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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2022  Epub 06-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.69558 

PSICOLOGIA SOCIAL

Mediação Familiar Judicial: Contribuições da Análise Institucional

Judicial Family Mediation: Contributions from Institutional Analysis

Mediación Judicial Familiar: Aportes del Análisis Institucional

Juliana Toledo Araújo Rocha  * 

Professora Adjunta do Departamento de Direito Privado do Centro de Ciências Jurídicas (UFPB). Mestre em Psicologia Social (UFPB) e doutoranda em Psicologia (UFRN).


http://orcid.org/0000-0002-0666-5500

Magda Diniz Bezerra Dimenstein** 

Professora visitante - UFC. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - UFRN. Mestre pela PUC/RJ e Doutora pela UFRJ. Pós-Doutorado (Espanha e UFC).


http://orcid.org/0000-0002-5000-2915

*Universidade Federal da Paraíba - UFPB, João Pessoa, PB, Brasil.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, RN, Brasil

**Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, RN, Brasil


RESUMO

Conhecida como um meio consensual de administração de conflitos, a mediação, ao lado da conciliação, está cada vez mais presente e divulgada no Brasil. No âmbito jurídico, tem sido adotada como estratégia política de reforma do Judiciário. Seu caráter interdisciplinar busca uma justiça restaurativa, não punitiva, mesclando conhecimentos do Direito, da Psicologia e da Comunicação. A mediação, especialmente, a familiar, objetiva prover famílias em conflito de ferramentas de resolução a fim de responsabilizá-las nas tomadas de decisão, bem como promover equilíbrio entre deveres e direitos, estabelecendo confiança e respeito entre seus membros. Este artigo, recorte de uma pesquisa empírica de doutorado, objetiva apresentar as contribuições da perspectiva da Análise Institucional em relação à mediação judicial no âmbito familiar, a partir de uma leitura crítica das propostas consensuais da área, apontando as “encomendas” e “demandas” feitas aos mediadores em suas práticas. Metodologicamente, adotou-se uma perspectiva qualitativa, em que foram utilizadas observação da realidade institucional e entrevistas semiestruturadas realizadas com os mediadores familiares. Elucidaram-se analisadores, emergidos da leitura dos dados construídos no campo e, em seguida, observaram-se as linhas de forças operadas nesse dispositivo.

Palavras-chave: mediação familiar; mediação judicial; análise institucional

ABSTRACT

Known as a consensual means of conflict management, mediation, alongside conciliation, is increasingly present and disseminated in Brazil. In the legal field, it has been adopted as a political strategy for the Judiciary reform. Its interdisciplinary character seeks restorative, non-punitive justice, mixing knowledge of Law, Psychology and Communication. Family mediation aims to provide tools of resolution to families in conflict in order to hold them accountable in decision-making, as well as promote a balance between duties and rights, establishing trust and respect among its members. This article, part of an empirical doctoral research, aims to present the Institutional Analysis perspective contributions related to judicial mediation in the family sphere, from a critical reading of the consensual proposals in the area, pointing out the “orders” and “demands” made to mediators in their practices. Methodologically, a qualitative perspective was adopted, in which observation of the institutional reality and semi-structured interviews conducted with family mediators were used. Analyzers were elucidated, emerged from reading the data constructed in the field, and then the lines of forces operated on this device were observed.

Keywords: family mediation; judicial mediation; institutional analysis

RESUMEN

Conocida como un medio consensuado de manejo de conflictos, la mediación, junto a la conciliación, ha estado cada vez más presente y difundida en Brasil. En el ámbito legal, ha sido adoptada como estrategia política para la reforma judicial. Su carácter interdisciplinario busca la justicia reparadora, no punitiva, mezclando conocimientos de Derecho, Psicología y Comunicación. La mediación, especialmente familiar, tiene como objetivo proveera las familias en conflicto de herramientas de resolución para responsabilizarlas en la toma de decisiones, así como promover el equilibrio entre deberes y derechos, estableciendo confianza y respeto entre sus miembros. Este artículo, parte de una investigación empírica de doctorado, tiene como objetivo presentar los aportes desde la perspectiva del Análisis Institucional en relación a la mediación judicial en el ámbito familiar, a partir de una lectura crítica de las propuestas consensuadas en el área, señalando las “órdenes” y “demandas” que se hacen a los mediadores en sus prácticas. Metodológicamente, se adoptó una perspectiva cualitativa, en la que se utilizó la observación de la realidad institucional y entrevistas semiestructuradas realizadas con mediadores familiares. Se dilucidaron los analizadores, surgidos de la lectura de los datos construidos en el campo, y luego se observaron las líneas de fuerzas operadas en este dispositivo.

Palabras clave: mediación familiar; mediación judicial; análisis institucional

A mediação de conflitos constitui um meio consensual de administração de conflitos, e ao lado da conciliação, vem se mostrando cada vez mais presente e divulgada no Brasil, sobretudo no âmbito jurídico, onde foi adotada como uma das estratégias políticas da reforma do Judiciário. Apresentando-a como prática na qual confluem, principalmente, saberes e fazeres da Psicologia e do Direito, os mediadores tendem a atribuir-lhe contornos de um campo que se distingue tanto do Direito quanto da Psicologia. Seu caráter interdisciplinar busca uma justiça restaurativa, não punitiva, mesclando princípios fundamentais do Direito, conhecimentos da Psicologia e da Comunicação.

O reconhecimento das mudanças sociais e da complexidade das relações familiares reivindica estudos acerca das dinâmicas familiares e das relações entre pais e filhos, atualmente um enorme desafio a enfrentar. As frequentes dissoluções conjugais, as diferentes organizações familiares, monoparentais, multiparentais ou recompostas, fomentam a necessidade de estudos acerca das dinâmicas dessas relações, assim como o desenvolvimento de estratégias e técnicas que permitam minimizar os conflitos e sofrimentos decorrentes de separações, perdas e rupturas nas relações familiares.

