“Minha vida já é uma pandemia”
(garoto, 17 anos, outubro de 2021) 1
Emergências sempre exigem que profissionais saiam da zona confortável das práticas conhecidas para inovar, reinventar e experimentar. Estimulam a produção de inéditos viáveis, como diria Freire (1992), que assim concebia invenções-inovações que derivam da reflexão crítica que alimentará a esperança necessária para produzir algo que transforme o mundo em que se vive. Na emergência da crise sanitária e social da Covid-19, a produção de inéditos viáveis na resposta social que acompanhei foi local, territorial e coproduzida por lideranças comunitárias que mitigaram o desastre ampliado pela negligência do governo federal. Foi a resposta social, com o apoio de pesquisadores e profissionais no Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que reinventou o cuidado, a educação em saúde e a assistência nos territórios periféricos que confrontaram o negacionismo e a desinformação.
Registrando o que aprendemos neste contexto sindêmico, no espaço deste artigo sintetizamos um lugar para a psicologia e uma abordagem do sofrimento psicossocial acumulada nas experiências com diferentes projetos de prevenção e pesquisa atravessados pela pandemia de IST/HIV e, desde 2020, da Covid-19 em territórios periféricos e escolares de São Paulo. As expressões entre aspas provêm de falas coletadas em atividades com lideranças e educadores comunitários na periferia de São Paulo e da etnografia de processo de pesquisa em prevenção 1. (Paiva et al. 2021)
Para os jovens que acompanhávamos quase semanalmente, foi difícil adolescer na “vida pandêmica” que “prendeu” a socialização no distanciamento físico, mediada pela internet, sem escola presencial (“tudo online!”) em contexto que afetou o sono, tensionou a relação com os pais e afetou a segurança alimentar de crianças e adolescentes sem merenda escolar. Nos primeiros 18 meses de crescimento de infecções e mortes por Covid-19, as adaptações de cada jovem e de sua rede familiar e de pares exibiam a vida cotidiana em estado de emergência-permanente, marcada por situações-limite. A pesquisa seguiu online, implementando e-etnografia e pequenos surveys em 2020 e de modo híbrido desde o final de 2021, buscando compreender o cenário para, então, disseminar as evidências sobre a pandemia e inventar modos de decodificar e fazer retroceder a desinformação sobre Covid-19. No processo, supervisionamos estudantes de ensino médio e jovens lideranças-comunitárias como agentes-jovens de prevenção. Acompanhando a vida de territórios periféricos, coproduzimos material de comunicação que almejava proteger o direito à vida, à segurança e à saúde implicados no direito de estar livre de tratamento desumano e degradante, o direito à não discriminação (como a baseada em sexismo, machismo, racismo), à autonomia, à privacidade e à confidencialidade em cada decisão - princípios da abordagem psicossocial em saúde sexual e reprodutiva baseadas em direitos humanos (Paiva et al. 2012; Subha Sri, 2022).
Sem vacinas, adolescentes e jovens viviam um dia após o outro, preocupados com o risco de se infectar ou de contribuir para o adoecimento de pessoas em casa quando saíam para socializar (e sexualizar). Das periferias, testemunhavam a maior qualidade dos recursos das escolas da classe média em contraste com as condições ruins de acesso à internet e de privacidade para estudar e ensinar/aprender inexistentes nas suas casas aglomeradas que professores e colegas passaram a frequentar na vida pandêmica online - uma experiência inédita para a pesquisa que sustentamos.
“Revoltante uma pessoa rica que não precisa pegar ônibus desprezar nossos riscos”. Parte significativa dos jovens que acompanhamos viveu a perda de pessoas queridas e conviveu com os “enterros de sacos pretos”, enquanto familiares e vizinhos “arrogantes” desprezavam qualquer prevenção e encarnavam a negação psicológica implicada politicamente no negacionismo da crise, distribuindo desinformação sobre as vacinas finalmente disponíveis. Ao mesmo tempo, a consciência crítica sobre a desigualdade nas condições sociais cresceu exposta pela contagem dos mortos, distribuídos nos mapas por local de moradia nos dados organizados por um consórcio de imprensa e não pelo Ministério da Saúde - que proibiu a geolocalização das mortes pelo CEP -, fatos emblemáticos da negligência ativa do governo federal a banalizar mortes evitáveis (Ventura et al., 2021). Bolsonaro, como Johnson e Trump, procurou e achou cientistas interessados em falar o que ele queria sobre a crise da Covid-19 (Ball, 2022).
O fatalismo e a noção de inevitabilidade de morte eram os maiores obstáculos para coproduzir inéditos viáveis no território onde os jovens viviam sua “vida pandêmica”. No segundo semestre de 2021, acompanhando a experiência de volta às salas de aula e atividades presenciais em organizações não governamentais (ONG), decodificamos cenas cotidianas a indicar que, apesar da expectativa em contrário, o “novo normal” seria um “reaprender a viver em sociedade”.
