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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2022  Epub 06-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.69563 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

Contribuições Psicanalíticas sobre as Raízes do Racismo

Psychoanalytic Contributions to the Roots of Racism

Contribuciones Psicoanalíticas a las Raíces del Racismo

Geisa Karla Oliveira de Assis* 

Psicóloga, graduada pela PUC-Rio, mestra pelo PGPSA/UERJ.


http://orcid.org/0000-0002-4042-2748

Heloisa Fernandes Caldas Ribeiro** 

Doutorado em psicologia UFRJ; Professora Associada do PGPSA/IP/UERJ; Tema principal de pesquisa "Violência, corpo e linguagem"; Membro do GT "Psicanálise, Política e cultura"; Psicanalista AME da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.


http://orcid.org/0000-0001-6264-1223

*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

**Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO

O presente artigo reúne contribuições psicanalíticas a respeito do fenômeno do racismo, seu lugar na organização da sociedade ocidental e brasileira, e na constituição do sujeito. O intuito é examinar as análises de pessoas negras para além da afirmação de que ser negro e lutar contra o racismo levaria à formação de grupo e inviabilizaria a emergência da singularidade do sujeito. Buscamos, então, as exíguas contribuições psicanalíticas sobre o tema para abordar a questão. Estudamos o conceito de raça e racismo em outros campos do saber a fim de desvelarmos os mecanismos do racismo como construto social, histórico e político. A investigação da literatura psicanalítica nos aproximou dos conceitos de ódio e expulsão e foi possível verificar que tais artifícios estão envolvidos tanto na fundação de um tipo específico de laço social, quanto na fundação do sujeito. Por fim, resgatamos as contribuições feitas por Lélia Gonzalez no que se refere ao racismo e seus efeitos na constituição da subjetividade negra e na sociedade e cultura brasileiras a partir da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; racismo; segregação; designação segregante

ABSTRACT

This article collects psychoanalytic contributions regarding the phenomenon of racism, its place in the constitution of Western, Brazilian society and in the constitution of the subject. The aim is to examine the analyses of black people far beyond the mere statement that being black and fighting against racism would lead to the formation of a group and would make the emergence of subject’s singularity unfeasible. Therefore, we have sought the scarce psychoanalytical contributions on the subject in order to approach the issue of racism. We have studied the concept of race and racism in other fields of knowledge in order to understand the mechanism of racism as a social, historical and political construct. We have approached the concepts of hatred and expulsion in psychoanalysis and realized that such mechanisms are involved both not only in the foundation of a type of social bond but also in the foundation of the subject. Finally, we have rescued the contributions made from the field of psychoanalysis by Lélia Gonzalez regarding the role of racism in the constitution of black subjectivity and in Brazilian society and culture.

Keywords: psychoanalysis; racism; segregation; segregation designation

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo recoger aportes psicoanalíticos sobre el fenómeno del racismo, su lugar en la constitución de la sociedad occidental brasileña y en la constitución del sujeto, para ayudarnos a pensar en el análisis de los negros más allá de la mera afirmación de que el ser negro, la lucha contra el racismo conduce a la formación de un grupo que hace inviable la singularidad. Luego buscamos las pocas aportaciones psicoanalíticas sobre el tema, para abordar el tema del racismo. Estudiamos el concepto de raza y racismo en otros campos del conocimiento para llegar al mecanismo del racismo como construcción social, histórica y política. La investigación en la literatura psicoanalítica sobre el mecanismo del racismo nos acercó a los conceptos de odio y expulsión en psicoanálisis y nos dimos cuenta de que estos mecanismos están involucrados tanto en lafundación de un tipo de vínculo social como en la fundación del sujeto. Finalmente, recordamos las contribuciones de Lélia González sobre el lugar del racismo en la constitución de la subjetividad negra y en la sociedad y cultura brasileñas basadas en el psicoanálisis.

Palabras clave: psicoanálisis; racismo; segregación; designación segregante

Uma raiz é aquilo que finca uma árvore ao solo, alimentando-a e visando a sua existência ao longo dos anos, sua manutenção. Uma raiz pode ser profunda e não estar à vista, mas também pode ser aérea, parecendo frágil e disposta ao olhar. Em uma correlação, de qual raiz se trataria o racismo? O racismo se trata de uma raiz muito peculiar; uma raiz firme, profunda e também à mostra, exibindo a existência da colonialidade do poder (Quijano, 2005), além da necropolítica (Mbembe, 2018) e do desencanto (Simas & Rufino, 2020). Com a psicanálise lacaniana, depreendemos que a raiz do racismo é o gozo e o vemos tanto na elaboração teórica psicanalítica relativa à fundação do psiquismo e do laço social quanto na rejeição de gozo. A leitura psicanalítica de tal fenômeno é fundamental, pois ela trata daquilo que, a partir de outros campos de saber, resta (Gonzalez, 1984), ou ainda, das causas obscuras do racismo (Miller, 2016). Não se trata, de forma alguma, de qualquer tipo de hierarquização de saberes, mas de um ponto de vista que é imprescindível à leitura e ao combate do racismo. É com outros saberes, portanto, que iremos caminhar primeiro, pois consideramos importante situarmos o racismo para então, posteriormente, realizarmos a leitura psicanalítica do mesmo.

