O corpo trans é para a anatomia normativa o que a África foi para a Europa: um território a ocupar e distribuir a quem pagar melhor. Os seios e a pele para a cirurgia estética, a vagina para a cirurgia estatal, o pênis para a psiquiatria ou para as anamorfoses de Lacan. (Preciado, 2022, p. 38)
É possível entrar em uma relação analítica sustentando uma posição de desobediência epistêmica? (Preciado, 2016, p. 24, tradução nossa)
Em 17 de novembro de 2019, Paul B. Preciado mobilizou muitos psicanalistas com a sua intervenção na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana, em Paris. Vale ressaltar que a temática do evento, “mulheres em psicanálise”, recorrente em colóquios psicanalíticos, reforça a atribuição de um caráter enigmático às mulheres, situando-as como objeto “exótico” a ser investigado, como já apontado por diversos autores (Arán, 2004; Birman, 2002; Neri, 2005) e, nessa mesma ocasião, pelo próprio filósofo espanhol. A intervenção de Preciado, crítica e de tom deliberadamente provocativo, propagou-se com rapidez pelas redes sociais, sendo traduzida para diversos idiomas e amplamente divulgada (Preciado, 2019).
De modo igualmente rápido, vários analistas responderam publicamente a essas provocações. Não causa surpresa que o teor dessas reações tenha sido, predominantemente, em defesa da psicanálise; atitude que, assim como o conteúdo das críticas de Preciado, não é novidade nos debates - muitas vezes embates - entre estudos de gênero, estudos queer e psicanálise.
Seis meses após a conferência, foi publicado o livro Je suis un monstre qui vous parle (publicado recentemente no Brasil como Preciado, 2022). Trata-se do texto completo da intervenção, escrito em primeira pessoa, tornado público porque, em Paris, Preciado só pôde dizer uma pequena parte do que havia preparado.
Passados alguns meses de sua fala, o que possibilita maior elaboração do que foi levantado, e estimulados pela recente publicação do livro, decidimos contribuir com essa discussão. Para tanto, começaremos com uma breve apresentação das críticas de Preciado à psicanálise e aos psicanalistas, explicitando sua posição sobre a crise da epistemologia da diferença sexual e situando-a no regime farmacopornográfico (Preciado, 2018). Depois, analisaremos criticamente as respostas de três psicanalistas à sua intervenção, a saber: Denise Maurano, Jean-Claude Maleval e Alfredo Eidelsztein. Utilizamos esses autores, pois essas eram as réplicas disponíveis no momento da escrita deste artigo.
Na sequência, buscaremos complexificar o debate, indo na contramão da postura defensiva que destacaremos nas respostas. Nosso intuito é reconhecer e acolher positivamente as críticas apontadas pelo filósofo - e, de modo mais geral, pelo olhar contemporâneo de outras disciplinas sobre a psicanálise -, e sustentar, diante da crise e da insuficiência do paradigma da diferença sexual hoje, a possibilidade de construção de uma nova epistemologia, não binarista e que aposte na multiplicidade de corpos e sexualidades.
É importante sublinhar que críticas como a de Preciado seguem na esteira de outras que vêm sendo feitas à psicanálise há pelo menos quatro décadas, provenientes da antropologia, de diversas correntes das teorias feministas e dos estudos de gênero, por exemplo: o viés eminentemente heteronormativo e falocêntrico da teoria psicanalítica e as tendências universalizantes e abstratas imbricadas na suposição de um sujeito a-histórico que coincide com o homem heterossexual, branco e burguês (Butler, 1990/2013, 1993/2019a; Rubin, 1998). Por isso, chama a atenção a calorosa repercussão da fala do filósofo, permitindo indagar: por que só agora as questões das dissidências sexuais e de gênero estão sendo consideradas pela psicanálise de forma mais contundente, nas interrogações colocadas à sua teoria e à sua prática? Por que, ainda assim, entre as reações, há tanta resistência à mudança e insistência no recurso a conceitos historicamente situados, sem o reconhecimento de sua historicidade? Esses são alguns dos pontos fulcrais que encontramos no pensamento de Preciado e que guiarão esta discussão.
Antes de seguir, consideramos fundamental elucidar que o objetivo aqui não é avaliar ou julgar a teoria psicanalítica sobre gênero ou diferença sexual, ou propor uma nova teoria sobre essas temáticas, tampouco interpretar psicanaliticamente os autores cujos textos selecionamos para analisar. Nossa intenção, ao contrário, é partir de certos discursos contemporâneos do campo da psicanálise (textos em reação à fala de Preciado) e explorar criticamente seus efeitos sobre a compreensão de sujeitos dissidentes de gênero e sobre a escuta clínica desses sujeitos, entendendo que discurso, sujeito e clínica estão inevitavelmente amalgamados. Assim, a nosso ver, a clínica é política, pois é sempre permeada por discursos e relações de poder, não sendo possível pensá-la deslocada da cultura e de seus regimes de verdade.