Os familiares, em conflito, tendem a se envolver em seus próprios sofrimentos e, muitas vezes, não conseguem objetivar suas necessidades e/ou de seus filhos, impossibilitando-os de tomarem suas próprias decisões. Nessas circunstâncias, recorrem ao Judiciário (Varas de Família) em busca de um terceiro que os auxilie a resolver os seus conflitos, uma vez que, mesmo eivado de ressentimento e hostilidade, encontra no processo judicial o único canal de comunicação. Buscam a Justiça para resolver questões como divórcio, pensão alimentícia, guarda de filhos ou visitas destes ao genitor não guardião, adoção unilateral, investigação e reconhecimento de paternidade, cujos relacionamentos conflituosos os impedem de decidir seus próprios interesses. No entanto, tais conflitos não chegam a ser solucionados com a mera sentença judicial. Isso torna-se claro quando se verifica o retorno das partes à Justiça, não conformadas com a decisão proferida inicialmente.

Nesse cenário, a mediação, no âmbito familiar, objetiva fomentar a autonomia das famílias em conflito, a fim de responsabilizá-las nas tomadas de decisão, bem como promover equilíbrio entre deveres e direitos, estabelecendo um clima de confiança e respeito entre seus membros. Neste artigo, abordaremos a mediação de conflitos, privilegiando a mediação familiar judicial enquanto campo de saber-fazer interdisciplinar e institucionalizado, em estreita relação com as práticas judiciais das Varas de Família, em que mediadores (independentemente de sua formação básica, psicológica ou jurídica) tendem a atribuir à mediação contornos de uma área que se distingue tanto do Direito quanto da Psicologia.

Por outro lado, sabemos o quanto o espaço jurídico, fortemente marcado pela norma, pela lei e, portanto, pela moral, é atravessado por concepções estanques e conservadoras. Não poderia ser diferente nas Varas de Família, espaço institucional onde se produz certos modos de estar no mundo, certos modos de ser pai e de ser mãe. Com base nisso, destacaremos a contribuição da perspectiva da Análise Institucional como ferramenta teórica e metodológica no âmbito da mediação familiar judicial, destacando algumas categorias analíticas e, sobretudo, alguns analisadores que contribuíram para a compreensão da atuação dos mediadores judiciais no âmbito familiar.

Mediação de Conflitos Familiares: Uma Proposta em Análise

As últimas décadas têm sido marcadas por mudanças importantes no campo das relações humanas, na definição de papéis e lugares de gênero, com aumento acelerado do número de separações conjugais, aquisição por parte da criança de um status diferenciado que lhe permite ter um lugar próprio na família, mudanças na legislação de vários países no que concerne ao funcionamento familiar e, talvez, no fulcro dessa reviravolta, a ampla difusão da Psicologia e da Psicanálise, permitindo uma atenção às necessidades dos indivíduos. Estas e outras transformações têm trazido enormes desafios às famílias, ou à entidade familiar, como tem sido mais amplamente denominada, e aos profissionais que a cercam quando do advento de uma crise, especialmente na separação e no divórcio, situações que geram comumente disputas e brigas. Os “filhos do divórcio”, como são conhecidos, experimentam os prejuízos do desfazimento do projeto familiar ou são, frequentemente, usados como meros instrumentos de agressão entre os pais.

No Direito das Famílias, o número de questões familiares que tramitam nas Varas de Família vem aumentado em proporções consideráveis nos últimos anos. Os pais buscam a instância judiciária como meio de solucionar os conflitos precipitados na separação e garantir seus direitos, inclusive, de participar integralmente da vida dos filhos. Os casais separados buscam a Justiça para resolver questões como divórcio, pensão alimentícia, guarda de filhos ou visitas destes ao genitor não guardião. O processo e a sentença judicial têm sido questionados nos últimos anos como resultado justo e adequado à resolução de conflitos, especialmente nos casos de conflitos familiares. A mediação surge, dessa forma, como uma nova possibilidade para esse fim, baseada nas necessidades, desejos e interesses dos envolvidos. Com esse método se pressupõe que os familiares em sofrimento terão voz e possibilidade de autogerenciamento.

O termo mediação procede do latim mediare, que significa mediar, intervir, colocar-se no meio. Derivada da palavra mediatione, também quer dizer intercessão, intermédio ou intervenção com que se busca produzir um acordo (Ferreira, 2001). Logo, entende-se por mediação um processo no qual um terceiro “imparcial” facilita a resolução do conflito por meio da promoção de acordos voluntários entre os conflitantes, sem prescrever qualquer solução.

Para Serpa (1999), esse método de solução de disputas é flexível e não obrigatório, em que um terceiro tenta (re)estabelecer o diálogo e a confiança entre as partes, baseado na autonomia de suas vontades. Além de ser um meio de acesso à Justiça, a mediação é uma política pública que vem ganhando cada vez mais destaque e fomento do Ministério da Justiça, da Secretaria de Reforma do Judiciário e do CNJ.

A mediação tem sido compreendida como uma forma de tratamento em vez de resolução de conflitos, justamente por entender que os conflitos sociais não são solucionados pelo Judiciário no sentido de resolvê-los ou eliminar as causas, as tensões que os originam. Isto porque “a supressão dos conflitos é relativamente rara. Assim, como relativamente rara é a plena resolução dos conflitos” (Bobbio & Pasquino, 2004, p. 228). Ou seja, torna-se difícil a eliminação das causas, das tensões, dos contrastes que os originaram. Por conseguinte, a expressão “tratamento” torna-se mais adequada enquanto ato ou efeito de tratar ou medida terapêutica de discutir o conflito buscando uma resposta satisfatória. Essa terminologia foi utilizada pelo próprio CNJ, a partir da Resolução n. 125 (2010), quando se propõe a implantar a “Política Judiciária de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses”.

