O consumo consolidou-se como uma prática crescente nos espaços urbanos de nosso país que são cada vez mais marcados por áreas comerciais, shoppings centers, exposições de vendas e oferta de serviços. Na esfera virtual das redes sociais e das vendas o consumo também ganhou destaque, valendo-se de estratégias visuais atraentes que são acessadas por parcela significativa da população. Essa prática tão disseminada evidencia que o ato de comprar, desde longa data, deixou de se pautar pela supressão de necessidades vitais e básicas ganhando cada vez mais os contornos de inclusão em uma classe social favorecida, com acesso a supostas experiências de prazer e o exercício da ostentação. Sob o ponto de vista de uma população consumidora, isso garantiria o ingresso e permanência em espaços tidos como exclusivos, reconhecimento social e respeitabilidade decorrentes da pertença a uma classe socioeconômica privilegiada.
Em estudo anterior (Mansano, 2009), foi possível evidenciar que a estimulação ao consumo configura-se como um dispositivo sofisticado de controle sobre os modos de vida da população. Tal controle dissemina-se de modo naturalizado como prática que oferece uma imagem de inclusão social e a sensação de satisfação decorrente da posse da mercadoria ou do acesso a serviços. Cabe, neste momento, dar um passo adiante e demonstrar que para além dos dispositivos de controle já consolidados na estimulação ao consumo as novas estratégias são cada vez mais atravessadas por padrões estéticos, simbólicos e imagéticos, que modelam certa imagem de si. Tal processo ganho ampla sustentação tecnológica e comunicacional, sendo que essa imagem de si está cada vez mais associada à posse de mercadorias e ao uso de serviços, também acessíveis pelo meio virtual. Analisando o que denomina e descreve como “mainstrean”, Martel (2012, p. 445) declara que está instalada “uma batalha nos meios de comunicação pelo controle da informação”. O autor menciona as diferentes frentes desse controle elencando a televisão, a cultura e a internet. Em suas palavras, trata-se de uma guerra que envolve diferentes:
posições entre países dominantes, em pequeno número e concentrando a maioria das trocas comerciais; é também uma guerra de conquista entre países dominantes e países emergentes, pelo controle das imagens e dos sonhos dos habitantes de muitos países dominados que produzem pouco ou não produzem bens e serviços culturais. Finalmente, são também batalhas regionais para conquistar nova influência através da cultura e da informação (Martel, 2012, p. 445).
As estratégias de controle para estimular o consumo tornou-se, assim, um empreendimento global e deixam entrever o que apresentaremos e argumentaremos neste estudo como sendo uma colonização do corpo e dos afetos pelo capitalismo. A colonização operada pelas práticas de consumo tende a retirar do sujeito a possibilidade de experimentação de dimensões básicas de seu cotidiano, dirigindo sua sensibilidade, vinculação afetiva e prazer para certos padrões definidos mercadologicamente e disseminados por especialistas. Tanto que alguns autores descrevem a emergência e consolidação do sujeito consumidor como alguém endividado (Lazzarato, 2014), obediente (Gros, 2018), entediado e cansado (Carvalho, 2014).
Diante desse cenário, o objetivo do presente artigo teórico consiste em problematizar uma prática consolidada e naturalizada no contemporâneo: o consumo. Compreendemos metodologicamente a produção teórica a partir das ideias de Demo (2021), que esclarece ser este um processo extenso, detalhado e contínuo que tem como norteador a aprendizagem. Esta última, segundo Demo, “exige pesquisa, elaboração e produção próprias, autoria individual e coletiva” (p. 9), consolidando-se por meio da “participação ativa” (p. 9) na compreensão do que se passa na complexa realidade social eleita como temática de estudo.
Nessa trajetória teórica, por conseguinte, busca-se compreender como a prática de consumo está atrelada aos preceitos do capitalismo transnacional que dissemina componentes de subjetivação em escala planetária e pretende, com isso, formatar modos de vida considerados adequados à circulação do capital financeirizado. Estudos recentes sobre esse tema demonstram os efeitos do consumo na vida da população destacando sua disseminação crescente (Negri, 2015; Ianni, 2014), o excesso de atividades para alcançar altos níveis de consumo (Martel, 2012; Crary, 2016), bem como o endividamento que dele decorre (Lazzarato, 2017).
Estudos também colocam em evidência as brutalidades da exclusão social que a adesão ao consumo coloca em curso (Rolnik, 2018; Sassen, 2016). Assim, o recorte teórico aqui adotado busca demonstrar o quanto estratégias de estimulação às práticas de consumo foram sofisticadas ao agregar a intervenção especializada de novos profissionais de publicidade e propaganda, arte, Tecnologia de Informação e Comunicação (TICs) e venda. Tais profissionais frequentemente adentram no campo dos afetos, reconfigurando as formas de controle e colonização que incidem sobre o corpo, a sensibilidade e os modos de vida.
