Nos últimos anos, houve uma ampliação no debate público e avanços importantes em indicadores sociais, como o acesso feminino à educação. De acordo com o Fórum Econômico Mundial (2020), que anualmente apresenta indicadores de gênero em todo o mundo, já foram fechadas 96,1% das lacunas relativas ao desempenho educacional. Porém, mesmo em países onde o nível de escolaridade é alto, ainda existem barreiras que impedem o acesso igualitário entre homens e mulheres, em especial ao mercado de trabalho e a espaços de tomada de decisão (Fórum Econômico Mundial, 2020).
No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021) indicam que se, por um lado, as mulheres são mais escolarizadas, por outro, têm menor inserção no mercado de trabalho e na vida pública. Em 2019, a taxa de inserção das mulheres no mercado de trabalho foi de 54,5%, comparado a 73,7% de participação masculina. Quanto à remuneração, mesmo que as mulheres brasileiras sejam, em média, mais instruídas, receberam pouco mais de 75% do rendimento dos homens. Esses indicadores evidenciam a persistente desigualdade entre homens e mulheres na sociedade, bem como a sua sustentação em bases ideológicas, pois ocorrem em função do gênero.
A atividade científica é emblemática nesse âmbito. No Brasil, a Plataforma Lattes, sistema oficial para cadastro de cientistas, por exemplo, passou a permitir apenas em 2021 o registro dos períodos de licença-maternidade, uma demanda antiga das cientistas brasileiras em prol da equidade de gênero na ciência, pois, com esse registro no currículo, justifica-se o impacto que a chegada de um filho tende a causar na produção das pesquisadoras. Além disso, a institucionalização da ciência, com um conjunto de normas e métodos, aliada a um estereótipo do papel feminino mais voltado às tarefas da casa e da maternidade, restringiram, por décadas, a participação das mulheres na ciência (Barros & Mourão, 2020).
A produção científica é um campo fundamental na construção do conhecimento, pois é por meio dela que os resultados de pesquisas, novos conceitos e teorias transitam e são apropriados. Nesse sentido, Alves (2020) realizou uma revisão de literatura no intuito de analisar como os estudos de gênero e a perspectiva feminista estavam presentes nas publicações em Psicologia Clínica no Brasil. Os resultados evidenciaram que, embora as discussões de gênero estejam cada vez mais presentes, ainda é preciso expandir a reflexão para diferentes níveis de formação e campos da Psicologia.
Existem diferentes modos de entender e trabalhar com o conceito de gênero, partindo desde o ponto de vista da área biomédica, em que se resume a categoria gênero à noção de sexo biológico, até perspectivas mais sociais e críticas. Entende-se aqui o gênero enquanto uma categoria relacional que está em constante construção e considera as relações de poder, fatores culturais e sociais (Arruda, 2002; Butler, 2015). Diante disso, este trabalho trata dos espaços ocupados pela mulher e da influência das questões de gênero em um importante campo de investigação na Psicologia Social: a Teoria das Representações Sociais (TRS).
A TRS e a representação social da mulher
Inaugurada pela obra “La psychanalyse, sonimage et sonpublic”, de 1961, a TRS é ainda hoje considerada um domínio em expansão. Nessa obra seminal, Serge Moscovici analisou como o conhecimento científico é consumido, transformado em senso comum e utilizado por leigos. Dessa questão, deriva a problemática mais geral da teoria: como as pessoas constroem a realidade (Cabecinhas, 2004). Para Jodelet (2001), representações sociais são sistemas de interpretação, que regem nossa relação com o mundo e com os outros, orientando e organizando condutas e comunicações sociais.
A TRS é construída sobre um rico conjunto de pressupostos e, após mais de 50 anos do seu surgimento, segue mobilizando diferentes áreas do conhecimento (Marková, 2017). Por sua flexibilidade conceitual e metodológica, a teoria não pode ser considerada patrimônio de uma área em particular e sua vitalidade é observada na multiplicação dos objetos de representação (tomados como temas de pesquisa) e de paradigmas que se propõem a analisar, sob certos ângulos, a dinâmica representacional (Rateau et al., 2012).Contudo, há uma preocupação entre pesquisadores da área sobre a construção do objeto de estudo.