Rocha e Porto (2012) destacam que é através desse método alternativo que se busca atingir um dos maiores e mais desafiadores temas da Justiça: o desenvolvimento de procedimentos justos quanto aos resultados e quanto à forma de participação dos jurisdicionados na relação jurídica processual. Embora contemporaneamente seja um procedimento inovador, Breitman e Porto (2001) referem que a mediação tem suas origens e razões na civilização chinesa, com aproveitamento de costumes e utilização de antigas descobertas em situações semelhantes. Costuma-se recorrer a algumas tradições religiosas e às culturas chinesa, japonesa, africana, culturas indígenas, dentre outras. Encontra-se como uma das primeiras formas hábeis de resolver os conflitos, muito antes do surgimento do Estado como um ente politicamente organizado e monopolizador da tutela jurisdicional (Spengler, 2010).

A mediação chegou ao Brasil por intermédio de duas frentes distintas. Em São Paulo, o modelo francês aparece no ano de 1989 e, no sul do país, o modelo norte-americano, chega através da influência argentina na década de 1990. Contudo, ambos os modelos estavam voltados a soluções de conflitos familiares. Somente após a vigência da Resolução n. 125 (2010) do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que implantou sistema “multiportas” no Brasil, estimulando o uso de mecanismos diversificados para solução dos conflitos, é que a mediação, ao lado da conciliação e da arbitragem, ganhou notoriedade. Ainda, em 2015, a mediação foi regulamentada pela Lei n. 13.140 (2015), publicada em 29 de junho de 2015 e em vigor desde 26 de dezembro de 2015, que dispõe sobre “a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública” e dá outras providências. Com esses marcos normativos, a mediação assume um lugar mais significativo nas dinâmicas de administração de controvérsias.

Atualmente, a mediação vem sendo amplamente debatida no intuito de encontrar meios para responder a grande dificuldade de comunicação. Isso vem gerando outras práticas de tratamento de conflitos de modo responsável por indivíduos, organizações e comunidades, possibilitando o diálogo e promovendo uma mudança de paradigmas. Essas práticas se conduzem por caminhos diversos daquele até então privilegiado pela cultura jurídica que funcionava em torno de uma lógica determinista binária, na qual as opções estavam limitadas a “ganhar” ou “perder”. Essas práticas passam a observar a singularidade de cada participante do conflito, construindo as bases de um tratamento efetivo, de modo colaborativo e consensualizado.

Com base em conhecimentos do Direito, da Psicologia e da Comunicação, a mediação se organiza em torno de alguns objetivos: busca alcançar uma boa administração dos conflitos, reestabelecer um vínculo social por meio da participação efetiva e o acesso à Justiça. Tem sido um instrumento de tratamento de variados tipos de conflitos (familiares, cíveis, escolares, consumeristas, dentre outros), possibilitando tratá-los tanto em contexto judicial como extrajudicial. Dentre os elementos essenciais da mediação, a autonomia da vontade das partes ocupa um lugar central, pois o caráter voluntário constitui-se a grande mola propulsora da atividade. A mediação é fruto do consenso com relação às questões debatidas ao longo de um processo. Por isso, não há como impor a mediação, pelo contrário, o método visa propiciar um ambiente de cooperação, contribuindo para a construção de uma justiça cidadã. E esse é um aspecto significativo e diferencial de seu procedimento: não é o mediador quem trará a solução - como ocorre na arbitragem ou na justiça estatal - mas sim as próprias partes. Por isso, o acordo que possa surgir de um processo mediativo traz uma solução mutuamente aceitável e será estruturado de forma a preservar as relações dos envolvidos no conflito (Müller, 2005).

A mediação se apresenta, pois, como um modelo alternativo de justiça, no sentido de dar mais uma opção aos indivíduos e às comunidades e tornando-se, assim, mais próximo a esses pela característica de passar as “rédeas” da solução de conflitos para os próprios envolvidos, não para o Judiciário. Walgrave (1993), citado por Oliveira (2010), fala em “conflito roubado pelo Estado” e defende que o Estado deve devolver às partes o poder de resolução de seus problemas. Nem todos os que se ocupam da mediação concordam com a tão aclamada necessidade de juridicização através da criação de legislação específica que a regulamente determinando seus objetivos, formas e possibilidades. O temor surge da possibilidade de perda de seu caráter não decisionista de tratamento de conflitos.

Para Oliveira (2010), no que se refere aos princípios de atuação, enquanto a mediação supõe a discussão entre as partes conduzida por um terceiro dito imparcial, não comprometido de nenhuma forma com um determinado resultado do conflito, a conciliação, também conduzida por um terceiro, está comprometida com a extinção do processo/resolução da lide, centrando sua atenção no resultado final, entendido como representativo da “pacificação” do conflito e do retorno ao status quo ante. Isto é, enquanto a mediação aposta na explicitação dos argumentos para que as partes decidam por si mesmas, por outro lado, a conciliação pretende acomodar os interesses conflitantes das partes para que a harmonia volte a reinar entre elas e o processo finalize.