Para isso, a presente argumentação foi dividida em dois momentos. Primeiramente, será realizada uma análise sobre a colonização, compreendida em sua amplitude histórica e em suas variações afetivas. A colonização será considerada aqui ora como adesão desejante e ora como submissão a um modo de vida hegemônico que foi considerado superior. Na parte seguinte, serão expostas e analisadas outras maneiras de se conectar ao mundo, sem a necessidade de sujeição à figura do colonizador nem sequer a desqualificação dos colonizados, afirmando as possibilidades múltiplas de contato e experimentação com o diferente, que será caracterizado, recorrendo a Rolnik (1995), como “estranho” (p. 52). Nesse momento, verificar-se-á que o contato com o estrangeiro pode desencadear duas maneiras distintas de relação com o que vem de fora: a que envolve um domínio colonialista e a que abarca um amplo conjunto de experimentações. Por fim, o estudo caracterizará as novas configurações da herança colonialista que marcam a história de nosso país, tornando visível uma dupla incidência: a submissão a um modelo de relação com o mundo e a presença do desejo. Hoje esses componentes são inerentes ao consumo.
Em cada uma dessas partes, recorremos a uma leitura crítica do modelo socioeconômico capitalista tendo como interlocutores Rolnik (2016, 2018), Lazzarato (2017), Crary (2016) e Foucault (1982/2014). Para tais autores, a organização econômica vigente tende a empobrecer os modos de vida da população à medida que despotencializa a ação dos sujeitos e os distancia da possibilidade de invenção de si, das relações sociais e do mundo. Dessa maneira, o estudo justifica-se por trazer para o campo da Psicologia Social em sua interface com a Filosofia da Diferença questões econômicas e políticas ligadas ao consumo e aos modos de subjetivação ora em curso que incidem diretamente sobre a vida da coletividade.
Ao final dessa trajetória teórica, será possível elucidar os efeitos que a colonização do corpo e dos afetos traz para a coletividade, culminando em um tipo de existência formatado no consumo e que se faz tão presente na contemporaneidade, interferindo de maneira decisiva sobre os rumos da vida coletiva. Cabe então à Psicologia dar visibilidade e analisar criticamente como tal colonização encontra-se amplamente naturalizada, gerando efeitos políticos devastadores tanto em nível individual quanto no coletivo.
Os Processos de Colonização do Corpo e dos Afetos pela Via do Consumo
A colonização pode ser considerada uma marca constitutiva que atravessa a história oficial, mas também afetiva, de nosso país (Schwarcz & Starling, 2015). Seus efeitos repercutem nas esferas macro e microssociais, dando contornos a diferentes aspectos da existência tais como vínculos interpessoais, os estilos de vida, as práticas de exclusão e inclusão bem como a incorporação de valores advindos de países eleitos e legitimados como referência cultural. Deste modo, pretende-se explorar o conceito de colonização para além de sua acepção usual, de um processo histórico que subjugou povos e países em proveito de outros. Trata-se, aqui, de entrever os efeitos desejantes que se consolidaram em práticas socioculturais, consuetudinárias e valorativas decorrentes da dominação colonial, hoje traduzida como hegemonia da organização social capitalística.
Uma via de aproximação entre esse contexto colonial e o modo de existência contemporâneo é a produção artística. Analisando a obra de Grada Kilomba, artista portuguesa, Rolnik diz que a arte:
É um dispositivo incrível para trazer à tona a relação colonial em sua pulsação viva, e não em sua representação ideológica. É a experiência da presença viva do outro no corpo, que na subjetividade branca ocidental está totalmente anestesiada e, com isso, o outro é uma mera representação, ele não existe. Para mim, é isso o que define fundamentalmente o que chamo de inconsciente colonial-capitalístico. É como um feitiço, que atravessa todas as relações em nossas sociedades e não só entre colonizador e colonizado (Rolnik, 2015, p. 4).
Em outro momento, Rolnik (2018) descreve as marcas que a colonização imprimiu em nossos corpos, destacando sua dimensão ideológica. Por meio dela, relacionamo-nos com o mundo a partir de sua forma atual, segmentada e cristalizada em valores a serem simplesmente acolhidos e reproduzidos por um corpo que tende a ser obediente e disciplinado diante de uma autoridade exterior, libidinalmente investida (Gros, 2018). Isso tem ligação direta com um tipo de colonização realizada em nosso país que engendrou uma série de traumas coletivos e que envolveu, dentre outras situações, “a inquisição, o extermínio dos índios” (Rolnik, 2014, p. 4), o mortífero processo escravagista (Mbembe, 2020) e a depredação sistemática de nossas riquezas naturais (Krenak, 2020).