Como a representação indica uma compreensão da realidade comum ao grupo social, é necessário que o objeto tenha consistência teórica, metodológica e relevância social (Souza Santos et al., 2012), pois, seguindo a lógica da construção social da realidade (Berger & Luckmann, 1974), a construção de um objeto de estudo não se restringe apenas ao mundo acadêmico, uma vez que impacta a própria forma como ele é visto e vivenciado socialmente. Representações sociais são formadas, mantidas e mudadas na e por meio da linguagem e da comunicação (Marková, 2017). Assim, analisar o objeto de estudo nos trabalhos da TRS implica não somente em um exercício acadêmico per se, mas na compreensão de como os temas abordados são construídos e constroem a realidade social.
Para Álvaro e Fernández (2006), as representações sociais da mulher e sua centralidade na construção dos valores não costumam ser objeto de estudo. Os autores analisaram representações sociais da mulher em imagens pictóricas no percurso da história, discutindo como é possível transformar valores hegemônicos de uma sociedade dominada por homens em algo tão concreto como a imagem corporal de uma mulher, contribuindo para a difusão desses valores, ao transformá-los em conhecimento do senso comum. Na análise, encontraram representações ambivalentes, nas quais, por um lado, há uma mulher idealizada como símbolo de fecundidade, maternidade e pureza e, por outro, como marca de desvio e marginalidade.
Nesse sentido, é possível estabelecer pontes entre as representações sociais e as teorias feministas de gênero, pois, para a TRS, a ciência não acontece isolada da sociedade. Existem formas diferentes de conhecer e de se comunicar que geram seu próprio universo, como o universo consensual, que se constitui na vida cotidiana, e o universo reificado, constituído no espaço científico, sem considerar a existência de uma hierarquia ou isolamento entre eles. Do mesmo modo, as teorias feministas nascem do questionamento de paradigmas dominantes, tecendo críticas a binarismos como natureza e cultura, ciência e senso comum. Ambas surgem, portanto, em estreita sintonia com a realidade social, abordando aspectos de objetos até então subvalorizados pela ciência e considerados menores: a mulher e o senso comum (Arruda, 2002).
As representações sociais da mulher coexistem e estão associadas a outros processos psicossociais que atuam nas desigualdades de gênero, como o preconceito, atitude hostil que se dirige a um indivíduo apenas pelo seu pertencimento a um grupo desvalorizado socialmente (Allport, 1954/1979). Existem muitas formas de preconceito e elas possuem elementos comuns, mas sua expressão varia em função do grupo alvo (Lima, 2020). Em relação às mulheres, o preconceito se expressa em duas dimensões: hostil e benevolente. O sexismo hostil é uma visão contraditória das relações de gênero na qual mulheres são vistas como usurpadoras do poder dos homens e, por isso, recebem hostilidade explícita. Já o sexismo benevolente é uma ideologia supostamente positiva e gentil na qual elas são percebidas como criaturas puras que devem ser protegidas, adoradas e cujo amor é necessário para completar um homem (Glick & Fiske, 2001).
Sexismo hostil e benevolente atuam em relação à representação social ambivalente das mulheres. Por um lado, a imagem da mulher que desafia o poder masculino e desvia da norma é rejeitada e punida com sexismo hostil. Por outro, mulheres que se encaixam em uma imagem idealizada, como esposas, mães e objetos românticos, são recompensadas com solicitude benevolente. Embora nem sempre seja visto como discriminação, pois oferece proteção e afeto às mulheres, o sexismo benevolente serve para reforçar o domínio masculino, pois implica também na visão de que elas são seres, naturalmente, frágeis e inferiores. Então, confinadas em papéis convencionais de gênero, as mulheres são impedidas, ao longo do tempo, de galgar posições de poder na estrutura social (Connor et al., 2017; Glick & Fiske, 2001).
Assim, a combinação de sexismo hostil e benevolente justifica o poder masculino, circunscrevendo o espaço político, econômico e pessoal das mulheres (Connor et al., 2017; Gundersen & Kunst, 2019). E a representação social da mulher parece ter um papel fundamental nesse âmbito, sendo importante investigá-la nos mais diferentes contextos, pois todo poder é gestado por um sistema ideológico e necessita de uma imagem que o represente (Álvaro & Fernández, 2006). Diante disso, esta revisão objetivou analisar publicações científicas sobre representações sociais da mulher no Brasil e América Latina, considerando para essa análise objetivos de estudos embasados na Teoria das Representações Sociais (TRS), a fim de identificar os principais temas e contextos nos quais eles têm sido realizados.
