A produção de cuidado integral pressupõe o olhar atento às demandas produzidas pela população e, no caso da Psicologia, postula-se pela postura ética, responsável e crítica. Assim sendo, está no rol de responsabilidades de psicólogos o conhecimento da realidade sócio-histórica dos indivíduos, bem como o combate aos estigmas, opressões e negligência. Contudo, isso somente é possível se o profissional possuir uma visão crítica acerca da realidade em que se encontra, especialmente no que tange às moralidades que perpassam tanto a produção de subjetividades como a atuação profissional junto às ditas minorias sexuais.
Neste sentido, uma possibilidade de constituição de parentalidades que vem ganhando popularidade dentre casais de mulheres lésbicas e que necessita de um olhar não condenatório e/ou estigmatizante por parte da Psicologia e da sociedade é aquela realizada via Inseminação Caseira (IC). A IC consiste em uma autoinseminação de baixo custo feita a partir do uso de material biológico de doador não anônimo, realizada a partir da introdução do sêmen no canal vaginal com o auxílio de seringas descartáveis (Carvalho, 2018). As trocas de experiências entre doadores e tentantes (forma como se nomeiam as mulheres que estão envolvidas na tentativa de gestar) para a doação de sêmen e consequente realização da IC, geralmente é feita via articulação de grupos virtuais que tratam do tema. Esses grupos virtuais estão em expansão e tiveram início aproximadamente no ano de 2018 e já possuem milhares de participantes de todo o território brasileiro, havendo uma grande parcela de casais de mulheres lésbicas (Araújo, 2020; Felipe & Tamanini, 2020).
Em contraponto, houve um movimento moral marcado por duras críticas por parte de atores científicos, geralmente do campo biomédico e/ou do direito, e veículos de mídia com relação à utilização desse procedimento (Araújo, 2020). É importante salientar que a própria Agencia Nacional de Vigilância Sanitária [ANVISA] (2018) sinaliza quanto aos perigos e cuidados que as pessoas devem assumir na realização da IC, apesar de tal procedimento não estar regido sob suas fiscalizações. Todavia, nota-se uma divergência importante entre as duas perspectivas, tendo em vista a condenação moral da IC por especialistas e pela mídia e o relato predominantemente positivo entre os participantes dos grupos de doadores e tentantes (Aguiar, 2020; Felipe & Tamanini, 2021).
Cabe ainda ressaltar que, no Brasil, as tecnologias de reprodução assistida (TRA) são regidas por resoluções periódicas publicadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), visto não haver legislação sobre tal tema (Corrêa & Loyola, 2015). Atualmente encontra-se em valência a Resolução nº 2294/ 2021 (Conselho Federal de Medicina [CFM], 2021), que não faz nenhuma menção à inseminação caseira e tanto pressupõe a realização da reprodução assistida junto à clínicas, centros e serviços biomédicos como versam sobre a necessidade de “sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores” (CFM, 2021), exceto nos casos autorizados de “doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores (primeiro grau - pais/filhos; segundo grau - avós/irmãos; terceiro grau - tios/sobrinhos; quarto grau - primos), desde que não incorra em consanguinidade” (CFM, 2021). Assim, a IC acaba não sendo regida por nenhum tipo de regulação oficial, visto tanto a ausência de leis sobre as TRA como, principalmente, por ela se constituir como uma possibilidade reprodutiva à margem da oficialidade das regulações e serviços de saúde.
Desta forma, surge a necessidade de esmiuçar as especificidades existentes dentro do recorte de mulheres lésbicas que optaram por realizar a IC, devido à numerosa presença destas mulheres nas comunidades virtuais. Ademais, há de se pensar quais são as formas de acesso à maternidade para esses casais, compreendendo a saúde reprodutiva como um direito. Cabe citar que, salvo a inseminação caseira, as demais TRA envolvem alto custo financeiro. Além disso, o setor de saúde suplementar muitas vezes não oferece essa cobertura e os serviços públicos disponíveis estão em número escasso no Brasil (Corrêa & Loyola, 2015), o que se distancia de um cuidado integral em saúde.
Ademais, cabe refletir que a qualidade dos serviços de saúde ofertados para a população LGBTQIA+ ainda é bastante deficitária. Fernandes et al. (2018), por exemplo, abordam de forma enfática a assistência à saúde das mulheres lésbicas destacando que os tratamentos ofertados se pautam em um padrão heteronormativo, favorecendo o afastamento destas mulheres, além de atravessamentos sociais discriminatórios que interferem na saúde mental de lésbicas. Assim, torna-se necessário refletir sobre a relação entre o que consideramos práticas de saúde que guardam certa autonomia frente às tradicionais clínicas e especialistas do campo da reprodução assistida (Felipe & Tamanini, 2020) e a produção de um imaginário social sobre a IC por veículos de comunicação de massa.