Nesse sentido, aproximamo-nos da historiadora Scott (1995), quando, ao afirmar o gênero como categoria útil para análise histórica, não pretende definir o que é o gênero, mas tratá-lo como uma ferramenta que permite interrogar os paradigmas históricos existentes e, desse modo, apontar para a possibilidade de sua transformação. No nosso caso, trata-se de interrogar certos paradigmas tidos como imutáveis na teoria psicanalítica, sobretudo na teoria lacaniana (reafirmada pelos psicanalistas que responderam a Preciado), visto que sua influência estruturalista confere a determinados conceitos o caráter de a-historicidade e universalidade.
Isso não significa, porém, a assunção de uma posição contrária ao estruturalismo ou mesmo de denegação de sua influência, mas sim crítica, pois, como coloca Deleuze (1972) em Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, o estruturalismo tem uma produtividade que marca o pensamento de uma época e colocar-se “contra” ele seria algo inócuo. A proposta de crítica e superação de ferramentas teóricas cujos limites são postos em xeque no século XXI não implica a negação de sua originalidade e relevância histórica, mas a priorização de linhas de força do pensamento contemporâneo que abrem espaço para novas epistemologias.
Diferença Sexual: Paradigma em Crise
Desde Problemas de gênero (Butler, 1990/2013), e prosseguindo em Corpos que importam (Butler, 1993/2019a) e Undoing Gender (Butler, 2004), Judith Butler já dialogava com os conceitos psicanalíticos, problematizando a categoria de diferença sexual, a lógica heterossexual e as oposições estruturais binárias presentes sobretudo na teoria lacaniana. Também Irigaray (1977/2017), psicanalista feminista, fez críticas importantes à psicanálise e aos efeitos da impressão de uma dimensão estrutural à teoria lacaniana: daí resultou uma discursividade falocêntrica (“falogocentrismo”), na qual a mulher figura em uma posição inferior, excluída, assujeitada ao homem, sem possibilidade de existir como sexo diferente ou como sujeito. Tampouco em Preciado essa temática é exatamente inédita. As práticas contrassexuais apresentadas em seu manifesto (Preciado, 2002), o conceito de multidões queer (Preciado, 2011), a autoaplicação de testosterona em gel descrita em Testo Junkie (Preciado, 2018): tudo isso é revelador, na obra do autor, da forte denúncia do regime da diferença sexual (binária, hierárquica) e de seu empenho em subvertê-lo a partir do próprio corpo e da própria sexualidade.
O que a intervenção e o livro têm de novo, então? Trata-se da primeira vez que Preciado interpela direta e vigorosamente uma plateia de psicanalistas, tanto pela sua intervenção em um auditório com 3500 pessoas, quanto por publicar um livro inteiro onde reforça e amplia suas críticas. Além disso, também é uma novidade o lugar de onde Preciado fala na ocasião recente: como homem trans, como corpo não binário que se percebe classificado pela psicanálise como “monstro”, como alguém com experiência de análises pessoais que vem a público convocar psicanalistas a se responsabilizarem pela sua prática. Ele se expõe, faz de seu próprio corpo um showroom, não na condição de paciente interessado no que a psicanálise tem a dizer sobre ele, mas, em suas próprias palavras, como monstro que se levanta do divã e toma a palavra. Desta vez, é a psicanálise que é colocada no divã de Preciado.
A crítica de que o paradigma da diferença sexual produz a divisão entre subjetividades inteligíveis e ininteligíveis é explorada a partir da patologização das pessoas trans (Preciado, 2022). O regime da diferença sexual é definido por Preciado como uma epistemologia política e heteronormativa que molda o corpo, uma máquina performativa que legitima o regime político do patriarcado hetero-colonial e estabelece uma diferença entre o que existe e o que não existe social e politicamente. Assim, a psicanálise, ao dar sentido aos processos de subjetivação de acordo com o regime da diferença sexual, acabaria tendendo a uma consideração patologizante dos processos de transição de gênero e das identificações de gênero não binárias, comumente situando-as no campo das psicoses 1.
Como toda epistemologia, o paradigma da diferença sexual está sujeito à crítica e à mudança. Mais do que isso, Preciado (2019, 2022) defende que ele já está em crise e em mutação há pelo menos 60 anos, como revelam os movimentos transfeministas, queer, antirracistas, e as novas práticas de filiação, relações amorosas, desejo e nominação. O autor entende que esses elementos são reveladores também de experimentações no processo de fabricação de uma nova epistemologia e nos convoca, na condição de psicanalistas, a nos unirmos a eles nessa construção coletiva (Cavalheiro & Silva, 2020).
Mas o que Preciado quer dizer quando anuncia que a epistemologia da diferença sexual está em mutação e vai ceder o lugar a uma nova epistemologia? Trata-se de mutações epistêmicas, iniciadas após a segunda guerra mundial, que configuram um regime farmacopornográfico (Preciado, 2018): um novo conjunto de dispositivos de controle, produção e intensificação dos corpos, através de hormônios, drogas, próteses, tecnologias informáticas, internet, etc. Sua proposta é pensar em uma transformação dos processos de disciplinarização dos corpos a partir de técnicas prostéticas que atuam e formam o próprio corpo. O advento da pílula contraceptiva é central na produção desse regime, em que os mecanismos de poder passam a ser ingeríveis, pois inauguraria na história ocidental a desarticulação entre a heterossexualidade e a reprodução. A pílula agiria como uma técnica microprostética e performativa, produzindo algo que se dizia ser exclusivo dos processos biológicos. Soma-se a isso a pornografia, pensada enquanto prótese masturbatória desse novo regime sexopolítico.