Para realização de tal estudo, nos servimos da pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos enquanto metodologia que compreende na “aplicação de concepções teóricas e metodológicas a objetos externos ao campo em que foram criados: o campo das descobertas freudianas” (Rosa, 2004, p. 331). A mesma não propõe um “método a que todos os casos poderiam ser submetidos” (Rosa, 2004, p. 331), mas sim nos remete, “mais do que ao tema, ao modo de formular as questões” (Rosa, 2004, p. 337). Aqui, escolhemos a análise feita pela vertente dos discursos para questionar, a partir da definição de discurso como aquilo que faz laço social (Lacan 1968-69/2008), qual lugar do gozo, no laço social que o racismo opera, e que relação o gozo estabelece entre os atores sociais.

Sobre as Raízes do Racismo no Mundo e no Brasil

A raça, como expressão da dominação colonial, permeia as relações de poder até hoje, tornando-se um elemento fundamental daquilo que Aníbal Quijano chama de colonialidade de poder em escala global. É a noção de raça, de sua categorização como raças superiores e inferiores com base biológica, que deu esteio à formação das Américas, do eurocentrismo e do despojo feito ao continente africano (Quijano, 2005). Acima de tudo, o conceito de raça foi utilizado como tecnologia a serviço dos países colonizadores para respaldar a destruição e submissão dos países colonizados.

O colonialismo, portanto, apoiou-se no conceito de raça biológica como base fundamental no argumento a favor tanto da exploração das colônias e da escravização de povos para sua exploração, quanto na acepção do padrão humano europeu como universal civil. As identidades nasceram conforme as relações de poder foram estabelecidas. Antes da dominação europeia não havia o negro, o índio, o mestiço nem o europeu. Assim, pode-se dizer que nas Américas o conceito de raça não só se tornou o elemento fundamental para a classificação social universal da população mundial, como também autorizou, confirmou e possibilitou as relações de dominação e poder estabelecidas.

Porém, o conceito de raça biológica aplicada às relações humanas é inoperante cientificamente para explicar sua diversidade. Ou seja, biológica e geneticamente não há raças. Isso revela o verdadeiro fundamento que há na elaboração do conceito de raça e no seu uso para explicar a diversidade humana: legitimar a hierarquia e as relações de dominação e sujeição, dando origem à ideia de raças superiores e inferiores no Ocidente (Munanga, 2003). Assim, o conceito de raça social nos ajuda na compreensão da ideia de raça, já que é levada em consideração a inexistência de raças biológicas, colocando acento na sua eficácia social para a construção, manutenção e reprodução de diferenças e privilégios. Por isso, a raça se torna um componente importante nas estruturas sociais (Schuman & Martins, 2017).

O racismo, portanto, caracteriza-se como uma discriminação que não cessa de se inscrever no laço social e que tem como fundamento a raça, isto é, a hierarquização e sujeição de grupos humanos a partir de suas características físicas e/ou culturais que resultam na manutenção da exclusão, dominação e subalternização de um grupo.

No mundo, o racismo se apresentou enquanto racismo científico, aquele que teria como base a diferença das raças a partir de características biológicas, físicas, geográficas e climáticas, mas que foi deslegitimado. No entanto, isso não significou sua erradicação, o que aponta para o fato de que o racismo, como tecnologia de poder, refina-se e transforma-se. Assim, o racismo passou do desmantelamento das culturas e corpos para a domesticação de culturas e corpos. A mudança da tônica do racismo não se dá por evolução interior, mas sim por “mudanças na estrutura econômica e política que exigem formas mais sofisticadas de dominação” (Almeida, 2019, p. 72).

Dessa forma o conceito de racismo estrutural (Almeida, 2019) é verificado, pois ele se apresenta como um dos elementos fundamentais que organizam a sociedade: trata-se de uma tecnologia de poder, um processo histórico, político e científico, e não o resultado de ações. Aqui o racismo é regra, não exceção, nem patologia ou desvio de caráter. É a partir também do racismo que as desigualdades e as violências se perpetuam e selecionam seus alvos, moldando, assim, a vida social na atualidade. Logo, o racismo constitui-se como um construto social fundamental para a formação e manutenção do Brasil.

O racismo à brasileira tem características específicas, pois não se pode desconsiderar o fato de termos sido uma colônia com o maior período de escravização sendo a assimilação a solução que o governo brasileiro encontrou para o problema que o negro livre havia se tornado. Não houve Apartheid nem leis segregacionistas, mas sim assimilação que teve como objetivo a eliminação do componente negro do sangue brasileiro baseando-se na ideologia do racismo biológico, de raças superiores e inferiores, já que, se nos misturarmos, não é para que sejamos um povo misturado, miscigenado, mas sim um povo branco. Assim, a miscigenação se constituiu como tecnologia de branqueamento que tem como fruto o mito da democracia racial, a ideia de que no Brasil pessoas brancas e negras têm as mesmas possibilidades de existência. Esses mecanismos foram denominados por Lélia Gonzalez (1984) como aquilo que caracteriza o racismo por denegação.