Tais situações colonizadoras produziram “traumas cujo efeito micropolítico é o de inibir esse acesso ao corpo por causa da humilhação” (Rolnik, 2014, p. 4). O corpo do colonizado, nesse caso, “fica tão humilhado àquela cultura que se coloca como superior, que machuca, mata, estupra, expulsa, [que] te deixa totalmente desterritorializado e tem como efeito inibir a capacidade” (Rolnik, 2014, p. 4) para produzir outras sensibilidades e para mergulhar em novas experiências. Os efeitos dessa colonização do corpo, dos afetos e do imaginário da população brasileira foram diversos e destrutivos, sendo o preconceito, a discriminação, a criminalização, a violência e o extermínio alguns dos mais graves (Souza, 2019).
Cabe problematizar, no contexto deste estudo, como os efeitos da colonização expressam-se em uma esfera específica da vida contemporânea que é a do sujeito que consome. Parte desses efeitos ganha contornos nos momentos em que a representação e a posse do objeto de consumo almejado sobrepõem-se a sua experimentação. Nesse caso, é colocada em curso uma repetição passiva dos enunciados publicitários referidos às mercadorias atribuindo às mesmas qualidades humanas. Destaca-se aqui a exposição prolongada, presente em anúncios, a produtos que são sistematicamente associados às manifestações afetivas e estéticas de diferentes tipos. Resulta desse processo que os produtos promovidos ganham importância decisiva na vida dos consumidores. Trata-se de enunciados que cooperam para dar contornos ao que Rolnik (2018, p. 57) denomina como “inconsciente colonial capitalístico”, por ela compreendido como uma “nova estratégia de poder” por meio da qual “o capitalismo vem logrando expandir seu projeto colonial a ponto de englobar o conjunto do planeta”.
É desse modo que a colonização capitalística ganha diferentes contornos, sendo notável que a prática de consumo colonizadora colocou em relevo uma espécie de dependência da aprovação dos pares pela via da exposição, da posse, do acesso a serviços e, mais recentemente, pela aprovação nas redes sociais, que referendam e reproduzem ao infinito tais práticas. Como se isso não bastasse, o corpo colonizado, separado de sua potência de ação e experimentação, consome produtos e serviços advindos do exterior, reproduzindo enunciados do tipo: ‘O que vem de fora é melhor’. Entenda-se aqui que o fora em questão é geograficamente delimitado: a metrópole capitalista internacional que hoje oscila entre a matriz europeia e a norte-americana. Martel destaca que em matéria de entretenimento, por exemplo, “os Estados Unidos ocupam (...) um lugar único, sendo por enquanto o líder incontestado, que se adapta constantemente à nova situação e continua avançando (exportações de produtos e serviços culturais em alta a um ritmo de cerca de 10% por ano)” (Martel, 2012, p. 447). Ainda segundo o autor, esse avanço ocorre em meio a uma “geopolítica da cultura e das mídias” (Martel, 2012, p. 16) cujo trabalho está diretamente ligado a produção de modos de vida e sua relação direta com o consumo.
Assim, afirmamos que essa geopolítica implica componentes subjetivos de colonização que remete ao que Guattari e Rolnik (1996, p. 27) denominam “subjetividade capitalística”. Esta implica um “sistema de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo” (Guattari & Rolnik, 1996, p. 27). Nela, há uma espécie de esvaziamento das sensações e sensibilidades que não sejam aquelas conectadas às operações de mercado. O imperativo do consumo, desse modo, precisa colocar em cena “uma subjetividade que não conhece dimensões essenciais da existência como a morte, a dor, a solidão, o silêncio, a relação com o cosmo, com o tempo” (Guattari & Rolnik, 1996, p. 43).
No entendimento de Rolnik (2018), a subjetividade capitalística promove uma formatação da sensibilidade, difundindo modos específicos de sentir e pensar o mundo sob uma ótica que é a do mercado. Em tal ótica, o sujeito só pode ser compreendido em sua condição de consumidor, suscetível a um apelo afetivo que é estranho às mercadorias, mas sistematicamente colado a elas. O sujeito consumidor, uma vez constituído e tendo suas práticas naturalizadas, reveste-se de uma imagem de si com a qual absolutiza a condição de consumidor, passando a definir-se por ela. Faz parte desse processo, por exemplo, considerar que é possível possuir um conhecimento absoluto sobre si, inquestionável e seguro, desde que ele advenha do outro que seja, preferencialmente, um influenciador de redes sociais.
Daí a afirmação de Rolnik pela qual os sujeitos consumidores contemporâneos são caracterizados como “toxicômanos de identidade” (Rolnik, 1997, p. 19). A autora ainda explicita que no contexto do Capitalismo Mundial Integrado, tais identidades são reduzidas a “kits de perfis-padrão de acordo com cada órbita do mercado, para serem consumidos pelas subjetividades, independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural” (Rolnik, 1997, p. 20).
Como tais perfis se atualizam nas colonizações empreendidas pelo consumo de mercadorias e serviços? Apresentamos aqui algumas pistas. À medida que o sujeito consumidor se assume como alguém vulnerável aos apelos mercadológicos, tratando-se e sendo tratado como incapaz de resistir a eles, essa vulnerabilidade passa a ser considerada como oportunidade de vendas ou prestação de serviços pelo mercado. Cada vez mais comuns e multifacetados, os experts, ou especialistas, que na década passada foram denominados como personals, ganharam a aceitação de parte da população brasileira, que já consumia serviços de orientação e adequação ao consumo. Têm-se, assim, consumidores deslegitimados em suas escolhas na hora da compra dispostos a acolher a ideia de que os experts têm condições técnicas, estéticas e científicas para tomar decisões, na maior parte das vezes banais, no lugar dos próprios consumidores. É assim que vimos firmarem-se no mercado diferentes tipos de personals como: personal chef, organizer, diet, cook, pet, stylist, shopper, friend, wine e trainer (Barbosa, 2016), para ficar em apenas alguns exemplos.
Mais recentemente, o que vemos são esses experts atuando por meio digital, na figura dos denominados influencers. Por meio de sites e blogs, devidamente patrocinados, eles adentram na vida privada da população, sendo seguidos por milhões de adeptos do consumo tutelado que clamam por suas sugestões e opiniões que o auxiliem na produção de uma imagem de si identitária e em conformidade com os padrões ditados pelo mercado. Os influencers sobrevivem pela quantidade de likes que recebem dessa legião de seguidores (Blanco, 2019).
Note que tais denominações (personals e influencers) adotam a língua inglesa como referência, o que atesta a participação direta da cultura norte-americana na colonização valorativa de nosso país (Martel, 2012; Schwarcz & Starling, 2015). Esses profissionais, que podem ser considerados os novos colonizadores do corpo, da sensibilidade, das preferências e dos afetos, chamando para si a função de decidir no lugar do sujeito (agora definido como consumidor), cooperam para dar um passo adiante no processo de desqualificação sistemática desse. Como? À medida que ele acredita ser, e de fato se torna, incompetente para tomar decisões básicas em seu cotidiano. Sob esse ponto de vista, seria preciso realizar uma seleção minuciosa para que o consumo tivesse valor e, no caso, o próprio consumidor não possuiria habilidade, conhecimento e sensibilidade para realizar tal operação, sendo mais uma vez separado de sua potência.
Outra face dessa colonização dos corpos e dos afetos poder ser encontrada no estudo de Crary (2016) que descreve um novo valor colocado em circulação na contemporaneidade: a disponibilidade ininterrupta dos corpos para produção e para o consumo. Recorrendo a denominação Tempo 24/7, Crary o descreve como “um tempo de indiferença, contra o qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada, e dentro do qual o sono não é necessário nem inevitável” (2016, p. 12). Conectados a essa temporalidade contínua voltada para a produção e o consumo, “nossos corpos e identidades assimilam uma superabundância de serviços, imagens, procedimentos e produtos químicos em nível tóxico e muitas vezes letal” (Crary, 2016, p. 13). Fica claro, aqui, que o consumo se avizinha de um problema ambiental planetário, uma vez deixa evidente “sua exigência de gasto permanente e desperdício sem fim” (Crary, 2016, p. 13). Nesse caso, o problema ambiental é colocado em sua face diversificada e agregando outras dimensões que envolvem a natureza, bem como as relações sociais, a organização das cidades e a produção cultural globalizada.
Lazzarato (2014) oferece outras pistas relevantes para compreender o quanto à colonização extrapola o contexto de compra e venda. Ele destaca três segmentos profissionais cuja atuação pretende substituir a prática política de construção de modos de vida e das sensibilidades: o expert, o cientista e o jornalista. O autor afirma ainda que tudo “o que aconteceu, está acontecendo ou vai acontecer é interpretado por esses três de acordo com a ‘grade’ de problemas e enunciados do capitalismo contemporâneo” (2014, p. 130). Assim, questões de interesse coletivo e político acabam sendo filtradas por esses profissionais e retiradas do contexto de uma discussão política mais ampla no qual as diferenças de posição e sensibilidade poderiam encontrar lugar de expressão. Uma vez descontextualizadas, tais diferenças são imediatamente colocadas no plano pacificado e obediente do consumo. Obviamente, a crítica formulada pelo autor não se estende a todos os profissionais destas áreas, atingindo, porém, uma parcela significativa deles.
Em alguma medida, os novos colonizadores metamorfosearam o poder pastoral amplamente estudado por Foucault (1982/2014). Na contemporaneidade, diz Lazzarato (2014, p. 131), ressignificam-se os modos de dominação religiosos, vigentes por milênios, fazendo surgir “um novo ‘padre’ e um novo ‘rebanho’”. O primeiro pode ser identificado com o expert ou influencer, sempre pronto a dizer qual o melhor caminho a ser seguido nos meandros do capitalismo contemporâneo, inclusive no que diz respeito ao consumo. E Lazzarato (2014, p. 131) acrescenta: “Esse agenciamento tem o público na mão empregando as tecnologias semióticas de um ‘governo das almas’”.
Vai-se delineando, de modo acelerado, um processo de colonização do corpo e dos afetos pela via do consumo que encontra respaldo na infantilização empreendida sobre os processos de subjetivação capitalísticos. Dizem Guattari e Rolnik (1996, p. 42): “Outra função da economia subjetiva capitalística, talvez a mais importante de todas, é a da infantilização. Pensam por nós, organizam por nós a produção e a vida social”. E, caso alguém se arrisque a transitar de maneira autônoma por esse mundo de decisões cotidianas monitoradas, experimenta, de maneira recorrente, a sensação de perigo diante de um possível erro, com desdobramentos aflitivos de desagregação e exclusão social. Ou ainda, como considera Rolnik:
A mídia, personagem principal no cenário do capitalismo globalitário financeirizado, reforça o fantasma do perigo de desagregação iminente fabulado pelo sujeito, intensificando seu medo e transformando o estado de desestabilização em potência de submissão. (...) E se designo por “colonial capitalístico” o regime de inconsciente que corresponde a essa política do desejo, não é apenas porque o capitalismo nasce junto com a empresa de colonização de parte do planeta levada a cabo pela Europa Ocidental, mas também, e sobretudo, porque com sua nova estratégia de poder, o capitalismo vem logrando expandir seu projeto colonial a ponto de englobar o conjunto do planeta (Rolnik, 2016, p. 3).
Ora, cabe questionar quais as condições de possibilidade para que se consolide esse tipo de organização social atravessada, também ela, pelo desejo. Os autores respondem: “Aceitamos tudo isso porque partimos do pressuposto de que esta é a ordem do mundo, ordem que não pode ser tocada sem que se comprometa a própria ideia de vida social organizada” (Guattari & Rolnik, 1996, p. 42). Afinal, uma das estratégias utilizada nessa colonização é a naturalização de suas práticas voltadas “para o consumo, para a comunicação e para os serviços” (Lazzarato, 2017, p. 168).
Assim, os personals e influencers acima descritos são profissionais dispostos a exercer funções de autoridade sobre aqueles que se colocam na condição de impotentes em decorrência da infantilização sobre eles operada. O grande problema evocado por essa tendência à infantilização, naturalizada e identitária, é interpretar o mundo formatado no consumo como o único mundo possível (Lazzarato, 2017). Nessa direção, qualquer outra força, diferente e subversiva em relação ao regime de consumo instalado, ameaça o território identitário, fechado e organizado, produzindo incômodos diversos interpretados como perigo de desintegração (Comitê Invisível, 2016).
Como essa ameaça se estende para o cotidiano? Carvalho (2014), em sua obra sobre o tédio, assinala que um novo deus ganha forma na contemporaneidade, sendo amplamente adorado por um contingente populacional de seguidores. Trata-se do deus capital que se faz onipresente e onisciente nas transações monetárias. Entretanto, Carvalho alerta: “O novo deus, o capital, tão intangível quanto seus predecessores, gera também o cansaço que lhe corresponde: o tédio contemporâneo que se abre num leque de formas diferenciadas” (2014, p. 164). Pode-se dizer, assim, que a frustração e o cansaço entram em cena e também marcam, de maneira acentuada, o contemporâneo, dando indícios de alguns limites que já começam a ser percebidos por parte dos consumidores. Esse é o caso das promessas de uma vida plenamente satisfatória que não são cumpridas pela mera aquisição de mercadorias ou acesso a serviços. Qual seria, então, o próximo passo histórico?