No âmbito familiar, a mediação surge em um cenário de grandes transformações relacionadas à ordem econômica e à organização do trabalho, aliadas ao fortalecimento da lógica individualista, à perda de valores tradicionais e a liberalização de hábitos e costumes (Giddens, 1993). Isso tem produzido rebatimentos na família contemporânea que não se configura mais num espaço unicamente econômico e de reprodução. “O traço principal que a identifica é o vínculo da afetividade” (Müller, 2005, p. 45). Percebe-se que, no atual momento histórico, em que a dimensão da vida privada individual é cada vez mais valorizada, ao ampliar-se o espaço social para o desenvolvimento da individualidade, posições familiares, até então pré-balizadas, tornam-se cada vez mais conflitivas. Portanto, o desafio das relações familiares na atualidade consiste em conciliar a vivência da individualidade ao projeto coletivo que pressupõe a família e suas relações, que envolvem o compromisso mútuo de responsabilidade, cuidado e proteção dos seus membros.

Novas formas de “ser família” vêm sendo constituídas através das separações conjugais, recasamentos, adoções, os marcadores de gênero e sexualidade, abrindo espaço para outras possibilidades de parentalidade e de vínculos afetivos. Tais transformações nas relações familiares, de um modo geral, repercutem sobre as configurações e modos de relacionamento, provocando focos de tensão e atrito cotidianamente. Diante desse contexto conflituoso, é premente um redimensionamento dos papéis, de reconhecimento e significação legal. Assim, o Judiciário é chamado a atuar, como um terceiro solucionador de impasses, quando as partes envolvidas não estão sendo capazes de resolver. Contudo, o Judiciário lida com os conflitos familiares, colocando o juiz como um terceiro apto a decidir e solucionar questões que envolvem vínculo afetivo entre os indivíduos. Algumas varas de família contam com equipes multidisciplinares, formadas por psicólogos e assistentes sociais, mas, assim mesmo, as decisões cruciais são tomadas pelos juízes.

Os conflitos vividos pela família requerem um tratamento diferente, devido ao alto nível de complexidade afetiva. Diversamente de outras áreas, nas questões de família há inegavelmente um envolvimento diferente. A medida da necessária distância profissional para esses casos é mais difícil, pois as questões vividas pelas famílias tocam consciente ou inconscientemente a todos. São essas situações que, devido ao sofrimento, despertam as reações mais passionais ou a maior frieza (Groeninga, 2007). É na tentativa de discutir todas as questões envolvidas, principalmente as de natureza emocional, que estão na raiz do conflito, que se propõe a mediação familiar. Segundo Marodin e Breitman (2002, p. 480), a mediação familiar auxilia a preservar as relações entre os membros da família, evitando-se o “esfacelamento dos vínculos”.

Breitman e Porto (2001) apontam que a mediação familiar busca seus pressupostos teóricos na Psicologia, como a escuta ativa, a autonomia das partes, conotação positiva, reenquadramento e paráfrase, especialmente, na Terapia Familiar Sistêmica e em outras disciplinas, como a Teoria da Comunicação, a Teoria do Conflito e o Direito de Família, para alicerçar sua prática, pois as crises geradoras de embates são, em geral, de ordem psicológica e social. No entanto, apesar de se constatar que há uma percepção excessivamente positiva sobre a mediação, isto é, uma compreensão estritamente favorável acerca de sua utilização por parte da literatura hegemônica sobre mediação, suas propostas não deixam de ser alvo de críticas, principalmente quando se trata da mediação judicial. Ao introduzir a mediação no sistema jurisdicional evidencia-se que vários autores como Fiss (2004), Coimbra et al. (2005), Groeninga (2007), Spengler (2010), Mello e Baptista (2011) e Oliveira (2010), já vinham indicando sérias limitações e riscos decorrentes da aplicação massiva e irrestrita da mediação, questionando, por sua vez, sua implementação no Judiciário brasileiro.

Groeninga (2007), em particular, em relação à mediação familiar judicial indica que vem sendo realizada em diversos tribunais por mediadores voluntários (não remunerados) de diferentes áreas, e que, em sua perspectiva, ocorre na intenção de aliviar o volume de trabalho no Judiciário. Destarte, preocupa-se com a má utilização da técnica, a possibilidade de sua banalização e, ainda, com o uso inadequado dos conhecimentos e práticas psicológicos. Vale destacar que, conforme regulamentado nos artigos 21 a 29 da Lei da Mediação, Lei n. 13.140 (2015), a mediação pode ser utilizada como uma alternativa ao processo judicial, mas também pode ser empregada de forma incidental, no próprio processo ou autonomamente. Ou seja, há três formas de mediação: a extrajudicial, que acontece sem a intervenção estatal; a pré-processual, realizada pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) antes do ajuizamento; a judicial, que se dá por meio da audiência judicial de mediação, a qualquer momento processual. O ponto de crítica gira em torno do risco de reduzi-la à condição de um mero instrumento a serviço de um Sistema Judiciário em crise. “A sua institucionalização pode resultar útil se observada conforme critérios econômicos, mas perigosa de acordo com critérios jurídico-políticos” (Spengler, 2010, p.48). Questiona-se também se a implementação da mediação como medida judicial estaria relacionada à busca prioritária dos tribunais por celeridade; se o uso desses mecanismos alternativos estaria a serviço apenas de esvaziar as prateleiras dos tribunais, já que para Mello e Baptista (2011, p. 119) “muitas mudanças empreendidas no processo brasileiro atual visam, em vez de melhorar a qualidade dos procedimentos judiciais e da prestação jurisdicional, desafogar o Judiciário”.

Dessa forma, a mediação familiar torna-se uma ferramenta polêmica na perspectiva da Análise Institucional. Consideramos que, enquanto arcabouço teórico-metodológico, abre possibilidades de questionamento de vários dos pressupostos e finalidades da mediação familiar. Todavia, tem, especialmente, a potencialidade de nos ajudar a conhecer que “encomendas” e “demandas” são feitas aos mediadores em suas práticas no Direito das Famílias; a analisar as forças (instituições) que atravessam a produção dessa demanda, bem como as intervenções propostas pelos mediadores (análise da oferta). É nesse sentido que avançaremos a seguir.

