As produções do filósofo espanhol Paul B. Preciado têm colocado os psicanalistas a trabalho, especialmente após a intervenção por ele realizada em 2019 na Jornada da École de la Cause Freudienne em Paris, que deu origem à publicação de um livro, em 2020, intitulado Eu sou um monstro que vos fala: informe para uma academia de psicanalistas (em tradução livre). Em sua intervenção, Preciado (2020b) interroga a posição de enunciação política dos psicanalistas europeus, apontando sua cumplicidade tácita com os dispositivos de poder hetero-patriarcal-colonial em sua abordagem das transidentidades (Ayouch, 2015), com consequências patologizantes para dissidentes de gênero e sexualidade que, como o próprio filósofo, desafiam o estatuto jurídico naturalizado da diferença sexual.
Mesmo que os analistas - em especial, aqueles orientados pela obra de Lacan - estejam avisados de que a diferença sexual não se reduz ao gênero (ou no mínimo não coincide com gênero), essa não coincidência não os protege de eventualmente fazerem usos acríticos - e por vezes violentos - de categorias como essas, herdadas da cisgeneridade (e que podem portanto se tornar cisnormativas), para abordarem as subjetivações trans. O autor nos exorta, assim, a buscar formas de nos aliar, como psicanalistas da transição epistêmica, aos mutantes que desafiam as normas de inteligibilidade da epistemologia da diferença sexual.
Endereçando-se diretamente a um público de analistas, Preciado (2020b) nos convoca a perceber a diferença sexual como peça-chave de um dispositivo que contribui para enquadrar a diversidade dos corpos numa ordem violenta, comprometida com o patriarcado, a cis-heteronormatividade e a colonialidade do poder. Nesse sentido, o que está em jogo não são apenas categorias teóricas, mas decisões políticas que são também, em certo sentido, pré-teóricas, uma vez que definem quais serão os termos em que o debate se dará. No caso, o regime epistemológico da diferença sexual - que toma como visíveis os homens e mulheres cis-heterossexuais e invisibiliza ou marginaliza subjetivações trans ou dissidentes de gênero e sexualidade - estaria presente não só na cultura ocidental, mas também na própria psicanálise.
Muitas, muitos e muites analistas buscaram, desde então, responder a essa interpelação, seja para acolher as questões postas por Preciado e pensar uma psicanálise em mutação (Parente & Silveira, 2020; Reitter, 2021; Cunha & Ambra, 2021; Beer & Ambra, 2021; Gherovici, 2022), seja para interrogar em retorno a postura do filósofo, pontuando o que seriam erros ou imprecisões de leitura quanto à teoria psicanalítica e reafirmando maneiras já consolidadas de apresentar as obras freudiana e lacaniana (Maurano, 2019; Eidelsztein, 2019; Maleval, 2019; Bassols, 2021; Miller, 2021). A urgência do tema e a intensidade das colocações de Paul podem gerar certa angústia em quem teme por uma dissolução da psicanálise tal como a conhecemos, mas sustentamos aqui a importância de introduzir um tempo para compreender o que está em jogo nessa intervenção, que não é apenas uma questão epistêmica que poderia ser “resolvida” prontamente por uma discussão mais qualificada sobre Freud ou Lacan.
Por sua vez, não podemos deixar de constatar que a leitura da teoria psicanalítica feita por Preciado (2020b) se dá em formato de sobrevoo, gesto que tem a vantagem de permitir ver, de longe, pontos de contato da psicanálise com dispositivos de poder que talvez não percebamos quando estamos muito inseridos em um campo ou em nosso próprio tempo. Mas, também por esse motivo (por fazer um sobrevoo a partir de uma perspectiva histórica mais interessada em traçar conexões do que em se aprofundar nos detalhes da psicanálise), é certo que sua leitura acaba por perder em complexidade ao desconsiderar inúmeros pontos de subversão aos dispositivos de poder igualmente produzidos pelos próprios Freud e Lacan, bem como pela incidência da psicanálise na cultura (cf. Lima, 2022).
Para mencionar apenas alguns desses pontos, poderíamos pensar na concepção freudiana da pulsão sexual, que não tem um objeto a priori e não visa à reprodução da espécie, mas sim à sua própria satisfação, de caráter perverso-polimorfa, vinculada a objetos parciais como a boca, o ânus, o olhar, entre outros, que escapam à genitalidade; ou, ainda, na concepção lacaniana da sexuação, que permite descolar os modos de gozo de suas pretensas determinações anatômicas, abrindo a possibilidade de considerar os mais diversos trânsitos sexuados dos seres falantes que podem se dar mais além dos roteiros normativos do gênero (cf. Lima, 2022). Dessa forma, o estilo da abordagem de Preciado tem o custo de produzir uma apreensão demasiado planificadora de obras densas e complexas, ao buscar reduzi-las à mera continuação de dispositivos de poder previamente estabelecidos na tradição ocidental, o que tende a drenar a dimensão crítica e subversiva da psicanálise, que, desde sempre, coexistiu com momentos normativos em seu desenrolar histórico.
Neste texto, entretanto, optamos por enfatizar o ponto da intervenção do filósofo que não nos parece ter sido suficientemente escutado por parte da comunidade analítica, a saber, a dimensão ético-política ali implicada, ao provocar uma questão quanto à posição que a psicanálise - assim como cada analista, um a um - assumirá diante dos regimes da biopolítica e da necropolítica no mundo contemporâneo. Uma vez que esse ponto não é formulado explicitamente dessa maneira pelo filósofo, nossa empreitada aqui será a de buscar evidenciar essa dimensão de sua intervenção, na esperança de que esse gesto permita deslocar o foco do debate hegemônico francês - debate que não deixa de ter ainda hoje importantes repercussões no contexto brasileiro - em direção a um problema mais amplo ligado a múltiplas formas de violência social.
Afinal, do lado das perspectivas que buscam defender a psicanálise do que entendem ser ameaças ao campo por parte dos debates contemporâneos sobre identidade, encontramos frequentemente a tentativa de reduzir os problemas de gênero a questões do imaginário, como se o gênero se tratasse apenas de um capricho narcísico do eu, dirigido à identificação alienante a uma dada identidade ou a um grupo, sem outros atravessamentos políticos e subjetivos além de um alegado fenômeno narcísico de massa. Miller (2021) e Roudinesco (2022), cada um a seu modo, podem ser considerados representativos desse tipo de posicionamento, na medida em que, no texto “Dócil ao trans”, podemos ler a ênfase crítica (e irônica) de Miller (2021) sobre a dimensão egoica do gênero (reduzido a uma questão das identificações), assim como, no livro O eu soberano, deparamos com a escolha de Roudinesco (2022) por destacar a dimensão narcísica das questões contemporâneas sobre identidade.
Na contramão dessa tendência, o objetivo deste artigo é recolocar os termos do debate a partir da intervenção do filósofo Paul B. Preciado, evidenciando que o que está em jogo nas temáticas de gênero não é apenas uma questão quanto ao registro das identificações, mas também uma problemática mais ampla concernente à violência social e ao modo como a psicanálise irá se posicionar diante disso. Nesse sentido, argumentamos que a relevância do debate quanto ao gênero, longe de nos encerrar em uma questão restrita ao interesse particular de um grupo de pessoas (por exemplo, as pessoas trans), é a de nos convocar a reconhecer que a psicanálise não poderá deixar de assumir algum tipo de posição diante da violência colonial e heteropatriarcal e diante das múltiplas formas de segregação como o racismo, o colonialismo, a homofobia e a transfobia.
Assim, a nosso ver, o verdadeiro alcance da questão de Preciado se passa no registro da biopolítica e da necropolítica que atravessam o mundo contemporâneo: a intervenção do filósofo permite-nos evidenciar que estamos inseridos num universo necrobiopolítico e que teremos de saber nos posicionar dentro-fora dele, ou seja, em subversão interna a seu funcionamento, reconhecendo as dinâmicas de poder que afetam o laço social e as eventuais repercussões que isso pode assumir no campo analítico. Tais repercussões se colocam tanto no sentido de esse campo estar, como qualquer outro, sujeito a reiterar em seu fazer teórico-prático uma série de violências oriundas da cultura quanto no sentido de esse mesmo campo poder se colocar de maneira crítica diante desse arranjo, sendo esta uma das possibilidades de sua subversão interna.
A necrobiopolítica, por sua vez, não é um termo de Preciado, embora possamos considerar que essa proposta está de certo modo inclusa em seu pensamento; mas essa perspectiva teórica entra aqui como um giro brasileiro a ser conferido a tal discussão a partir da proposta de Bento (2018), que entende que, no contexto do Brasil, não é suficiente nem o conceito de biopolítica de Michel Foucault (“dar a vida” ou “fazer viver e deixar morrer”) nem apenas o conceito de necropolítica de Achille Mbembe (“promover a morte” ou “fazer morrer e deixar morrer”). Antes, esses dois registros operariam em conjunto, unificando, pela ideia de “necrobiopoder”, um campo de estudos que tem apontado “atos contínuos do Estado contra populações que devem desaparecer e, ao mesmo tempo, políticas de cuidado da vida” (s.p.):
proponho nomear de necrobiopoder um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver. (Bento, 2018, n.p.).
Assim, argumentamos que a questão trazida por Preciado (2020b) relativa à diferença sexual e às pessoas trans, que pode parecer um problema particular restrito a certo grupo de pessoas (como Miller deixa entrever em seu texto e Roudinesco sugere em seu livro), envolve também uma questão mais ampla sobre a postura da psicanálise diante da necrobiopolítica que produz a subalternização e o extermínio das subjetivações dissidentes de gênero, raça e sexualidade no mundo e, em especial, no Brasil, país que é o líder mundial, há anos seguidos, em assassinatos de pessoas trans e travestis, bem como o responsável por um genocídio sistemático de sua população preta, pobre e periférica.
Diante disso, sustentamos que, das respostas que construiremos à intervenção de Preciado, depende o futuro da psicanálise, uma vez que essa intervenção não diz respeito apenas a um embate entre “teorias” divergentes ou a interesses particulares de determinadas “militâncias”, mas sim a como a psicanálise irá se posicionar e se inserir no cenário necrobiopolítico contemporâneo, no qual se jogam os destinos das subjetivações dissidentes de gênero, raça e sexualidade, bem como os caminhos possíveis para uma psicanálise construída no sul global.
No limite, trata-se de saber se as/os/es psicanalistas irão se posicionar em cumplicidade (tácita ou declarada) às normas dessa tradição hetero-patriarcal-colonial ou se consentirão com se colocar em mutação, servindo-se de Freud e Lacan, mas também de outros saberes que nos convocam a reconhecer certas dinâmicas de poder no laço social e a nos implicar com o combate ao racismo, ao colonialismo, à homofobia, à transfobia, entre outras formas de segregação historicamente reproduzidas no Ocidente. Essas interrogações não são passíveis de serem respondidas apenas por um, dois, tampouco três ou n textos, pois envolvem também um consentimento com a abertura para um processo permanente de reconfigurações teóricas, práticas, subjetivas, clínicas, políticas, narcísicas etc., que tocam nas formas de organização institucional da psicanálise, nas maneiras com que psicanalistas se posicionam politicamente no debate público e mesmo na subjetividade dos próprios analistas, isto é, nos pactos narcísicos que eventualmente sustentamos no laço social (com arranjos da branquitude, da cisgeneridade, da heterossexualidade, do eurocentrismo) sem querer saber nada disso - mesmo que nossas formulações teóricas trabalhem no sentido de desmontar o eu, as identificações imaginárias, o narcisismo, a submissão ao discurso do mestre, entre diversos outros arranjos de poder.
Preciado e o Regime Farmacopornográfico: Biopolíticas do Gênero
Ao longo de sua obra, Preciado nos fala de experiências subversivas com o corpo diante de regimes de controle e extermínio de formas de vida dissidentes em relação às normas da cisgeneridade e da heterossexualidade - fato que se articula ao regime necrobiopolítico do mundo contemporâneo, que busca regular quais vidas e quais corpos podem contar como tais e quais não; quais vidas e quais corpos devem ser mantidos (e controlados) e quais devem ser meramente eliminados. Paul se nomeia como “um dissidente do sistema sexo-gênero”, alguém que se serve da “jaula” da transgeneridade avisado de que a identidade não passa de uma ficção, de modo que ele emprega o semblante de “homem trans” para interrogar as ficções políticas hegemônicas presentes no que chama de um regime “farmacopornográfico” no contemporâneo.
Podemos considerar que a obra do filósofo retoma e avança a partir do ponto deixado por Foucault: Preciado propõe reler a “história da sexualidade” como sendo a “história do biopoder”, no sentido de que a “sexualidade” passa a funcionar, a partir do século XVIII, como eixo fundamental para o controle da vida e dos corpos em função da reprodução cis-heterossexual (Preciado, 2000/2014, p. 89). As tecnologias do sexo e do gênero só existem enquanto fazem parte de uma “biopolítica mais ampla, que reúne tecnologias coloniais de produção do corpo-europeu-heterossexual-branco” (p. 103).
Mas, ali onde a análise de Foucault se centra na passagem para o século XIX, enfatizando o poder disciplinar na construção arquitetônica de prisões, escolas e hospitais, responsáveis por produzir corpos dóceis e assujeitados ao biopoder, assim como na produção da “homossexualidade” e das demais inversões sexuais como categorias de identidade, Preciado propõe avançarmos para a segunda metade do século XX, para investigar de que modo a gestão biopolítica dos corpos passará a ser informada pelas “novas dinâmicas do tecnocapitalismo avançado”, pela “mídia global” e pelas “biotecnologias” (Preciado, 2008/2018, p. 27).
Gênero e sexualidade são regulados a partir de normas binárias de inteligibilidade dos corpos e ocupam um lugar privilegiado no projeto biopolítico europeu, mas essas normas passam a ser atravessadas pelas técnicas de modificação corporal, pelo estudo dos hormônios e da genética, pela manipulação em laboratório e uso comercial de substâncias sintéticas como testosterona, Viagra, a pílula anticoncepcional, Prozac, entre outras. Soma-se a essa dimensão bioquímica ou farmacológica a dimensão pornográfica, que coincide com a invenção da Playboy nos anos 50 e que levou à produção de uma “sexualidade multimídia” - fato que altera drasticamente o cenário biopolítico do século XIX a que Foucault se dedicou de maneira mais direta.
Se a arquitetura e a ortopedia eram as peças-chave do poder disciplinar, agora, entram em jogo os modelos microprotéticos de controle corporal: a estrutura orgânica e biomolecular do corpo passa a ser o centro da biopolítica contemporânea, a partir da combinação entre a pornografia transformada em cultura popular (por meio de um circuito de informação digital), a invenção da noção de “gênero” como ferramenta clínica (visando a intervenções hormonais e cirúrgicas em crianças intersexuais e transexuais), a administração endocrinológica das identidades sexuais (o estudo e a comercialização de hormônios) e a separação técnica da heterossexualidade e da reprodução (pela invenção da pílula anticoncepcional e das técnicas científicas de reprodução humana em laboratório). Todos esses fatores se articulam, a partir da segunda metade do século XX, em uma produção farmacopornográfica da subjetividade.
Nesse contexto, Preciado nos lembra de que, longe de ser fruto de uma agenda feminista, a invenção da categoria de “gênero” “pertence ao discurso biotecnológico que apareceu nas indústrias médicas e terapêuticas dos Estados Unidos no final da década de 1940”, configurando-se como “ponto de origem para o surgimento do regime farmacopornográfico de produção e governo da sexualidade” (Preciado, 2008/2018, p. 109). Foi nesse sentido que John Money, pediatra e psicólogo infantil, propôs, em 1957, a categoria clínica de “gênero” (ou “sexo social”, em oposição ao “sexo biológico”) como ferramenta teórica para pensar possibilidades de normalização corporal (hormonal ou cirúrgica, por meio de técnicas hormonais ou cirúrgicas de reatribuição de sexo) e social (por meio de técnicas pedagógicas e comportamentais) dirigidas a bebês intersexuais (“hermafroditas”), no intuito de fazê-los se conformarem “a uma ordem visual e biopolítica preexistente, que foi prescritiva para o que se supunha ser um corpo humano feminino ou masculino” (Preciado, 2008/2018, p. 110).