Método
Esta revisão sistemática foi realizada a partir do método Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses - PRISMA (Page et al., 2020) e conduzida nas bases de dados: Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia) e SciELO (Scientific Eletronic Library Online), que indexam periódicos científicos de psicologia e áreas afins, no Brasil e América Latina.
Os termos de busca utilizados com os operadores booleanos foram “representação social AND (feminin* OR mulher*), em sua forma truncada para ampliar o alcance da busca, realizada em todos os índices das bases e sem limite inicial de data para publicação. Esses descritores foram selecionados no Tesauro da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS-Psi), um banco de terminologias nacional inspirado no Thesaurus da American Psychological Association (APA). Outras combinações de termos foram testadas, inclusive, com a tradução deles para o inglês e o espanhol, porém, a string em português foi mantida, pois reuniu um maior número de artigos para composição da amostra final. A amplitude dos termos e critérios da busca respondem também ao conceito de gênero assumido neste trabalho, enquanto categoria relacional e em constante construção. Objetiva-se reunir, portanto, estudos sobre mulheres, em qualquer cenário ou contexto social, cultural, etc. inclusive o de mulheres transgênero.
Critérios de Inclusão e Exclusão
Foram definidos os seguintes critérios de inclusão: a) ser um artigo que aborda representações sociais; e b) ter a mulher como objeto e/ou sujeito da representação. Os critérios de exclusão foram: a) a TRS não foi o aporte teórico utilizado; b) produções científicas não veiculadas nos meios usuais de publicação, como teses e dissertações (grey literature); c) pesquisas teóricas ou de revisão; d) que não enfatizavam em suas análises a temática da mulher; e) e trabalhos realizados em outros países, fora do contexto latino-americano.
Procedimentos
A busca foi realizada por duas juízas independentes, em 27 de novembro de 2020. Foram encontrados: 593 trabalhos na Lilacs, 236 na SciELO e 44 na PePSIC. Controlando as duplicações, restaram 676 referências potencialmente relevantes. Com o auxílio do software Zotero, os títulos e resumos dos trabalhos foram analisados em função dos critérios de inclusão e exclusão. Foram retirados 367 trabalhos que não atendiam aos critérios de inclusão e 218 com base nos critérios de exclusão. As listas de referências de todos os trabalhos também foram analisadas e mais 23 artigos foram incluídos, restando 114 na amostra. Na Figura 1, observa-se a estratégia de busca empregada, descrevendo todo o processo de seleção dos artigos.
Os artigos foram analisados na íntegra, considerando aspectos como: área de conhecimento, ano de publicação, região de realização do estudo, instrumentos empregados, dentre outros. Tais variáveis foram analisadas com o auxílio do software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), por meio de estatísticas descritivas. Todo processo de análise foi realizado por duas juízas e, em casos de dúvida, uma terceira restabelecia o consenso.
Para responder à questão de pesquisa: “O que investigam os estudos da TRS sobre a mulher?”, os 114 objetivos dos artigos foram incluídos num corpus para análise realizada com o apoio do software Iramuteq, que permite a quantificação e o uso de cálculos estatísticos sobre variáveis fundamentalmente qualitativas: os textos (Camargo & Justo, 2013). O Iramuteq oferece recursos distintos para análise de dados e aproxima estratégias quantitativas e qualitativas, considerando as vantagens e os limites dessa complementariedade (Araújo et al., 2018).
Neste trabalho, optamos pela Nuvem de Palavras, que produz uma representação gráfica das ocorrências do corpus, na qual cada palavra tem tamanho proporcional a sua frequência. Em combinação com a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que realiza uma análise de agrupamentos (clusters) sobre os segmentos de texto, na qual o material textual é sucessivamente particionado em função da coocorrência de formas lexicais nos enunciados e, posteriormente, o software realiza testes de associação, Qui quadrado (χ²), entre as formas linguísticas do corpus e as classes lexicais, permitindo a representação gráfica da análise por meio de um dendrograma, que ilustra os diferentes conjuntos lexicais e suas palavras mais características (Sousa et al., 2020).