Observamos a alegria de reencontrar colegas e professores. Para os primeiros anos, era “encontrar pela primeira vez!”, e os alunos se espantavam com a “quantidade de gente que se aglomera na escola”, “tinha esquecido como era!”. Celebravam a qualidade das aulas presenciais, da interação viva e encorpada, mas seguiam lidando com a “exaustão” diante de tanta imprevisibilidade, tanto tempo de medo e de luto, de isolamento solitário que se somou ao agudo empobrecimento que impôs a uma proporção significativa de adolescentes e jovens buscarem trabalho e reacomodarem os estudos. Relatavam como tiveram que superar a “preguiça” instalada, maior entre meninos, enquanto as meninas seguiram acumulando a escola presencial com o acirramento da disparidade da divisão de tarefas no trabalho doméstico. Escapava do protocolo o pouco distanciamento nas filas para entrar no prédio, nos pátios, refeitórios e nas salas mal ventiladas.
Depois de vacinados e de volta ao ensino presencial, “ufa!”. Era bom não estar mais resumido à família em ambientes frequentemente difíceis e carregados. Realimentavam a esperança no futuro abalada e avaliavam que o maior risco de infecção pelo “vírus da covid” compensava a diminuição do “risco de pirar”. Voltar ao prédio da escola “aliviava muitas emoções no peito”, a “ansiedade” e a “depressão”, ora identificada por eles, ora apontada por familiares.
Em meados de 2022, a pesquisa feita pela UNICEF 2 no Brasil e editoriais de revistas acadêmicas (como em Samji et al., 2022; Tausch et al., 2022) repercutidos pela imprensa ressaltavam dados sobre o efeito da pandemia na “saúde mental” dos jovens. Em campo, seguíamos observando como contextos psicossociais e familiares anteriores à pandemia, especialmente para meninas e para pessoas LGBTs, eram associados à ansiedade e à depressão tanto quanto o racismo, o medo e o luto associados à Covid-19 e aos tempos de distanciamento físico necessário à prevenção, quando tiveram que inovar na busca pelo apoio psicossocial comunitário e dos pares para seus desconfortos e sofrimentos emocionais.
Em conversa de professores reunidos para discutir desafios da escola presencial, surgiam interpretações para cenas que nunca viram antes: estar adolescendo e vivendo as mudanças no corpo encarnados diante de outros parecia “muuuito mais tenso!”. O corpo que emergia da infância tinha sido protegido quando desligavam as câmeras do celular ou quando “produziam cenários” para a interação online na vida pandêmica - eventualmente diminuindo os efeitos da tradicional avaliação baseada na aparência física. Além disso, nas cenas de interação no prédio da escola, observavam dificuldades com o uso do corpo que precisava “evoluir das que cabiam na internet”: estudantes partiam impulsivamente para a violência física e os meninos mimetizavam “personagens de jogos eletrônicos”. Nas salas de aula, “as pernas mexiam sem parar”, expressando “impaciência” com rotinas coletivas. A sala da orientação pedagógica também lotava com jovens com problemas emocionais, muitos com medo de se expor e de serem testados na vida fora de casa - e a “ansiedade” aumentava especialmente antes de provas ou seminários. Muitas meninas nunca tiravam a máscara para proteger a exposição do rosto (“e ela é lindinha!” disse a professora).
Em 2022, trinta meses depois da emergência da pandemia de Covid-19, a readaptação ao cotidiano presencial seguia lentamente, “quase como uma reabilitação” na definição de um professor, repetindo uma expressão que já tínhamos escutado. Se para gerações precedentes a interação presencial na escola era típica do cotidiano, para esses jovens “só que não, era readaptação!”. Ao mesmo tempo, enquanto o número de professores e alunos com diagnóstico de Covid-19 crescia com a nova variante do vírus, os eventos associados a “problemas emocionais” não diminuíam. Na sala de professores, reclamava-se de ações institucionais para lidar com o impacto da pandemia - proposta certamente inédita, seria viável?
A Ciência Não Resolve Sozinha os Problemas com Raízes Sociais e Locais de uma Sindemia
No caminho que percorremos colaborando com a resposta social em territórios periféricos, participamos do debate sintetizado pelo editorial do Lancet (Horton, 2020) 3, que definia a crise da Covid-19 como sindemia (não apenas pandemia) a demandar uma sinergia de ações para as quais a dinâmica local é especialmente relevante (Mendenhall, 2020). Sindemias, além de também surgirem em condições de maior desigualdade, disseminam-se na interação adversa entre a iniquidade e doenças/condições de saúde de todos os tipos que se somam - diferentes infecções, doenças crônicas, problemas de saúde mental, resultados de exposição tóxica ou desnutrição.
Esse giro de concepção que acompanhamos somava-se à interpretação sobre o que observávamos em campo e qualificou nossas interações pesquisadoras-comunidades dedicadas à prevenção. Concebemos, então, o que nomeamos de prevenção integral, que reconhece que na mesma cena de seu cotidiano, simultânea e sincronicamente, as pessoas se expõem a diferentes agravos. Em outras palavras, para a pessoa que se expõe o desafio é integrar na mesma cena a prevenção a diferentes agravos prováveis; para os profissionais da prevenção, será decodificar com as pessoas suas cenas singulares e seus cenários, implicados na desigualdade e no sofrimento psicossocial que os estruturam, almejando integrar a prevenção a cada cena, colaborando para que a pessoa encarne, como sujeito de sua vida, a integralidade no autocuidado com sua saúde e no cuidado solidário com os outros. Separar a prevenção da Covid-19, de IST/Aids, da varíola, da gravidez indesejada ou das violências entre pares é produtivo apenas didaticamente no momento de compreender seus sinais e modos de difusão/transmissão, e os recursos específicos de proteção.