Na democracia racial o que se deseja é o silenciamento. A ideia de que não há racismo no Brasil, de que somos misturados e todos brasileiros é o que pregam os que defendem a existência da democracia racial. A miscigenação e a “democracia racial” são como véus do desejo de eliminação da raça negra no Brasil e adubam o solo do racismo cordial, o racismo à brasileira. Cordialidade aqui, é um disfarce do ódio que a nação brasileira direciona a si mesma. Sendo assim, a democracia racial só permite aos negros um “privilégio”: o de se tornarem brancos por dentro e por fora (Nascimento, 2017; Munanga, 2017).

As Raízes do Racismo na Psicanálise

Com um problema tão pungente, o que a psicanálise tem a dizer sobre isso? Antes de responder a pergunta é preciso fazer uma consideração importante. O fato de que há poucas pessoas negras no campo da psicanálise não se dá como desdobramento da práxis psicanalítica, mas sim como limitação de psicanalistas que ainda estão despertando das identificações raciais estruturais, a despeito de eméritas analistas, vide Neusa Santos Souza, Isildinha Baptista, Virgínia Bicudo, etc, todas psicanalistas negras e com articulações entre psicanálise e negritude. Por isso, o objetivo deste artigo é apontar que a psicanálise tem sim contribuições a fazer sobre o debate do racismo e seu combate e que se não as faz devemos nos perguntar o porquê e buscar fazê-las.

Há um argumento equivocado, ao nosso ver, que sugere a desidentificação como um processo que se deva tratar desde o início do percurso psicanalítico. Pensamos que este argumento pode inviabilizar as questões a respeito do sofrimento psíquico do racismo e não nos parece portar o rigor da orientação lacaniana. A identificação do sujeito negro com sua negritude ou com questões e movimentos levantados e sustentados pelos movimentos negros não podem ser desconsideradas porque supostamente levariam ao engessamento do eu e ao desconhecimento de seu desejo e posição de gozo. Destituí-lo de saída é fazer um uso selvagem da transferência. O rigor do trabalho a partir da transferência, como Freud sustentou, passa pelas identificações trazidas pelo analisando. Lacan retoma esses aspectos da transferência sustentando que sua mola é o Sujeito suposto Saber (Lacan, 1967/2001, p. 329-340), no endereçamento ao analista, justamente com relação aos problemas que o Eu traz na medida em que desconhece suas causas inconscientes. É importante salientar que banalizar a identificação social do negro, reduzindo a experiência analítica, que é longa e complexa, a um ponto muito específico, não contribui para o trabalho em torno dos enganos relativos ao Sujeito suposto Saber. Esse trabalho se dá pouco a pouco, em direção ao final da análise, para alcançar as desidentificações dos rótulos sociais iniciais, propiciando outra forma de identificação, não mais engessada, digamos assim, mas articulada à causa de desejo e à forma singular do sujeito manejar o gozo pulsional.

Não podemos negar que ser negro pode ter a ver com o processo de identificação. O problema é que a identificação em determinadas instituições e vertentes psicanalíticas tem uma conotação negativa e generalizada, como um processo que se deve evitar sem considerações. Essa perspectiva deve levar em conta o que se evita ao promover a desidentificação na clínica psicanalítica: Quebrar as identificações engessadas que apenas servem para sustentar e defender o Eu, promovendo uma negação que ignora os paradoxos dos desejos inconscientes. Nesse sentido, uma análise deve produzir desidentificação, fazendo aparecer os paradoxos e as contradições do jogo de forças do campo pulsional.

No entanto, seria um equívoco pensar que se pode viver sem identificações. Não seria possível que uma pessoa não tivesse identidade, fruto de seus processos de identificação, sob pena de viver em uma errância metonímica insuportável. Também não podemos idealizar e achar que as pessoas que fazem análise há muito tempo, ou mesmo as que exercem a função de psicanalista, não passam pela identificação - que produz identidades por elas sustentadas.

É preciso ainda distinguir “identidade” do processo de identificação. A identificação aponta ao processo passível de mudança na ordem significante que constitui a defesa do Eu (Brousse, 2018). É nesse processo que a desidentificação deve operar para reduzir o excesso de defesa e alcançar uma identidade mínima irreversível e imutável, que se constituirá como a marca traumática do sujeito no ponto em que este originalmente surgiu.

Vale ressaltar que para brancos a identidade branca que o Outro lhes atribui por não lhes causar problemas estruturais não parece precisar ser questionada facilitando os processos de branquitude que, por sua vez, têm como um de seus pilares não se identificar com raça nenhuma a não ser a humana. A situação é bem diferente, no entanto, para os negros que carregam tantas perdas e dores devido ao lugar que o Outro lhes atribui.

Constitui-se, portanto, questão imperativa a insistência em encorajar a desidentificação como o que, estereotipicamente, deveria ser feito nas análises de sujeitos negros visando justamente a sua negritude. Nessas circunstâncias, a desidentificação se apresenta como uma forma superficial e descuidada do tratamento analítico da negritude. Nas análises de sujeitos negros, a desidentificação deve ser feita de forma não estereotipada para não se repetir o estrutural do racismo, revitimizando o sujeito negro. Uma desidentificação de sua negritude não pode ser levada ao absurdo da negação da identidade negra em troca de uma identidade universal de ser humano. Não que o negro não possa o ser, mas para chegar a isso, em um processo de análise, é preciso que não se negue, no sentido analítico do termo, isto é, que não se recuse a cor de pele como um dado irrefutável e determinante em seu movimento social e cultural. Não levar isso em conta em nome de um purismo da operação de desidentificação seria uma simplória desvalorização do tema racismo e suas sequelas nos sujeitos que atinge.