A possibilidade de sintetizar hormônios e produzir paródias a nível somático (Preciado, 2018), e o abalo da linearidade do sistema sexo/gênero/desejo são motes para essa virada denominada regime farmacopornográfico. Também o são as novas descobertas no campo da genética que mostram que a divisão cromossômica binária é questionável, como atestam os achados de que um bebê XX poderia nascer com pênis e um XY, com vagina: “esse tipo de discrepância frustra qualquer plano de atribuir o sexo como homem ou mulher, categoricamente e perpetuamente, apenas olhando para os genitais de um recém-nascido” (Fausto-Sterling, 2018).
Em continuidade com Testo Junkie, em Je suis un monstre que vous parle, Preciado desconstrói a própria maneira como o processo de transição de gênero é entendido por larga parcela da medicina e da psicanálise: uma mutação definitiva e irreversível, difícil e perigosa. Em primeiro lugar, perigosa não seria a transexualidade ou o processo de transição, mas o regime da diferença sexual que ameaça punir quem tenta atravessar as fronteiras rígidas entre os sexos que ele institui. Em segundo lugar, pensar a transição como um processo unidirecional seria uma consequência equivocada do pensamento binário, uma mentira normativa contada pela psiquiatria e pela psicanálise. Preciado afirma, inclusive, que não deixou de ser Beatriz para se tornar Paul, não se fundiu na masculinidade naturalizada. Sua história dissidente e seu passado político fazem parte da sua subjetividade, sempre em transição. Vale lembrar que o tema da “destransição” é muitas vezes evocado no campo psicanalítico de modo pouco aprofundado para corroborar hipóteses diagnósticas de pessoas trans, como a de histeria (Jorge & Travassos, 2017): o desejo de destransicionar apontaria para a insatisfação própria da estrutura histérica 2.
A intervenção de Preciado e o seu livro são, portanto, provocações e convocações aos psicanalistas para que saiamos também da jaula dos binarismos da diferença sexual, seja em nossas teorias e práticas, seja em nossas próprias experiências e identificações de gênero: “viver para além da lei patriarcal colonial, da diferença sexual, da violência sexual e de gênero, é um direito que todo corpo vivo deveria ter, mesmo o de um psicanalista” (Preciado, 2022, p. 44).
Respostas a Preciado
Percorreremos agora três respostas de psicanalistas a Preciado, destacando quais pontos de sua fala são retomados e quais são deixados de fora, investigando em que medida, e com que estratégias conceituais, acabam permanecendo na lógica da diferença sexual.
A primeira delas é de Denise Maurano (2019), em Uma resposta a Paul B. Preciado. Dirigindo-se, ironicamente, a Preciado e seus “aplaudidores”, a psicanalista afirma que somos todos Pedro Vermelho - um símio, personagem de Kafka, tirado da natureza, enjaulado e violentamente “humanizado”, com o qual o filósofo espanhol havia se comparado em sua intervenção. Isso, porque, segundo Maurano:
a subjetivação, com todas as identificações que ela comporta, sejam bem-vindas ou mau-vindas [sic], é um enquadramento. E é num jogo de alienação e separação disso, que vamos cavando espaço para respirar. Portanto, é a partir dessa condição de enjaulada que me dirijo a vocês. (Maurano, 2019, n.p.)
Essa concepção universalista de sujeito (“somos todos Pedro Vermelho”), de tendência despolitizante, remete a certas bandeiras, como all races matter, isto é, desconsidera a maior incidência e efeitos de precarização e violência sobre algumas subjetividades quando comparadas a outras. É claro que todos ocupamos jaulas, já que estamos inseridos em um sistema de normas, mas a denúncia de Preciado é justamente a de que as pessoas trans são colocadas pelo sistema binário de sexo e de gênero na jaula da monstruosidade, da abjeção. Ou ainda, para usar o vocabulário de Butler (2019b/2004), embora compartilhemos a condição precária no sentido de que precisamos do outro para viver, há na sociedade uma distribuição diferencial de precariedade. Assim, algumas jaulas (mulheres, homossexuais, trans, negros/as) têm sua precariedade maximizada e outras (homens, heterossexuais, cis, brancos/as) têm sua precariedade minimizada.
O ancoramento biológico de seu raciocínio fica explícito, pois o regime da diferença sexual considerado pela psicanálise diria “do modo como apreendemos simbolicamente o que vigora na natureza”, permitindo “a constatação de diferenças que nos permite reconhecer o que há” (Maurano, 2019). Ao contrário do que encontraremos na leitura que Eidelsztein faz de Lacan, que veremos a seguir, Maurano alude a uma realidade pré-discursiva, uma natureza já diferenciada que antecede o simbólico. Supõe assim um binarismo primeiro (presença ou ausência do pênis), constatado na observação dos corpos, que exigiria um trabalho de simbolização do psiquismo.
Enquanto Maurano reafirma o binarismo sexual e de gênero ancorado na biologia, Preciado, ao contrário, aponta a necessidade de se pensar politicamente sobre essa epistemologia que molda e faz o corpo, inserindo-a no tempo e no espaço, destacando suas origens de funcionamento e as razões de sua manutenção. Entendemos que esse é um ponto fundamental à psicanálise e que já havia sido abordado por Butler (1993), quando articula a materialidade do sexo à noção de performatividade: a materialidade do sexo é construída pela repetição ritualizada das normas. Não há um sexo ou diferenças materiais já dadas sobre o qual o gênero poderia atuar. O sexo é uma ficção, retroativamente instalada em um lugar pré-discursivo.
Passando pelo par freudiano atividade-passividade, e tomando-o como metaforização subversiva do binarismo homem-mulher, Maurano (2019) chega a Lacan, que teria avançado ao afirmar que há um além da “dualidade sexual que vigora em nós”: a saber, uma “dualidade de gozos” composta pelos gozos fálico (“celebração da potência”, “prenhe de sentido”) e não fálico (“ilimitado”, “alheio ao sentido”, “fora do sexual”, “místico”) - associados, respectivamente, ao masculino e ao feminino. A autora segue:
Percebe Sr. Preciado? O Sr. tem razão. Nem tudo é restrito à divisão sexual, binária ou não. A insuficiência do sexual em cernir tudo o que há na existência, nos faz supor que há uma dimensão de gozo, que transpõe em muito o que é da ordem da diferença. Mas aí, estamos num campo no qual a designação de feminino proposta por Lacan transpõe a fronteira entre os sexos. (Maurano, 2019, n.p.)
A autora recorre à ideia lacaniana de gozo feminino como não-todo na função fálica, como se isso subvertesse o binarismo sexual. Vale lembrar que, embora não haja referência a anatomia ou essência, e que a categoria não-toda na função fálica possa ser considerada como algo para além da ordem (e das jaulas), continuam sendo duas modalidades de gozo referenciadas ao falo. Além disso, repete-se a corriqueira associação da mulher ao mistério e à indeterminação.
Maurano também afirma que psicanalistas não seriam juízes de “opções tomadas pelo sujeito” (grifo nosso), não as tomariam como degenerações ou doenças, pois pendurariam “seu eu cheio de si, e de ‘gênero’, na sala de espera” e compareceriam na cena analítica como trans, isto é, “suporte mutante de todas as investidas que o desejo inconsciente pode operar na contingência da trans-ferência”. Isso a leva a afirmar que, uma vez que a psicanálise valoriza a “dimensão traumática do sexual” e que “não há sexuação que repouse sobre um jardim de rosas”, a desarmonia da dimensão simbólica marcaria “quem quer que seja, homo, hetero, bi, trans, e todas combinatórias possíveis” (Maurano, 2019, n.p.).
Estaria a autora propondo que a teoria psicanalítica sustenta uma ética que garante condições universais de escuta, sem necessidades de reformulações? Isso, aliado à afirmação de que a psicanálise tem hipóteses diagnósticas e não sentenças, esvaziaria a crítica de Preciado à patologização das pessoas trans. Como citado anteriormente, há discursos psicanalíticos generalizantes sobre as transidentidades que têm efeitos limitadores, e eventualmente violentos, sobre a escuta e a direção de tratamento de pacientes trans, em vez de visar a abertura ao novo e singular.
Finalmente, destacamos mais dois pontos do texto de Maurano. O primeiro tem a ver com sua leitura que qualifica o discurso de Preciado de militância política - ligada à reinvindicação de reconhecimento (o que não corresponde absolutamente à militância queer, que desconfia das políticas de reconhecimento e que inclusive rompe com a categoria de identidade) - e o entende como separado de “um discurso psicanalítico imbuído de uma política própria” (Maurano, 2019), cada um com suas “verdades”, pertinências e contextos específicos.
O segundo é seu olhar desconfiado, mesmo temeroso, em relação à militância queer, na medida em que ela promoveria um “modismo”, que levaria mais pessoas trans a buscarem “manipulações irreversíveis do corpo” (Maurano, 2019) em busca de uma felicidade supostamente prometida - “modismo” ao qual crianças e adolescentes seriam mais vulneráveis. Ora, mas Preciado promete felicidade sem limites ou antes denuncia justamente o sofrimento que advém do enquadramento dos corpos trans e intersexo nos discursos e práticas médicos, jurídicos e mesmo psicanalíticos?
Isso faz o discurso de Maurano encontrar interlocutores improváveis, como a ministra Damares Alves e o deputado federal Kim Kataguiri, que alertam aos perigos que a infância está correndo no Brasil sob influência da teoria queer e da “ideologia de gênero”, uma vez que incentivariam mudanças de gênero e intervenções corporais precoces visando eliminar a diferença sexual (Mattos & Cavalheiro, 2020).