Resultados e Discussão
Os artigos reunidos nesta revisão foram publicados entre 1999 e 2020, sendo possível observar um crescimento nos últimos anos: 14 trabalhos entre 1999 e 2005, 31 entre 2006 e 2010, 37 entre 2011 e 2015 e 32 entre 2016 e 2020. Esse crescimento pode ser associado tanto ao aumento na publicação científica, de forma geral, ao longo dos anos, como também ao maior interesse social e acadêmico pelo tema, especialmente diante do avanço nos estudos de gênero que parecem ter contribuído para o interesse e o debate sobre representações sociais da mulher.
Os trabalhos foram majoritariamente produzidos na região Sudeste (n = 35), seguido pela Sul (n = 32). A Enfermagem foi a área da maior produção (n = 48), seguida por Psicologia (n = 41) e Saúde em geral (n = 20), categoria que abarcava saúde pública, saúde coletiva, entre outras. A maior parte dos trabalhos foi desenvolvida apenas por mulheres (n = 61) ou por uma maioria de mulheres (n = 30). Tal perfil de autoria evidencia que, nessa área, as mulheres têm sido as principais pesquisadoras de temas relacionados à mulher. A situação é a mesma em relação aos participantes, pois predominaram os estudos apenas com participação feminina (n = 73), seguidos por estudos com participantes dos dois sexos (n = 37).
No que diz respeito ao método, a maioria dos estudos empregou uma abordagem mista, associando estratégias qualitativas e quantitativas (n = 60) e quase todos os demais (n = 53) utilizaram uma abordagem eminentemente qualitativa. A entrevista foi o instrumento principal (n = 67) entre os estudos, seguido pela aplicação da Técnica de Associação Livre de Palavras (TALP) associada a outros instrumentos (n = 28). As estratégias de análise de dados mais frequentes (n=53) foram as análises lexicais com auxílio de algum software (Iramuteq, Alceste, EVOC e outros em menor frequência) e a análise de conteúdo de Bardin (n=53).
Ademais, foram analisados aspectos da TRS, como as abordagens utilizadas. A maioria dos estudos apresentou apenas definições do conceito de representação social, desenvolvidas por autores clássicos, como Moscovici e Jodelet (n = 61). Entre os que citavam algum enfoque, predominou o estrutural (n = 32). Observou-se também pouco desenvolvimento teórico e aplicação dos conceitos derivados da TRS. Sobre isso, Souza Santos et al. (2012) destacam que apesar do crescente número de publicações na área, sobretudo nos países da América Latina, uma importante crítica à produção na área é relativa ao uso e desenvolvimento da Teoria, pois, muitas vezes, os estudos se limitam à descrição do conteúdo dos objetos de representação.
O que Investigam os Estudos da TRS sobre a Mulher?
A análise lexical com apoio do software Iramuteq foi realizada a fim de analisar os objetivos dos estudos sobre representações sociais da mulher e identificar os principais temas e contextos nos quais eles têm sido realizados. O material textual foi composto pelos 114 objetivos (segmentos de texto), abarcando 788 palavras que apareceram 2873 vezes, uma média de ocorrência de aproximadamente 3,6. A análise da CHD reteve 82,46% do total do corpus, realizando três partições e definindo quatro classes temáticas (Figura 2).
Inicialmente, de acordo com a lógica de partição, foram formados dois subcorpora, isolando a Classe 4 (19,2%). Em seguida, uma nova partição separou a Classe 3 (38,3%) e, por fim, a última subdivisão originou as Classes 1 (22,3%) e 2 (20,2%). No dendrograma, foram consideradas as palavras com frequência igual ou superior à média de ocorrência e com χ² superior a 4,15. O seu conteúdo evidencia os objetos representacionais elaborados nos estudos e, a seguir, serão discutidas as classes e seus principais enunciados.
Classe 4: Violência de Gênero
Embora seja a classe de menor frequência, representando 19,2% dos fragmentos de texto, a Classe 4 foi formada na primeira partição do corpus e a “Violência de gênero” foi sua temática central. Suas palavras mais características foram doméstico (χ² = 58,08), violência (χ² = 45,75), discente (χ² =17,64) e enfermagem (χ² = 14,52), sendo que o conteúdo contemplou, majoritariamente, as representações sociais acerca da violência contra a mulher, com ênfase no contexto doméstico e nas práticas dos profissionais de saúde nesse âmbito, especialmente enfermagem, área com maior número de publicações reunidas nesta revisão.
Houve predominância, portanto, de objetivos voltados à compreensão da violência de gênero, como é possível observar no fragmento a seguir: “Desvendar o significado das representações sociais de um grupo de mulheres sobre a violência doméstica” (Rico et al., 2010). Sabe-se que o ambiente doméstico representa um contexto de risco determinante para as mulheres. No Brasil, em 2019, enquanto para os homens a proporção de homicídios que ocorreram no domicílio foi de 11,2%, para as mulheres esse índice atingiu 30,4%, com taxas maiores entre mulheres pretas ou pardas (IBGE, 2021).
Embora a legislação de cada país seja fundamental para o combate à violência de gênero, o atendimento integral às vítimas não depende apenas das ações no âmbito da justiça, mas, também do sistema de saúde. Considerando a relação entre representações sociais e práticas, nessa classe, alguns trabalhos investigaram como a violência doméstica era representada por profissionais da área, conforme o fragmento a seguir: “Conhecer de forma descritiva e analisar as representações sociais da violência contra as mulheres na perspectiva de gestores municipais, profissionais e trabalhadores da saúde” (Costa et al., 2014).
Ademais, o termo “doméstico” que representa predominantemente os estudos sobre violência, também foi utilizado para abordar atividades domésticas, como no seguinte fragmento: “representação que o homem e a mulher têm sobre a participação masculina em atividades domésticas” (Roazzi, 1999). A temática merece destaque, pois a divisão tradicional de papeis é parte dos processos psicossociais subjacentes à desigualdade de gênero, naturalizando características sociais que legitimam a permanência da mulher no âmbito doméstico (Garrido-Luque et al., 2018). A menor participação das mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, está associada ao tempo dedicado aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, que varia em função do sexo, sendo que as mulheres dedicam quase o dobro de tempo que os homens (21,4 horas contra 11,0 horas) nessas atividades (IBGE, 2021).
Classe 3: Feminino Contranormativo
A Classe 3 foi a segunda a se separar na análise da CHD, representando 38,3% dos segmentos de texto e foi denominada: Feminino contranormativo”. Além dos termos da busca (representação e social), as palavras mais características foram aids (χ² = 12,19), feminino (χ² = 8,24), diferente (χ² = 6,73), familiar (χ² = 6,73), relativo (χ² = 4,99) e infertilidade (χ² = 4,99). De modo geral, as pesquisas compartilhavam o interesse por representações sociais de mulheres em contextos não aprovados socialmente, desviantes ou considerados contranormativos para o gênero feminino, como a exposição ao HIV, prostituição, aborto e infertilidade.
Os estudos sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), especialmente HIV/AIDS, foram recorrentes e representaram 10,52% da amostra. Nesta classe, abordavam grupos específicos, como nos fragmentos: “Analisar a vulnerabilidade em saúde das jovens transexuais femininas que vivem com HIV Aids” (Silva et al., 2020); “Apreender as representações sociais da aids elaboradas por mulheres profissionais do sexo” (Araújo et al., 2014) e “Apreender as representações sociais sobre a aids construídas por mulheres em privação de liberdade” (Trigueiro et al., 2016).
Essas pesquisas abordavam a vulnerabilidade e estigmatização das mulheres que pertencem a grupos minoritários na estrutura de poder (ciganas, transexuais, etc.). E como o gênero é uma categoria relacional, as interseções com modalidades raciais, classistas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas também impactam a realidade social das mulheres (Butler, 2015). Assim, sobre as contranormativas parece incidir mais fortemente a dimensão hostil do sexismo, sendo punidas com antipatia e rejeição (Glick & Fiske, 2001).
O feminino contranormativo emerge tanto em função das mulheres ocuparem espaços tradicionalmente masculinos, como o contexto do futebol no objetivo a seguir: “Analisar as representações sociais sobre o futebol feminino e as atletas” (Martínez & Goellner, 2015), quanto pela ruptura com o que se espera de uma mulher, como o impacto da infertilidade na identidade feminina: “Investigar representações sociais da infertilidade para a mulher que vive essa situação, considerando seus reflexos no ser mulher” (Queiroz et al., 2003).
