | Sempre hã mais de uma explicaçào do porquê as pessoas agem do jeito que agem | Frequentemente tem mais de uma explicação do porquê as pessoas agem do jeito que agem | Often there is more than one explanation of why people act the way they do |
15· | My unusual experiences may be due to my being extremely upset or stressed | Minhas experiencias incomuns podem ser por causa de eu estar chateado ou irrita do | Minhas experiência s pesso ais incomuns podem ter surgido por eu estar chateado (a) ou e&tressado(a) | My unusual personal experiences may have arisen because I was upset or stressed |
Nota.
* itens ajustados de acordo com a orientação dos juizes.
Discussão
Este estudo teve como objetivo realizar o processo inicial de adaptação transcultural da BCIS, considerando a tradução, avaliação, adequação e retrotradução dos itens. Deste modo, tornou-se possível evidenciar a validade de conteúdo dos itens da BCIS, assim como reformular aqueles com V e H não significativos, acompanhados de sugestões fornecidas pelos juízes.
Tanto a construção de uma escala quanto sua adaptação para outro contexto cultural necessitam da avaliação de especialistas para que seja possível certificar-se de que os itens do instrumento sejam capazes de ascender às qualidades teoricamente desejadas (Cervilla et al., 2021; Leyton-Roman et al., 2021). E o primeiro passo constitui a evidenciação da validade do conteúdo dos itens expostos (Muñiz & Fonseca-Pedredo, 2019). Deste modo, quanto melhor a evidência de conteúdo de uma escala melhor serão os resultados apresentados a partir da avaliação das características reais das pessoas (Gwet, 2014), expressos pelos valores significativos de V de Aiken. A homogeneidade, amplitude ou concordância entre observadores (H de Aiken) está relacionada ao grau de confiança entre as pontuações atribuídas à avaliação dos itens de uma escala, definindo o nível de consistência entre as avaliações feitas (Merino-Soto, 2018; Torres-Luque et al., 2018). Para o processo de criação, desenvolvimento ou adaptação de uma escala, a validade de conteúdo e a homogeneidade entre as avaliações da qualidade dos itens são indicadores fundamentais de evidência de conteúdo de uma escala porque afetarão os resultados das observações por ela feita (Poppins, 2019).
O V de Aiken permitiu compreender os resultados de validade de conteúdo referentes à clareza da linguagem, pertinência prática e relevância teórica, com valores significativos a partir de 0,75 para todos os itens. O nível de confiabilidade ou consistência deduzido pelo H de Aiken foi significativo para valores a partir de 0,86, utilizando os mesmos parâmetros observados pelo V. Contudo, houve itens que não obtiveram valores significativos, especialmente aqueles relacionados ao índice H. Isso acontece porque o V e H de Aiken são critérios mais sensíveis para evidenciação da validade de conteúdo e da homogeneidade das respostas entre os juízes (Poppins, 2019). Isso, no entanto, não significa que os itens devam ser retirados da escala e sim reformulados (Lai & Chang, 2007; Napitupulu & Sensuse, 2015; Yang, 2007). O processo de adaptação está relacionado à adequação dos itens ao contexto cultural para o qual se pretende testá-los. Por este motivo, frases e palavras foram reformuladas, mantendo o seu sentido original, para o devido entendimento da populaçãoalvo, especialmente essa, por se tratar de um grupo mais vulnerável, sendo sua maioria acolhida em centros de referência.
O índice Kappa foi utilizado para avaliar a decisão item-dimensão. A BCIS apresenta apenas duas dimensões cujas respostas dos juízes estiveram condicionadas à categoria sim (concordância) ou não (discordância). O valor de concordância geral foi considerado substancial, mesmo que tenha havido valores de concordância leve ou moderado entre juízes. O Kappa também é um índice rigoroso e seu valor também será afetado pelo número de juízes, especialmente se o número deles for igual a 2 ou par (Gwet, 2014). Deste modo, podese considerar a porcentagem de concordância entre os juízes em relação a um valor categórico observado. A maior proporção de discordância entre os experts foi de 1 para 2 juízes e a maior concordância foi igual a 6 (número total de avaliadores).
De modo geral, pode-se inferir que a adaptação inicial do instrumento (análise de concordância entre juízes, retrotradução e o aval da retrotradução por uma das autoras originais da escala) evidenciou validade de conteúdo satisfatória para a BCIS. No entanto, sua aplicação prática, na pesquisa ou clínica, ainda depende da verificação de suas propriedades psicométricas (validade fatorial, de critério, etc.) aplicadas em seu público-alvo. Ao ter finalizado o processo completo de adaptação transcultural da BCIS (ver Figura 1), a utilização dela será de grande valia para profissionais clínicos e da saúde coletiva para a avaliação e definição de planos de intervenção para pessoas com diagnóstico do espectro da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos.