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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2022   06--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.69802 

PSICOLOGIA SOCIAL

Incels e Misoginia On-line em Tempos de Cultura Digital

Incels and On-Line Misogyny in Times of Digital Culture

Incels y Misoginia Online em Tiempos de Cultura Digital

André Villela de Souza Lima-Santos* 

Psicólogo. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Bolsista do CNPq Processo 160741/2021-1.


http://orcid.org/0000-0001-9956-8285

Manoel Antônio dos Santos** 

Psicólogo. Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, categoria 1A.


http://orcid.org/0000-0001-8214-7767

*Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

**Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil


RESUMO

Este estudo teórico tem como objetivo problematizar como os discursos misóginos e antifeministas são produzidos e disseminados contemporaneamente no mundo digital. O conceito de masculinidade hegemônica é trazido à baila para problematizar as formações discursivas que se materializam através de ideias importadas de sites estrangeiros em plataformas digitais brasileiras. Destacamos o discurso misógino corrente em fóruns alinhados à nova Direita (alt-right), que tem se abrigado sob o termo guarda-chuva manosphere (“esfera masculina”), um conjunto de páginas on-line e redes sociais conectadas entre si por seu teor “ultramasculino”. Identificamos um artifício alegórico - a RedPill (pílula vermelha), adotado na manosphere para nomear o processo pelo qual os homens/usuários finalmente tomam consciência da “realidade” da “ditadura feminista” que subjuga a masculinidade heterossexual. Com apoio do marco teórico dos estudos de gênero e estudos culturais propomos compreender esse fenômeno a partir da análise de mensagens de texto e posts extraídos do universo digital que buscam delimitar o “homem-de-verdade” em detrimento das masculinidades submissas (beta, como são chamadas as não dominantes). Conclui-se que no cenário digital os fluxos discursivos misóginos encontram um terreno fértil para proliferarem, engendrando práticas discursivas que convergem para o reforço da dominação masculina.

Palavras-chave: masculinidade; gênero; internet; misoginia

ABSTRACT

The aim of this theoretical study is to problematize how misogynistic and anti-feminist discourses are produced and disseminated in the contemporary digital world. The concept of hegemonic masculinity is brought up to problematize the discursive formations that materialize through ideas imported from foreign sites in Brazilian digital platforms. We highlight the current misogynistic discourse in forums aligned to the new right (alt-right), which has taken shelter under the umbrella term manosphere (“male sphere”), a set of online pages and social networks connected by their “ultramasculine” content. We identify an allegorical device - the Red Pill, adopted in the manosphere to name the process by which men/users finally become aware of the “reality” of the “feminist dictatorship” that subjugates heterosexual masculinity. Supported by the theoretical framework of gender studies and cultural studies we propose to understand this phenomenon out of the analysis of text messages and posts extracted from the digital universe that seek to delimit the “truly man” to the detriment of submissive masculinities (beta, as the non-dominant ones are called). We conclude that misogynistic discursive flows find a fertile ground to proliferate in the digital world, engendering discursive practices that converge to reinforce male domination.

Keywords: masculinity; gender; internet; misogyny

RESUMEN

Este estudio teórico tiene como objetivo problematizar cómo se producen y difunden los discursos misóginos y antifeministas en el mundo digital contemporáneo. El concepto de masculinidad hegemónica es planteado para problematizar las formaciones discursivas que se materializan a través de ideas importadas de sitios extranjeros en las plataformas digitales brasileñas. Destacamos el actual discurso misógino en foros alineados con la nueva derecha (alt-right), que se ha cobijado bajo el término paraguas de la manosfera (“esfera masculina"), un conjunto de páginas y redes sociales online conectadas por su contenido “ultramasculino”. Identificamos un dispositivo alegórico - la Pastilla Roja, adoptada en la manosfera para nombrar el proceso por el cual los hombres/usuarios finalmente toman conciencia de la “realidad” de la “dictadura feminista” que subyuga a la masculinidad heterosexual. Con apoyo de los estudios de género y los estudios culturales nos proponemos entender este fenómeno a partir del análisis de mensajes de texto y posts extraídos del universo digital que buscan delimitar al “hombre de verdad” en detrimento de las masculinidades sumisas (beta, como se denomina a las no dominantes). Se concluye que los flujos discursivos misóginos encuentran un terreno fértil para proliferar, engendrando prácticas discursivas que convergen en el fortalecimiento de la dominación masculina.

Palabras clave: masculinidad; género; internet; misoginia

Este estudo teórico-reflexivo tem como objetivo problematizar de que modo discursos misóginos e antifeministas são produzidos e disseminados em plataformas digitais, nas quais essas formações discursivas se materializam na contemporaneidade engendrando novos termos e práticas discursivas que convergem no sentido do reforço da dominação masculina. Na construção do percurso teórico-reflexivo nos pautamos no enfoque da masculinidade hegemônica, a partir do construto teorizado por Connell (2005), que abrange padrões de saberes e práticas que perpetuam o domínio masculino sobre o feminino, cristalizando uma determinada maneira mais honrada de se ser homem. No itinerário teórico empreendido tomamos como referência a obra fundante do conceito de masculinidade hegemônica, Masculinities, publicada originalmente em 1993, como marco teórico inspirador e produtivo para fundamentar nossas análises sobre masculinidades em ambientes on-line.

Segundo Lawson (2018, p. 3), no início da era digital havia uma esperança compartilhada por muitos de que “os espaços digitais proviriam uma utopia livre de desigualdades onde as subjetividades flexionadas por raça, gênero, sexualidade, habilidade e classe poderiam ser fluidas ou totalmente apagadas”. Entretanto, essa atmosfera otimista logo se dissiparia, dando lugar a uma visão bem menos edificante. Com a disseminação de novas tecnologias como a banda larga, a popularização das webcams, Internet rápida, smartphones e uma variedade de equipamentos móveis conectados, as pessoas passaram a fazer parte da “conectividade perpétua”, o que turva qualquer ruptura entre o on-line e o off-line. Nossa forma de agir no mundo off-line moldou a forma como nos comportávamos na Internet. Formas arraigadas de constituição das subjetividades não apenas persistiram ao se transladarem para o ambiente on-line, como acentuaram-se as desigualdades e iniquidades que estruturam os relacionamentos e as trocas inter-humanas no cenário contemporâneo. Por outro lado, também se observou movimento oposto: o on-line passou a influenciar e a ditar nossas formas de se agir no off-line (Castells, 2013; Miskolci, 2017). É claro que o virtual e o real possuem suas características próprias, como a relação com a temporalidade e a espacialidade, que se diferenciam radicalmente em cada caso, porém seus entrelaçamentos e influências mútuas se reproduzem incessantemente gerando um continuum entre elas, que não se reduz nem a um nem ao outro, o que contraria a percepção de que seriam esferas separadas. As formas de organização das relações sociais são reproduzidas e se alimentam mutuamente ao longo deste continuum, ainda que possam existir inflexões produzidas a partir das tecnologias digitais. Assim, a vida on-line não parece ser tão diferente da off-line.

Para compreendermos como a visão otimista sobre a difusão de tecnologias digitais, aliada à esperança de emancipação de minorias, foi perdendo vigor desde os primórdios da socialização on-line¸ devemos examinar o contexto histórico, social e cultural no qual essas tecnologias surgiram e prosperaram, embora Castells (2011) afirme que a comunicação mediada pela internet ainda é um fenômeno novo demais para ser compreendido academicamente devido à impossibilidade de termos o necessário distanciamento histórico para podermos analisar seus desdobramentos.

A onipresença da internet em praticamente todos os âmbitos da vida cotidiana no século XXI tem implicações não apenas para os diversos setores que compõem a organização social, como também desencadeia impactos substanciais para a constituição das subjetividades no contemporâneo. Ao se inserir e “navegar” no ciberespaço, o sujeito pode viver a ilusão de que é capaz de construir, desconstruir e reconstruir o mundo, ainda que virtualmente, de acordo com seu desejo. A tecnologia digital cria e alimenta a ilusão de que o usuário tem controle total sobre processos de produção e disseminação de informações com um simples clique com a ponta dos dedos. Essa crença onipotente coloca em nossas vistas uma venda - véu ideológico - que turva nossa percepção. Há, na realidade, um constante registro de qualquer atividade on-line (mesmo uma simples leitura de e-mails), em que os algoritmos desenvolvidos por grandes corporações criam “identidades” para os usuários, baseadas em seus históricos de navegação, com a finalidade de identificar seus comportamentos e até antecipá-los, visando não apenas fins comerciais como também políticos, como o escândalo da Cambridge Analytica escancarou ao tornar público que os dados de milhões de usuários do Facebook foram coletados ilegalmente e vendidos à empresa que os utilizou para influenciar as eleições estadunidenses de 2016, que elegeu Donald Trump (Brown, 2020; Cheney-Lippold, 2011). Para Stoer e Magalhães (2003), a reconfiguração do conhecimento na sociedade em rede faz com que o saber produzido e compartilhado seja simultaneamente local e global. O local adquire uma dimensão global, uma vez que não existe produção independentemente da estrutura capitalista globalizada. Em outras palavras, com a estruturação da rede, a produção local do conhecimento é, concomitantemente, global e vice-versa. O que equivale a dizer que as fronteiras entre o “aqui” e o “acolá” foram borradas e que barreiras geográficas foram relativizadas, as distâncias estreitadas e a temporalidade abreviada.

Vivemos uma ampliação e expansão considerável das possibilidades de interação, reforçando a crença de que é possível superar os limites de tempo e espaço no mundo virtual. No bojo dessas transformações que marcam a condição pós-moderna, as subjetividades estão implicadas na criação e reconstrução de nexos de sentidos e significados que não precisam obedecer aos limites de tempo e espaço aos quais está sujeita a realidade off-line, mas que nem por isso são menos reais. Ao longo de sua popularização, a internet não só deu continuidade às condições que perpetuam as desigualdades sociais produzidas pelo capitalismo, como também foi capaz de revelar e amplificar comportamentos preconceituosos, discriminatórios e mesmo criminosos com muito maior ênfase do que acontecia no mundo off-line. O anonimato promovido pela rede coincide, não à toa, com o nascimento da internet, onde grupos de extrema direita, a partir dos anos 1980, viram uma chance de desenvolveram redes de websites destinados à disseminação de conteúdos violentos, racistas, xenofóbicos, misóginos, homofóbicos e transfóbicos, muitos dos quais sob clara inspiração do ideário neofascista, enquanto que a maioria da população ainda sequer tinha acesso maciço à comunicação digital (Tateo, 2008).

Se pensarmos na continuidade e aprofundamento da reprodução das iniquidades sociais nas relações mediadas pela internet, podemos compreender melhor o alcance da afirmação de que “não se enganem, a internet é um território masculino” (Vickery, 2018). Face a essas questões, pode-se formular o seguinte problema de pesquisa: embora o virtual e o real não tenham divisões rígidas e façam parte de um continuum que se retroalimenta, é possível captar novos sentidos atribuídos à misoginia, a partir de sua presença maciça na Internet? Hipoteticamente, haveria combinações de descontinuidades e continuidades entre elas devido a fatores políticos, econômicos, sociais e culturais? Haveria potencializações entre elas ou estaríamos diante de uma ruptura em decorrência de recursos exclusivos do ambiente on-line, como o anonimato e a comunicação em rede, que se desdobra exponencialmente em uma lógica que margeia o infinito?

Nos últimos anos, termos como RedPill, Black Pill, alfa, beta, incel, irromperam das comunidades virtuais de nicho e acabaram ganhando visibilidade e figurando em meios populares e tradicionais de comunicação, como a imprensa, as redes sociais virtuais e a academia. É importante notar que a popularização de tais termos, que serão discutidos adiante, se dá, principalmente, em formato de memes (Drakett et al., 2018) - termo este que foi apropriado da biologia, especificamente dos estudos do biólogo britânico Dawkins, que denominou de meme qualquer unidade de transformação cultural, como a linguagem, que se modifica, multiplica e se alastra pelo território virtual.

Como argumenta Rago (2019), os diversos feminismos amealharam conquistas importantes no campo da cultura e da vida social nas últimas décadas, apesar do refluxo de forças de extrema direita, reacionárias e misóginas que ganharam grande proeminência nos últimos anos. Esse recrudescimento de um discurso insurgente de matriz neofascista 1 de fato vem ganhando notoriedade em escala global, na medida em que “a cada patamar de liberdade atingido, uma avalanche de respostas misóginas e machistas se faz sentir” (Rago, 2019, p. 8). Importa-nos, no bojo deste estudo, interpelarmos de que forma essas vozes/respostas se fazem eloquentes na primeira quadra do século XXI, quando a internet proporciona os meios de existência de diversos grupos sem que haja claramente um poder hierarquizado e centralizado sob o controle de líderes. Nagle (2016) afirma que os feminismos não proliferaram apenas no mundo off-line, mas também na internet, embora a resistência - as políticas antifeministas, os discursos de ódio e misóginos - não por coincidência também se radicalizem e intensifiquem a disputa de narrativas na tentativa de estabelecer hegemonias.

Medrado e Lyra (2008) argumentam que, a partir dos anos 1980, estudos de matriz feminista foram amplamente produzidos no Brasil, porém o cenário brasileiro acabou por adotar uma tendência internacional que retira a mulher do centro da discussão para focar nas relações de gênero. Para Scott (1995, p. 21), o gênero, grosso modo, é uma maneira de atribuir significado às relações de poder e também “elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”. Os questionamentos críticos de Medrado e Lyra fomentam o debate sobre o sujeito do feminismo, como a dúvida sobre um possível esvaziamento do sujeito político mulher a partir da amplitude que o conceito de gênero acabou assumindo nas discussões acadêmicas. Outra questão relevante para alimentar o debate científico é pensar se as relações igualitárias entre mulheres e homens são exequíveis ou constituem um ideal sustentado por uma utopia futurista. Seja como for, as pautas que articulam o legítimo anseio por equidade de gênero despertam a fúria dos arquiconservadores e reacionários, precipitando debates acalorados e uma avalanche de reações misóginas, machistas e homotransfóbicas.

Essas questões nos conduzem a pensar criticamente nas condições de produção e propagação de conteúdos violadores de direitos nas redes sociais virtuais, capitalizados por redes capilarizadas de milícias e manipuladores digitais, que abastecem diariamente o usuário comum com notícias falsas e tendenciosas, tirando proveito do anonimato assegurado pelo universo digital como instrumento para fazerem prevalecer seus interesses e credos ideológicos.

A Esfera Masculina: A Cultura Falocêntrica Caminha Trôpega na Corda Bamba

Para iniciar a discussão sobre o que estamos denominando de “esfera masculina” na internet, precisamos lançar um olhar para o cenário político brasileiro. Ao examinarmos a hashtag #EleNão, temos nossa atenção imediatamente dirigida para o universo on-line, no qual o impeachment da presidenta Dilma Roussef repercutiu de forma radicalmente diversa de outros eventos políticos de grande envergadura que ocorreram no passado, devido às novas possibilidades proporcionadas pelas redes sociais virtuais. Carniel et al. (2018) ilustram como, nesse cenário de ataques às instituições democráticas, a internet colaborou de forma contundente para articular a misoginia on-line, com o amparo de memes articulados com um discurso que coroou a experiência radical de deposição da presidenta que havia sido eleita pelo voto popular. Com a queda de Dilma, decorrente de um bem articulado golpe parlamentar, notamos que o ambiente virtual ganhou uma relevância inaudita, pois se revelou decisivo para a cristalização de discursos distorcidos e difamatórios, com uma larga e bem orquestrada disseminação maciça de desinformação, fakenews2, servindo a todo tipo de manipulação e polarização na arena da acirrada disputa ideológica. O ambiente virtual tornou-se, como nunca se vira antes, palco de embates e tensionamentos, como a cruzada antigênero, terreno fértil para a propagação de discursos misóginos e racistas, emoldurados por ações e práticas delituosas.

A misoginia, enquanto discurso, e suas múltiplas manifestações têm origem em passado imemorial (Vickery, 2018). O que teria, então, de particular a misoginia on-line? Segundo Álvares (2017, p. 103), a arquitetura da internet permite a aproximação entre a misoginia e “uma cultura neoliberal de performance hiper-sexualizada da feminilidade, a qual atravessa em particular as redes sociais e reifica os significantes de diferença de gênero.” A incorporeidade da internet, prossegue a autora, facilita a perpetração de atos de violência sob o manto protetor do anonimato. Além das atividades anônimas, como nota Ging (2019), o caráter “incorpóreo” das interações permite que comportamentos que via de regra não passariam despercebidos no mundo off-line dificilmente possam ser esquadrinhados e regulados no ambiente virtual.

Essa espécie de “ágora” da era digital, altamente capilarizada e descentrada, muitas vezes é instrumentalizada como um espaço de confrontos e polarizações, servindo para disseminar pensamentos tóxicos e sedimentar discursos de ódio, voltados especialmente contra minorias injustamente estigmatizadas e historicamente subjugadas. Embora as subjugações baseadas no gênero não sejam exclusivas da internet, as possibilidades de fluidez das identidades, além do obscurecimento dos corpos, do aparente esmaecimento da assimetria produzida pela hierarquia socioeconômica e da sensação de impunidade, permitem um alcance muito maior na internet do que fora dela. A rede potencializa certas formações discursivas, ao mesmo tempo em que apaga outras, e consente algumas falas, enquanto silencia outras.

O caráter hipermasculino que determinados ambientes virtuais podem assumir na rede foi nomeado com um neologismo: manosphere, isso é, a esfera masculina (Van Valkenburgh, 2018). Essa esfera falocêntrica é composta por sites, fóruns, comunidades de redes sociais ou aplicativos cujo tema subjacente é a masculinidade exacerbada, mesmo que tais plataformas tenham finalidades distintas e abriguem públicos heterogêneos. Embora as comunidades que proliferam nessas veredas virtuais sejam associadas à propagação de ódio virtual (cyberhate), é difícil demarcar claramente uma linha divisória que permita diferenciar onde termina a violência do mundo físico e começa a violência virtual. Além disso, as próprias comunidades são reguladas por lógicas internas que, embora se sobreponham em diversos aspectos, se diferenciam em outros. Ging (2019) nota que embora os subgrupos da manosphere possam apresentar filosofias semelhantes, elas não se interseccionam perfeitamente, como os Pickupartists (artistas da paquera): homens que ensinam técnicas de sedução e que, no final das contas, são movidos apenas pelo interesse comercial imediato em vender cursos. É possível encontrar semelhanças com outros grupos, como os incels, mas as finalidades são tão distintas que o mosaico que compõe a manosphere se embaralha e fica cada vez menos homogêneo.

A reflexão acerca das práticas de violência de gênero no Brasil nos remete às práticas e dispositivos institucionais de controle e disciplina sob as quais nossos corpos são sistematicamente inscritos e escrutinados.

Questionar as estratégias de poder-saber que constituem nossos corpos como rigidamente e naturalmente inscritos (ou produzidos) em performances sexistas vale para as práticas institucionais, sejam governamentais ou não, práticas culturais e também as nossas práticas de pesquisa nos meios acadêmicos. Inclui, também, analisar criticamente as leis e os sistemas judiciário e penal que regulamentam práticas sexistas, prisioneiras de concepções que robustecem os modelos identitários contra os quais nos posicionamos (Medrado & Mello, 2008, p. 84).

Assim, ainda que um adensamento desta questão escape ao escopo do presente estudo, há que se questionar a lógica subjacente às práticas sociais que naturalizam as matrizes de sexualidades e gêneros. Isso exige uma historicização que possa iluminar os modos como os ideais sexistas das masculinidades hegemônicas foram construídos nos embates e nas fricções históricas e como esses ideais se renovam ao serem reproduzidos no cotidiano das relações sociais e das práticas culturais (Connell, 2005).

Quando olhamos para a forma como o sexismo on-line se articula na rede (Drakett et al., 2018), notamos que parte substancial dos sites e ambientes virtuais que pertencem à manosphere segue a “filosofia” da RedPill (Pílula Vermelha), referência extraída do filme Matrix (Silver, Wachowski, & Wachowski, 1999). A partir dessa representação cinematográfica os grupos virtuais adaptaram a ideia da pílula vermelha ao que consideram ser, em sua cartilha ideológica, as “verdades ocultas” a respeito da realidade do mundo. No caso, “tomar” a pílula vermelha significaria se dar conta das verdades inconvenientes do mundo, principalmente no que diz respeito a uma suposta “lavagem cerebral” que os movimentos feministas teriam empreendido nas sociedades ocidentais.

Pertencer a um desses grupos virtuais daria ao usuário a “senha” que abre a porta de acesso a essa outra dimensão, que até então permanecia invisível, ou melhor, propositalmente escamoteada do acesso da maioria das pessoas. Mas nesse ponto uma pregunta se impõe: o que justificaria o fato de que esses homens se sentem injustiçados pelo que eles identificam como sendo os mecanismos de exclusão social, o que os conduz facilmente a uma posição de “vitimizados do gênero”?

Dentre os grupos que adotam a RedPill como forma de clarear seus pensamentos e adquirir uma espécie de clarividência, situam-se os incels. O termo é derivado do inglês involuntary celibates (celibatários involuntários) e designa os homens que se sentem rejeitados por mulheres e acabam assumindo posturas misóginas e atitudes hostis contra elas, utilizando principalmente as comunidades on-line para disseminar seu ódio generalizado e purgar seu ressentimento. No território virtual sentem-se fortalecidos em sua vulnerabilidade e usam a proteção conferida pelo anonimato para se movimentarem com desenvoltura, destilarem sua “ira sagrada” e liberarem sua agressividade sem culpa. Ali os incels encontram seus pares e por meio de processos identificatórios se reconhecem nas mensagens trocadas como verdades libertadoras.

Nesse universo, que encontra na internet o meio de cultura ideal para proliferar e conquistar adeptos e estabelecer alianças estratégicas, tem se destacado nos últimos anos o website estadunidense 4chan. Para Nagle (2016), é o principal produtor de conteúdo da “nova Direita”, ou alt-right, que tem como característica distintiva a utilização de conteúdo pornográfico de alto teor humilhante e hostil em relação às mulheres. As imagens compartilhadas em associação com os textos costumam despertar curiosidade, excitação sexual e risos cúmplices nos usuários.

O movimento da misoginia on-line tem se disseminado globalmente e com uma velocidade e virulência de uma pandemia, inclusive no Brasil, onde tem encontrado amparo no domínio da extrema direita que se encastelou no governo central desde 2019. A manosphere brasileira é ainda um tanto quanto difusa e incipiente, porém tem se expandido extraordinariamente nos últimos anos, particularmente com a ascensão da ideologia autoritária e dos ataques antidemocráticos às instituições brasileiras. Esse incremento pode ser facilmente observado nas redes sociais mais difundidas, como o Facebook, Instagram, YouTube e, notadamente, os chans.

Os chans são fóruns on-line que se diferenciam dos tradicionais por terem, notadamente, um visual rústico confuso que até certo ponto é intencional, denotando a pouca preocupação com a usabilidade (Antonio, 2013). Afinal, homens que se orgulham de personificarem um ideal de “masculinidade tradicional” sentem-se mais confortáveis quando utilizam sites pobremente desenhados, reforçando intencionalmente sua precariedade material 3. Além disso, os chans não exigem cadastro de seus usuários para submissão de conteúdo (posts), o que torna o anonimato de seus participantes quase absoluto. Ademais, os chans permitem uma quantidade limitada de conteúdo simultâneo em seu domínio, excluindo automaticamente os conteúdos mais antigos, o que exacerba o caráter efêmero que configura sua dinâmica e incrementa a sensação de segurança pessoal e até mesmo de impunidade (Figura 1).

Figura 1 Exemplo de um tópico extraído de um popular chan brasileiro. 

Há uma organização própria nesse tipo de fórum que propicia uma dinâmica particular e permite a produção irrestrita de quaisquer tipos de conteúdo:

Os chans são normalmente divididos por canais temáticos e qualquer usuário pode inserir um novo tópico de discussão. Geralmente, cada canal possui suas regras próprias para garantir uma melhor organização, evitando que um canal sobre culinária, por exemplo, exiba questionamentos sobre aeromodelismo. Para que haja o mínimo de ordem, alguns usuários mais ativos e de confiança são eleitos os moderadores do tópico. Quem normalmente faz essa seleção é o dono do imageboard, que opta por colocar amigos nessas posições de maior responsabilidade. (Antonio, 2013, p. 42)

Na maioria dos chans é possível encontrar canais temáticos semelhantes, como espaços dedicados a animes (desenhos animados japoneses), música, humor, política, pornografia e suas inúmeras sub-variedades, configurando um cardápio de opções em que o usuário pode navegar.

Pílula Vermelha, Cultura Ginocêntrica e os Últimos “Verdadeiros Românticos”

Ging (2019) define o já desgastado termo “masculinidade tóxica” como uma tendência masculina à competição e dominação agressiva de outros indivíduos. Empregamos essa expressão para indicar a vulgarização do conceito, que perdeu sua definição mais rigorosa por ter se popularizado em demasia. Nagle (2016) rebate essa definição simplificadora, alegando que homens, tais como os usuários dos chans, compartilham marcado interesse por pornografia envolvendo travestis, discussões sobre bissexualidade, relatos que algumas vezes extrapolam uma ideia rígida e estereotipada de masculinidade tradicional, embora ainda sustentem, paradoxalmente, um discurso misógino e conservador. Investigar as motivações que amparam esse paradoxo desponta como um caminho promissor a ser explorado.

Não é difícil encontrar evidências que fundamentam esse argumento. Em dois dos principais chans brasileiros 4 podemos encontrar os seguintes canais /tr/ - Neomulheres e /tr Pintos Femininos, respectivamente (as duas letras que antecedem os nomes dos canais indicam uma espécie de sigla-senha que facilita a utilização do site), ambos repletos de fotos e vídeos pornográficos performados por corpos travestis. Na concepção de masculinidade veiculada e reificada nas comunicações compartilhadas nos referidos sites, há objetificação do corpo travesti e uma relação obsessiva com a ambiguidade sexual representada pela configuração anatômica da genitália. Nesse caso a figura da travesti, assim como de mulheres trans, aparecem associadas à lógica da descartabilidade, da relação sexual fortuita e consentida apenas “no sigilo”, e comumente designada por termos pejorativos. A excitação sexual anda de mãos dadas com o lugar de abjeção designado aos corpos travestis pela transfobia. Além da linguagem pornográfica, dos termos chulos e do vocabulário de baixo calão, que aproximam as expressões da sexualidade à ideia de sujeira, os incels dão forte ênfase, em seus posts, aos videogames e compartilham vídeos de humor, pegadinhas e memes, isto é, conteúdos de teor infantilizado, o que de imediato suscita a questão: podemos identificar uma masculinidade tradicional nesses atributos? Autoras(es), como Nagle (2016), apostam que não.

Em outras palavras: seria o incel um caso particular de masculinidade hegemônica, exagerando nas tintas da masculinidade tóxica? Não há consenso na literatura em relação a essa questão. Em todo caso, nos posicionamos a favor desse argumento, nos alinhando a autores como Ging (2019) e Nagle (2016) que consideram que sim, o fenômeno incel pode ser percebido como um caso particular de masculinidade hegemônica. É verdade que os incels exibem traços “subalternos” e até rejeitam a masculinidade “tradicional”, porém ainda assim desfrutam dos privilégios masculinos assim como a massiva presença masculina na Internet, que tende a ser associada à possibilidade de qualquer manifestação espontânea e de forma desimpedida, enquanto que as mulheres são assediadas por simplesmente se mostrarem como mulheres, principalmente em ambientes virtuais como comunidades gamers, fóruns dedicado à discussão de cultura popular, produções da indústria cultural - como seriados, filmes, quadrinhos. Ao usufruírem dos privilégios masculinos, os incels contribuem para perpetuar o domínio sobre as mulheres no contexto on-line. Há indícios, recolhidos no formato de posts e manifestações on-line, de que essas masculinidades estão associadas a homens jovens, brancos, heterossexuais e dotados de alto capital cultural, isso é, homens que de certa forma ocupam espaços privilegiados na hierarquia de prestígio social (Ging, 2019; Kendall, 2011; Massanari, 2017).

Nagle (2016) problematiza o uso do conceito de “masculinidade hegemônica” para descrever esse fenômeno, ao afirmar que interpretar a misoginia on-line como mais uma de suas manifestações seria totalmente descabido, uma vez que Connell (2005), ao descrever o construto em seu livro Masculinities, argumenta que as palavras nerd e geek são identificadas como atributos de masculinidades subalternas. De fato, os próprios homens usuários dos chans se posicionam de forma explicitamente contrária à masculinidade hegemônica (os machos alfa) ao preferirem se autointitular betas. Por outro lado, as masculinidades que se veem como subalternas e excluídas dos relacionamentos amorosos, e de toda uma gramática social-afetiva, isso é, uma expectativa social acerca dos relacionamentos amorosos, são as mesmas que instauram um regime de dominação e exclusão no ambiente on-line. É dessa aparente contradição que emerge o conceito de “masculinidade híbrida” (Connell, 2005; Ging, 2019), que sustenta a possibilidade de as masculinidades se apropriarem de características tidas como subalternas em relação à masculinidade hegemônica, mas garantindo ainda a dominação em oposição às mulheres.

Ging (2019) identifica com clareza a hibridez das masculinidades nos chans e sites dedicados à RedPill. Ou seja, ao mesmo tempo em que se afastam - e até condenam - da masculinidade idealizada, as masculinidades híbridas usufruem dos privilégios masculinos (brancos) enquanto mantêm intacta a opressão e subjugação milenar das mulheres. É importante ressaltar a impossibilidade de se falar em “uma” masculinidade, fixando uma definição totalizante, afinal há diversas masculinidades que se diferenciam devido a contextos e atravessamentos tais como raça e classe social compondo um mosaico de diversas formas de “ser homem”. É evidente que, baseado nas manifestações de machismo e racismo de diversos posts, além de comentários que evidenciam determinado lugar de privilégio material (além do próprio acesso à Internet, que é díspar entre pessoas brancas e negras), podemos identificar o núcleo do discurso dos chans como branco e masculino. Isso, evidentemente, não implica que todos os usuários dessa plataforma sejam homens brancos, mas que o discurso hegemônico dos chans ocupa essa posição.

Convém mencionar um dos pilares da “filosofia” RedPill, que tomou forma no blog intitulado The Rational Male. Este é um dos 80.000 sites mais acessados em todo o mundo. O título do blog deu origem ao livro homônimo (Tomassi, 2013), que em julho de 2021 constava no catálogo da Amazon como o 2430º livro mais vendido da plataforma, sendo o décimo segundo na categoria Dating, isso é, relacionamentos. O livro já chegou ao Brasil sob o título “O MACHO RACIONAL: Como evitar as armadilhas do Imperativo Feminino, preservar sua masculinidade e assumir o controle de seus relacionamentos” (Tomassi, 2013). Na plataforma Amazon brasileira, em sua versão portuguesa o livro ocupa o 51º lugar no ranking dos livros mais vendido na categoria Estudos sobre a mulher, política e ciências sociais. Cento e doze pessoas tinham avaliado o livro até maio de 2020 e, destes, 83% lhe atribuíram a nota máxima (cinco estrelas). A sinopse do livro, disponibilizada no próprio site (Tomassi, 2013), porém sem autoria creditada, é uma vertiginosa escrita que naturaliza comportamentos socialmente esperados para homens e mulheres, e ainda apresenta uma enfática defesa redigida em tom panfletário (como de resto todo o livro) pelo próprio autor:

Homens heterossexuais: vocês foram enganados por toda sua vida. Nossa cultura ginocêntrica colocou as mulheres em um pedestal, idealizadas de um modo que sufocou a análise racional de sua natureza. [...]. Pois bem, hora de uma dose cavalar de pílula vermelha. Eis algumas verdades chocantes: Mulheres não se importam nem um pouco com os sacrifícios que um homem faz por elas. Se o marido vai para uma guerra e é derrotado e morto, ela se casa com um dos soldados do exército vencedor. (Amazon, n.d., para. 1-2).

A estratégia de culpabilizar as mulheres - englobadas no que o autor chama de “cultura ginocêntrica” - pelas mazelas do mundo parece retomar o mito edênico de Eva, a primeira mulher, que enganou Adão e subverteu a ordem divina de não experimentar do fruto da árvore do conhecimento. Em contraposição à imagem implacável de astuciosa, vil e aproveitadora, que é projetada nas mulheres ao longo dos séculos, os homens são delineados como seres puros e ingênuos, os últimos inocentes na face da terra, os “verdadeiros românticos”:

Os homens são os verdadeiros românticos. Por sua natureza descartável 5, eles são mais propensos ao idealismo, a se entregar a um propósito. Mulheres, na realidade, são oportunistas. Por serem o lado preservado, elas sempre vão procurar otimizar suas possibilidades. Reprimir seus interesses sexuais não faz você parecer mais confiável para uma mulher. Na verdade, essa atitude diminui suas chances de conseguir alguma intimidade. Músculos contam mais do que “bom humor” e “personalidade” para conquistar uma mulher jovem e gostosa. Isso não é futilidade, é instinto evolutivo (Amazon, n.d., para. 4-6).

No excerto apresentado percebemos uma tentativa de demonstrar uma cadeia de causalidade baseada em premissas preconceituosa (mais uma vez, a ideia de “malícia feminina”), ainda que ela não seja “falsa” porque é culturalmente validada, evocando uma suposta malícia inerente à “natureza” das mulheres. Esse “dom de iludir” supostamente as tornaria inclinadas a se sentirem atraídas pelo homem com compleição atlética, corpo musculoso, em detrimento de homens com personalidade refinada, interessantes e bem-humorados, mas com corpos fora do padrão dominante. A proeminência discursiva da compleição física avantajada, vagamente inspirada na tradição apolínea, é identificada como um traço imprescindível para o homem ser valorizado e os escritos da manosphere não deixam que reste margem para dúvidas em relação à importância atribuída à dotação física. No excerto a seguir, nota-se de forma mais incisiva a defesa intransigente que o autor da sinopse faz de Rollo Tomassi, chegando a negar seu ódio às mulheres, propondo em seu lugar uma “versão alternativa” de que ele seria apenas “impiedosamente sincero”.

Não existe “mística feminina”. Mulheres são mais racionais do que gostaríamos de admitir. É preciso deixar claro que o autor da bíblia da pílula vermelha não é misógino. Ele até se declara pró-casamento no meio do livro. Rollo Tomassi é apenas impiedosamente sincero sobre a natureza feminina. Tal como alguém precisa ser para salvar os outros de um estado de autoengano. Leitura obrigatória (Amazon, n.d., para. 7-9).

Tais afirmações, embora traduzam uma argumentação empobrecida, encontram ecos perceptíveis não apenas nos sites da Manosphere, como também nas avaliações escritas pelos leitores da obra no próprio site da Amazon. Vinte e dois comentários, todos positivos, haviam sido postados até maio de 2020 com elogios à capacidade de “abrir a mente” do homem frente às manipulações femininas, ou a coragem de ser politicamente incorreto ao apresentar “verdades difíceis de engolir, porém inegáveis”. Cabe notar que, dos perfis avaliadores que exibiam nome próprio, todos eram masculinos.

Violência (ir)racional e outras manifestações contundentes de movimentos antivida

O livro de Tomassi (2013) auxilia o usuário não iniciado a decodificar os obscuros termos tão recorrentes e onipresentes na manosphere, tais como o conceito de “muro”. O “muro” seria, nas palavras de Tomassi (2013), uma espécie de limiar pelo qual as mulheres passariam a adquirirem uma percepção de si superestimada, isto é, mais valorizada do que elas seriam na realidade. Essa sobrevalorização evidenciaria uma hipertrofia da autoestima feminina, e seria uma discrepância entre a percepção de si no “mercado sexual” e o real “valor atribuído” de fato a elas pelos homens. O autor afirma que a passagem por esse limiar pode gerar a sensação de amargura na mulher, incitando-a a se contentar com um “macho beta”, isso é, o homem desprovido de características “alfa” como a personalidade dominadora, racional e lógica, que é capaz de resistir à sedução e não se render às emoções, além de ser naturalmente dotado de proeminência em sua compleição física.

É comum encontrarmos no discurso incel termos altamente depreciativos, como o inacreditável “depósito de porra”, para se referir às mulheres nos chans brasileiros, ou ainda o neologismo desqualificador “merdalher”, como formas de objetificação feminina com clara conotação misógina. Ou seja, não existem apenas mecanismos de desigualdade de gênero em jogo, mas uma aversão pelo gênero feminino. Segundo Žižek (2015), a violência verbal é o modo último de toda violência humana. Quando se dirige o ódio a um grupo específico, não é o indivíduo real que se odeia, mas sua imagem idealizada, sua dimensão fantasmática, algo que ressoa e ganha sentido justamente ao ser enunciado pela articulação da cadeia significante nas malhas da linguagem. E por qual motivo a mulher, ou melhor, a dimensão fantasmática da mulher, suscita tamanho ódio em determinados homens? E por qual motivo eles se sentem tão ameaçados pelo gênero feminino? Por que se sentem fracassados, claudicantes, perfidamente enganados e atraiçoados pelas mulheres?

Se é possível identificar a hegemonia de um discurso misógino nas franjas opacas da manosphere, ele pode ser nomeado de discurso incel, uma narrativa que reúne, entre suas características axiais, um esboço do que pode ser descrito como uma “economia sexual”. A economia sexual da lógica incel segue os mesmos passos do livro de Tomassi (2013), dividindo os homens entre alfas e betas: os primeiros, desejados pelas mulheres por motivos já referidos, e os betas, identificados como fracos e submissos, o que os faz ter menor acesso às mulheres disponíveis no mercado das conquistas sexuais. Essa restrição do acesso é vivida como depreciação do privilégio natural masculino. É, portanto, sentida como uma violação de um direito que, na ordem cultural, é facultado aos homens pelo simples fato de serem homens.

Um homem que esteja no modo de funcionamento beta frequentemente se sente exposto às vicissitudes da privação de contato com o “gênero oposto”, o que alimenta a narrativa de que as relações afetivas amorosas, mais especificamente o intercurso sexual, constituem algo que lhes fora tirado injustamente. Por conseguinte, esses “perdedores” sentem que as mulheres lhes devem a satisfação sexual que lhes fora indevidamente retirada (Witt, 2020). Eles se sentem destituídos de seus privilégios masculinos, ridicularizados, dolorosamente inferiorizados e humilhados pelas mulheres. Esses homens, portanto, sentem que têm “direito” legítimo à reparação. Devem ser compensados, ressarcidos de algum modo dos danos que as mulheres lhes infligiram. Por absurdo que pareça, entender as manifestações de violência de gênero como resultado da cobrança de uma suposta dívida simbólica pode abrir novos caminhos para que se compreendam os sentidos construídos nas escaramuças do gênero. Vista pelo vértice do sujeito, a violência é uma reação irracional frente ao sentimento de menos-valia, uma tentativa maníaca de restaurar a dignidade fraturada, procurando sair da incômoda posição de sujeito desprezado e inferiorizado. Vista pelo vértice da cultura, a violência é a forma mais comum de buscar restaurar a lógica do mando patriarcal, ameaçada pelo avanço notável das lutas por emancipação feminina travadas nas últimas décadas.

Witt (2020) reconhece duas características na lógica incel da economia sexual, que subsidiam a percepção de que o sexo lhes fora “roubado”: (1) as mulheres teriam direitos demais, liberdades exageradas (aquilo que é denominado, de forma depreciativa, como uma “cultura ginocêntrica”), o que lhes permitiria tirar vantagem dos homens que as desejam, escravizando-os e humilhando-os constantemente, criando assim a desigualdade sexual. (2) Os alfas (às vezes chamados de chads) seriam responsáveis por “acumular” os recursos sexuais dos corpos femininos. Esse direito natural ao sexo faz com que os homens seguidores do discurso incel nutram profundo ódio às mulheres, assim como aos homens alfa, seus invejados rivais. Esse ressentimento cultivado sedimenta a crença de que as mulheres deveriam ser tratadas como gado e seus corpos deveriam ser percebidos como recurso público, “território sem dono”, a que todos os homens teriam pleno direito de usufruir a seu bel prazer. Se, como reza o mito edênico, Eva foi fabricada a partir de uma costela de Adão, então nada mais natural do que cobrar da mulher, herdeira da astuciosa Eva, a restituição desse investimento masculino e que o pagamento da dívida mítica se dê na mesma matéria: em carne, osso e sangue.

Considerações Finais

Este estudo buscou articular reflexões em torno de um breve histórico da misoginia expressa nas plataformas on-line da internet 2.0 brasileira, assim como a constante transposição de práticas, terminologias e discursos estrangeiros, majoritariamente anglófonos. Partimos da pergunta: seria a misoginia on-line distinta da misoginia off-line? Inspirados em Ging (2019), constatamos que os efeitos da misoginia são reais independentemente do meio por onde germina e toma forma esse tipo de pensamento. A superação de barreiras territoriais e limitações geográficas favorece as condições para que tais eventos ocorram e explica a capilaridade e amplificação desses discursos que excedem as práticas misóginas do mundo off-line.

Adicionalmente, é importante reconhecer que a misoginia on-line, por ser uma prática contemporânea, não deve sugerir que a misoginia off-line é sua “forma tradicional”. Isso é importante para não se recair no perigo da naturalização e consequente ênfase no binarismo de gênero. Ambas as práticas, com suas peculiaridades e gêneses distintas, mas que também se entrecruzam, devem ser combatidas e discutidas a fim de se promover a igualdade de gênero.

Embora discursos e práticas violentas na internet sejam amplamente disseminados e tenham graves consequências na gestão da sociedade democrática (como, por exemplo, as fakenews disseminadas e utilizadas como arma ideológica contra Dilma Roussef nas vésperas do impeachment), os estudos dedicados a este tema ainda são incipientes no Brasil, especialmente os que focalizam os Incels, ou outros grupos da Manosphere. Futuras pesquisas podem continuar a explorar de que forma as violências perpetradas por tais discursos residem em sua contínua capacidade de adaptação a diferentes contextos, como a sociedade brasileira do século XXI, não se reduzindo a meras repetições anacrônicas de práticas “milenares” de dominação masculina.

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Žižek, S. (2015). Violência: Seis reflexões laterais (M. S. Pereira, Trad.). Boitempo. [ Links ]

1Michael Löwy (2019) definiu o neofascismo como similar ao fascismo tradicional, mas com peculiaridades que exigem a adição do prefixo “neo”. As diferenças estão na atual ausência de qualquer ameaça revolucionária ao sistema capitalista, um desinteresse do grande capital pelos movimentos neofascistas (embora possa haver até certa tolerância) e, por último, a adesão de camadas da sociedade que não eram tradicionais sustentáculos dos movimentos fascistas (pequena burguesia), como a própria classe trabalhadora.

2Allcott e Gentzkow (2017) definem fake news como artigos jornalísticos que, mediante verificação, se mostram enganosos e que, de forma proposital, buscam enganar ou persuadir os leitores. É evidente que essa simples definição dá margem a inúmeros desdobramentos, como a própria chancela de quem pode ou não definir o que é verdade.

3O ideal de “masculinidade tradicional”, grosso modo, é entendido na cultura ocidental, a partir de características tais como o distanciamento de comportamentos associados ao feminino ou ausência de toda e qualquer exibição de fragilidade física ou emocional (David &Brannon, 1976).

41500chan (https://1500chan.org/, recuperado em 20 de maio de 2021); Favelachan (https://favelachan.org/, recuperado em 20 de maio de 2021

5De acordo com o autor, homens seriam descartáveis, pois vão às guerras em nome de seus ideais e acabam por morrer, enquanto as mulheres se preservam em suas casas. Além disso, mulheres são percebidas como detentoras do privilégio de poder escolher diversos homens, que tem de brigar entre si por elas, até se tornarem descartáveis e serem trocados pelo próximo homem interessado.

Financiamento Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Bolsa de Mestrado do CNPq, Processo 160741/2021-1 e Bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ-1A.

Recebido: 18 de Setembro de 2021; Revisado: 11 de Abril de 2022; Aceito: 15 de Maio de 2022

André Villela de Souza Lima-Santos Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Campus Universitário, Ribeirão Preto - SP, Brasil. CEP 14040-901 Endereço eletrônico: andvillela@usp.br

Manoel Antônio dos Santos Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Campus Universitário, Ribeirão Preto - SP, Brasil. CEP 14040-901 Endereço eletrônico: masantos@ffclrp.usp.br

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