Percurso Metodológico
O recorte proposto pela presente análise tem o intuito de explorar os discursos disseminados por veículos de comunicação de massa acerca da IC. Entende-se que estes materiais possuem grande influência para a formação de opinião e da própria concepção dos indivíduos acerca de determinado tema, por estarem ancorados em determinadas áreas de conhecimento legitimadas socialmente (Bozi & Magalhães, 2012). Desta forma, utilizamos os descritores “inseminação caseira” e “casais de mulheres lésbicas” em plataforma virtual de busca para encontrar reportagens. Foram selecionados três materiais jornalísticos no formato textual e duas obras audiovisuais, sendo a primeira reportagem encontrada tendo sido publicada no ando de 2017 e a última em 2022, de acordo com nossos critérios de inclusão. Os critérios utilizados para a inclusão foram: a presença de depoimentos de mulheres lésbicas que haviam se submetido à IC; estar inserido em um canal de alcance significativo na população brasileira; e que a narrativa tivesse detalhes sobre a experiência no uso da IC. Tais critérios de inclusão foram construídos para que fosse possível o contato com a perspectiva das mulheres. Assim, houve a exclusão de cinco obras que não atenderam aos critérios acima descritos.
Por se tratar de uma pesquisa que tem o intuito de explorar o caráter simbólico atribuído à prática de autoinseminação, bem como os significados e valores a ela atribuídos, utilizou-se a análise qualitativa. Em seguida, empregou-se a técnica de análise de discurso de perspectiva foucaultiana (Gregolin, 2007) para relacionar os atravessamentos sócio-históricos envolvidos na produção midiática com a narrativa construída através de seus recursos textuais e elementos semióticos/imagéticos. A partir desta perspectiva, foi possível elencar categorias analíticas que se repetem ao longo das reportagens analisadas, sendo elas: Apresentação textual-imagética das obras; Narrativa das mulheres; Discursos promovidos pelos ditos especialistas; Representação da figura do doador.
Descrição das Obras Midiáticas
Dentre as cinco obras selecionadas, duas são reportagens audiovisuais, sendo uma delas do canal televisivo Globo (Fantástico, 2021) e outra da Record TV (Balanço Geral, 2017). As demais foram elaboradas pelo canal UOL - um portal de conteúdo online (Brandalise, 2018; Fraidenraich, 2019; Gonzalez, 2021). Duas das cinco obras se deram no ano de 2021, enquanto as demais ficaram distribuídas entre os anos de 2017, 2018 e 2019. Com relação aos entrevistados, houve um total de 23 participantes, sendo 11 mulheres que se autodeclararam lésbicas, 10 especialistas da área jurídica e médica, uma mulher que se identificou como heterossexual e um casal de doadores.
Observou-se, ainda, os locais em que as obras foram publicadas. Nas reportagens veiculadas pelo canal UOL foi possível identificar que duas delas se deram na coluna intitulada como: “Mães e filhos” e a terceira foi publicada na denominada “Minha história”, de narrativas de cunho mais privado/pessoal. Em contrapartida, as reportagens audiovisuais compartilhadas nos canais televisivos estiveram presentes em programas que possuem caráter informativo.
As entrevistadas dissertam sobre os acordos feitos entre elas e os doadores, com relação ao contato ou não com as crianças que serão frutos do procedimento. Contudo, é válido destacar que isso difere com relação ao grau de proximidade que as mulheres têm com o doador, levando em consideração casos em que o doador é um amigo delas. Assim, é possível vislumbrar acordos em que as mães permitem a proximidade entre a criança e o doador, caso seja interesse de ambos, como também as que não permitem e não mantém qualquer tipo de contato com estes e aquelas em que são firmados documentos que atestam a doação voluntária, ressaltando a não participação do doador na formação parental.
Ademais, versam quanto aos cuidados necessários durante a aplicação, bem como tempo destinado para que a mulher permanecesse deitada após a realização do procedimento (Balanço Geral, 2017; Brandalise, 2018; Fraidenraich, 2019). Abaixo há falas retiradas de algumas reportagens que vislumbram essas narrativas:
Eu estava deitada na nossa cama, com os pés para cima e encostados na parede. Havia um travesseiro embaixo do meu quadril, para que ele ficasse mais elevado. Eu estava um pouco nervosa, e a Juliana me abraçou, fez um carinho para me acalmar. (Brandalise, 2018, p. 11)
Dentre as formas de conhecimento acerca da inseminação caseira destaca-se a via virtual, ambiente no qual as mulheres tiveram contato com os doadores (Balanço Geral, 2017; Brandalise, 2018). Além disso, as entrevistadas relatam receio pelo risco de haver interesse por parte do doador em estabelecer relações sexuais. Assim sendo, utilizam enquanto estratégia a criação de uma relação de confiança com ele, conforme demonstrado abaixo:
Eu levei em consideração que existiam mulheres que já tinham realizado o sonho com ele, então eu poderia confiar nele. Ele era uma pessoa que não ia tentar, sei lá, me estuprar, fazer alguma coisa que eu não gostasse, sabe? Porque a gente, infelizmente, corre esse risco, “né”? Eu tentei com um, não deu certo. E depois eu comecei a tentar com meu outro doador, que foi “onde” eu consegui realizar o meu sonho. Na terceira tentativa. (Balanço Geral, 2017)
Outro ponto importante diz respeito à participação de especialistas, havendo, ao total, sete atuantes na área jurídica e três do campo biomédico. Cabe destacar que as considerações tecidas por estes são apresentadas entre aqueles que propõem possíveis alternativas reprodutivas biomedicamente controladas e outros que frisam os riscos imbricados. Além disso, os profissionais que se apresentam enquanto especialistas, dentre as áreas estão: medicina reprodutiva, biodireito, reprodução assistida, direito homoafetivo e direitos da população LGBTQIA+.
De modo a explorar com afinco os elementos discursivos observados nas matérias jornalísticas selecionadas, optou-se pela explanação de acordo com categorias, que serão expostas abaixo.
Apresentação Textual-Imagética das Obras
É de suma importância analisar os elementos textuais envolvidos na construção dessas narrativas, principalmente o enunciado utilizado. Dois dentre os três títulos do canal UOL continham orações ditas pelas entrevistadas, o que aponta para o interesse em atribuir ênfase ao que é relatado pelas entrevistadas (Brandalise, 2018; Fraidenraich, 2019). Se por um lado esta estratégia permite que os depoimentos sejam compartilhados conforme a própria experiência dessas mulheres, por outro os excertos escolhidos não são neutros e estão em consonância com as intenções da matéria. Exemplo disto aparece no enunciado “Inseminação caseira: técnica usada por lésbica pode afetar registro do bebê”, que apresenta teor de alerta por indicar a possibilidade da interferência no registro da criança (Gonzalez, 2021).
Quanto aos recursos visuais utilizados, pode-se destacar a existência de fotografias e artes. Percebe-se, então, a intencionalidade envolvida ao atribuir representação física para as depoentes, provocando sensação de proximidade com aquilo que é relatado por elas, além da concepção destas juntas enquanto um retrato de família. Somado a isto está a utilização da cor rosa, que é emblemática na simbolização tradicional do universo feminino. A aplicação desses elementos pode ser reconhecida enquanto parte de um discurso que preconiza a existência e legitimação de famílias homoafetivas (Carvalho, 2018), ainda que para isso lance mão de estereótipos tradicionais femininos, como a cor rosa.
Em contraposição, estão as notícias veiculadas nos programas de TV. Tanto o programa Fantástico da Globo quanto o Balanço Geral da Record TV apresentaram matérias em que há vasta utilização de recursos audiovisuais que concedem sensação de suspense ao longo da trama, em especial no programa Balanço Geral (2017). Outro elemento bastante frequente são as tarjas vermelhas e palavras-chave em fonte destacada, criando uma percepção de alarde e perigo com relação às informações que estão sendo apresentadas.
Há de se pontuar também sobre o contexto em que as reportagens são abordadas, havendo a fala dos apresentadores que direcionam o discurso que será exposto em seguida. Uma das apresentadoras do Fantástico (2021), por exemplo, cita os riscos envolvidos na inseminação caseira, classificando-a enquanto prática “arriscada” e que merece alerta da população. Enquanto isso, o apresentador do Balanço Geral (2017) introduz a temática utilizando tom de voz acentuado e questionando os telespectadores se o procedimento seria crime. Além disso, nomeia o espaço em que a inseminação caseira costuma ser praticada - geralmente a própria casa da tentante - enquanto um “submundo”, o que também está presente na descrição da reportagem:
Em uma reportagem especial, o Balanço Geral invade o submundo da inseminação caseira. Por grupos de internet, mulheres com o sonho de engravidar encontram homens dispostos a doar o sêmen. Veja quem é um desses homens, que já tem 29 filhos por esse método. Ele tem 60 anos e diz que “une o útil ao agradável”, pois ajuda mulheres e ainda sente felicidade por ter mais e mais filhos. A reportagem ainda conversou com especialistas, que falam sobre os perigos do método caseiro de inseminação. Há também questões jurídicas envolvidas, já que os acertos não são documentados e, futuramente, filhos podem solicitar o reconhecimento de paternidade. Acompanhe! (Balanço Geral, 2017, grifo nosso)
Ao longo da reportagem veiculada no programa do Fantástico (2021) faz-se um contraponto entre a inseminação artificial e a inseminação caseira, atribuindo comprovação de segurança e sucesso à primeira. Para essa comparação utiliza-se as cores vermelho e verde, que culturalmente são atreladas à concepção de proibição e permissão, respectivamente, elemento que novamente contribui para o discurso que está sendo exposto. A representação dos acordos e dinâmicas parentais comumente vivenciadas por casais de mulheres lésbicas também é feita a partir de personagens, de forma a simplificar a compreensão dos telespectadores.
A obra de Bozi e Magalhães (2012) relaciona-se ao supracitado em virtude das reflexões provocadas pelos veículos midiáticos sobre pautas privadas na arena pública. Ou seja, através de canais de TV, por exemplo, são convocadas discussões diversas do âmbito privado, como a reprodução assistida, para ser debatida em locais comuns a todos. Salienta-se que nesse diálogo o jornalista é colocado enquanto facilitador entre o discurso dos especialistas e a população leiga. As autoras também ressaltam quanto à simplificação em demasia do discurso midiático, de forma a retirar a complexidade das questões, o que compromete a formação de opinião. Elas ressaltam que os meios de comunicação atuam como educadores sociais e que formarão a “pré-estruturação do debate público” (Bozi & Magalhães, 2012, p. 93).
A partir da análise dos componentes textuais-imagéticos torna-se possível, então, perceber quais são as narrativas que se pretendem construir a partir das obras. Com uma leitura superficial, poderiam ser negligenciados certos elementos na reportagem do Fantástico, por exemplo, que, em comparação com a do Balanço Geral, conta com uma exposição maior de informações supostamente mais científicas. Em síntese, nota-se que há forte discurso com relação à proibição e alerta para a utilização da inseminação caseira, o que está ancorado na visão moral identificada como científica dos especialistas entrevistados.
Contrariamente encontram-se os depoimentos do jornal Uol, que destacam questões pertinentes à prática da IC, como a jurisdição atual e possibilidades de projetos parentais para as lésbicas, enquanto ainda apresentam estas experiências enquanto prazerosas. Além disso, é importante refletir sobre o impacto pedagógico que tais matérias causam nos leitores, visto tratar de conteúdo que reconhece a dupla maternidade como família, assunto que ainda encontra resistência na sociedade e é cercado por preconceitos e discriminações (Carvalho, 2018).
Narrativas das Mulheres
Um fato comum à narrativa de todas as entrevistadas foi o percurso árduo que precisaram percorrer até a concepção e nascimento de seus filhos, caracterizando este momento enquanto uma grande realização. Quatro casais relataram ter buscado clínicas de reprodução assistida, embora apenas dois deles tivessem recursos financeiros disponíveis para arcar com os custos do tratamento.
As possibilidades para exercício da maternidade expostas pelas participantes estiveram baseadas na gestação, não havendo relatos favoráveis ao planejamento de adoção, por exemplo. Ademais, não há manifestação de arrependimento em relação ao procedimento escolhido, ainda que as mulheres também mencionem as implicações envolvidas durante o processo, como a preocupação com o registro civil. Apenas um casal afirma que, caso os tratamentos para inseminação artificial fossem acessíveis financeiramente, optariam por tal via (Fantástico, 2021).
A literatura aponta para certo consenso acerca da preferência pelo vínculo biológico (Vitule et al., 2017; Carvalho, 2018; Fortuna Pontes, 2019), o que parece se constituir como importante fator na legitimação da construção parental, sendo reflexo da heteronormatividade (Fortuna Pontes, 2019) e de certo caráter de “naturalidade” para a concepção (Luna, 2005). Outra temática preconizada pelas mulheres entrevistadas consiste no zelo quanto ao momento em que ocorre a concepção, tanto para que seja uma prática segura em termos éticos, como para a construção de um ambiente que seja aconchegante. Esse movimento permite perceber que a concepção é tida como um momento que é importante para ambas as mães e que suscita a participação conjunta (Felipe & Tamanini, 2021). O quarto do casal, então, é colocado como um ambiente que possibilita um contato mais íntimo e confortável com esse universo, além de garantir maior tranquilidade e trocas afetivas.