A Análise Institucional como Ferramenta Teórico-metodológica no Âmbito da Mediação Familiar Judicial

A Análise Institucional (AI) apresenta-se como uma potente ferramenta de problematização da mediação familiar judicial na medida em que visa descobrir o não dito das instituições, sendo a família, o Direito e a Psicologia, instituições por excelência. A AI contesta a ciência pragmática e reconhece a complexidade inscrita em todo contexto organizacional: as disputas de poder, as lógicas corporativas, a dificuldade de governabilidade e os frequentes reducionismos. Essa perspectiva oferece uma caixa de ferramentas para o manejo desse complexo processo das organizações, procurando elucidar as práticas sociais a partir das ações dos coletivos, revelando as relações que os indivíduos e grupos estabelecem entre si, trazendo à tona a história da organização. Uma forma de evitar equívocos de intervenção institucional é a análise permanentemente da demanda, é ver a situação concreta da organização, suas relações com o conjunto do sistema social (Lourau, 2014). A mediação de conflitos inserida nas Varas de Família, ou seja, nas dependências do Judiciário, submete-se a diversas situações de difícil gestão, tanto de ordem operativa quanto reguladora, deparando-se com uma realidade que põe em risco alguns princípios da mediação, já que é vivenciada pelos atravessamentos da instituição e da organização. Daí ser objeto privilegiado de manejo pela Análise Institucional.

A partir de movimentos sociais ocorridos na década de 1960 na França, momento de grande efervescência política, cultural e social, relacionada aos movimentos que tinham como finalidade contestar as instituições francesas, surge a AI. Rodrigues (2000) situa seu advento a partir de conflitos entre intelectuais, políticos, universitários, bem como diversos atores sociais. Esse processo foi marcado por um intenso diálogo crítico com diversos campos de saber como a sociologia, o marxismo, a filosofia do direito, a pedagogia, a psicossociologia, a psicanálise, entre outros (Rodrigues, 2007), dando origem a diferentes perspectivas como a Análise Institucional, a Socioanálise e a Esquizoanálise.

A AI e a Socioanálise se embasam na dialética (apoiada em Hegel e Castoriadis) e são originadas, sobretudo, das obras de René Lourau e Georges Lapassade, enquanto a Esquizoanálise é inspirada na Filosofia da Diferença e está vinculada às obras de Félix Guattari e Gilles Deleuze (Baremblitt, 2002). Apesar de alguns conceitos comporem tanto uma corrente quanto outra, dificultando a designação de limites precisos entre elas (L’Abbate, 2012), temos a pretensão de nos aproximar da vertente louraudiana e lapassadiana. De acordo com Baremblitt (2002), o Movimento Institucionalista emergiu visando promover movimentos de autoanálise e de autogestão em grupos, estabelecimentos, comunidades e instituições, partindo de uma crítica sobre os efeitos de alienação institucional ocasionados pela heterogestão e também da proposta de desmistificação do saber denominado científico. No contexto brasileiro, a Análise Institucional surge na década de 1970, em departamentos e grupos de pesquisa de universidades brasileiras. Na experiência brasileira há uma mistura de conceitos dessas duas vertentes e também outras formas de trabalho grupal (Rodrigues, 2000; Benevides, 2005).

Enquanto metodologia, a AI esboça um caminho próprio para a compreensão dos fenômenos sociais, já que sua tarefa é descobrir, desvelar o não dito das instituições, a partir da problematização, do questionamento às instituições ocultantes (Lourau, 2004). Tendo por objetivo compreender uma realidade social e organizacional, a partir das práticas e discursos dos sujeitos, desvelando a relação dialética instituinte-instituído-institucionalização em todos os âmbitos sociais, a AI “pode intervir EM estabelecimentos e COM dispositivos, mas sempre visando apreender a instituição em seu sentido ativo” (Rodrigues & Souza, 1987, p. 34).

Seguindo essa diretriz, apresentaremos alguns conceitos da AI como subsídios teóricos e metodológicos para a problematização da mediação familiar judicial. Essa perspectiva nos auxilia a entender que encomendas são feitas aos mediadores no âmbito judicial, como compreendem tais solicitações, ao mesmo tempo o que ofertam aos usuários e aos magistrados que encaminham os casos ditos mediáveis. Assim, a AI permite visualizar a mediação de conflitos familiares inserida num jogo de forças e mostra-se como uma lente adequada para descortinar alguns dos mecanismos que nelas atuam e a relação dialética instituinte-instituído-institucionalização.

Instituição

O termo “instituição’ pode ser tomado em vários sentidos, o que demonstra a densidade dos estudos de autores que se propuseram a estudá-lo. O pensamento de Lourau acerca das instituições situa-se no entrecruzamento de várias correntes das teorias institucionais: a Filosofia do Direito, o Marxismo, a Sociologia, a Psicanálise e a Psicossociologia (Lourau, 2014; Hess, 2004). O instituído corresponde àquilo que é aparente, visível, identificado da instituição. O instituinte consiste naquilo que desloca, provoca, movimenta o instituído, isto é, são forças de subversão e de mudança. E esta dialética do instituído e instituinte corresponde, por sua vez, ao processo de institucionalização (Lourau, 2014).