Passemos ao segundo texto, Quand Preciado interpelle la psychanalyse, de Maleval (2019). O francês varia entre posições receptivas, como quando afirma que Preciado nos lembra da necessidade de evolução permanente, e de rebaixamento, como ao considerar que o filósofo serve de exemplo de uma “nova conjectura histórica” (Maleval, 2019, p. 2), marcada pela ultrapassagem dos limites simbólicos. Nessa segunda via, o psicanalista escuta o filósofo mais como exemplar da cultura contemporânea do que como pensador e interlocutor, inclusive porque ele não teria entendido direito a teoria em sua “leitura rápida” (Maleval, 2019, p. 3) de Lacan. Esse tipo de desqualificação - usual em artigos de psicanalistas que respondem a Butler, por exemplo - fica evidente quando Maleval afirma que Preciado desconhece que a abordagem lacaniana da sexuação não é essencialista. Ela seria, sim, tão construtivista quanto a do filósofo, pois ambos considerariam que a sexuação não é determinada pela biologia.
Diferentemente de Maurano, Maleval não sustenta que não há binarismo dos sexos na psicanálise. Ao contrário, ele o defende e crítica que Preciado o rejeite em nome de um “construtivismo de gênero” (Maleval, 2019, p. 2), o que, para o psicanalista, diria respeito à assunção de um corpo natural, não tocado pela linguagem e aberto a todas as construções possíveis. Ora, autores como Butler, Fausto-Sterling e Preciado consideram que o próprio sexo tem uma dimensão performativa e que os discursos sobre ele materializam sua condição, desde sempre imerso em uma trama de discursos, ultrapassando oposições simples como natureza (sexo) X cultura (gênero).
A experimentação queer da sexualidade, para Maleval, seria independente da influência do significante e romperia com a referência à função fálica - função entendida por ele como o que conecta o gozo à linguagem e, portanto, premissa (a-histórica, universal) da sexuação. A afirmação de que, para Lacan, “a escolha do sexo não está aberta a uma infinita diversidade de gêneros” (Maleval, 2019, p. 2, tradução nossa), revela como o autor compreende as transidentidades: a não-binariedade seria algo como a negação da ordem simbólica, a ultrapassagem de um limite estrutural. Ou seja, enquanto a psicanálise assumiria que o gozo é limitado, Preciado o desejaria “ilimitado”: “hoje Paul, Beatriz ontem, o gozo é mal limitado por escolhas identitárias, voluntárias, temporárias, reversíveis e estendidas ao infinito” (Maleval, 2019, p. 3, tradução nossa). O autor parece se esquecer do conceito de identificação em psicanálise: ele não aponta justamente para traços e escolhas temporárias, reversíveis e múltiplas de cada sujeito?
Maleval parece alinhar-se às leituras declinológicas do contemporâneo, que apontam uma “ausência de limites” (Lebrun, 2009), um “gozo a todo preço” (Melman, 2002), um “laço social perverso” (Pollo, 2010), entre outros, frequentemente nostálgicas e sustentadas pela tese do declínio paterno 3. Suas posições também lembram as de Oliva (2015), que entende que as teorias queer e feministas negam a dimensão real do sexo e deixam de questionar o que é sexo por pensá-lo apenas como um produto discursivo com efeitos coercitivos sobre o sujeito.
A provocação de Preciado sobre a provável inexistência de psicanalistas transexuais ou homossexuais autodeclarados na plateia é tomada por Maleval como ocasião para problematizar o passe de analistas homossexuais e transexuais nas escolas lacanianas. Embora o psicanalista defenda a importância de se pensar logo sobre uma ampliação do processo do passe e uma mutação da denominação dos funcionamentos subjetivos, as questões que coloca parecem situar esses sujeitos fora do domínio da neurose: “certamente, o passe implica uma desidentificação que exclui se apresentar sob esses significantes, mas ele é compatível com tais modos de gozo? Como um analista que conhece hoje seu nó subjetivo não borromeano pode hoje abordar o passe?” (Maleval, 2019, p. 3, tradução nossa). Assim, ou esses sujeitos não se apresentariam ao passe, ou estariam renunciando a essa experiência ou, quando se apresentam, dariam forma neurótica ao seu testemunho.
Tal posicionamento, que pode ser lido como crítico ao funcionamento do passe, situa as transidentidades em uma forma de gozo diferente daquela da amarração borromeana, neurótica. Isso poderia ser visto como algo positivo, se, por exemplo, ampliasse o entendimento das possibilidades de gozo, indo ao encontro da proposta de Preciado de revisar elementos da teoria psicanalítica. Estaria Maleval acolhendo a crítica do filósofo? Infelizmente, não parece ser o caso. Ele aproxima os sujeitos trans da psicose, caindo novamente em uma narrativa patologizante, que fica mais nítida quando recorre ao exemplo do autismo para pensar o passe de pessoas homossexuais e trans:
Certamente, nada proíbe um homossexual, um transexual, um transgênero, ou um autista Asperger de se apresentar ao passe, mas na prática eles não o atravessam, não se engajam nele ou mesmo não se declaram. Logo, o AE [analista da escola] não é ainda obrigado às adesões a uma parcela da ordem simbólica? (Maleval, 2019, p. 4, tradução nossa)
Desse modo, ainda que o autor diga no final do artigo que os modos de gozo são tributários das mudanças sociais, essa citação e o conjunto do seu texto apontam para o reforço de uma abordagem lacaniana da sexuação como a-histórica e ainda como garantidora da “ordem simbólica”.