O Contato com as Forças do Fora: O Estrangeiro Multifacetado
Compreendemos o estrangeiro, neste estudo, a partir das considerações de Rolnik (1995; 2018) que o descreve como aquilo (situações, fatos, acontecimentos) e aqueles (sujeitos) que, advindo de outra realidade social, econômica, cultural e política, encarnam, em relação a nós, diferenças nos modos de viver, expressar-se e se conectar com a existência. Tais diferenças, quando suficientemente intensivas, são capazes produzir efeitos de estranhamento naqueles que entram em contato com elas. A experiência de estranhamento dá indícios do quanto às forças, consideradas aqui estrangeiras, que se movem no social são múltiplas e díspares, sendo que cada sujeito, no decorrer de sua existência, depara-se com uma parte ínfima delas, dada sua vastidão. Para compreender a noção de forças, recorremos à Nietzsche, que concebe a vida como:
uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda (...) como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço (Nietzsche, 1881/1999, p. 449-450).
Qualquer tentativa de redução ou simplificação da ação das forças atesta o processo de falsificação da vida que, de modo algum, por ser reduzida ao controle e ao equilíbrio tão prometidos pela organização socioeconômica capitalista. Em seu lugar, pulsa uma grandeza de forças que, por sua potência de diferenciação, desestabiliza o que está organizado forçando o sujeito a encontrar novas configurações para si, para o outro e para o mundo, dando novos contornos à existência (Rolnik, 2018).
É nesse sentido que conceber a existência em meio à ação das forças evoca processos de experimentação e criação, mas também de inquietação e desassossego. Sua produção ocorre em meio a diferenciações de si e do outro. A experimentação ganha corpo, desse modo, pelo desassossego e pelo incômodo do encontro com o que é sentido como estranho, uma vez que a ação das forças é violenta e desestabilizadora de certas regiões afetivas supostamente mais estáveis e certamente mais conhecidas. O contato com as forças, em parte encarnadas pelo estrangeiro, também tomado como estranho, tende a assuntar por sua potência de ruptura que devasta territórios historicamente estabilizados, borra as fronteiras identitárias, coloca em circulação outros afetos.
Os abalos provocados por esse estranho, que se expressa pelas mais variadas formas e pelos mais diferentes encontros produzem, conforme assinala Rolnik (1995), sensações desconcertantes de medo e terror, como se a existência “estivesse sendo invadida por um estranho que teria imposto sua presença, independentemente de convite ou aceitação” (p. 52). Vive-se como se o intruso tornasse impossível manter a ordem vigente, as garantias já contratadas e os contornos de si até agora conhecidos. Algumas questões emergem diante dessa situação: O que fazer em face da desestabilização evocada pela ação das forças que nos são estranhas? Como é possível produzir modos de viver em meio aos encontros com a diferença radicais que as forças do fora encarnam? Quais as aberturas e fechamentos colocados para essa experimentação hoje?
Longe de uma concepção de arte glamourizada, a invenção de novos modos de vida aqui resgatada implica um difícil processo de aprendizagem que tome em consideração o bem comum (Negri, 2015) e que seja sensível aos acontecimentos que, por vezes, emergem do acaso, sem consulta ou aviso. Esses estranhos e estrangeiros simplesmente irrompem, derrubam as defesas e se colocam ao vivente em sua materialidade viva. Daí a dimensão de monstruosidade, descrita por Nietzsche (1881/1999), que convoca a uma ação diante das forças que só existem no plural e em relação com outras forças. O estranho atualiza parte dessas forças, até então desconhecidas ou distantes, que agora aparecem e passam a ocupar espaços da existência.
A reação defensiva diante dele deixa entrever “uma subjetividade fundamentalmente marcada por um racismo contra o estranho, um racismo contra tudo aquilo que não repõe um idêntico de si mesmo” (Rolnik, 1995, p. 53). Tal racismo evidencia, dessa maneira, o quanto a variação dos afetos, a abertura para contatar a diversidade das forças e as possibilidades de experimentar o desconhecido são evitados e temidos nesse tempo histórico. Adotando uma espécie de anestesia diante do estranho, o sujeito tende a desconsiderar sua presença, desviar de suas intensidades ou simplesmente congelar, em pânico, frente à brutalidade que ele evoca. Tais reações são geradas, em parte, pelo trauma que marca nossos corpos e que adveio da colonização histórica que em larga medida nos aprisionou em uma matriz violenta, como veremos na sequência.