Corrêa e Loyola (2015) dissertam quanto à apropriação por parte da biomedicina na gestão da construção parental a partir das TRA, que foram concebidas como “a revolução da vida”. Nesse sentido, cria-se um discurso em que apenas o saber biomédico é colocado como competente para atuar na concepção, favorecendo o controle e manipulação dos corpos dessas mulheres. Há de se destacar que essas articulações são realizadas a partir de discursos que ganham caráter de verdade absoluta, ainda que não o sejam. Assim, é de suma importância mencionar os riscos envolvidos nas Tecnologias de Reprodução Assistida realizadas em ambientes biomédicos, para além da baixa eficácia apresentada (Fortuna Pontes et al., 2017). Em estudo de Corrêa e Loyola (2015), as participantes ressaltaram o impacto corporal produzido pelo tratamento hormonal para a TRA, além do número expressivo de nascimento de bebês prematuros e perdas gestacionais. Fortuna Pontes et al. (2017) também tratam desta temática, apontando o processo das TRAs enquanto longo e doloroso:
Muito hormônio, desgaste físico, financeiro e emocional forte, tomar um monte de injeção. Tudo você passa porque quer muito, mas fica inchada, de mau humor, o processo é ruim, mas tem muita vontade também [...] As chances são pequenas, é porque a gente vai indo... Eu tinha 26 anos, as chances já eram de 25%, gastando 17, 18 mil reais por tentativa (Fortuna Pontes et al., 2017, p. 195, grifo nosso).
Dessa forma, compreende-se que os discursos propostos apresentam apenas parte do real. Convém considerar, ainda, a chamada institucionalização do parto, em que há um movimento de negação das parteiras e fortalecimento da obstetrícia (Araújo, 2015). Essa lógica propicia o exercício de diversos poderes a partir da biomedicina, sendo mencionados aqui o favorecimento econômico e a destituição da força feminina. Isso porque, a partir da hospitalização do parto, os profissionais da saúde envolvidos são recompensados financeiramente e para além deste momento, o desenvolvimento infantil e acompanhamento gestacional também são permeados por essa lógica. Assim, a mulher é retirada do lugar de protagonista desse momento, dando lugar à figura do médico, algo que acontece tanto com as parteiras, como com as gestantes (Chauvet & Paula, 2013).
Outra fala presente no relato das entrevistadas nas reportagens aqui analisadas é a respeito da participação do suporte familiar. Percebe-se uma resistência inicial por parte das famílias e que também interferem na experiência da maternidade. É possível vislumbrar mudanças no vínculo familiar após o contato afetivo com os filhos gerados pela IC, havendo uma nova percepção dos familiares acerca do procedimento. Isso permite estabelecer a importância da família extensa durante a maternidade, por serem figuras significativas, e que as percepções destas estão passíveis de transformações.
Pode-se perceber, portanto, que as percepções das entrevistadas quanto à inseminação caseira, embora sinalizem pontos de apreensão, majoritariamente possuem teor favorável. Ademais, é comum o diálogo sobre qual das parceiras irá gestar a criança, sendo critérios utilizados vários, tais como: idade avançada, tempo disponível, carreira, maternidade anterior ou não e, claramente, o interesse da mulher em gestar. Todavia, esta decisão não se encontra circunscrita enquanto motivadora de conflitos, havendo inclusive um casal de mulheres que optaram por engravidar simultaneamente.
Discursos Promovidos pelos Ditos Especialistas
É unânime a presença de advogados e/ou médicos em todas as matérias selecionadas para o presente trabalho. A apresentação dos profissionais costuma ocorrer após a explanação de casos em que as mulheres trazem seus relatos.
De acordo com os discursos protagonizados pelos advogados da revista Uol, há um movimento de aconselhamento sobre as possíveis vias que os casais de mulheres lésbicas podem vir a ter seus direitos concedidos. Além disso, sinalizam quanto à ausência de proibição da inseminação caseira, ressaltando apenas que é vedada a comercialização de quaisquer tipos de materiais genéticos. Assim sendo, há explanação acerca do pedido de reconhecimento socioafetivo, que garante a possibilidade da dupla filiação. Outra prática estimulada é a confecção de termo em que o doador abdicaria da paternidade (Brandalise, 2018), embora haja controvérsia por outra profissional, que aponta para a invalidade jurídica desse documento (Gonzalez, 2021).