Eidelsztein (2019), finalmente, inicia sua participação na discussão afirmando que seu texto é uma contribuição a um possível debate com Preciado e com Maleval, ainda que não se refira diretamente aos autores no texto. Primeiramente, o autor apresenta sua leitura crítica de Freud, para quem a anatomia seria o destino e, então, o processo de “evolução” ideal para todo indivíduo seria a coincidência entre sexo biológico e identidade sexual: o macho se torna varão e a fêmea, mulher. Nesse esquema, as posições gays, lésbicas, trans etc., seriam entendidas como resultado de falhas do Édipo e das funções materna e paterna.
Essa leitura - bastante unívoca, diga-se - da abordagem freudiana da sexualidade permite ao argentino propor uma descontinuidade importante entre Freud e Lacan. Recorrendo aos conceitos de significante, gozo, sujeito, pulsão, Nomes-do-pai e também à afirmação de que “não há relação sexual”, Eidelsztein argumenta que Lacan se afasta de qualquer essencialismo biológico, de identidades constantes ou de consistências ontológicas. Homem, mulher e criança seriam somente significantes dentro de um sistema, sem referência fixa e biologicamente fundamentada, e adquiririam sentido conforme as circunstâncias de cada momento histórico. Do mesmo modo, as funções do pai e da mãe tampouco coincidiriam com os genitores ou dependeriam de corpos masculinos ou femininos.
O psicanalista explora, assim, as consequências da apreensão lacaniana da linguística estrutural na revisão dos preceitos freudianos, de forma a remeter a sexualidade humana à linguagem, e não à biologia. Sua leitura vai além das leituras de Maurano e de Maleval, que ainda apostam, embora com abordagens distintas, em uma ordem simbólica a-histórica e imutável, cujos limites estariam sendo desrespeitados na atualidade. Eidelsztein destaca a importância de pensarmos em diferentes ordens simbólicas, defendendo que nem todo psicanalista é patriarcal, machista e eurocentrista.
Podemos ler aí alguma adesão à crítica de Preciado, pois não faria sentido que uma abordagem não essencialista da sexualidade e atrelada à linguagem reencontrasse atributos a-históricos, como quando se sustenta que a ordem simbólica, “por estrutura”, preveria somente dois modos de gozo - uma das leituras possíveis das fórmulas lacanianas da sexuação. Para o psicanalista argentino, tais fórmulas devem ser lidas como o diagnóstico de nossa época e cultura, ou seja, uma sedimentação contingente e passageira, e não como uma matematização universalista e imune ao tempo. Ainda assim, não fica claro se ele estaria defendendo a criação de novas epistemologias para pensar as múltiplas sexuações, ou se entende que o Lacan não-freudiano já o faz suficientemente, como demonstra a passagem que conclui o texto:
É possível que Lacan não tenha conseguido com suas concepções rechaçar totalmente o legado misógino, machista e patriarcal que se pode localizar na obra de Freud; essa é nossa tarefa presente e futura se assumimos a posição que se estabelece a favor da diferença. Se o fazemos, o axioma deverá ser: primeiro a linguagem, o significante, o Outro, o A barrado, etc. e então, só então, as múltiplas formas que existem ou que se criam de inscrever os corpos e de padecer ou disfrutar os gozos e as posições e recursos curativos que devamos assumir ou rechaçar a respeito. (Eidelsztein, 2019, n.p., tradução e grifo nosso)
Um texto de Parente e Silveira (2020) contribui para discutir alguns aspectos das respostas percorridas acima. Sobre a argumentação de que as fórmulas da sexuação lacanianas representam um rompimento com o criticado binarismo e uma grande abertura à revisão da apreensão psicanalítica da sexualidade, as autoras apresentam a seguinte ressalva:
A crítica mais óbvia e imediata que poderia ser formulada é: como o psicanalista francês, que concedeu lugar central à linguagem e ao impacto dos significantes para o sujeito do desejo, pode utilizar do evasivo argumento de que emprega os significantes Homem e Mulher quase aleatoriamente, visando tratar de diferentes posições do sujeito? De todo modo, independentemente de quem as viva - Homem, Mulher, Trans, Bissexual, Intersexo, Queer, Gay, Lésbica -, ambas as modalidades de Gozo - o fálico e o Outro - são formulações abstratas que reiteram, sim, a subdivisão binária do patriarcado. (Parente & Silveira, 2020, n.p.).
