O livro de Caldeira investiga a complexidade das forças invisibilizadas na produção do estereotipo “mães do crack”, termo que ganha força com a espetacularização midiática, e cujo significado objetificante, reducionista, cola não somente no senso comum, mas também entre aqueles responsáveis por ofertar cuidado a essas meninas/mulheres. No atual contexto de ameaças à democracia, a problemática trazida nesse estudo se torna ainda mais urgente. Precisamos insistir nesse assunto, na medida em que haverá continuamente questões aparentemente mais importantes, que convidam a desviar o olhar de determinadas existências. Usuárias de crack, vivendo nas ruas, que ainda por cima engravidam? Mães que não fazem pré-natal? Por que se ocupar de quem - supostamente - sequer buscaria se cuidar?
Tratamos aqui de existências que geralmente ganham luz pelo olhar corretivo, higienista, normalizador, que propõe limpar a paisagem urbana, impedir certos corpos de incomodarem. Nesse sentido, de uma via que só enxerga pela norma, tanto faz se o olhar é do policial, do juiz, do pastor, do médico ou de qualquer outro profissional de saúde. A autora afirma, do início ao fim do livro: precisamos deixar nossas “verdades” de lado, ouvir essas mães vivendo nas ruas, usuárias (ou não) de drogas.
Trabalhei alguns anos no cuidado à população usuária dos serviços públicos da saúde mental, especificamente com questões de uso prejudicial de álcool e outras drogas; e na capacitação de técnicos da Atenção Básica para a sensibilização de que esse público pertence ao território e, como qualquer outro, deve ser referenciado às unidades de saúde. Foi importante conhecer uma profissional que trabalha desde a década de 1980 na ponta, e ao mesmo tempo, acompanha as tensões no panorama macropolítico. Caldeira testemunhou o advento da AIDS, o olhar da saúde se voltando para os usuários de drogas invisibilizados, os embates para que o pertencente à justiça pudesse se tornar questão de saúde pública. Políticas Anti-drogas, Redução de Danos, Reforma Psiquiátrica, portarias dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): enfrentamentos, conquistas e retrocessos são tecidos no texto, dando consistência a construção de um campo problemático.
Esses registros, marcadores, são especialmente necessários no tempo presente, quando a memória do que é público, coletivo, tem sido sistematicamente corroída, apagada: vide o Posfácio do livro no qual a autora acrescenta, após tê-lo terminado, sobre o surgimento da Nota Técnica Nº 11/2019 (apelidada de “Nova Política Nacional de Saúde Mental”), que colocou em risco conquistas supostamente já estabelecidas. Um ataque frontal à Reforma Psiquiátrica, continuado em 2020 através de uma profusão de portarias e atos normativos. Um projeto de desmonte que embora esteja vingando através das mãos do grupo bolsonarista que atualmente ocupa o Ministério da Saúde, é muito bem assessorado pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Brasileira de Psiquiatria. São medidas que ameaçam não somente a luta antimanicomial e as disputas nas políticas de drogas, mas ao Sistema Único de Saúde, e toda a democracia.
Esse livro é uma provocação, em um momento no qual já não se esconde quão pouco as vidas valem, e que a categoria “humanos” continua em disputa. Mas, desconsiderando os discursos abertamente fascistas, e ficando com aqueles mais progressistas, dos “direitos humanos”, a autora nos provoca a nos perguntarmos, e a nossos pares, se teriam as meninas/mulheres negras ou não-brancas, em uso de drogas ilícitas, como o crack, direito à existência. Ou se haveria um conjunto de condicionalidades para que fossem promovidas à categoria humana, como por exemplo parar de usar crack, construir um plano futuro, retomar os estudos, arrumar um emprego, amar a criança que está na barriga. “Mães do Crack” fala diretamente com meu lugar de trabalhadora social - aquele lugar no quente da ponta dos serviços públicos de saúde mental, que deseja “o bem” de quem acompanha, mas se não puder deslocar-se de si, perde qualquer possibilidade de escutar algum pedido, de escutar qualquer coisa. “Foucault propõe que na direção cristã, três elementos são fundamentais: o princípio da obediência sem fim, o princípio do exame incessante e o princípio de confissão exaustiva” (Caldeira, 2021, p. 106). Se não estivermos atentos, não cedemos ao mecanismo do interrogatório, à extorsão da confissão?