Para Lapassade, as instituições são “formas”, produtos históricos de uma sociedade instituinte que produzem e reproduzem as relações sociais e se instrumentalizam em estabelecimentos e/ou dispositivos (Rodrigues, 2000). Isto é, instituição, na visão da AI, não é sinônimo de estabelecimento, mas de produções históricas, reproduzidas por práticas sociais hegemônicas, muitas vezes tomadas como naturais. Embora aparente rigidez em suas formas, as instituições estão em constante processo de criação.

Entendemos que o conceito de instituição se materializa em dispositivos - as organizações - que por sua vez compõem-se de unidades menores, nomeadas de estabelecimentos. Os estabelecimentos costumam incluir dispositivos técnicos: as instalações materiais, maquinaria, arquivos, aparelhos. Esse conjunto de elementos recebe o nome de equipamentos. Todos esses elementos: instituição, organização, estabelecimento, equipamento, adquirem dinamismo por meio dos agentes (atores institucionais). Os atores institucionais protagonizam as práticas sociais, que podem ser verbais, não-verbais, discursivas, teóricas ou técnicas (Altoé, 2004).

Essas distinções permitem problematizar a própria constituição do campo da mediação familiar no Judiciário e considerá-la como uma instituição, as Varas de Família como organizações e o Tribunal de Justiça, um estabelecimento. Ou seja, pode-se compreender a mediação familiar como um produto histórico, que reproduz as relações sociais e as lógicas hierárquicas de nossa sociedade, que se instrumentaliza em estabelecimentos como as Varas de Família, por meio de dispositivos como as práticas jurídicas e psicológicas e de certos atores como os mediadores, juízes, psicólogos. Porém, tem também um caráter instituinte no processo de construção de uma nova Justiça, no sentido de atualizar as práticas do fazer justiça e do próprio Judiciário, bem como de possibilitar o reordenamento de práticas sociais instituídas nas famílias.

Implicação

Para esclarecer o conceito de implicação, Lourau (2004, 2014) parte da premissa de que não existe neutralidade na relação que cada um de nós estabelece com seu objeto de pesquisa e seu campo epistemológico, seu objeto de intervenção e de trabalho, assim como com a sociedade onde vivemos. Pelo contrário, na realização de todas as atividades nas quais nos inserimos, estamos implicados dos pontos de vista afetivo, profissional, social, político, ideológico e ético.

Para a corrente institucionalista, a implicação é um nó de relações (Lourau, 2004), conexões que o pesquisador estabelece com as múltiplas instituições que o atravessam: sexo, família, posição socioeconômica, política, justiça e outros. Sendo assim, podemos afirmar que implicado sempre se está, uma vez que tais relações não podem ser renegadas para fins de obtenção de uma ciência neutra. A noção de implicação romperá com a perspectiva positivista, problematizando o distanciamento entre objeto a ser conhecido e sujeito que conhece.

Dessa forma, considera-se que não poderia ser diferente com os mediadores e também com os pesquisadores. Nessa perspectiva, os pesquisadores são, o tempo todo, movidos pelas suas escolhas afetivas, ideológicas e profissionais, com relação à sua prática de pesquisa e/ou de intervenção. A posição ocupada por uma das autoras desse artigo na coordenação do Núcleo de Mediação (MEDIAC), orientando e supervisionando alunos nas mediações, e sua implicação com o tema, motivou o interesse no objeto investigado, contrapondo-se, ao mesmo tempo, à ideia da neutralidade (Minayo, 2007), advinda do positivismo.

A análise das implicações é fundamental ser operada e aqui, particularmente, foi posta em prática no contato de uma das autoras com os mediadores, participantes de sua pesquisa doutoral (Rocha, 2021), identificando os diferentes lugares por ela ocupados como de professora de mediação, de psicóloga, de pesquisadora, de colega, pondo em análise a contratação do serviço pelos juízes, o funcionamento da estrutura do Fórum e do fazer mediação; a participação em eventos e congressos de mediação; das leituras, dos conceitos preestabelecidos em mediação de conflitos que poderiam afetar a compreensão do processo e do seu fazer pesquisa.

Quanto à análise de implicação dos próprios mediadores, vista enquanto dispositivo que possibilita compreender suas relações com as instituições que os permeiam, foi uma tarefa difícil de ser realizada no contexto da pesquisa, em razão dos inúmeros obstáculos que se impuseram, impedindo que esse processo pudesse avançar. Nota-se, dessa forma, que há resistências importantes desses agentes aos processos de autoanálise e à tarefa de pensar sobre as lógicas que sustentam determinadas práticas, que no contexto da mediação familiar judicial estão, na maior parte das vezes, atravessadas por sentidos de controle, tutela, disciplinarização, normatização e patologização das famílias. Em outras palavras, a mediação familiar é uma instituição privilegiada para produzir sujeitos domesticados.

Segundo Pereira e Tavares (2010, p. 1079), “não há instituições fora dos sujeitos, são eles que as criam e lhes dão alma e sentido, são eles os protagonistas que dão vida às instituições”. Logo, também foi objetivo da pesquisa doutoral (Rocha, 2021) que embasou o presente artigo, realizar análises de implicações, no momento em que se compreende que qualquer intervenção é um posicionamento ético-político. Não poderia deixar de ser no processo de aproximação entre pesquisador e o objeto pesquisado.

Analisador

O conceito de analisador foi elaborado por Félix Guattari no âmbito da Psicoterapia Institucional, no sentido de descrever acontecimentos ou fenômenos reveladores e, ao mesmo tempo, catalisadores de certos aspectos não revelados de imediato pela instituição. O termo analisador, no sentido químico, é aquele ou aquilo que provoca análise, quebra, separação, explicitação dos elementos de dada realidade institucional. Para Lourau (2004, 2014) são produtos de uma situação que, ao mesmo tempo, agem sobre ela. Ou seja, questiona-se de que forma certas atividades, ao serem desenvolvidas, revelam aspectos que permaneciam ocultos ou latentes, sobretudo aqueles que dizem respeito às relações de poder e de hierarquia entre os vários sujeitos (L’Abbate, 2012).