Sublinha-se, assim, uma desconfortável contradição na proposição de Lacan que, embora afirme que homem e mulher são significantes, constrói matemas que dividem duas modalidades de gozo associadas ao Homem e à Mulher. Vimos que a leitura de Eidelsztein reconhece aí tão somente uma contingência cultural, reforçando uma primazia radical do significante, enquanto analistas como Maurano estão mais inclinados a tomar os matemas como constantes estruturais. Segundo Parente e Silveira (2020), isso faria da contingência histórica uma necessidade lógica.
Mutações, Nomadismos, Rupturas: Psicanálise na Era Farmacopornográfica
Vimos que o ponto nodal da crítica de Preciado à psicanálise está na apreensão da diferença sexual enquanto epistemologia do corpo e na sua reiteração performativa que forja uma aparência natural e a-histórica. O filósofo se autointitula um nômade no mundo, no gênero e em sua proposta epistêmica, alguém que pensa em seu próprio corpo e que faz de sua subjetividade uma plataforma de transformação política. Sua provocação convida a pensarmos as subjetividades minoritárias como centro da ação política. A decadência do regime da diferença sexual passa pela possibilidade de esses sujeitos - antes excluídos e patologizados pelos saberes vigentes - fazerem agora um relato de si mesmos, produzindo um novo saber que vem das margens para o centro e produz um abalo epistemológico. Nesse sentido, Preciado (2011, p. 14) insere o “gênero como parte do regime sexopolítico e pensa nas multidões queer como ação engendrada pelas minorias sexuais para resistir à normalização dos corpos e dos gêneros”.
Em Testo Junkie: notes for a psychoanalytic forum, após relatar sua ampla experiência no divã, Preciado (2016, p. 24, tradução nossa) afirma: “vi como foi difícil para a psicanálise trabalhar com os processos de subjetivação trans e contrassexuais, porque a maioria das suas categorias clínicas são definidas em termos generificados e se apoiam na noção de diferença sexual”.
Vemos, assim, que há uma incompatibilidade entre a proposta de Preciado e a noção de diferença sexual, tal como ela insiste em discursos psicanalíticos, de modo que na intervenção de Paris o filósofo faz uma provocação, visando mobilizar os psicanalistas:
Nesse contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da Escola da Causa Freudiana, vocês têm uma enorme responsabilidade. Cabe às senhoras e aos senhores decidir se querem permanecer ao lado dos discursos patriarcais e coloniais e reafirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução heterossexual ou entrar conosco, os mutantes e os monstros deste mundo, em um processo de crítica e de invenção de uma nova epistemologia que permita a redistribuição da soberania e o reconhecimento de outras formas de subjetividade política. (Preciado, 2022, p. 84-85)
Vimos que a intervenção de Preciado participa do reiterado convite à politização e à historicização dos conceitos psicanalíticos, sobretudo a epistemologia da diferença sexual. Entre as respostas analisadas, parece-nos que apenas Eidelsztein, ainda que recorrendo a uma leitura particular de Lacan, dispõe-se a fazer esse exercício. Embora Preciado solicite engajamento e, mais que isso, demande que suas críticas sejam levadas a sério, tomadas como interrogantes produtivos, observamos uma tendência à permanência autorreferenciada da psicanálise: driblam-se as críticas e recorre-se aos mesmos conceitos, sem a exploração de outros caminhos que poderiam advir dessa confrontação.
Vale ressaltar que não pretendemos aqui, de modo algum, equivaler ou colocar em um mesmo grupo os autores com os quais estamos dialogando ou mesmo os psicanalistas contemporâneos. Sabemos que seus pensamentos são diversos, com enfoques também singulares, aberturas maiores ou menores às críticas vindas dos estudos de gênero e queer. No entanto, parece-nos que há uma tendência a se pensar que a psicanálise precisaria ser “defendida” das críticas que recebe. Quinet (2019), por exemplo, em conferência no Fórum Lacaniano de Niterói, diz que Preciado tem razão em criticar a patologização e a discriminação dos sujeitos trans pela psicanálise, que os psicanalistas devem dialogar com a teoria queer, mas que também é importante ressaltar a singularidade da psicanálise e defendê-la de “ataques injustificados e devassadores”.
O recurso recorrente “em defesa” da psicanálise, que reafirma seu caráter revolucionário, sua escuta da singularidade e sua compreensão não-biológica da sexualidade, pode acabar reforçando uma visão de seu corpo teórico como “transcendente” e “imune” ao tempo, como se prescindisse, portanto, de reformulações. Questionamos, porém, se tomá-la como revolucionária em si mesma não seria, em certa medida, uma forma de sobrevoar nossas especificidades históricas, não interrogando os limites atuais de conceitos cunhados nos séculos passados.
É o que reconhecemos nos textos analisados. Em primeiro lugar, em Maurano, que conclui sua resposta de forma paradoxal, apelando ingenuamente à potência disruptiva e revolucionária da psicanálise. Em segundo, no texto de Maleval, quando cita a afirmação de Lacan de que o inconsciente é a política. Ora, não estariam buscando nesses pressupostos uma espécie de salvo conduto à psicanálise de modo a sugerir que, por lidar com o inconsciente, ela levaria tão naturalmente em conta o entrelaçamento da clínica com a política que sequer precisaria ocupar-se diretamente disso?