Essas gestantes, em situação de rua, usando drogas ilícitas, que a autora faz aparecer diante de nós, são trazidas em uma perspectiva que aponta para a dignidade e a singularidade de todas as vidas. Sem condicionalidades. Tão perigosos quanto os agentes da lei, da segurança pública, são os especialistas em álcool e outras drogas. Aqueles que teriam a solução de quaisquer problemas, que saberiam o perfil de todos os usuários. Caldeira nos convida a perceber a moral imbuída na técnica, o afã de se debruçar sobre os efeitos dos acontecimentos. Ela nos lembra que não sabemos o que é uma usuária de drogas, uma mãe, e tampouco uma mulher.
Há muitas entradas nesse livro: a história do uso de drogas na cultura, o cenário nacional e internacional da guerra a algumas drogas, a criminalização da pobreza, as legislações, os discursos médico, jurídico, moral, midiático, o campo de disputas na saúde, as comunidades terapêuticas, a medicalização da vida, o poder da indústria farmacêutica, a escassez de pesquisas médicas sobre uso de crack na gravidez, e ainda assim a quantidade de verdades que se vociferam sobre tal associação. A sexualidade feminina inscrita na encruzilhada entre o corpo e o problema da população, o patriarcado do salário. Destaco as entradas que me chamaram do lugar de trabalhadora social, a saber: o que produzimos de diferença nesses territórios minados pelo poder, em uma perspectiva foucaultiana.
Essas meninas/mulheres chamadas de “mães do crack”, não porque o utilizem, mas porque negras, porque pobres, não são as únicas que fazem uso de drogas, mas elas quem são criminalizadas. A autora traz através de Federici a historicização da caça aos direitos das mulheres, sua fixação no trabalho doméstico e reprodutivo gratuito, estratégias para viabilizar a acumulação primitiva do capitalismo. Acompanhamos a função das mulheres desde o período colonial, seu lugar em relação aos homens, à família, ao cuidado das crianças. Entretanto, observo que no livro de Caldeira, uma categoria volta e meia aparece nomeada sem corte de gênero, idade, ou qualquer outra característica: “escravos”. Mas essas existências que se encontram nas ruas, nas ditas “cracolândias”, e que não podem esconder seu uso de drogas dentro de casa ou nas clínicas de reabilitação, não seriam herdeiras dessa história, dessa nomeação: “escravo”? “Corpos pobres, na sua maioria negros e considerados “perigosos”, destoantes dos padrões de normalidade instituídos, resistentes à ordem imposta e ocupando espaços da cidade, desafiam as práticas de circulação social e perturbam a ordem asséptica estabelecida” (Caldeira, 2021, p. 123).
O significante “mães do crack”, é problematizado ao longo de toda a leitura, como uma palavra de ordem que desumaniza, reduz, e que é útil para as estratégias de poder que precisam justificar quaisquer que sejam suas ações: violência obstétrica, rapto de crianças da maternidade para a adoção, sem qualquer consulta à família extensa, especulação imobiliária, internação compulsória. O que está por trás do crack? É uma das chaves de leitura possíveis da obra. Ao que a autora apresenta algumas possibilidades que se complementam: racismo, criminalização da pobreza, moralização do gozo, controle da sexualidade. Ela demonstra que antes do crack já havia miséria, rompimento de laços familiares, existência de enfermidades clínicas e de saúde mental, baixa escolaridade, alta incidência de violência doméstica e sexual. Na experiência da pesquisadora, na maioria das vezes o que é denominado “crack” é uma tentativa de suportar os sofrimentos. E a substância ilegal é apenas mais um fator de ameaça à saúde do bebê e das mães. “Entretanto, tendo sua construção subjetiva completamente assujeitada aos discursos “representantes da verdade”, ela se julga culpada, desajustada e, muitas vezes, merecedora de qualquer “castigo”” (Caldeira, 2021, p. 142).