Objetos relacionados à sexualidade são recorrentes, sendo que a infertilidade é uma das palavras mais características da classe, revelando um embate entre a demarcação da norma e o seu desvio. Álvaro e Fernández (2006) pontuam que inúmeras ilustrações do corpo da mulher no percurso da história dão destaque aos órgãos associados à fertilidade e à reprodução, demarcando o que seria sua natureza ou função. Essa representação social da mulher possibilita a reprodução da ordem social como se fosse algo natural. A questão da fertilidade, nessa classe, sinaliza que estar fora da norma, por escolha ou não, pode gerar desvantagens para as mulheres.
Classe 1: Relação com o Corpo
A Classe 1, com 22,3% dos fragmentos textuais retidos na análise, foi designada “Relação com o corpo”, tendo as seguintes palavras características: relação (χ² =33,72), corpo (χ² =14,16), estudante (χ² = 10,77), gênero (χ² =12,25), prático (χ² = 12,25) e percepção (χ² = 10,12). Desse modo, predominaram conteúdos referentes à percepção e relação com o corpo, contemplando envelhecimento, sexualidade e intimidade, com ênfase na saúde e nas peculiaridades da experiência feminina.
Padrões de beleza e pressão estética são temas presentes nessa classe, sendo que os trabalhos investigam grupos específicos (adolescentes, estudantes, profissionais de enfermagem, etc.), como no objetivo a seguir: “Avaliar a percepção das adolescentes quanto à relação estabelecida entre a TV e as revistas e o corpo” (Conti et al., 2010). Considerando que o corpo afeta e é afetado pelo movimento das sociedades e a mídia tem um papel determinante na formação e circulação daquilo que é considerado modelo ou padrão em cada contexto histórico e social, e que a busca pela adequação é um tema com forte carga social de gênero (Araújo et al., 2018; Camargo et al., 2011), essa classe serve à reflexão acerca do espaço que a “relação com o corpo” ocupa na vida das mulheres.
A dualidade entre saúde e estética também foi observada enquanto constituinte do pensamento social compartilhado a respeito do corpo, como no seguinte objetivo: “Compreender como a mulher representa seu corpo após a mastectomia quando retorna para casa nas relações consigo mesma” (Ferreira & Mamede, 2003). Sobre isso, Camargo et al. (2011) ressaltam a importância do bem-estar e equilíbrio emocional na percepção da corporeidade. Porém, muitas vezes, o ideal de beleza é considerado mais importante que a saúde, o que reforça processos sociais nocivos, como preconceito e discriminação.
A “relação com o corpo” é um tema tipicamente associado ao feminino, seja de forma sutil ou explícita. Imagens ou representações do corpo feminino naturalizam processos de origem social e cultural, como as noções de bem e mal/ certo e errado para as mulheres (Álvaro & Fernández, 2006). Com isso, são definidos desde comportamentos cotidianos mais “simples”, como o tipo de roupa que uma mulher pode vestir e em quais contextos seus corpos serão ou não respeitados até os espaços que as mulheres podem ocupar na sociedade.
Assim, a busca feminina pela adequação aos padrões estéticos e a estigmatização dos corpos desviantes é muitas vezes naturalizada e pode ser associada à expressão do sexismo benevolente, no qual as mulheres buscam se adaptar ao ideal normativo de uma “boa mulher”, buscando beleza e docilidade para que sejam dignas da admiração, proteção e afeto dos homens. Estudos mostram que as mulheres constantemente reagem ao sexismo hostil, quando são vítimas, mas frequentemente endossam o sexismo benevolente, que acaba recrutando-as como participantes involuntárias da própria subjugação (Connor et al., 2017; Glick & Fiske, 2001).
Classe 2: Gestação e Maternidade
Por fim, representando 20,2% dos segmentos de texto, a Classe 2 foi nomeada “Gestação e maternidade” e reuniu palavras como mãe (χ² = 43,9), filho (χ² = 29,8), gravidez (χ² = 20,8), nascimento(χ² = 20,8), puérperas (χ² = 16,5), maternidade (χ² = 15,8) e adolescência (χ² = 12,2). Nela, há uma centralidade na figura da mãe que aparece tanto enquanto sujeito (quem representa alguma coisa), quanto como objeto (algo que é representado).