Quinet, por sua vez, na mencionada conferência, recorre ao Freud dos Três ensaios para lembrar que a psicanálise é aberta à diversidade sexual, não é normativa e segue subversiva, apesar da prática de psicanalistas conservadores e mesmo homofóbicos/transfóbicos. Há ainda analistas, como Fajnwaks (2015), que fazem propostas, no mínimo, peculiares: Lacan já seria queer avant la lettre, pois nada seria mais queer que o próprio conceito de gozo. É claro que reconhecemos e apostamos no potencial subversivo e político da psicanálise, mas isso não significa sustentá-lo como algo dado e garantido, imune a transformações históricas e suas exigências de revisão.
É interessante que o próprio Preciado (2022) diz que, em momentos de crise epistêmica, enquanto um paradigma ainda não é substituído por outro, muitas vezes as hipóteses teóricas do paradigma em crise são reafirmadas de maneira rígida e hiperbólica, evidenciando uma negação da crise e uma resistência à mutação. E não foi exatamente isso que sua fala provocou nos psicanalistas cujos discursos analisamos, que recorrem a certos conceitos como se fossem universais? Quase que prevendo a reação que viria em seguida, Preciado responde antecipadamente: “hoje, para a psicanálise, é mais importante escutar as vozes dos corpos excluídos pelo regime patriarco-colonial do que reler Freud e Lacan. Não procurem mais refúgio nos pais da psicanálise” (Preciado, 2022, p. 86).
Considerações Finais: Novos Mapas e Ilhas Desconhecidas
Não se poderia esperar, por óbvio, que respostas quase imediatamente após a circulação da fala de Preciado apresentassem uma reelaboração profunda de elementos da teoria psicanalítica. Todavia, essas respostas permitem um relativo mapeamento de diferentes posições de psicanalistas diante de críticas advindas dos estudos de gênero e dos estudos queer e, principalmente, amostras de abertura - ou não - ao diálogo. Que estranho seria considerar que a psicanálise chegou a uma estabilidade teórica e uma autonomia epistemológica tais que pudesse prescindir da troca com campos de pesquisa expoentes na contemporaneidade.
Em O conto da ilha desconhecida,Saramago (1997) talvez ilustre bem esse impasse ao contar a história de um homem que solicita um encontro com o rei para pedir um barco. Seu objetivo: chegar à ilha desconhecida. Reticente, o rei pede garantias da existência de tal ilha, como sua localização no mapa, coisa que o solicitante não pode dar. O rei, então, nega o pedido, pois não seria razoável conceder um barco para tal expedição, destinada a um lugar cuja localização não pode ser determinada e, mais, cuja própria existência sequer pode ser provada. O homem argumenta, enfim, que, se a ilha é desconhecida de todos, inclusive dele mesmo, por óbvio não poderia constar nos mapas vigentes, pois estes só podem situar os lugares conhecidos. Ora, seria preciso, antes de tudo, supor a limitação de nossos “mapas teóricos”, assumir que há existências que eles ignoram, os limites de seu alcance.
Movimentar-se nessa arena ética, teórica e política implicaria, então, sair de alguns dualismos tão conhecidos quanto improdutivos: gênero é um conceito psicanalítico ou não? A psicanálise é normativa ou não? Os estudos queer querem destruir a psicanálise ou não? Seria possível tensionar tudo isso e ir além das leituras declinológicas, em direção da construção de novas ferramentas teóricas e clínicas?
Para haver abertura a essa construção de novos dispositivos, é necessário que antes compreendamos a diferença sexual justamente como um dispositivo no sentido foucaultiano do termo, e não como uma estrutura (Pombo, 2019), isto é, como uma epistemologia política, uma gramática das subjetividades historicamente situada, dentre outras possíveis. Nesse mesmo sentido, Preciado nos pede que participemos da invenção de uma nova gramática, capaz de dar conta da multiplicidade radical dos corpos e dos desejos, e de reconhecer social e politicamente todo corpo vivo, independentemente de sua designação sexual ou de gênero. Em outras palavras, esse movimento aponta para a desobediência epistêmica de que fala provocativamente o filósofo em uma das epígrafes deste artigo, desobediência à epistemologia em crise, fundamental para que outra possa nascer.
Trata-se da necessidade de uma descolonização da psicanálise, da invenção de uma psicanálise mutante, como propõe Ayouch:
Sustentarei que a hibridação conceitual, teórica, mas também epistemológica do discurso analítico com outros discursos é o que garante sua dimensão psicanalítica, ou seja, de relação constante com a extimidade. Portanto, se a psicanálise pretende questionar toda identidade monolítica, ela não pode deixar de aplicar essa desconstrução a si mesma. (Ayouch, 2019, p. 25)
Sigamos, então, a proposta de Ayouch rumo a uma psicanálise que se reconheça também a partir de vozes e saberes minoritários, e pense as sexualidades, não a partir da diferença entre os sexos, mas sim das modalidades de relacionalidade apresentadas por essas experiências. Afinal, os velhos mapas não nos levam a novos lugares.