O analisador institucional, segundo Lourau (2014) e Baremblitt (2002), refere-se aos fenômenos emergentes em meio ao processo analítico, podendo ser dinâmicos, como, por exemplo, a fala de algum dos atores institucionais, ou estáticos, como a arquitetura local. Os analisadores nos ajudam na análise dos conflitos e dilemas vividos em contexto. É, portanto, analisando o que se passa nas práticas dos atores institucionais, no momento da observação, e não exclusivamente pela observação de um agente exterior, que elaboramos nosso conhecimento. Para tanto, é necessário afastar definitivamente a abordagem objetiva e “coisificante” da instituição, mergulhando em uma experiência difícil, plena de afetos árduos e intensos.

Para Lourau (2014), o analisador é algo que faz revelar a estrutura da organização, provocando-a e forçando-a a falar. Destaca ainda que os analisadores constituem acontecimentos que permitem fazer surgir ainda mais forte uma análise que Lourau denomina instituição invisível (Rodrigues, 2007). Ou seja, o analisador faz a instituição falar, revelar o não dito. O analisador é responsável por revelar algo que estava escondido, de desorganizar o que estava de certa forma organizado, de dar um sentido diferente a fatos que já eram conhecidos (L’Abbate, 2012).

Os analisadores podem ser considerados naturais, construídos ou ainda históricos. O analisador natural vem ao encontro da situação sem ser intencionalmente proposto ou controlado, ao passo que o construído é artificialmente instalado (Rodrigues, 2000). No entanto, o mesmo autor fala do caráter histórico de todos os analisadores. Os analisadores podem aparecer como dissidentes, sendo eles denominados de ideológico, libidinal e organizacional (Lourau, 2014). O dissidente ideológico expressa suas dúvidas acerca das finalidades e a estratégia geral da organização, por questionar as instituições a partir da contestação em relação à finalidade das organizações. Já o dissidente libidinal, tão somente pela sua existência, sem necessariamente emissão de discursos, irrompe a dúvida sobre a seriedade da ideologia ou da organização (Lourau, 2014). O dissidente organizacional caracteriza-se como aquele que enfrenta, a partir de sua ação prática e seus pensamentos teóricos, a própria organização (Severo, 2014).

Durante a pesquisa de doutorado (Rocha, 2021), identificamos contradições no uso da mediação familiar, especificamente na organização judicial. Por um lado, as vantagens da mediação são laboriosamente propagadas, principalmente, entre aqueles que a consideram um útil instrumento para atenuar a gravidade do problema do acesso e superlotação da Justiça, e ademais, confere aos usuários maior controle sobre a resolução do conflito, afastando o risco e a incerteza de uma decisão proferida por um juiz selecionado aleatoriamente para resolvê-lo.

Por outro lado, o estudo denuncia um panorama negativo das condições de trabalho do mediador, evidenciando o desvirtuamento do propósito da mediação e, principalmente, de um movimento em direção à desvalorização desse profissional. Na investigação junto aos mediadores, em que foram realizadas entrevistas com os cinco mediadores que ali atuavam e observações da realidade institucional, foi possível evidenciar alguns analisadores que fizeram a instituição mediação familiar falar, revelar o não dito, invisibilizado no cotidiano das Varas de Família. Dentre os principais, destaca-se a prevalência do voluntariado, em que o mediador é posto em um contexto de voluntariado forçado. Seu trabalho é provisório e vincula-se a uma parceria entre o CEJUSC e uma instituição de ensino superior privada, a qual capacita mediadores e utilizam-se das instalações do Judiciário para supervisionar e treinar seus candidatos.

Nesse cenário, o trabalho voluntário do mediador está fortemente relacionando à política liberal de flexibilização do trabalho e dos direitos dos trabalhadores em um contexto de enxugamento dos quadros de servidores públicos. O analisador “Voluntariado” anuncia a crise do estado social, a redução da atuação do Estado e o movimento de desvalorização e precarização das relações laborais no âmbito do Judiciário. Carrega consigo, entretanto, outro analisador fundamental: a não equidade de gênero entre os mediadores, com destaque para as mulheres. Ou seja, não à toa há mais mulheres desenvolvendo trabalho voluntário de mediação familiar. Isso aponta que nesse cenário de precarização do trabalho, as mulheres são diretamente afetadas. Ou seja, aponta que, historicamente, o trabalho feminino sempre foi desvalorizado em relação ao dos homens, que o voluntariado está associado às mulheres e que o trabalho com famílias está associado à “natureza feminina”.

Encomendas e Demandas

Como apresentado anteriormente, um dos objetivos deste trabalho é apresentar as “encomendas” e “demandas” feitas aos mediadores em suas práticas diárias. Para compreendermos melhor esses termos institucionalistas, apresentamos, a seguir, seus conceitos e a diferenciação entre encomenda e demanda.

A encomenda constitui o “diagnóstico” de quem fez o pedido de intervenção ao socioanalista. É o que deflagra o processo interventivo. Ela também pode surgir para o pesquisador a partir das demandas provenientes da realidade do trabalho. Este deve ficar atento à produção de demandas que ocorre por todos os envolvidos à medida que o trabalho se desenvolve. Desse modo, é imprescindível analisar o pedido oficial da intervenção apresentado por um grupo investido de poder de decisão para um socioanalista sobre uma intervenção a ser desenvolvida (L’Abbate, 2012). A encomenda (também chamada de demanda latente, pedido, encargo) remete aos “sentidos não explícitos, não manifestos, dissimulados, ignorados ou reprimidos, e que comporta uma demanda de bens ou serviços”, ou seja, trata-se de um termo que alude a uma “exigência de soluções imaginárias ou de ações destinadas a restaurar a ordem constituída quando a mesma está ameaçada” (Baremblitt, 2002, p. 169).