Jovens lideranças de projetos de intervenção de ONG na favela de Heliópolis, que também inspiram este texto, embora gargalhassem frequentemente frente à menção de usar máscaras além da camisinha nas suas cenas sexuais em tempos de pandemia, reconheceram a necessidade de distribuir preservativos em ações comunitárias nas caminhadas em que denunciavam a fome, a violência de estado e o desemprego, enquanto distribuíam cestas básicas e máscaras de pano costuradas nos projetos para apoiar as mulheres do território. Inédita mistura de intervenções.
Ou seja, as melhores respostas à sindemia, em curso enquanto escrevemos, aproveitam experiências exitosas como a resposta social à aids, mas a diferença foi relevante. Na resposta social à aids, a colaboração de pesquisadores se desenvolvia com ONGs que organizaram a mobilização de segmentos específicos de pessoas. Os homens homossexuais, pessoas trans, usuários de drogas injetáveis e trabalhadores do sexo, que padeciam mais de aids, coproduziram a resposta comunitária que segue relevante, embora afetada pelos retrocessos políticos da última década (Parker, 2020; Pinheiro et al., 2021). Já as boas respostas à sindemia iniciada pela Covid-19 articularam pesquisadores com a resposta mobilizada por organizações territoriais, com destaque para ações duradouras como as da Central Única de Favelas e da UNAS/Heliópolis.
Moradores da periferia e adolescentes são especialmente circunscritos ao território porque não têm dinheiro para circular “se o trabalho não pagar a condução”. Diferente da resposta à aids que emerge nos anos 1980 e se expande para o SUS, implementado territorialmente só nos anos 1990, a capacitação de gerações de profissionais para garantir o direito à saúde resultou na interação local com as respostas de base comunitária-territorial, oferecendo acesso progressivo à testagem para Covid-19, às vacinas e ao acolhimento dos doentes.
Em São Paulo, depois de afetados pela emergência da Covid-19, os programas de saúde sexual e reprodutiva inovaram para garantir o acesso à testagem de ISTs e gravidez e aos insumos - anticoncepcionais, camisinha e antirretrovirais, inclusive nos esquemas usados para prevenção.
Mas, como nos primeiros anos da resposta à aids, o acesso à informação sobre como se proteger e sobre o direito aos insumos de prevenção - como à máscara e à vacinação - segue dependente das ações da sociedade civil. A imprensa não negacionista e as redes sociais foram o meio mais importante para disseminar informações corretas sobre prevenção por lideranças comunitárias em colaboração com pesquisadores, estudantes e professores nos oito territórios escolares.
E como foi difícil incluir a educação para a sexualidade, perseguida politicamente desde a década anterior! Aos estigmas associados à aids, somou-se a estigmatização da interação social e sexual dos jovens, responsabilizados por “trazer a Covid para casa”. Pais e professores, cuja religiosidade preferia conter a sexualidade na adolescência (silenciada até o casamento), tiveram seu “momento de Ooouh glória!”, como brincou um deles levantando as mãos para os céus.
Nos projetos de pesquisa e prevenção que inspiram este artigo, os jovens estavam autorizados pelo consentimento dos pais, mas a falta de privacidade nas casas aglomeradas inibia a conversa sobre experiências com a sexualidade e sobre sofrimento psicossocial originado na família. Ao discurso sobre “distanciamento social” somou-se o acirrado ataque à “ideologia de gênero”, que desmontou políticas públicas de educação sexual nas escolas antes da pandemia. Na pesquisa e na escola online, falar de experiências iniciais com a sexualidade, de cenas em que a prevenção precisava encarnar, ou das violências baseadas em gênero e sexualidade, foi quase impossível nas atividades em grupo nos territórios periféricos. Nas interações via trocas de áudios nos celulares - Google Meet e WhatsApp - a Covid-19 organizava as conversas sobre a prevenção que coproduzíamos.
Foi, portanto, excepcional um trabalho com estudantes de Sorocaba que documentou o apoio significativo para a educação sexual entre pais, alunos e professores pesquisados, com repercussão registrada no Jornal da USP 4, superando a ofensiva política conservadora por meio da abordagem baseada em direitos que já tínhamos testado em outros territórios (Paiva et al. 2012). Nas diferentes ações coproduzidas com jovens que sustentamos, a sexualidade pôde ser abordada mais lateralmente em atividades sobre temas como “assédio” e “bullying” - termos usados pelos jovens. Em diferentes seminários online (webinários), discutiram a análise dos questionários respondidos por colegas de 3º ano de ensino médio em 2019, mostrando que estudantes com gênero e desejos sexuais não normativos - cerca de 20% dos meninos e 40% meninas se declararam homo ou bissexuais - relatavam mais assédio e bullying. (Paiva et al. 2021) Discutíamos os dados cuja análise permitiu mostrar que as experiências discriminatórias dos estudantes “LGBT” eram associadas aos indicadores extremos de sofrimento mental, como a ideação suicida.
