22 Criança como Método como um Recurso para Interrogar Crises, Antagonismos e Agências 
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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.spe Rio de Janeiro  2022   27--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.71866 

EDITORIAL

EDITORIAL

Amana Mattos* 

Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-2890-5421

Fernando Pocahy** 

Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-7884-4647

Leonardo Lemos de Souza*** 

Professor Associado do Departamento de Psicologia Social da Universidade Estadual Paulista - UNESP, São Paulo, SP, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-3331-1847

*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

**Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

***Universidade Estadual Paulista - UNESP, São Paulo, SP, Brasil


Interpelar ético-politicamente a psicologia nos seus diversos fazeres e saberes no campo do gênero e das sexualidades foi o ponto de partida deste dossiê, que reúne 21 artigos (sendo dois em versão bilíngue) de autorias nacionais e internacionais. A proposta acompanha a produção do colóquio que dá nome a este dossiê 1, realizado pelo Grupo de Trabalho Psicologia, Política e Sexualidades, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Com o objetivo de analisar questões de gênero e sexualidades atuais e históricas, em diferentes práticas e produções conceituais nos campos psi, os artigos que movimentam esta iniciativa operam em abordagens críticas no que diz respeito às sexualidades, ao gênero e às relações raciais. O lançamento do dossiê marca ainda os dez anos de atuação do GT na ANPEPP.

Abrem o número dois artigos, em versões em português e inglês, que foram apresentados no colóquio. Em Criança como Método como um Recurso para Interrogar Crises, Antagonismos e Agências, Erica Burman revisita sua obra e nos apresenta a abordagem que nomeia de “Criança como Método”, interpelando, em diálogo com Freud e Fanon, o lugar das infâncias no neoliberalismo capitalista colonial, marcado por gênero, sexualidade e raça. Em seguida, o artigo Sofrimento Psicossocial e Sexualidade em Tempos de Covid-19 e de Ataque aos Direitos Humanos, de Vera Silvia Facciolla Paiva e Marcos Roberto Vieira Garcia, discute os efeitos da “vida-pandemia” de jovens em suas experimentações da sexualidade, analisando a produção de sofrimento psicossocial em um contexto de negligência governamental em relação aos direitos humanos.

As políticas públicas e governamentais são um importante campo de garantida de direitos, bem como de disputas normativas em relação a gênero e sexualidades, balizando práticas-saberes psi. Alguns artigos deste dossiê se debruçam sobre esse tema, oferecendo reflexões instigantes. João Gabriel Maracci e Marco Aurelio Maximo Prado, em Ofensivas Antigênero e a Depuração dos Direitos Humanos como Política de Estado no Brasil, discutem as políticas de Estado no contexto brasileiro de estatização das ofensivas antigênero, e seus mecanismos de cerceamento de agentes públicos na garantia de direitos no campo do gênero e das sexualidades no governo de Jair Bolsonaro. O artigo Violência Sexual Infantojuvenil Indígena: da Vulnerabilidade Social à Articulação de Políticas Públicas, de Pamela Staliano, Adriana Yuri Kaneko e Marcos Mondardo, por sua vez, aborda a necessidade de articulação das políticas públicas para os povos originários no que diz respeito ao enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil em reservas indígenas, propondo uma análise decolonial de dados coletados em pesquisa qualitativa. Já em Corpos em Disputa: Experiências de Travestis e Mulheres Trans no Acesso aos Banheiros Públicos, de Pedro Luiz Rocha Rodrigues, Lídia Figueiredo dos Santos, Larissa Medeiros Marinho dos Santos, Welligton Magno da Silva e Isabela Saraiva de Queiroz, as e os autores discutem, em uma pesquisa documental que analisa material de redes sociais, experiências de travestis e mulheres trans na utilização de banheiros públicos, propondo questões conceituais e políticas para se pensar a garantia de direitos dessa população. Em “EntreColetivos”: Arte, Cidade e Política como Estratégia de Enfrentamento à Necropolítica Genderizada, Dagualberto Barboza da Silva, João Paulo Pereira Barros, Larissa Ferreira Nunes e Luis Fernando de Souza Benicio analisam os processos de uma rede de coletivos LGBTQIAP+ e seus usos do dispositivo-arte como estratégia de enfrentamento à necropolítica genderizada em Fortaleza, pautando o direito à cidade para juventudes negras e LGBTQIAP+.