No que diz respeito à mediação familiar, em conversa com os mediadores questionou-se sobre as encomendas e as demandas que esses têm recebido no seu cotidiano advindas dos diferentes campos de saberes, profissionais e usuários da mediação. As encomendas que os mediadores recebem referem-se, primeiramente, a um conjunto de questões ligadas à dinâmica do trabalho: à sobrecarga do Judiciário, à falta de vontade dos juízes em trabalhar problemáticas difíceis, ao cumprimento de metas (maior número de acordos), etc. Dessa forma, a principal encomenda que recebem dos magistrados é para desafogar suas atividades. Tanto os magistrados quanto os advogados demandam celeridade no processo, menos tempo gasto na ‘solução’ da questão conflituosa. Para que alcancem essa celeridade, são estimulados a realizarem acordos. Fomentar a pacificação para eles é fazer com que os mediandos firmem acordos. Sabe-se da existência da política de atingir metas, transposta à mediação judicial que desestimula o diálogo e não contribui para um funcionamento adequado da prestação jurisdicional.

Em segundo lugar, os mediadores também são acionados para aliviar as tensões junto aos usuários. Segundo um mediador, “a gente facilita para que eles se sintam confortáveis”. Os usuários são demandados a darem atenção, serem mais cuidadosos e acolhedores no processo de administração de conflito, possibilitando maior efetividade na resolução, quando comparado à forma arbitral do juízo. Ou seja, desafogar e confortar são os ingredientes primordiais das encomendas recebidas pelos mediadores cotidianamente.

A mediação e a conciliação objetivam introduzir no Judiciário a informalidade e dar celeridade ao processo. Contudo, a real demanda é desafogar o trabalho dos magistrados e o número de processos. Segundo uma mediadora: “Os juízes daqui querem números... Demanda para realizar acordo. Não querem saber como a gente faz, querem que a gente faça”.

Considerações Finais

Buscamos, a partir da perspectiva da Análise Institucional, trazer contribuições ao campo jurídico voltado à mediação de conflitos. A mediação, no âmbito familiar, é difundida e propagada como um instrumento passível de pacificar relações conflituosas e até de transformá-las, sem que um terceiro tome as decisões. Promete, ainda, estabelecer um clima de confiança e respeito entre seus membros. Contudo, a AI permite visualizar a mediação de conflitos familiares inserida num jogo de forças, atravessada por diferentes saberes e poderes e descortinar alguns dos mecanismos que nelas atuam e a relação dialética instituinte-instituído-institucionalização.

Nesse sentido, percebemos, a partir da recente pesquisa empírica com mediadores de família (Rocha, 2021), que a mediação ainda é vista como uma justiça de “segunda classe”, realizada por profissionais voluntários, em sua maioria com formação em Direito e do sexo feminino, o que acarreta consequências negativas não só para os mediadores como para o próprio processo de mediação. Ademais, os mediadores são peças fundamentais de uma engrenagem congestionada, cuja demanda a eles dirigida é a celeridade das negociações e desafogamento do sistema.

Foi possível evidenciar, a partir da pesquisa doutoral (Rocha, 2021), que há uma discrepância entre o que se idealiza a respeito da mediação dentro do Judiciário e sua prática nessa organização. Assim, tem lançado mão de voluntários, com destaque para as mulheres, para atuarem como mediadores, mesmo que em condições precárias de trabalho.

Sabe-se que o voluntariado do mediador precariza o seu trabalho e que essa precarização está integrada a um quadro de relações de poder, as quais são peças-chave na determinação de condições de trabalho e de bem-estar e saúde do trabalhador. Faz-se necessário que o Poder Judiciário não tome para si a mediação, porque a identidade do instituto não é compatível com o formalismo do âmbito judicial processual.

As encomendas que os mediadores recebem referem-se a um conjunto de questões ligadas à dinâmica do trabalho: à sobrecarga do Judiciário, à falta de vontade/competência dos juízes em trabalhar problemáticas difíceis e, principalmente, ao cumprimento de metas. Dessa forma, a principal encomenda que recebem dos magistrados é para desafogar o número de processos, isto é, abrandar sua carga de trabalho.

Este artigo não se propôs realizar análises de práticas de mediações. Nosso propósito foi apontar para uma proposta ético-política da mediação familiar judicial, destacando que apesar da perspectiva da Análise Institucional ser pouco explorada no contexto judicial, oferece uma caixa de ferramentas potente para o manejo do complexo processo das organizações judiciárias, bem como tem grande potencial para qualificar a prática cotidiana dos mediadores, tornando-a uma ferramenta de autoanálise e de desconstrução das lógicas de controle, tutela e disciplinarização da vida. Consideramos que “o ato de problematizar inclui a ação de romper com o instituído, possibilitando um certo estranhamento, criando estratégias que permitem dar visibilidade a outras e diferentes formas de pensar, agir e sentir” (Frezza et al., 2009, p. 314).

Agradecimentos

À professora doutora Magda Dimenstein, orientadora, por toda a sua paciência, compreensão, empatia e ensinamentos. À UFRN e ao PPGPSI, pela oportunidade de desenvolver esse estudo doutoral. À UFPB e ao Governo Federal, por terem autorizado o meu afastamento laboral. Aos mediadores que participaram da pesquisa.

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Recebido: 30 de Outubro de 2020; Revisado: 04 de Novembro de 2021; Aceito: 08 de Novembro de 2021

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