Sabe-se que a maternidade impacta a forma como as mulheres experienciam os mais diversos setores da vida. No Brasil, por exemplo, o nível de inserção de mulheres entre 25 a 49 anos no mercado de trabalho varia em função da presença de crianças em casa. Em 2019, a proporção de mulheres nessa faixa etária empregadas era de 54,6% quando possuíam crianças e 67,2% quando não possuíam. Para os homens, o nível de ocupação era superior ao das mulheres em ambas as situações, sendo inclusive maior para aqueles com crianças no domicílio (IBGE, 2021). Esses dados justificam a quantidade e a relevância das pesquisas com ênfase na maternidade e nesse papel de cuidadora, socialmente atribuído às mulheres.
Assim, os estudos nessa classe abordam questões relativas à maternidade, considerando condições como a gravidez na adolescência, período do desenvolvimento em que, em geral, elas estão mais susceptíveis a fatores de risco, ilustrada no seguinte objetivo: “Apreender o conteúdo das representações sociais acerca da gravidez na adolescência sob a ótica das próprias adolescentes” (Rangel & Queiroz, 2008).
Mas, apesar da maioria dos estudos ter uma perspectiva crítica, a centralidade da maternidade nas produções, como no objetivo: “Investigar as representações de maternidade de jovens mães e das mães destas, focalizando três dimensões: a representação de si mesma como mãe, a representação de sua própria mãe (ou filha) como mãe e a representação de como uma boa mãe deveria ser” (Dias & Lopes, 2003), parece reforçar uma imagem normativa da mulher, como se determinados traços fossem naturalmente inerentes ao feminino. O que merece atenção, pois os estereótipos que se constroem ao redor da maternidade constituem um dos principais fatores que mantêm a discriminação das mulheres na sociedade (Garrido et al., 2018).
Essa classe contempla também conjugalidade e família, com ênfase na maternidade, reforçando a prevalência de temas normativos. Esta revisão não encontrou, por exemplo, estudos da TRS sobre a imagem feminina em cargos de liderança na política. Aspectos sobre vida pública foram discutidos apenas no trabalho de Gianordoli-Nascimento et al. (2015) com o objetivo de “Investigar elementos relacionados à representação de ser mulher militante durante a ditadura militar brasileira, procurando compreender as repercussões das hierarquias de gênero, presentes nesses espaços”. À exceção desse trabalho (Gianordoli-Nascimento et al., 2015), destacamos que houve pouca articulação entre os artigos analisados e as contribuições dos estudos de gênero ou mesmo de uma perspectiva feminista. Diante dessa falta de diálogo, cabe refletir sobre como a prevalência de temas/estudos normativos pode impactar na manutenção dos papéis convencionais de gênero até mesmo na ciência.
Considerações Finais
Nesta revisão sistemática, analisamos publicações científicas sobre representações sociais da mulher no Brasil e América Latina, considerando para essa análise os objetivos de estudos embasados na Teoria das Representações Sociais (TRS). À luz dos resultados e da discussão acerca do material, consideramos que o propósito do estudo foi alcançado, identificando os principais temas e conteúdos presentes nas publicações, bem como os espaços sociais ocupados pela mulher enquanto sujeito ou objeto da representação social.
Em síntese, os estudos apresentaram uma representação ambivalente da mulher. Por um lado, entre os objetivos mais frequentes, foram identificados temas contranormativos, como contaminação por HIV ou a prostituição. E, por outro, conteúdos tipicamente associados ao feminino, como maternidade e relação com o corpo. Contudo, aquilo que é considerado “lugar de mulher” parece predominar, pois, mesmo na classe referente ao feminino contranormativo, havia uma demarcação da norma para abordar aquilo que era desviante. Como no caso da infertilidade, em oposição ao que seria da “natureza” ou função social da mulher: a reprodução.