Através do depoimento de um profissional de saúde, presente no texto, viemos a saber que após o nascimento, bebês prematuros recebem alta médica antes do tempo necessário, e que é comum virem a óbito. Sendo simples justificar tal ocorrência notificando que eram “bebês do crack”. Do mesmo modo que testemunhamos, através dessa pesquisa, a naturalização do ato de retirar os bebês automaticamente das mães. Crack: a resposta simples que serve para culpabilizar e invisibilizar a complexidade dos processos de exclusão social. O “Fórum Permanente sobre Maternidade, Drogas e Convivência Familiar”, inaugurado em 2013 no estado do Rio de Janeiro, é apresentado como um importante ator na construção coletiva de estratégias que evitem a judicialização dos casos de gestantes usuárias de drogas.
Sobre a criminalização cotidiana dessas mulheres, a maneira com que são tratadas nos espaços por onde circulam, inclusive nos dispositivos de saúde, está intrinsicamente relacionada a uma política que se chama de “guerra às drogas”, mas que tem como alvo alguns corpos, consumidores (ou não) de algumas substâncias. O livro nos incita a não perder de vista o que há por detrás do discurso midiático sobre o crack (“epidemia do crack”, como se fosse algo contagioso), o que há para além do reality show da “cracolândia” (sem romantizar, a autora chama a atenção para o fato do termo homogeneizar uma multiplicidade de relações territoriais heterogêneas). As drogas para quem está na rua, ou em outros contextos, não é sempre o problema, e às vezes opera como solução frente a determinadas situações limites: as drogas não são necessariamente causa de alguma coisa, podem ser efeito.
A autora avalia que o maior número de usuários e dependentes de drogas na sociedade contemporânea são os consumidores de produtos da indústria farmacêutica. E recuperando uma expressão de Paulo Amarante, provoca: mas ninguém dirá “Prozac: é possível vencer”. Tampouco: “Rivotril: é possível vencer”, “Skol, é possível vencer”. Porque a construção do inimigo público a ser combatido, e até exterminado, envolve outros signos: o mal, o comunista embaixo da cama, o traficante na porta da escola injetando cocaína em bala de crianças, o “crackudo”, o “nóia”, o traficante, esse homem mau com uma faca na mão. É importante considerar qual a cor desses personagens produzidos nesse espetáculo midiático. O dispositivo da periculosidade justifica o Estado racista-punitivo-genocida. Guerra às drogas, guerra aos pretos, guerra aos pobres. Estratégias eficazes, cujas balas e sistemas de punição/encarceramento encontram os corpos certos.
Ao mesmo tempo, “vivemos em uma sociedade que criminaliza e pune a venda e o uso de algumas drogas e fomenta e prescreve o uso de outras, como estratégia de disciplinarização de saberes e corpos” (Caldeira, 2021, p. 143). Por quais razões anestesia-se o sofrimento e a angústia com drogas lícitas e pune-se o usuário de drogas ilícitas? E, argumenta a autora, as drogas lícitas quando indicadas por especialistas, porém sem o acompanhamento de outros cuidados de atenção integral, não seriam uma substituição das drogas ilegais? Com Foucault ela traça as nuances entre legalidade e ilegalidade, explicitando que o sistema de punições não visa extinguir ou reprimir a infração, mas “riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as ilegalidades”. (Foucault, 1991, p. 240 citado em Caldeira, 2021, p. 177).