O sofrimento mental compõe o terceiro agravo nessa sindemia. Antes da Covid-19, já era indicado por lideranças comunitárias e professores como necessidade prioritária, e os jovens já produziam atividades aproveitando oportunidades como o “setembro-amarelo” - campanha de prevenção de suicídio. Em rodas de conversa e em seminários (muitos online em 2020-2021), os serviços de saúde mental do SUS eram criticados pelos jovens, porque, depois de longa fila e espera, eram atendidos em “grupo” - abordagem que não agradava.
A pandemia diminuiu o acesso à rede de amigos e muitos contaram apenas com familiares (mais raro no caso de pessoas LGBTs) e “coisas que descobria na internet”. Falar da sexualidade associada ao sofrimento “psicológico” e “mental” - que, neste caso, preferimos chamar de sofrimento psicossocial, discutido adiante - foi mais aceitável nos primeiros anos da pandemia. Mas o contexto sustentava o ataque às políticas baseadas em direitos humanos construídas desde a democratização, um ataque que usa gênero e sexualidade como abre-alas e porta bandeira.
A Sexualidade no Centro dos Ataques aos Direitos Humanos, Local e Globalmente
O campo da sexualidade exemplifica como Direitos Humanos não podem ser pensados como fatos. São um horizonte aspiracional em movimento, uma linguagem para descrever a dignidade humana no plural. Como propõe Souza Santos (2003), cuja abordagem multicultural e emancipatória dos Direitos Humanos temos adotado, esse horizonte coproduz um permanente des-ocultar de opressões que nomeiam a aspiração por novos direitos que, por sua vez, fomentarão novas definições de igualdade formal diante da Lei - uma “utopia móvel”.
O reconhecimento permanente de novas singularidades para ser, estar no mundo e se identificar tem sustentado ações coletivas que usam a perspectiva de direitos para materializar políticas públicas que têm, literalmente, salvado vidas, combatido abusos e atrocidades, além de punir responsáveis - essa sempre a parte mais difícil. Por três décadas, experimentos naturais em situações cotidianas se desenvolveram com a participação de pessoas afetadas, enfim reconhecidas em seu direito à dignidade, que contribuíam para o desenho de programas e políticas públicas dedicados à mitigação de sofrimento psicossocial. No Brasil, promovia-se o respeito à diferença com confiança nos bons resultados acumulados em políticas públicas exemplares desde os anos 1980: na esfera da saúde integral da mulher, que substituiu programas de saúde materno-infantil, e na resposta à epidemia brasileira de aids, entre outras, que resultaram em programas multisetoriais como o Brasil sem Homofobia, em 2004.
Perspectivas construcionistas da sexualidade informaram os programas de “Saúde na Escola” que por duas décadas incluíram a educação preventiva para IST/Aids e gravidez, e consideravam gênero um marcador inescapável para pensar a prevenção de agravos de saúde, sexual e reprodutiva em especial. Programas federais e locais garantiam a promoção de saúde inclusiva e o respeito à diversidade nas escolas, em empresas e igrejas abertas - tanto na periferia como para classes médias - e retiraram o tema da sexualidade do silêncio até então quebrado apenas pela pregação moral. O dado mais significativo da eficiência e eficácia dessas abordagens a interpelar um “sexo imutável e essencial” foi o aumento do uso de camisinha: de quase zero no final dos anos 1980 entre adolescentes para 48% em 1998, 54% em 2003, proporção que tem variado de 62% a 69% entre estudantes de ensino médio desde 2012, quando já se articulava o ataque aos DH e à educação sexual nas escolas (Paiva et al. 2020).
O campo da saúde sexual e reprodutiva segue acumulando evidências, desde os anos 1980, sobre a limitação das teorias sexológicas e essencialistas que concebem uma natureza instintiva e essencial dos sexos, uma impulsividade que na adolescência é associada aos hormônios e a uma fase universal do desenvolvimento psicossexual, espelhada na normatividade para o sexo masculino - que a família e a pregação religiosa deveriam controlar.
Todos esses programas e políticas, inéditos viabilizados, presumiam a laicidade do estado brasileiro, fator constitucional e estrutural que consideramos dos mais relevantes para o sucesso dessas políticas que afirmaram um regime de sexualidade regido pela noção de direitos sexuais.
Em texto de leitura obrigatória, Carrara (2015) registra que neste período valida-se o conceito de direitos sexuais operado por ativistas, gestores de políticas, operadores de direito, profissionais de saúde e pesquisadores. Ao discutir a etnografia brasileira no processo histórico, indica a produção de um “novo regime” secular para a sexualidade que transformou o dispositivo da sexualidade - nos termos de Foucault. Desenhado por Rubin (2018), o dispositivo típico do século passado definia o sexo como reprodutivo, heterossexual, no casamento, em casa e monogâmico. Esse era o sexo bom-normal, relacionado à moralidade cristã sem ser sua exata tradução. Já o sexo anormal e não-natural era por dinheiro, travesti, transexual, fetichista e transgeracional. No século XXI, como registra Carrara, o desejo é também uma verdade interna, o bom-sexo é plástico e deve ser consentido, associa-se à felicidade e ao bem-estar. A promiscuidade estéril e que não produz laços segue como categoria intermediária entre a moral cristã e os dois regimes seculares da sexualidade. Neste novo dispositivo, o sexo ruim-anormal é também o sexo sem prazer, ou aquele que sinaliza o descontrole de si e a irresponsabilidade medida pela falta de cuidado e autocuidado que expõem as pessoas a eventos indesejados (às IST/aids e à gravidez) e que faz mal aos outros, cujo extremos são o abuso e a pedofilia.