Os dispositivos clínicos e sua produção teórica são temas sobre o quais artigos que compõem este dossiê se debruçaram, provocando questões contemporâneas em relação a gênero e sexualidades. Rafael Cavalheiro, Mariana Pombo e Vitor Hugo Triska reverberam, em seu artigo No Divã de Paul B. Preciado: Psicanálise e (Des)obediência Epistêmica, os questionamentos endereçados à psicanálise por Paul B. Preciado, analisando respostas de psicanalistas a estas críticas lançando mão, para tanto, das contribuições de Foucault e da teoria queer para pensar a diferença sexual e seu lugar na clínica. Já no artigo Adjetivar a Psicologia?, de Sofia Favero e Daniel Boianovsky Kveller, a autora e o autor se ocupam de tensionar a adjetivação de práticas clínicas por seus marcadores sociais da diferença, mapeando os principais argumentos que sustentam essa proposta e as críticas a ela dirigidas, refletindo sobre os efeitos no campo das subjetividades de uma clínica enredada ao político nas tramas de gênero e sexualidade. O trabalho Costura Político-Clínica por um Cuidado Feminista: Relato de Experiência, de Michele de Freitas Faria de Vasconcelos, Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto, Simone Mainieri Paulon e Sandra Raquel Santos de Oliveira, narra composições tecidas em meio à participação em atividades de extensão de duas universidades públicas brasileiras, uma do Sul e outra do Nordeste, ensaiando práticas clínicas com luta feminista em perspectiva interseccional, destacando analisadores e efeitos de desigualdades de classe, raça, gênero, região da cidade. O artigo O Gênero (de)Preciado: a Psicanálise e a Necrobiopolítica das Transidentidades, de Vinícius Moreira Lima, retorna às recentes interpelações de Paul B. Preciado à psicanálise, tematizando a novidade de suas proposições e, em uma revisão crítica da literatura, analisando produções no campo psicanalítico que reduzem os problemas de gênero a questões do imaginário. Em A Feminilidade na Psicanálise é Branca? O Desamparo Discursivo Sobre a Feminilidade da Mulher Negra, Flávia Angelo Verceze, Christiane Soares Pinto, Gabriela de Souza Rodrigues e Giovanna Menezes Cappucci discutem a construção teórica freudiana sobre a sexualidade feminina e a feminilidade a partir das contribuições de autoras negras e de feministas interseccionais, interrogando a psicanálise no sentido de contextualizar sua clínica e referenciais.

Somam-se a esta discussão outros dois trabalhos que propõem reflexões sobre gênero em intersecção com raça em distintos campos teórico-práticos. Jacqueline de França Neto, Fátima Lima e Luiza Rodrigues de Oliveira discutem em Racismo, Trauma Colonial e Agência Crítica: Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro os processos de subjetivação que têm lugar no espaço ativista investigado, destacando a importância da agência de mulheres negras na construção de uma instituição coletiva política. Em O Conceito de Violência Atmosférica em Fanon: contribuições aos Estudos de Gênero, Fabrício Ricardo Lopes, Maria Juracy Filgueiras Toneli e João Manuel de Oliveira tomam o conceito de violência atmosférica fanoniano para problematizar a violência no campo dos estudos de gênero.