As mulheres que se adequam à norma despertam o sexismo benevolente que nem sempre é visto como nocivo, pois oferece proteção e afeto. Porém, as pesquisas e discussões reunidas nesta revisão indicam que nenhuma mulher está livre do impacto do sexismo. As contranormativas são vítimas da hostilidade explícita. Mas as mães têm mais dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Além disso, a pressão estética, os padrões de beleza e a violência de gênero incidem sobre todas. Assim, como fenômenos subjacentes à discriminação, sexismo hostil e benevolente devem ser igualmente combatidos, pois são complementares na manutenção das desigualdades de gênero (Connor et al., 2017; Gundersen & Kunst, 2019).
Destacamos ainda que a TRS vem sendo utilizada desde 1999 para investigar temáticas socialmente relevantes em relação às mulheres. O uso desse aporte teórico parece consistente para tal objetivo, pois os estudos evidenciam o impacto das questões de gênero na construção da realidade social. Em consonância com a noção de que, por meio de sua produção acadêmica, a atividade científica tem sido um terreno fértil para a busca pela igualdade de gênero.
No entanto, reiteramos a limitação ou mesmo ausência de diálogo entre a maior parte dos artigos aqui reunidos e as contribuições dos estudos de gênero. Conforme a visão de Berger e Luckmann (1974), podemos dizer que a delimitação do objeto contribui para a própria construção de como ele é visto e vivenciado socialmente. Nessa via, parece que a literatura acadêmica (feita para ampliar o conhecimento e melhorar as práticas) pode estar reproduzindo o sexismo na própria delimitação e discussão dos seus objetivos de estudo, pois, de acordo com os resultados, há uma prevalência de temas normativos, sem abarcar debates sobre a diversidade de espaços que uma mulher ocupa e pode ocupar em sociedade.
Assim, mesmo que seja majoritariamente produzida por mulheres e sobre mulheres, a produção na área parece espelhar a realidade social, com a manutenção dos papéis convencionais de gênero. Nesse sentido, é importante refletir sobre como a estrutura social, baseada na relação desigual entre os gêneros, influencia a trajetória das mulheres (Barros & Mourão, 2020), inclusive, das que optaram pela carreira científica e produzem sobre o tema, pois, como afirma Alves (2020), estamos todos impregnados pelos símbolos e mensagens de uma cultura sexista, enraizada na forma como nos relacionamos, nas práticas sociais e, consequentemente, nas produções acadêmicas. Como muitas vezes não é fácil rejeitar ou criticar essa influência, é preciso aprender a problematizá-la.
A própria teoria e o fenômeno das representações sociais podem auxiliar nessa reflexão, pois, como a produção científica é assimilada pelo senso comum e a representação social tem a função de orientar e organizar condutas e comunicações sociais (Abric, 1998), a ampliação dos debates acerca do lugar da ciência na manutenção das disparidades de gênero perpassa também pela diversificação dos temas de pesquisa. Com isso, não afirmamos a irrelevância dos temas encontrados nesta revisão, mas apenas a noção de que investigações sobre a mulher, considerando espaços e públicos diversos, também podem ser ferramentas capazes de atuar no combate às desigualdades de gênero.
A produção científica pode promover discussões sobre o sexismo nos mais diversos contextos, como em profissões como as engenharias, cargos gerenciais, dentre outros. Como desdobramentos futuros, temos interesse especial na questão da liderança política. Pois, para a ONU-Mulheres (2019), só é possível avançar efetivamente na igualdade de gênero ao alcançar a paridade na representação política. Assim, pretendemos desenvolver investigações que explorem em maior profundidade as relações entre a representação social da mulher e a representatividade política feminina.
A despeito das contribuições, esta revisão também apresenta limites, como a restrição da busca às bases Lilacs, PePSIC e SciELO e não contemplar pesquisas realizadas em outros países, além do contexto latino-americano. Mas, se por um lado, tal opção metodológica representa uma limitação, por outro, permite uma caracterização local mais específica. Como sugestão, estudos futuros podem ampliar o alcance da busca para outras realidades e fontes.
Em suma, como representações sociais da mulher são mecanismos capazes de transformar valores hegemônicos na sociedade em práticas sociais (Álvaro & Fernandez, 2006), buscamos avançar não apenas na investigação, mas na construção das representações sociais da mulher, para que a ambivalência que encontramos hoje possa, ao longo do tempo, ser substituída por representações abrangentes e plurais, nas quais as mulheres possam ser e ocupar qualquer espaço, dentro e fora da literatura científica.