Essa perspectiva construcionista social da sexualidade e de direitos sexuais validou-se globalmente convivendo com as teorias baseadas na ideia de um desenvolvimento psicossexual essencial, que segue mais prevalente e marcante na formação de educadores, profissionais da saúde e da assistência social. Nos primeiros meses da Covid-19, foi notável que sexólogas que misturam os dois dispositivos ao pensar o sexo como saúde e prazer foram as escolhidas pela mídia para falar da relevância de mantermos a vida sexual “normal com os parceiros no isolamento”. Não se falava publicamente sobre o sexo casual, o uso de aplicativos ou como fazer sexo sem pegar Covid-19.
Ao mesmo tempo, enquanto os jovens que acompanhamos tematizavam “assédio”, “bullying” ou “abuso”, discursos essencialistas sobre sexo seguiram alimentando as linhas do ataque global aos direitos humanos no contexto da pandemia, mantendo como alvo preferencial o aborto e os programas de educação sexual em escolas. A extrema direita seguia fabricando polêmicas e o pânico moral seguia marcando a agenda pública.
No Brasil, como atualiza Junqueira (2022), esse movimento moralizador, antifeminista e antiLGBT manteve participação ativa de psicólogas com discursos revestidos de certa laicidade e cientificidade e defensores de uma escola sem partido, movimento articulado ao “anticomunismo” extemporâneo apoiado por Bolsonaro que, presidente, torna essa retórica base para suas políticas de governo. Grupos conservadores associados à extrema direita participam do que nomeiam “guerra cultural”, e usam a ideia de construção social para fabular uma “construção intencional” de sexualidades e de gêneros não-normativos entre crianças. Somam a acusação de “antifamília” às suas iniciativas de proibição da educação sexual e em saúde baseada nos Direitos Humanos. Como discutem Prado et al. (2021), aproveitam-se da baixa institucionalidade de políticas públicas implementadas por duas décadas no país para ressignificar os direitos humanos em oposição à garantia de liberdade e reconhecimento da autonomia dos sujeitos. Ao promoverem a limpeza moral, depuram hierarquicamente os direitos humanos no esforço para recuperar a tutela e proteção de grupos que definem como mais vulneráveis (como crianças e adolescentes).
Fazendo sua parte na guerra cultural, a presidência de Bolsonaro não inventou, mas aprofundou a negligência e a violação de garantias constitucionais que sustentavam exitosas políticas públicas e as pautas da diversidade sexual e de gênero. Segue a ativa retórica política dos grupos de extrema direita que apoiaram a ditadura militar brasileira, derrotados politicamente pela resistência democrática que produziu a Constituição de 1988 estruturada na tradição dos Direitos Humanos. Dissemina o emblemático discurso que nunca desapareceu de programas policiais de rádio e TV e o mantra tipicamente brasileiro que confunde princípios com pessoas: “direitos humanos só para humanos direitos”. A sexualidade segue sendo obsessão neste mantra: o “pessoal dos direitos humanos” é chamado de “bandidos”, “estupradores e pedófilos”, e “imorais”.
Renovado internacionalmente, como discutimos em diferentes artigos da International AIDS Society-Lancet Commission on Health and Human Rights, no ataque aos direitos humanos seus defensores são estigmatizados como “hostis a interesses nacionais”, porque focalizam interesses especiais de “minorias”- fundamento das abordagens de direitos humanos -“em detrimento das maiorias”. A homofobia e a misoginia purificadas como religiosidade superior (“verdadeiramente cristã”), ou como “direito de opinião”, são a linha dos discursos antidemocráticos e de ódio, agora também habilitados na internet. Nacionalismos racistas e xenofóbicos completam o quadro, organizado em torno do discurso contra o “globalismo” que a extrema direita responsabiliza pela crise de precarização no trabalho que todos vivemos.
A noção de estar em uma “guerra contra inimigos internos”, típica das ditaduras e da guerra fria do século XX, renova a cruzada contra a universalidade dos direitos humanos. Em muitos países se enxergam os direitos humanos como adversário ideológico, e as políticas baseadas em direitos humanos como adversárias estruturais.
Em tempos de sindemia, cresce uma noção de “liberdade de opinião” e de “direitos individuais” inconciliável com sentido histórico atribuído, de um lado, à indivisibilidade dos direitos humanos como contraponto das desigualdades - todos os direitos têm o mesmo valor como direitos, são inerentes à dignidade de cada pessoa humana; de outro, à recusa ao compromisso com o sentido de fraternidade e solidariedade na diferença dos DH. Assim, a desinformação deliberada atingiu fortemente a solidariedade e a eficiência da capacidade e resolutividade global frente à pandemia da Covid-19, que assim se estende, interminável, exaurindo cada um que se importa, como indicam professores, estudantes e jovens que acompanhamos.