As discussões sobre direitos sexuais, direitos reprodutivos e os debates públicos sobre sexualidades são abordados por diferentes trabalhos deste número. Em A Sexologia e Seus Especialistas na Mídia Durante a Pandemia da Covid-19, Sara Caumo Guerra, Rafaela Vasconcelos Freitas e Paula Sandrine Machado analisam os discursos dos chamados “especialistas” em sexualidade reproduzidos por veículos midiáticos durante a pandemia de Covid-19, identificando que os mesmos tendem à generalização dos corpos e à descontextualização das práticas. Já no artigo Imaginários Morais no Discurso Midiático Sobre o Uso da Inseminação Caseira por Mulheres Lésbicas, Júlia Carvalho de Freitas e Aureliano Lopes da Silva Junior discutem o uso desta tecnologia reprodutiva por casais de mulheres lésbicas e os discursos sobre elas produzidos por canais midiáticos de grande alcance nacional. Em Direitos Sexuais e Reprodutivos nos Protocolos Profissionais sobre HIV/Aids, Guilherme Augusto Souza Prado, Maria Verônica Almeida Caetano, Erika Carla de Sousa Ramos e Maria Vitória Rodrigues de Sousa analisam protocolos clínicos que instruem a atuação profissional na assistência ao HIV/Aids em diálogo com uma revisão integrativa de literatura sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos. Em Percepções de Mulheres Lésbicas e Bissexuais sobre Risco e Estratégias Preventivas às Infecções Sexualmente Transmissíveis, Ana Carolina Tittoni da Silveira, Amanda Costa Schnor e Kátia Bones Rocha descrevem e analisam as estratégias preventivas, uso de barreiras e percepção de risco em relação às IST de mulheres lésbicas e bissexuais brasileiras, utilizando método misto sequencial.

Masculinidades e práticas sexuais foram abordadas no artigo Precarização e Plataformização do Trabalho: Efeitos Entre Homens Trabalhadores do Sexo pela Internet, de Gianluca Augusto Oliveira-Soares e Adolfo Pizzinato, em estudo sobre as vivências profissionais e histórias de vida dos homens trabalhadores sexuais participantes correlacionando-as com as políticas de desmonte de direitos sociais e a plataformização do trabalho, majoradas pela pandemia de Covid-19. Daniel Cerdeira de Souza, Mateus Alves da Silva e Adriano Beiras visitam, em Violência Íntima entre Homens que se Relacionam com Homens - Revisão da Literatura, a produção bibliográfica nacional e internacional sobre o tema, identificando as principais teorias explicativas e proposições de enfrentamento à violência na produção analisada.

Dois textos abordam gênero e sexualidades por meio da história e da memória. Em Memórias de Mulheres Dissidentes na Ditadura Militar como Antídoto à Democracia em Ruínas, Raquel Gonçalves Salgado, Dantiely Martins Ferreira e Raquel Dias Amaro articulam memórias testemunhadas no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, nos boletins ChanacomChana e no jornal Nós, Mulheres, com base em um referencial interseccional. Sebastián Matías Benítez, em seu artigo La Educación de los Varones Argentinos a Comienzos del Siglo XX: Psicología, Sexualidad y Nación, analisa, de uma perspectiva histórico-crítica, as conceitualizações feitas pela psicologia nas primeiras décadas do século XX sobre o surgimento da puberdade e do comportamento de rapazes.

Este dossiê foi produzido em um momento de intensa instabilidade política, cultural, sanitária. O esgotamento das forças que pulsam a democracia deixaram marcas profundas e algumas de suas memórias e formulações dos sentidos do que vivemos na seara da produção do conhecimento estão aqui documentados. Sobrevivemos em luta e em muitos lutos. Nas (des)articulações entre racionalidade neoliberal e regulação da diferença diante da atual pauta de costumes e novas moralidades que configuram o contexto político ultra reacionário que atravessamos no Brasil e no mundo, os trabalhos aqui partilhados somam-se ao debate sobre as estratégias de ação-problematização nos territórios-campo psi. Os debates aqui reunidos reafirmam, portanto, a agenda política no enfrentamento à precarização das políticas de saúde, educação, assistência e trabalho, considerando a contribuição das práticas-saberes-movimentos interseccionais e os modos como a(s) psicologia(s) vem/vêm se movimentando em diversas esferas de atuação política, indagando quais seriam nossas disposições face às urgências do presente. Nossas esperanças se renovam neste final de ano, acompanhando a diplomação das forças democráticas. Diante dos desafios que os novos arranjos da política movimentarão na arena da diferença, oferecemos nosso convite às leituras que engendramos sobre crises, antagonismos e agências.

Nota

1 As mesas do Colóquio Psicologia, Política e Sexualidades: crises, antagonismos e agências podem ser acessadas em: https://www.youtube.com/@gtanpepppsicologiapolitica3210/streams

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