Sentindo que a descrição de uma organização socioeconômica capitalista ganha contornos colonizadores e totalizantes, que minimizam e desqualificam as possibilidades de resistência e experimentação, Rolnik (1995) assinala a existência de outras maneiras de experimentar o mundo. Tais possibilidades envolvem um contato diferenciado e arriscado com as forças: outras maneiras de se conectar ao estrangeiro e ao estranho. Trata-se de experimentar outras sensibilidades nos encontros, que acionam forças díspares, vivas e mutantes. Nessas experimentações, os traumas que porventura marcaram o corpo colonizado dividem espaço com as possibilidades de experimentar e sustentar outros afetos, produzindo corpos sensíveis e abertos para a ação imprevisível das forças.
As inúmeras tentativas de colonização do corpo, do pensamento e dos afetos, também protagonizadas pelos influencers e demais agentes dedicados a fabricar mercadorias e estimular o consumo, encontram seus limites precisamente diante da monstruosidade de forças descrita a partir de Nietzsche (1881/1999). É que as forças do mundo, estrangeiras, exteriores e estranhas ao sujeito, não param de circular, desestabilizar e colocar em xeque as supostas e desejadas garantias de permanência identitária bem como na expectativa difundida de que seria possível conquistar uma felicidade plena - prometida de maneira recorrente nas campanhas publicitárias.
O que temos então, segundo Rolnik (2018), é a coexistência paradoxal de duas maneiras de experimentar mundo, as quais são irredutíveis: por meio das forças (vivas, mutantes e incômodas) e por meio das formas (formatadas, rígidas e permanentes). A tensão entre essas duas vertentes não pode, nem precisa, ser resolvida, uma vez que sua produção e confronto são socialmente recolocados a cada nova experiência, dando movimento à vida (Rolnik, 2018).
Daí o perigo identitário de acreditar que é possível escolher uma dessas possibilidades em sua totalidade (a forma), descartando completamente a outra (as forças). Nessa ficção, teríamos de um lado uma vida completamente regrada e, de outro, uma existência totalmente entregue à dinâmica caótica das forças. Em ambos os casos, uma parte significativa da existência seria negada: ou aquela pretendida pelas instituições que buscam a conservação e que, cabe lembrar, foi por nós inventada, legitimada e cristalizada; ou a aquela que explicita o caráter em aberto da existência que evoca o caos e a mutação.
O que temos, então, são possibilidades, ainda que momentâneas, de escapatórias e de resistências que nos colocam em um campo vivo e aberto para enfrentamentos e experimentações as quais, por sua vez, atualiza riscos. Diz Lazzarato:
Para romper com as significações dominantes e as formas de vida estabelecidas, temos que passar por pontos de não sentido, pelo a-significante, pelo não discursivo que, na política, se manifesta na greve, na revolta, nas manifestações e que, por um breve instante, suspendem o tempo e criam outros possíveis dos quais poderão proliferar, se houver consistência, outras subjetivações (Lazzarato, 2014, p. 189).
No lugar de recomendar práticas corretas de como se comportar ou mesmo instrumentalizar saídas mágicas para conflitos cotidianos, cabe problematizar como é possível politizar a vida em suas dimensões macropolíticas que envolvem as instituições, o Estado e as práticas hegemônicas. Mas cabe também colocar em análise as micropolíticas das vivências afetivas cotidianas que não apenas rompem com os modelos, mas criam e colocam em curso novas possibilidades de conexão com a existência, abrindo para experimentação de outros mundos (Negri, 2015). Abre-se, então, outro desafio: considerar as possibilidades de sustentar os afetos díspares que as experimentações fazem emergir.
O consumo, como prática contemporânea altamente valorizada, encontra seus limites precisamente aí. Ao não cumprir com as promessas que são dirigidas para o inconsciente colonizado (que supervalorizam o que vem de fora, desqualificando nossa história e nossas potências) um dos efeitos colaterais gerados pode ser precisamente o niilismo, como considerado por Carvalho (2014): um cansaço e um descrédito nessa imagem de “mundo mágico” (p. 68) idealizado e inalcançável que é disseminada pelo capitalismo emergem.
Talvez esteja precisamente nesse descrédito das promessas não cumpridas pelas mercadorias e serviços a chance de reconectar o corpo à sua potência de experimentação de si e do outro que, tal qual considerado anteriormente com Lazzarato (2014, p. 189), passa pelo “não sentido, pelo a-significante, pelo não discursivo”. Tal experimentação permite acessar outras zonas de intensidade que provocam o sujeito para experimentar e inventar diferentemente os modos de viver, atravessando as fronteiras do que já está instituído, conhecido e formatado. A questão está na criação de novos dispositivos e valores, para além do consumo, por meio dos quais seja possível ativar outras visibilidades e dizibilidades sobre o viver. Trata-se de um exercício eminentemente político que consiste em abrir o corpo sensível e o campo social para sustentar e acolher outros afetos.