Ao mesmo tempo, essa conjuntura de ataque aos direitos humanos, movida por interesses econômicos transnacionais, alçou os DH como referência para a resistência. Unifica pessoas e movimentos nacionais e organizações internacionais que interpelam a essencialização da desigualdade ou a banalização da morte e do acirramento de conflitos - cada vez mais armados - que pavimentam os caminhos que podem levar à destruição definitiva de povos, além do planeta. Como resistência, a linguagem dos DH tem sido usada para conceber necessidades compartilhadas e descrever a discrepância entre as experiências presentes e expectativas futuras que resultam da desigualdade - de classe, étnico/raciais, baseada no gênero e na sexualidade, e entre territórios.
Essa discrepância pode ser expressa como exclusão, dominação, opressão, humilhação, estigmatização, discriminação e paralelamente ser traduzida na linguagem do sofrimento, encarnada em sofrimento mental. Interpretadas pela compreensão de seus determinantes sociais e como violação de direitos mobilizam ações coletivas transformadoras, implicado nos sofrimentos compartilhado que têm sido concebidos como sofrimento social (Pussetti & Brazzabeni, 2011).
Os fragmentos da experiência sindêmica descritos neste texto exemplificam como respondeu-se ao sofrimento com a mobilização coletiva. Prevalece na literatura acadêmica em saúde e no debate na imprensa, entretanto, a redução desse sofrimento ao “psicológico” ou “mental”. É mais produtivo nomeá-lo como sofrimento psicossocial, expresso na linguagem dos direitos humanos concebidos na sua integralidade e indivisibilidade.
Sofrimento Psicossocial e a Linguagem dos Direitos Humanos
Intuitivamente a definição de sofrimento parece óbvia e, ao mesmo tempo, qualquer definição substantiva (ou sua medição) será sempre problemática. Parafraseando Sen (1985) quando discute a ideia de desigualdade, sofrimento é ideia simples e capaz de movimentar imediatamente as pessoas para a ação e, ao mesmo tempo, é extremamente complexa e movimenta pesquisas e a reflexão de filósofos, economistas e epidemiologistas, cientistas sociais e psicólogos.
Chamamos de sofrimento psicossocial a experiência que não pode ser naturalizada como mal-estar inerente à socialização no mundo. O sofrimento psicossocial é parente, mas diferente do que se define como sofrimento mental - este que produz terapêuticas identificadas com os saberes das abordagens clínicas. Esta concepção de sofrimento psicossocial não perde de vista cada pessoa, concebida como sujeito de suas cenas, valorizando a produtividade para indivíduos e grupos da decodificação de cada cenário e cena, e das ações, gestos, palavras, atos e práticas carregadas de sentido, como é sempre obrigatório quando se analisa a violação e negligência de direitos. Cenas são experiência pessoal e intersubjetiva que pode ser identificada em vivências corporais qualitativamente observáveis. De um lado, resultam da violência estrutural como a exacerbada pela sindemia, marcadas pela interseccionalidade encarnada de modo sincrônico na vida cotidiana, mas que atuam de modo distinto para cada pessoa e a cada cena. A compreensão de sua dinâmica psicossocial e intersubjetiva permitirá aprimorar o mitigar da vulnerabilidade individual ao adoecimento e mal-estar, mas as ações resultantes dessa compreensão não podem ser reduzidas às psicoterapias individuais, à medicalização ou a estratégias de modificação de comportamento.
A potência transformadora do sofrimento psicossocial, mal-estar evitável, associa pessoas em coletivos para buscar mudanças estruturais e reivindicar políticas públicas enquanto reconhecem o processo e a trajetória do alívio resultante de processos de solidariedade nas ações coletivas. E dependemos da democracia, porque esses processos coletivos e de solidariedade interpelarão funcionários de estado e de agentes governamentais capazes de escutar e executar ações programáticas que podem institucionalizar políticas públicas.
Ao mesmo tempo, como discute Amartya Sen, a exaustão produzida pela desigualdade pode também produzir resignação, que nem por isso deixa de ser agudamente consciente de desejos insatisfeitos. O sentido da felicidade se adapta e o poder pessoal de escolha decidirá qual dos pertencimentos ou identidades coletivas serão relevantes em cada ocasião.
Como a desigualdade, o sofrimento psicossocial pode ser quantificado, como fazemos com o assédio, as experiências de racismo, ou com mortes evitáveis resultantes da negligência e da violência de estado. As diferenças transformadas em desigualdade e a distribuição social e desigual do peso das adversidades produzem sofrimento físico e psicossocial. Mas, para interpretá-la de modo a transformar o cotidiano na direção da felicidade almejada por cada pessoa, o “remédio” varia a cada cenário e cena pessoal (da pessoa a cada cena) e em contextos históricos e territoriais. Pessoas e contextos que têm cor, sexo e gênero, geração, trajetória e história.