Um caso interessante foi abordado na matéria do Fantástico (2021) em que um casal planejou a dupla maternidade e optou pela doação de sêmen do cunhado de uma delas. Contudo, elas não tiveram êxito no registro da criança sob a filiação de ambas, apenas da mãe biológica. Decorrido certo tempo e dissolução da união, o caso foi judicializado, tendo em vista a luta em manter o contato com a criança. A réplica da mãe biológica aponta para o distanciamento da antiga companheira, tendo a advogada desta argumentado que, em casos de parentesco biológico de casais heterossexuais, o direito deles não é retirado de forma alguma, questionando, então, o motivo pelo qual a mesma justificativa não pode ser utilizada.
Há ainda a fala de um promotor de justiça que reconhece a necessidade de atualização do poder público, para atuar de forma embasada em casos que estão se apresentando na atualidade e que não há jurisdição prévia (Fantástico, 2021). Compreende-se, então, que há uma iniciativa para o estudo das especificidades que este panorama suscita, para além de condutas embasadas fundamentalmente no que está prescrito. Entretanto, há de se salientar para o discurso da inegabilidade paterna, considerando o laço biológico enquanto fator preponderante na parentalidade.
Quanto a isso, deve-se refletir que as práticas jurídicas são produzidas de acordo com os interesses éticos e morais da época de determinada sociedade, com o intuito de delimitar aquilo que é permitido ou não. Entretanto, cabe salientar que conceitos como ser pai ou ser mãe também se encontram dentro das legislações sobre família. Silva (2009) defende que o direito atua como produtor de violência simbólica ao permitir que tais práticas de controle familiar sejam legitimadas para que se mantenha os valores dominantes.
Paralelamente encontra-se o discurso biomédico que apresenta ênfase ainda maior quanto aos riscos despendidos na IC, havendo unanimidade quanto ao posicionamento contrário dos profissionais. O argumento principal que embasa esta fala consiste na exposição ao contágio de doenças sexualmente transmissíveis (sic.) (Fantástico, 2021; Balanço Geral, 2017). Afirma-se que esse risco persiste, ainda que o doador faça os exames apropriados, por haver uma janela imunológica que geraria resultados falso negativos. Além disso, enfatiza-se a importância dos bancos de sêmen com relação ao tratamento do material genético, bem como ao controle das doações, para evitar casos de incesto.
Ademais, também está presente nas matérias analisadas o questionamento acerca do custo-benefício envolvendo tais práticas. As reportagens do Balanço Geral (2017) e Brandalise (2018) apontam para o custo entre 12 e 20 mil reais para utilização da tecnologia de reprodução assistida, enquanto a matéria do Fantástico (2021) destaca a presença da oferta desse serviço pelo SUS em apenas seis municípios brasileiros, além de haver uma fila de espera que demanda anos para o atendimento. Assim sendo, compreende-se que o discurso biomédico está para além dos conceitos puramente sanitários, envolvendo também interesses mercadológicos.
Outrossim, é de suma importância correlacionar os desejos subjetivos envolvidos nessa trama, com destaque para a tese de Mamo (2010), que afirma haver certa realização por parte de mulheres lésbicas em ter a possibilidade de comprar sêmen, tanto por representar a materialização de sua esperança no futuro, como em virtude do conhecimento prévio de indicadores de saúde do seu filho. Essa temática desperta o interesse de muitas tentantes, de acordo com a literatura, que se preocupam com o histórico médico e semelhança física dos filhos consigo e com suas esposas (Vitule et al., 2017; Mattos & Fernandez, 2021; Machin & Couto, 2014; Fortuna Pontes et al., 2017). Logo, a possibilidade de se utilizar sêmen de alguém que garantiria a parecença da criança com o casal de mulheres assume outro impacto na própria ideia de filiação.
Em síntese, percebe-se que o discurso dos advogados entrevistados ainda se encontra sutilmente mais próximo dos interesses e necessidades das mulheres participantes. Ainda que ambas as áreas estejam baseadas dentro de uma lógica tradicional dominante, percebe-se certa diferença com relação aos discursos utilizados, podendo ser promovida uma reflexão, por exemplo, acerca dos interesses financeiros das classes profissionais e do reconhecimento tradicionalmente concedido à biomedicina e ao vínculo biológico (Silva, 2009).