Uma Proposta Psicanalítica sobre as Raízes do Racismo

Posto isso, iremos então privilegiar as articulações da psicanálise lacaniana a respeito do racismo abordando uma leitura particular do fenômeno, aquela que o considera em sua face de rejeição primordial no estabelecimento de um tipo de laço social e expulsão na fundação do sujeito na tênue fronteira entre o real do corpo, sua consistência especular imaginária e os discursos que o disciplinam.

Essa leitura do racismo enquanto expulsão/rejeição na base da fundação do sujeito e de um tipo de laço social, esse percebido especialmente no colonialismo e na escravização, leva-nos a perguntar sobre seus efeitos também na cultura, principalmente na cultura brasileira, na medida em que os sujeitos, por serem transindividuais, produzem não apenas a sustentação de tradições, mas também promovem subversões na cultura dominante da qual advém.

O racismo é uma tecnologia de poder político, histórico, econômico e social que visa a manutenção intacta da estrutura da sociedade. Essa abordagem explica extensamente o fenômeno do racismo, mas resta, como explicitou Miller, “alguma coisa que faz pensar que ele não se dá somente nesse nível” (Miller, 2006, p. 3) algo que ele nomeou como as causas obscuras do racismo.

Apostamos que essas “causas obscuras do racismo” dizem respeito ao gozo nele implicado e adiantamos com Laurent que “sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável” (Laurent, 2014, p. 3), o que nos aproxima da questão do gozo implicado no racismo a partir da noção de segregação, da maneira pela qual é tomada na psicanálise lacaniana: a segregação estrutural.

Consideramos a segregação estrutural uma separação primordial de gozo, um movimento inaugural. Encontramos esse movimento inaugural na fundação do psiquismo descrito por Freud (1925/2007) no texto A negativa. Porém, antes, nos textos pré-psicanalíticos como O Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1990) e no decorrer de sua obra, Freud aborda a constituição do Eu a partir de expulsão e afirmação, ou seja, aquilo que o Eu busca expulsar de si e o que admite dentro de si.

O Racismo como Rejeição Primordial na Constituição de um Laço Social

Laurent (2014), em seu texto Racismo 2.0, aborda a questão do racismo a partir de Lacan e do movimento do colonialismo. Nesse movimento, o autor localizou aquilo que denominou como “choque dos gozos”, isto é, a “vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, emigrado em nome de um dito ‘bem dele’'' (Laurent, 2014, p. 2). O autor aborda a lógica do racismo em Lacan a partir da lógica do laço social, afirmando que esta, para Lacan, dá-se a partir de uma primeira rejeição pulsional, de “uma forma de racismo” (Laurent, 2014, p. 2.)

Essa lógica coletiva é fundada na ameaça de uma rejeição primordial, uma forma de racismo: um homem sabe o que não é um homem. E é uma questão de gozo. Não é homem aquele que rejeito como tendo um gozo distinto do meu. Movimento que dá a forma lógica de toda assimilação ‘humana’, enquanto precisamente ela se coloca como assimiladora de uma barbárie e, portanto, reserva a determinação essencial do ‘Eu’. (Laurent, 2014, p.4).

Dessa forma, depreendemos que o colonialismo e a escravização fundaram uma outra maneira de laço social, uma outra lógica que não apenas se caracteriza por um choque de civilizações, mas por um “choque de gozos”. Essa forma de laço social se deu através da rejeição do gozo diferente do meu em detrimento da promoção da minha afirmação como humano. Assim, para se tornar humano é preciso que esse que foi rejeitado por ter um gozo diferente do meu o rejeite também e assimile minha maneira de gozar, maneira definitivamente humana. O racismo, portanto, se apresenta aí como um modo de gozo que estabelece um tipo singular de laço social.

É interessante notar que em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/2017a), Freud retoma a alegoria dos porcos-espinhos de Schopenhauer para afirmar que “ninguém suporta uma aproximação demasiado íntima do outro” (Freud, 1921/2017a, p. 92), assim, ele utiliza relações da cultura para ilustrar tal situação.

O narcisismo das pequenas diferenças se apresenta na família, em relações extrafamiliares e entre povos que tem entre si similaridades, mas Freud também aborda a rejeição e hostilidade presente no caso de diferenças maiores. O autor nos diz “No caso de diferenças maiores, não nos surpreende mais que resulte uma aversão difícil de superar, como a do gaulês pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo negro” (Freud, 1915/2017b, p. 93-94).

Essa é uma observação que não podemos deixar de fazer e que se apresenta, mesmo que marginalmente, em Freud. Aqui sublinhamos as diferenças maiores e a aversão difícil de superar do branco pelo negro. Não se trata de narcisismo das pequenas diferenças, mas sim das grandes diferenças, que em Freud não se encontram no campo do narcisismo, mas sim da rejeição, da hostilidade e da aversão, e que não se encontram sob a marca do recalque.

Ódio e Gozo no Racismo

A hipótese formulada por Jacques-Alain Miller segundo a qual “a raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo” (Miller, 2016, p. 7), constituiu-se como um dos importantes pontos de partida para nossa investigação, pois encontramos também em Freud uma abordagem sobre o ódio. A partir disso encontramos conexão entre o ódio, implicado no racismo e o gozo.

Freud articula a fundação psíquica ao mecanismo de expulsão que em 1915 dá-se a partir do ódio e, mais adiante, em 1925 a partir das pulsões de morte. É interessante perceber que essa expulsão primordial tem uma implicação na constituição do Eu. Em psicanálise o Eu é um ponto de fixação que se estabelece a partir do que foi expulso, já que isso é não-Eu, constituindo, assim, um Eu. Dessa maneira, o Eu também é um ponto de desconhecimento, desconhecimento disto que é não-Eu, que me assedia e que considero alheio, exterior, mas que pela própria operação é recortado daquilo que faz parte de mim mesmo. Foi essa operação que levou Lacan a criar o neologismo êxtimo, o exterior íntimo.

Em As pulsões e seus destinos (Freud, 1915/2017b), vemos como o ódio faz parte da constituição do Eu, o que leva Freud a afirmar queé da luta do Eu pela sua afirmação e conservação que resulta nos verdadeiros moldes da relação de ódio (Freud, 1915/2017b). Assim, destruir o objeto odiado e que causa desprazer é mais importante ao Eu, mesmo que isso signifique interdição de satisfação de qualquer tipo.

Em Mal-estar na civilização (Freud 1930/2010), Freud aborda o próximo a partir do mandamento cristão “amarás teu próximo como a ti mesmo. Sua posição perante tal mandamento é de estranheza e surpresa e, seguindo uma linha de considerações sobre isso, Freud chega à conclusão de que seu amor seria um privilégio dos seus e que um desconhecido teria mais direito à sua hostilidade e ódio que ao seu amor.

Não é somente o desconhecido que tem direito à hostilidade segundo Freud, mas o contrário também é verdadeiro. Ele, na qualidade de um desconhecido do outro, merece sua hostilidade, não seu amor. É mais provável que o próximo, quando for solicitado a amar o desconhecido, o repudie. Assim, Freud chega a uma importante conclusão:

o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes pulsionais, também um forte quinhão de agressividade [...] para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. (Freud, 1930/2010, p. 76-77)

É essa tendência à agressão um dos fatores que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios de energia. O pendor à agressividade e as restrições sexuais são, segundo Freud, causas do mal-estar na civilização. O racismo, ao contrário do que se possa pensar, não é o mesmo que a agressividade. Esta se fundamenta em uma tensão imaginária e narcísica entre o Eu e seu semelhante, já aquele se fundamenta no ódio que exige o extermínio deste outro que porta o gozo estranho (Fridman, 2017). A agressividade faz parte da linguagem, de seu laço e não visa ao desaparecimento do outro, pois sua presença é necessária para sustentar tal tensão. Logo, neste trabalho não estamos abordando a relação do Eu com o seu semelhante, o do espelho, da tensão imaginária e narcísica, mas sim estamos abordando a relação do Eu com o próximo, aquele que porta um gozo estranho.

Assim, há uma constante de agressividade que visa ao real no Outro e que, por isso, merece o nome de ódio. Essa constância é resultante da intensificação do ódio, da intenção de aniquilação do objeto e da pulsão que deve ser incluída na aproximação do humano com seu próximo. É esse caráter de agressividade, relacionada ao ódio, que leva o humano a abusar do próximo que o cerca, expressão do gozo que o próximo desperta. É então o gozo que sustenta a maldade e a constante de agressividade do humano com o próximo.

O ódio e a segregação, presentes na expulsão que funda uma alteridade primordial, podem retornar como ódio à diferença, mecanismo encontrado na fundação do psiquismo e que vemos se expressar na cultura desde os tempos coloniais. A importância de pontuar que o ódio à diferença tem sua expressão maior em tempos coloniais e que permanece até hoje se dá pelo fato de que os mecanismos empreendidos a partir das colonizações ocorreram em âmbito global e instituíram uma hegemonia.

O gozo é um mal, afirma Lacan (1959-60/1991), porque comporta o mal do próximo. É por isso que Freud recusa o supracitado mandamento cristão, pois o próximo é um ser malvado. A aproximação do/ao próximo faz surgir a presença dessa maldade que habita em mim e no próximo. Segundo Lacan, o que me é mais próximo é o meu gozo e é a partir de sua aproximação que “surge essa insondável agressividade diante da qual eu recuo, que retorna contra mim, e que vem, no lugar mesmo da Lei esvanecida, dar esse peso ao que me impede de transpor uma certa fronteira no limite da Coisa” (Lacan, 1959-60/1991, p. 223).

Lacan ilustra esse próximo, aquele que não é possível localizar, com a pintura de Edvard Munch, “O grito” (1893), a partir da indicação de Freud de que esse próximo é como o grito. Na imagem, a paisagem calma é o que expressa o valor do grito, pois aponta para o fato de que desse grito sai o silêncio absoluto. “É no próprio silêncio que se centra esse grito, que surge a presença do ser mais próximo” (Lacan, 1968-69/2008, p. 219). Seria, então, pela expulsão de gozo que se funda o não-Eu e o Eu, em um movimento moebiano - que implica tanto a intimidade como a exterioridade, em coalescência, e não em oposição como na ideia habitual de dentro/fora - a partir do qual se funda o sujeito e o Outro. A constituição do psiquismo como um momento mítico, se daria, portanto, em uma ocasião em que ocorre a “operação mais primordial de todas” (Neto, 2006, p. 155). No seu escrito Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung de Freud, Lacan (1954/1998) considera o par Bejahung-Ausstossungcomo esse momento mítico (p. 384).

Bejahung-Ausstossung (Afirmação-Expulsão)

Freud retoma o mecanismo da constituição do Eu no texto A negativa Freud (1925/ 2007), para explicar a origem psicológica da negação. Esse mecanismo é função do juízo, dividido em juízo de atribuição e juízo de existência. No juízo de atribuição o Eu-prazer atribui ou não qualidades ao objeto. Se ele for bom, o Eu-prazer o introjeta, se ele for ruim, o Eu-prazer o joga fora/expulsa (werfen) (Freud, 1925/2007).

É ao relacionar as ações dos julgamentos de atribuição (introjetar e expulsar) com as duas pulsões que vemos a introdução do mecanismoBejahung-Ausstossung: “A afirmação [Bejahung] - como substituto da união - pertence a Eros; a negação - sucessora da expulsão - pertence à pulsão de destruição” (Freud, 1925/2007, p. 145). É possível nesse sentido rastrear, no antecessor da negação, algo da ordem da pulsão de morte e, em contrapartida, acercar-nos da Bejahung, afirmação sucessora da unificação e pertencente à ordem de Eros.

Observamos assim, que na constituição do psiquismo para Freud não há afirmação sem expulsão, Bejahungsem Ausstossung. Para que haja afirmação, é preciso que algo seja expulso (Neto, 2006). Caso contrário, tudo o que fosse dito poderia ser entendido e a linguagem não teria limites. O mecanismo Bejahung-Ausstossung, dessa maneira, revela como se dá a entrada do sujeito na linguagem: a Bejahungé o sim que o sujeito concede a elementos que lhe chegam pela via da linguagem e a Ausstossung (Expulsão) é a expulsão daquilo que “o irrepresentável do real no significante atesta o limite ou impossível de la língua [lalangue]” (Pimenta Filho, 2011, p. 35), é a perda que a entrada na lei simbólica causa. Por isso, Bejahungé considerada uma afirmação simbólica que traz em sua dinâmica uma expulsão.

Logo, nesse mecanismo de constituição do sujeito e do Outro, da entrada do sujeito na linguagem e da constituição do interior e exterior, a operação da Bejahung, operação de afirmação primordial, é considerada uma “primeira escrita simbólica” (Pimenta Filho, 2011, p.35), enquanto Ausstossung conforma-se como uma expulsão que constitui o fora do simbólico. Dessa forma, a inscrição da Bejahung promove uma experiência que estabelece um campo subjetivo interno, reconhecido como sendo “de dentro”. Em contrapartida, teríamos na Ausstossung uma operação que “constituiria o real na medida em que ele é o domínio que subsiste fora da simbolização” (Lacan, 1954/1998, p. 390).

Como vimos, Freud concede importante lugar ao mecanismo Bejahung-Ausstossungpara abordar a constituição do Eu, relacionando a Ausstossung às pulsões de morte e Bejahung às pulsões de vida. Lacan considerará a Ausstossungem sua vertente de expulsão inaugural, expulsão de gozo. É Laurent (2011) que nos alerta sobre essa consideração de Lacan a respeito da Ausstossung em um texto em que aborda o racismo. Laurent propõe que a (re)leitura que Lacan faz de Freud a respeito da Ausstossungseja considerada uma definição constante do racismo no discurso analítico.

A Negativa em Lélia Gonzalez e suas Subversões na Leitura Psicanalítica do Racismo

Observa-se que o texto A negativa (Freud, 1925/2007) foi primordial para a análise de Gonzalez (1984) em Racismo e sexismo na cultura brasileira. Para a autora, o racismo no Brasil está sob o mecanismo da negação e a figura que traz isso à tona é A Nêga-ativa (Gonzalez, 1984, p. 227), uma das posições da mulher negra na cultura brasileira. Ressaltamos a afirmação de Freud que a negativa é sucessora de Ausstossung - o que permite nos perguntarmos sobre o lugar de Bejahung, uma vez que não há Ausstossungsem Bejahung.

Como e se, no Brasil, onde a expulsão e a negativa parecem mecanismos presentes no racismo, a Bejahung, uma inscrição inaugural que possibilita a constituição do campo simbólico, o sim que o sujeito concede a elementos que lhe chegam pela via da linguagem, pode vir a operar para negros (mas não só) como o sim à dignidade de suas existências? Enquanto o racismo opera expulsando negros das possibilidades de existência, o que caracteriza genocídio, já que este abarca não apenas a morte física, mas qualquer tipo de estratégia que apaga a existência (Nascimento, 2017), como operaria uma afirmação da negritude para além de uma simples formulação positiva frasal, mas uma subversão estrutural, na qual a possibilidade de existência digna é franqueada ao negro?

É importante salientar que na teoria psicanalítica lacaniana o mecanismo Bejahung-Ausstossung diz respeito à fundação do sujeito a partir do campo simbólico e se articula também à expulsão de gozo e criação do campo do real. Em nossa pesquisa não encontramos produções que se dediquem especificamente à análise da presença de tais mecanismos e seus efeitos no racismo circunscrito ao laço social brasileiro. E é aí onde se encontra nosso esforço. Parece-nos bastante notória a presença desses mecanismos no funcionamento do racismo no Brasil e na fundação da negritude para cada negro, um a um. Nessa direção, valemo-nos do comentário de Éric Laurent (Laurent, 2022, p. 60), ao dizer que “para construir a lógica do laço social, Lacan não parte de identificação ao líder, mas de uma primeira rejeição pulsional” indicando que as operações singulares, fundadoras do sujeito do inconsciente, não são desligadas do campo subjetivo transindividual.

Bejahung, portanto, constitui uma questão. Há Bejahung para todo sujeito e isso inclui os negros. Entretanto, Bejahungse instala em um par com Ausstossung e como temos visto, isso tem um efeito na cultura produzindo uma espécie de Bejahungracista. Assim, levantamos a hipótese da possibilidade de uma Behajung que não seja racista, que não funde no sujeito negro um amódio 1 tão forte a si mesmo. Essa Bejahung está fundamentalmente presente na relação de sujeitos negros com a linguagem e a cultura. Aqui, Bejahung parece como uma barra frente ao racismo, como artifício para barrar a violência do laço social. Vemos essa Bejahung presente nos Movimentos Negros, no movimento Black Power, Black is beautiful e Vidas negras importam e na categoria de Amefricanidade que buscam reivindicar a identidade negra e sua cultura, por exemplo. Um dito que cria um campo onde a existência é possível, um dito que barra a violência. Essa Behajungnos parece digna e não indigna, produzindo um amódio que pode tender mais ao amor do que ao ódio e racismo do qual o sujeito negro também é afetado por estrutura. Nesta estrutura fundada no laço social, que tem como partida o racismo e uma rejeição primordial de gozo, o negro se encontra e se sente Coisa (das Ding) indigna; com a Behajung mais ao lado do amor, o corpo do negro, sua cor, seus traços, sua origem africana, sua ancestralidade, religião, filosofia, etc, são elevados à dignidade da Coisa. Há, portanto, uma ética em jogo no Movimento Negro.

Consideramos, portanto, a existência de algo no racismo a respeito do gozo, ou seja, o racismo como uma maneira de estabelecer um tipo de laço social, esse que tem em seu fundamento uma rejeição primordial. Isto parece fazer ressonância com a constituição do sujeito neurótico. Quando abordamos o par Bejahung-Ausstossung, essas ressonâncias nos fazem questão, principalmente, se acompanhamos Gonzalez (1984) em Racismo e sexismo na cultura brasileira. Lélia considera que o racismo no Brasil opera a partir do mecanismo da negativa. A negativa é o compromisso feito entre a consciência e o sujeito do desejo e é sucessora da Ausstossung. Ainda com Gonzalez (1984), temos a função materna na cultura brasileira exercida pela mãe preta, esta que transmite a linguagem, constituindo assim, o pretuguês, a marca da africanidade, ou ainda, a lalíngua brasileira. Com o fato de que Bejahung constitui Ausstossung, ou seja, para que algo seja incluído no eu, algo precisa ser expulso, nos perguntamos se na cultura brasileira o pretuguês é sinal de Bejahung, ou seja, do sim às marcas da africanidade que irão constituir o campo simbólico da cultura brasileira.

É o pretuguês que se apresenta como o que há de africanidade em nossa língua, fundando um campo simbólico onde é possível o negro existir. Essa marca de africanidade nos leva à categoria de amefricanidade, já que esta não nega as relações que temos com África, vínculo que não é possível se a escravização e seus efeitos na constituição da cultura e sociedade brasileira são negados. Ou seja, a negação do nosso Outro, o que no Brasil vem sendo feito através da política de branqueamento por meio da miscigenação e do mito da democracia racial. É por essa via que Bejahung para os negros parece ser possível, o que atesta uma já existência de inscrição simbólica através da qual o negro pode existir sem ser empurrado para fora. A pergunta que fica é: como fazer o pretuguês ressoar? Como fazê-lo operar?

Tem algo que acontece já que essa afirmação, essa inscrição simbólica que é o pretuguês, parece não ressoar, pois a recusa em escutar quanto ao racismo e à negritude volta sempre ao mesmo lugar e os corpos negros continuam sendo os alvos da designação segregante.

O que é a designação segregante? O psicanalista argentino Fridman (2017) em seu texto A segregação e seus destinos desenvolve esse termo e afirma que a designação segregante visa separar e exterminar àqueles que presentificam este X inominável a fim de designar um mais além do simbólico, ou seja, o real, aquilo que foi instituído a partir de Ausstossung.