As cenas pessoais são a unidade de análise dos episódios esperando decodificação e a unidade de intervenção mais fértil para produzir soluções aceitáveis e factíveis - inéditos, viáveis nos termos das pessoas e das necessidades compartilhadas em suas situações limites - que mitigam sofrimentos que chamo de psicossociais. Como os produzidos pela sindemia. A medição das desigualdades que usa cor/raça, gênero ou identidade sexual, entre outras categorias de análise social, tem mostrado como agravam o desemprego, precarizam o subemprego, estruturam moradias, aumentam a insegurança alimentar, entre outros males que produzem sofrimentos em sinergia. A análise de seus determinantes sociais informará o planejamento de programas e políticas na direção de maior justiça econômica e cultural - inextricavelmente ligadas - e fundamenta as abordagens baseadas em direitos humanos que adotamos.
Obras como a de Nancy Fraser, de Boaventura Souza Santos, Manuel Castells, Amartya Sen e Richard Parker discutem como o reconhecimento afirmativo das diferenças tende a promover identidades grupais que desestabilizam identidades sociais tradicionais e normativas e abrem espaço para futuros reagrupamentos.
A noção de permanente reagrupamento é relevante para lidar com o sofrimento psicossocial, porque seguimos nomeando diferenças que produzem experiências coletivas de mobilização e de compartilhamento que acolhem e aliviam sofrimentos. A mobilização coletiva acolhe e alivia muito antes de tipificar segmentos para análises epidemiológicas ou renovar as práticas clínicas e psicológicas pensadas para ambulatórios e pacientes, em clínicas e consultórios ou, ainda, especificar novos direitos. A organização da Coalizão Nacional em Defesa dos Direitos de Crianças e Jovens sob Orfandade pela Covid-19 é um dos vários exemplos da resposta ao desastre, cuja consciência sobre o sofrimento compartilhado e desproporcional impediu que o luto fosse reduzido a sofrimento medicalizável e mental, ou social. Estar na Coalizão alivia o sofrimento ali compartilhado inclusive porque o torna visível e não-naturalizado.
A superação da invisibilidade permite compreender que somos “diversamente diferentes”, como diria Sen, e que excedemos as categorizações baseadas em religiões, tradições simbólico-culturais ou políticas de identidade. Permite também superar a ilusão de destino ao sofrimento.
Testamos essa certeza nos cantos mais despossuídos deste país: as pessoas entendem que a desigualdade é produção humana (e não natureza ou destino) e, portanto, compreendem os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que já no primeiro artigo afirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”. A linguagem dos DH mantém a centralidade da pessoa e sua experiência cotidiana, localizando-a na cidadania compartilhada, sem individualizar definitivamente seus sofrimentos, nomeando-os como estigmatização, discriminação, negligência ou violação de direitos.
Para mitigar o sofrimento psicossocial, esse em que o contexto é dominante - como no caso do machismo e do racismo, e da experiência de abandono na sindemia - precisamos compreender a dinâmica desigualdade-igualdade local por meio da linguagem de direitos humanos como um horizonte (não como fato) e afirmar sua universalidade, integralidade e indivisibilidade como “fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, como está no prólogo da Declaração.
Ao mesmo tempo, da experiência das abordagens psicossociais baseadas em direitos humanos que conseguimos sustentar na sindemia, confirmamos que não há “genéricos” para todas as pessoas ou mesmo segmentos - como adolescentes ou categoria profissional (professores). Nessa perspectiva, as ações de prevenção e acolhimento na sindemia exemplificam como devem ser diferenciadas pela atenção aos marcadores sociais da diferença e da desigualdade locais, territoriais, que permitirão o investimento mais certeiro no seu mitigar. Sem “genéricos”, a prevenção precisa ser direcionada para, e apropriada por, cada pessoa a cada ocasião, para cada cena de exposição ao risco.
Considerações Finais: Prevenir Novas Pandemias Sem “Se Perder na Diferença”, na Ideia de Direitos como Fatos e na Crença da Estabilidade das Políticas Públicas
Na mesma direção pensada por Ball (2022), nossa experiência na resposta global à Covid-19 indica que nenhuma nova pandemia será prevenida até que lideranças e governos competentes enfrentem as grotescas desigualdades e injustiças no interior e entre sociedades. Nos projetos que acompanhamos, para colaborar na produção de inéditos viáveis em crises sem precedentes, como foi a da aids, a análise integrada dos diferentes marcadores sociais da diferença (Brah, 2006) impôs-se às práticas de promoção da saúde e prevenção integral, também para os psicólogos. Usamos a linguagem de direitos humanos para compreender a diferença transformada em desigualdade e estimular o reconhecimento de necessidades específicas, organizar as demandas compartilhadas pelas pessoas que, assim, podem resgatar a potência transformadora do sofrimento psicossocial.
Compreender o sentido complexo e estruturado territorialmente das dimensões psicossociais do sofrer em tempos de sindemia é apenas parte do desafio de reinventar práticas profissionais que não estão assentadas na vida privilegiada dos que não precisam enxergar relações sociais e intersubjetivas desiguais. Como expressou um trabalhador do movimento sindical metalúrgico que se tornou liderança comunitária na favela onde mora e trabalhamos: “será que estivemos perdidos nas diferenças? Deu um insight no velho aqui!” Insight sobre a integralidade-indivisibilidade das ações que coproduzimos baseadas em DH, como horizonte e não como fato.