Por falar em especialistas, deixemos de lado por hora os grupos salvacionistas que julgam ter soluções simples para as consequências do uso de drogas - seja a criminalização, a internação compulsória, a medicalização, a religião, ou o trabalho forçado. Se pensarmos naqueles que se debruçam no campo da saúde pública, seguindo as diretrizes dos direitos humanos, da redução de danos, os trabalhadores dos Consultórios na Rua, dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad: escapamos ao chamamento desse lugar de juízes, policiais das condutas alheias? Nos diários de pesquisa de Caldeira encontramos uma moça que repete a sentença: “Todos mentem. Trata-se de uma recém-mãe que perde a guarda do seu filho mesmo cumprindo os protocolos que esperam dela. A mãe que fica embotada durante seu tratamento, que aos técnicos parecia ter algum déficit intelectual, a mãe que passa por uma audiência e assina um papel que lhe nega seu filho, sem sequer ter entendido o que se passou. Diz mais tarde à equipe técnica, quando entende o que está acontecendo: “Todos mentem”. Parece saber o que nós trabalhadores sociais nos recusamos a enxergar.
“Elas têm pavor dos médicos”, “Não fazem o pré-natal”, “Não contam espontaneamente que usam drogas”, aparece nos depoimentos dos profissionais de saúde elencados pela autora. Esses profissionais relatam o quanto as gestantes em situação de rua chegam alteradas quando no momento do parto, no sentido de perturbar a dinâmica dos espaços da saúde: chegam sujas, gritam, travam as pernas. Essas mulheres são sempre vistas como violentas, inadequadas, mesmo no momento específico de parir. Mas a violência dos jalecos brancos, a violência perfumada dos entrevistadores midiáticos que vão perguntar para uma recém-mãe, do mal que ela faz para seu bebê por usar crack, conforme relatado pela autora, essa violência comumente não ganha ênfase, não escandaliza. O que isso tem a ver conosco?
Discute-se ao longo do livro a questão do acesso à saúde. Poder chegar, e permanecer em um tratamento digno e de qualidade. “Que espaços podem ser abertos para uma transformação que viabilize a desconstrução do olhar que enquadra, julga, culpabiliza, condena e pune as mulheres gestantes usuárias de crack?” (Caldeira, 2021, p. 172). Indaga-se se enquanto profissionais reproduziremos o instituído ou enfrentaremos as condutas racistas, padronizadas e universalizadas. “É importante identificar as prescrições que embasam nossa conduta, os modelos que reproduzimos e as concepções de vida e saúde que estão em jogo nessa reprodução” (Caldeira, 2021, p. 173).
Esse trabalho aposta na necessidade de deslocamentos dos dispositivos moral, religioso, jurídico, policial, para acessar a multiplicidade de acontecimentos, vozes, corpos, para fazer ver e ouvir de outros lugares. Tal a cena do diário de campo da autora, no qual uma moça lhe entrega uma arma para poder permanecer na oficina sem desobedecer às regras da instituição. Não pode andar desarmada e não quer perder um espaço importante para ela. Nervosa, Caldeira constrói parcerias para sustentar que a moça possa permanecer no seu espaço de tratamento. Colocar em análise nossos lugares dentro das tecnologias de saber e de poder que produzem o cuidado tem pouco de passividade. A imagem do conceito de rizoma, de Deleuze e Guattari, aponta a delicadeza dessa função contra hegemônica. Rizoma é a parte da planta que fica abaixo da superfície e realiza trocas estreitas, quase indistinguíveis, com o solo. Não é destinada a virar um tronco unificado e irromper como árvore, “existe enquanto múltiplos processos de troca com o ambiente, sendo caracterizado, portanto, por um infinito interior (...) Não é um sistema ordenado de passagens, ao contrário, funciona como via, desvio, caminhos secretos” (Caldeira, 2021, p. 34).
Nesse sentido, a autora convida a afirmação de práticas singulares, construídas artesanalmente junto dessa população, no exercício rizomático aberto ao inesperado, ao virulento, ao abjeto. Não se trata, contudo, de práticas clínicas de consultório, de gabinete. Aposta-se nas políticas públicas, na necessidade de financiamento, de resistência, de equipes sensíveis. Essa é uma pesquisa para quem está na área de drogas, certamente, mas também na saúde mental, na atenção básica, nas redes hospitalares, na assistência social. E trazendo o prefácio escrito por Estela Scheinvar, orientadora de tese da autora, fica a questão: por que achamos que isso é sobre essas mulheres usuárias de crack e que não teria nada a ver conosco, com nossos modos de existência?