Nesse sentido, essa designação se refere em seus fundamentos à pulsão de morte. Por isso, segundo o psicanalista “aquele que é aludido por esta designação nunca pode permanecer indiferente a isso, na medida em que esta designação sempre o localiza em uma posição mortificante” (Fridman, 2017, p.93, tradução nossa). Essa designação, portanto, é alicerçada no desejo de morte, na posição de gozo que atravessa o Outro que oferece tal designação. É nesse ponto, no ponto em que a designação segregante está fundamentada num desejo obscuro, num desejo de morte do segregador, que ela aponta para as causas obscuras do racismo. A designação segregante aponta para o obscuro e indiscernível daquele que segrega (Fridman, 2017), ou seja, para a posição de gozo, nada racional, mas sim uma posição parasitária.

Mbembe (2018), em Crítica da razão negra, afirma que raça e negro como sinônimos é um delírio europeu. Se partir do pressuposto que a lógica colonial ainda persiste hoje na forma da colonialidade do poder, isso não se dá sem a existência desse delírio. Assim, “negro” é uma invenção colonial que tem como sustentação um gozo irracional.

Conclusão

O negro no Brasil é aquele considerado inferior, estranho e exótico. O objetivo das classes dirigentes brancas foi que o negro (assim como o indígena) não existissem mais, seja morrendo fisicamente ou simbolicamente. Que o negro, já não tendo mais sua referência de família, povo, nação e língua, abandonasse também sua cor, crenças e religião, e se concentrasse apenas em sobreviver, vendendo sua força de trabalho aos brancos detentores do poder. O abandono a sua cor, já que ela lhe traz tanta dor, pode também acarretar ódio à própria cor, ao próprio corpo e ao próprio povo. O negro, portanto, pode vir a se tratar como imigrante de si mesmo.

Por que o silêncio das instituições psicanalíticas brasileiras a respeito do sofrimento advindo do racismo? Seria esse silêncio sintoma do racismo à brasileira? O fato é que a psicanálise se encontra diante de um paradoxo: enquanto suas instituições e vertentes ainda se demonstram racistas, algumas das experiências analíticas desenrolam-se como antirracistas.

Um dos argumentos mais utilizados é o de que a experiência do racismo e o de combate ao racismo, principalmente através da militância, seriam expressões da incidência do eixo imaginário e que, por isso, esconderia o sujeito nos engodos da imagem. Vimos neste trabalho que não se trata disso e que não devemos tomar como um jargão a desidentificação. O que testemunhamos no argumento da desidentificação de pessoas negras a sua própria cor é o racismo à brasileira. Em um processo de análise, é preciso que não se recusa a cor de pele como um dado decisivo e determinante em seu movimento singular, social e cultural.

A cor no corpo é real e imutável, o que indica que uma identidade negra não é passível de transformação pelo jogo das desidentificações que operam no eixo simbólico-imaginário. No entanto, isso pode ser analítico quando se trabalha para retirar o sujeito da armadilha de se rejeitar porque o Outro lhe identifica como rebotalho. Logo a desidentificação ganha um lugar de destaque como vemos no caso Luísa, apresentado por Souza (1983), quando ela alcançou a identidade final de ser uma mulher desejada pelo seu veneno independentemente de ser negra.

Dessa forma, depreende-se que a lógica colonial denuncia uma outra maneira de laço social, uma outra lógica que não apenas se caracteriza por um choque de civilizações, mas, sobretudo, por um “choque de gozos”. O laço social agora se dá através da rejeição do gozo diferente do meu para a promoção da minha afirmação como humano. Assim, para se tornar humano, é preciso que este que foi rejeitado por ter um gozo diferente do meu, o rejeite também e assimile minha maneira de gozar, maneira definitivamente humana. O racismo, portanto, se apresenta como um modo de gozo que estabelece um tipo de laço social.

É Ausstossung que enlaça o racismo como mecanismo de fundação do laço social colonial, que se expressa na colonialidade de poder, e o racismo à brasileira, racismo por denegação, que nega aquilo que expulsa como sendo próprio a sua constituição. Porém, Ausstossung não é o mecanismo em si, mas sim Bejahung-Ausstossung. Esse mecanismo revela como se dá a entrada do sujeito na linguagem: a Bejahung é o sim que o sujeito concede a elementos que lhe chegam pela via da linguagem e a Ausstossung é a expulsão dos elementos que afirmam o impossível de la língua, ou seja, o irrepresentável do real no significante. Apontamos, portanto, sobre a incidência de uma Bejahung que permita se elevar a cor e os traços da negritude à dignidade da Coisa, como um mecanismo que possa criar um novo campo simbólico nas relações que envolvem o racismo na cultura brasileira.

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1Amódio ou hainamoration é um neologismo lacaniano para designar que amor e ódio não são opostos como faz crer o senso comum, ideia que já está esboçada em Freud em “Pulsões e seus destinos” (1915) com a noção de ambivalência.

Financiamento: a pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CNPq)

Recebido: 21 de Junho de 2021; Revisado: 12 de Junho de 2022; Aceito: 15 de Junho de 2022

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