Representação do Doador
A representação que é feita da imagem do doador apresenta-se de forma variada pelas matérias selecionadas. Enquanto nos depoimentos veiculados pelo site Uol (Brandalise, 2018; Fraidenraich, 2019; Gonzalez, 2021) há prevalência de doadores que possuem proximidade com as genitoras, sendo amigos ou conhecidos de outrem, na reportagem do Balanço Geral (2017) há relato de um doador e sua companheira que recebem tentantes em sua residência para a realização da inseminação caseira, o que também aparece na matéria do Fantástico (2021).
Em pesquisa recente de Mattos e Fernandez (2021), as tentantes participantes apontaram para o interesse em doadores que não desejassem manter vínculo afetivo com as crianças (60%), embora em contraponto haja um percentual de 20% de casais que optaram por doadores que fizessem parte de seu ciclo social. Apenas 10% das participantes apresentaram interesse no contato futuro do doador com as crianças, se elas viessem a solicitar. Já Felipe e Tamanini (2021) destacam o quanto os grupos virtuais de tentantes e doadores funcionam como dispositivo de controle e segurança para os casais e mulheres tentantes, visando manter o doador no lugar anteriormente delimitado de doador e nada mais.
Para além disto, a leitura de Allebrandt (2015) traz reflexão importante acerca do ato de doar o sêmen. Com frequência são levantados debates acerca do direito à paternidade e consequências futuras, entretanto, a autora compara a doação de sêmen como tantas outras, tais como a de sangue. Nesse sentido, desvincula a imagem do doador como figura paterna, sendo ele somente responsável por ceder material biológico/genético. De acordo com a autora, a filiação estaria em jogo apenas para os indivíduos que participam do planejamento familiar, estando o doador à parte, mesmo que preservado o direito da criança em saber sua origem. Essa concepção está alinhada com os achados de Vitule et al. (2017) que atribuem o poder de gerar a criança à figura da co-mãe, justificando que o interesse pelo sêmen estaria relacionado com as características fenotípicas desejadas pelo casal.
Com relação a isso, desdobra-se a temática do anonimato, algo que se extrapola na IC, tendo em vista que as tentantes possuem contato direto com os possíveis doadores. Ainda de acordo com os achados de Mattos e Fernandez (2021), as participantes que sinalizaram a importância em conhecer quanto aos valores subjetivos dos doadores. Isso indica que há um interesse em ter acesso às informações que podem extrapolar ao que existe nos bancos de sêmen. Em contrapartida, em determinadas clínicas de TRA, há permissão para o conhecimento de certos dados adicionais do doador, caso as tentantes arquem com um valor extra (Vitule et al., 2017). Assim, percebe-se que a busca pela origem, fator intimamente ligado ao princípio do anonimato, é algo anterior à IC.
É interessante analisar ainda a postura destes homens que se disponibilizam para a doação, tendo exigências estabelecidas por alguns deles, como, por exemplo, a prática de ato sexual para a fecundação, como também a cobrança pela doação, ainda que sejam indevidas. A fala de um doador conhecido na área se destaca e, por assim ser, está descrita abaixo:
Tem duas razões: unir o útil ao agradável, o útil significa ajudar as pessoas, o agradável é que, pra mim, é importante e me traz felicidade (…) Filho, pra mim, é uma forma de imortalidade, quanto mais filhos eu tenho, mais imortal eu vou ficar (...) Eu queria chegar nos cem filhos, assim ... Mas se passar melhor ainda, entendeu? Mas não tem uma... Não vou falar assim: quando chegar nos 120 eu vou parar, não tem isso. Eu vou continuar fazendo e ajudando, enquanto eu conseguir. (Balanço Geral, 2017)
É importante considerar a nomenclatura utilizada pelo doador e que também é adotada pela repórter, referindo-se a vinte e nove “filhos” concebidos pela inseminação caseira até o momento da gravação. Ainda que não permita a utilização da sua imagem na reportagem, o doador manifesta significativa realização no ato de doar seu sêmen para outras mulheres. Percebe-se que, para além do ato altruísta, há um reconhecimento pessoal/individualista, concebendo a filiação enquanto uma forma de vitalidade e força, aspectos que estão fortemente ligados com o arquétipo masculino e que corrobora com ideal de masculinidade (Silva, 2019).
Assim sendo, torna-se possível compreender que há uma variedade de representações com relação ao doador, que se fundamenta no grau de confiança estabelecido entre ele e a tentante. Contudo, percebe-se que é tendencioso apresentar apenas uma experiência de contato com o doador, como o que foi realizado na reportagem do Balanço Geral (2017), tendo em vista a noção compartilhada de que este é o cenário comum, o que é inverídico, conforme os demais relatos apresentados. Ademais, é importante reconhecer que esta doação é envolta de certa representação de masculinidade, não sendo apenas um simples ato altruísta.