Entre os desafios mais relevantes desta década, portanto, destaca-se superar o retrocesso e o ataque global ao horizonte ético-político dos DH, ataque que é coprodutor de genocídios movidos por nacionalismos racistas, pelos mesmos movimentos políticos que atacam diretos sexuais e ressignificam a linguagem dos DH para sobrepujar sua universalidade e sua inter-relação. Enquanto escrevemos, soma-se ao medo, ao luto e à dor continuada dos que sobrevivem à Covid-19, o sofrimento de milhares de vítimas brasileiras da crise climática - da seca, das enchentes e do fogo previstos há três décadas. É relevante, portanto, notarmos que a última fronteira conquistada pela linguagem dos direitos foi sua inclusão nos acordos de Paris sobre Mudança Climática (em 2015), quando se antecipava que o impacto dos eventos climáticos extremos seria maior nos territórios com maior desigualdade social e negligência de direitos. Em 2016, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS/ONU) se consolidavam mirando o “usufruto do mundo que todos compartilhamos” e listando direitos humanos a serem atingidos em 2030. E foi quando os ataques aos DH se aprofundaram.
Sempre discutimos como a aids foi um poderoso estímulo para a inovação de práticas não teorizadas integralmente pelas teorias clássicas - individualizantes e localizadas setorialmente, sem perspectiva interseccional. Mas mesmo na resposta à aids, equívocos “nos tiraram o sono” e podem se repetir. O maior deles é confiar que políticas bem-sucedidas se estabilizam como políticas de estado. Como sempre nos lembra Parker (2020), os discursos que emergiram sobre o “fim da aids” encobriam 37,9 milhões de pessoas vivendo com HIV no mundo, entre as quais 14,6 milhões não tinham acesso à medicação. Estão fazendo o mesmo com a Covid-19.
Quando disseminamos a versão brasileira do quadro da Vulnerabilidade & Direitos Humanos (Paiva et al. 2012), ressaltamos que sua produtividade resultava do destaque da vulnerabilidade programática que, nesse quadro, assumiu um peso equivalente ao do contexto sociocultural a produzir maior/menor vulnerabilidade social, cuja resultante coproduzirá a vulnerabilidade individual (da pessoa) ao adoecimento - três dimensões inextricavelmente ligadas e representadas por um cubo. A inclusão da dimensão programática, da presença/ausência de políticas relevantes para compreender o processo saúde-doença, ampliou a tradicional dialética de duas dimensões - “indivíduo-sociedade” ou “adoecimento/sofrimento-determinantes sociais”.
Nas três dimensões da vulnerabilidade se analisa, a cada cena, a proteção ou violação de direitos humanos. Ao iniciar pela análise das vulnerabilidades locais baseadas em direitos humanos, acumulam-se mais evidências da sua dinâmica local, indicando quais mediações programáticas e respostas sociais coproduziriam maior equidade no direito à saúde ou à educação, contribuindo na direção de mitigar a pobreza, o racismo, o sexismo e machismo. Nas ações de prevenção, articulamos então sabedorias típicas do Sul global - a tradição brasileira da pedagogia freireana e de abordagens que chamei de psicossociais (e não sociopsicológicas) na saúde.
A demanda por aconselhamento, terapia e trabalho de psicólogos segue intensa nas comunidades e territórios periféricos com que colaboramos. Na resposta social à sindemia, observamos a diminuição crescente da estigmatização da vontade de recorrer ao apoio psicológico. De inédito, viabilizou-se o atendimento online nos consultórios bastante ocupados em todo lugar. É suficiente? Seguiremos isolados e perdidos nas diferenças?
Nas redes de pesquisadores agrupados para pensar a sindemia, assombra-nos a atualização permanente do modo como o neoliberalismo explora o sofrimento e a sua individualização, e seguimos recusando a banalização da morte ou a responsabilização das vítimas da negligência. Como psicóloga e psicólogo social, reconhecemos o desafio para inovar práticas que enfrentam contextos de sindemia continuada, de crise política e de ataque à solidariedade na diferença, que não basta denunciar. Precisaremos responder aos termos da “reabilitação ao mundo” em curso em cada território, mundo resultante dessa sindemia e das próximas que seguirão, que permanecerá um desafio para a abordagem psicossocial baseada em DH que estamos a implementar e avaliar.
Com essas reflexões organizadas originalmente para o debate em um seminário 5, difíceis de amarrar em único texto, esperamos contribuir para inspirar outras iniciativas para cuidar e mitigar o sofrimento psicológico onde o contexto é dominante, que prefiro chamar de sofrimento psicossocial. A abordagem que estamos experimentando pretende mitigá-lo em tempos de sindemia sem perder de vista a intersetorialidade e interseccionalidade necessária ao campo da prevenção. Precisamos de muitos outros procedimentos, inéditos e viáveis, para acolher esse sofrimento implicado na desigualdade, os lutos de várias ordens e a exaustão que a vida-pandemia exacerbou. Como tratar em outros espaços de trabalho do psicólogo o ataque aos direitos humanos que sustenta a negligência genocida de governantes? Como apoiar as pessoas na “vida pandemia” e “reaprender a viver em solidariedade”, como perguntou uma professora? Mas nessa sociedade?