Foucault traz uma colaboração importante a essa análise evidenciando o quanto é inoportuno o imperativo de sabermos, pela via da razão e dos processos identitários, quem somos e o que queremos. Ele assinala: “Sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas recusar” aquilo que os experts querem nos fazer crer sobre “quem nós somos” (Foucault, 1982/2014, p. 128). Isso só é possível pela abertura de experimentações das forças estrangeiras e pela saída do lugar de humilhação colonizadora, abrindo-se ao desconforto gerado nesse contato e ensaiando novos modos de viver e sentir. Isso gera uma potencialização do corpo e dos afetos, sem a qual caímos incessantemente nas armadilhas publicitárias de uma suposta tranquilidade prometida pelos novos colonizadores, os agentes da subjetivação capitalística.
Considerações Finais
Chegando ao final deste estudo que colocou em evidência a colonização do corpo e dos afetos pelo capitalismo, cabe questionar: Teríamos como escolher entre, de um lado, uma existência colonizada e, de outro, uma existência experimentadora? Tal escolha é facultada pela vida, aqui concebida como uma monstruosidade de forças? As respostas a essas perguntas são certamente negativas, uma vez que ambas as dimensões, criadora e colonizadora, estão presentes na história da humanidade produzindo efeitos os mais diversos nas políticas de subjetivação.
Diante das questões, porém, não cabe adotar simplesmente uma impotência resignada. Em seu lugar, abre-se uma espécie de oportunidade delicada: a de sustentar os desdobramentos afetivos advindos das múltiplas respostas ensaiadas diante do contato com estrangeiro. A multiplicação dessas respostas, em confronto com a resposta única e correta dos especialistas, afirma possibilidades pontuais, efetivas e micropolíticas de rompimento e risco.
Trata-se, nesse caso, de recusar a dimensão colonialista que incide sobre a população pela via do consumo. Junto com tais rompimentos, pode-se vislumbrar também a falência da conformação aos encontros que são mais conhecidamente familiares e nos seus desdobramentos reprodutivos, abrindo para afirmação de dimensões incontroláveis, mutantes e vivas. Entre a invenção de novos modos de existência e os modos já prontos que assumimos cotidianamente há passagens, saltos e transições a serem feitos. Não estamos, assim, condenados à conformação e resignação. Sair disso, porém, envolve o difícil empreendimento que é fazer da vida uma obra em aberto.
Tal experimentação gera desassossego e este testemunha o quanto a coexistência das forças, abarcando inclusive aquelas que emanam do capital, podem desenhar outras sensibilidades. Pode-se dizer, então, que uma vida afetivamente diversa, potente e desejante faz inveja aos criadores das vitrines, tal qual encontramos na imagem tornada canção por Chico Buarque (1981). Estas, por mais elaboradas, refinadas e perfeitas que possam ser, ficam demasiado inibidas diante do turbilhão de forças e afetos em circulação no corpo que passa a sua frente.
E, quem sabe, pela via da potência desse passante possa haver uma inversão de lugares tradicionalmente atribuídos ao sujeito e às mercadorias. Com isso, estaríamos mais potentes para reconhecer seu oposto: a imagem empobrecida e impotente das “vitrines te vendo passar” (Buarque, 1981). Nesse caso, elas estariam tomadas de cobiça pela potência encarnada no caminhante, agora capaz de acolher ou recursar as mercadorias colocadas ao dispor, uma vez que se colocou à frente de sua potência para experimentar os afetos, sem recorrer a terceirizações. O que este estudo demonstrou é que nosso tempo histórico encarna, legitima e naturaliza cotidianamente a colonização do corpo e dos afetos pela vida do consumo presencial e virtual.
Diante desse movimento histórico, cabe à Psicologia Social mostrar o quanto tal colonização encontra-se amplamente naturalizada, gerando efeitos políticos devastadores em nível individual e coletivo que passam pela discriminação e exclusão social, tendo como desdobramento a desigualdade no acesso e distribuição de riquezas que marcam a contemporaneidade.
Diante de tais efeitos, cabe continuar investigando e, ao mesmo tempo, criando possibilidades de escape e rompimento para com esse modo de vida totalizado nos valores de mercado, revertendo à colonização capitalista do corpo e dos afetos, em favor de uma sustentabilidade afetiva capaz de acolher e experimentar as múltiplas forças estrangeiras que, irredutivelmente, compõem a vida.