Considerações Finais
A partir das questões apresentadas ao longo deste artigo, é possível concluir que a temática da IC vem sendo construída a partir de certo pânico moral acerca do uso do corpo e da sexualidade naquilo que é tão caro, ou mesmo fundante, à própria estrutura social ocidental e produção da subjetividade: a reprodução e constituição de laços de afeto e filiação. A autonomia que o uso da IC promove às mulheres em seus projetos reprodutivos, especialmente às lésbicas, e a ampliação de formas de parentalidade a partir do uso de material biológico não mediado por especialistas profissionais parecem provocar discursos midiáticos reativos. Neste sentido, a análise das matérias selecionadas permitiu depreender o discurso predominantemente proibicionista por parte dos especialistas, o que impede um efetivo diálogo e reflexões não morais sobre o tema.
Cabe ainda destacar que, embora as mulheres possuam acesso restrito a serviços de saúde que garantam sua saúde reprodutiva, ênfase igual não é dada para esta demanda, tal qual acontece com o detalhamento de riscos. Não negamos a existência de riscos, porém estes nos parecem muito mais subjetivos e sociais, visto a situação de vulnerabilidade que as mulheres podem ter que se submeter para realização de seus projetos parentais, já que, num certo sentido, o risco biológico de uma IC seria similar ao de uma relação sexual heterossexual sem uso de preservativo, prática que não é moralmente condenada no meio social. Desta forma - e na impossibilidade ou mesmo não desejo de acessar o serviço oficial de reprodução assistida - , a gestão dos riscos é feita através das relações estabelecidas entre doadores, tentantes e as comunidades virtuais que lhes dão suporte (Felipe & Tamanini, 2020).
Soma-se a isso, a representação reiterada pela mídia dos doadores e a concepção de paternidade, que permanecem permeadas pela biologia e por estereótipos heteronormativos. Percebe-se, então, que embora haja ligeira modificação sobre determinados conceitos morais do que é família, ainda se mantém uma ideologia pautada nos interesses mercadológicos, biomédicos e que invisibilizam a escuta ativa das mulheres e os projetos lesboparentais. Como postulado por Gregolin (2007), as mídias constituem-se como um dispositivo social partícipe da construção de identidades e, ainda que não representem a realidade propriamente dita, os discursos produzidos por tal dispositivo permitem a criação de formas simbólicas de se relacionar com a realidade concreta. Desta forma, as mídias podem acabar cumprindo uma função social de produção de estereótipos e maneiras de agir e pensar ancoradas em determinados interesses sócio-históricos e políticos (Gregolin, 2007), o que torna a análise de seus discursos fundamental para o campo psi, visto que se relacionam intrinsecamente com a produção de sentido e subjetividade por parte da população.
Assim, as mídias produzem uma tecnologia do gênero (Lauretis, 1987/1994) e da sexualidade que atuam de forma a criar estereótipos e modelos de conduta que, no exemplo aqui analisado do uso da inseminação caseira por casais de mulheres lésbicas, constroem discursos produtores de desigualdades de gênero e regimes sexuais morais. E estes discursos produzem subjetividades tanto de usuários/as como de profissionais inseridos/as em dispositivos e/ou serviços que invariavelmente receberão aquelas mulheres e seus/as filhos/as. Destacamos, então, a importância de novos estudos acerca desta temática, visto a crescente adesão de mulheres à prática da IC em contraponto com a escassez de produções científicas e discussões não morais junto a campos de intervenção profissional, especialmente aqueles mais diretamente relacionados às políticas públicas. Além disso, é necessário destacar as limitações do presente artigo, como falta de contato direto com as entrevistadas e profissionais de saúde diversos e não inclusão de outros materiais que seriam relevantes para nova análise, como resoluções e normativas do Conselho Federal de Medicina, Conselho Federal de Psicologia e demais órgãos reguladores da atuação profissional no campo da saúde (principalmente por se tratar de prática tida como não-oficial ou mesmo “clandestina” frente a oficialidade dos serviços de saúde).
Por fim, reafirmamos a necessidade de se analisar a construção moral midiática que está sendo produzida sobre a IC, de modo que se torna fundamental garantir visibilidade para os relatos das mulheres que estão se submetendo a tais práticas, compreendendo-as como protagonistas da produção de sua saúde sexual e reprodutiva e projetos parentais e que, por isso, devem ter seus discursos e experiências legitimados.