A partir dos anos 1940, devido à invenção de novas tecnologias, o discurso médico e psiquiátrico passa a ser confrontado com uma multiplicidade de diferenças morfológicas, hormonais e cromossômicas em corpos que não podem ser designados simplesmente como “masculinos” ou “femininos”: “pênis pequenos, testículos não formados, falta de útero, variações cromossômicas que vão além do XX/XY... Bebês que põem em xeque a lógica do binarismo” (Preciado, 2019/2020a, p. 278). Diante do que poderia ser uma ocasião para modificar o marco epistêmico da diferença sexual, a ciência médica fez o contrário: declarou esses corpos como “desviantes” ou “monstruosos” e buscou reenquadrá-los no ideal do dimorfismo anatômico por meio de uma série de “operações cirúrgicas e hormonais que tentam reproduzir a morfologia genital masculina ou feminina dominante” (Preciado, 2019/2020a, p. 279).
Paralelamente, nas mãos de Harry Benjamin e Robert Stoller, acontecia também a invenção médico-psiquiátrica da transexualidade - à época, chamada de “transexualismo” - enquanto diagnóstico psicopatológico para pessoas que alegavam não pertencerem ao sexo/gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Após um diagnóstico diferencial entre o “travestismo” (entendido como apenas um desejo de servir-se de roupas de “outro sexo”) e o “transexualismo verdadeiro”, fazia-se a prescrição de uma série de procedimentos cirúrgicos e hormonais que permitiriam a passagem de um gênero a outro. Preciado acentuará a dimensão normativa presumida nesse arranjo, que, no fundo, estaria a serviço do binarismo sexual e do projeto biopolítico de controle dos corpos: a transição seria pensada pelo abandono dos atributos do gênero de partida e pela incorporação dos rituais sociais - e da conformação anatômica - que definem o gênero almejado. Haveria, nesse ponto, uma negociação tensa e jamais finalmente decidida entre a subversão e a manutenção das normas binárias da biopolítica nas operações da transexualidade.
Afinal, mesmo suportando a desnaturalização do gênero e a refabricação do sexo, a epistemologia da diferença sexual só pode tolerar transições de gênero que respeitem as ficções biopolíticas vigentes quanto ao que deve definir de forma binária o comportamento e a estética de “homens” e “mulheres”. Nesse sentido, presenciamos a produção, na década de 1960, de um personagem psiquiátrico: o “transexual verdadeiro”, que só é reconhecido como tal se se enquadrar em uma série de critérios normativos estabelecidos pela medicina e que, uma vez sendo nomeado com um diagnóstico de “transexual”, encontrará todo um protocolo médico preparado de antemão para conformar sua transição. Para um diagnóstico psicopatológico, um tratamento e uma cura vendidos pela medicina e pelo Estado, a serviço do projeto biopolítico moderno de regulação das vidas e dos corpos segundo o marco da diferença sexual.
Cabe aqui constatar que boa parte da psicanálise lacaniana, inclusive o próprio Lacan (1971/2009), acabou por tomar como ponto de partida esse mesmo personagem psiquiátrico construído por Stoller nos anos 1960 e reforçado posteriormente pela medicina e pela psicologia para abordar as transidentidades, com todas as consequências normativas e patologizantes que decorrem da reificação de uma tipologia psiquiátrica para pensar o sujeito. É nesse sentido que Preciado aponta o lugar da psicanálise na história da patologização das transidentidades, bem como assinala a atualidade de posições transfóbicas dentro do campo, fato que inclusive não tem a ver apenas com a teoria psicanalítica propriamente dita, mas também com a própria subjetivação dos analistas que reproduzem o que incorporaram do universo cisnormativo a que pertencem, o qual torna natural e normativa uma série de rituais sociais da cisgeneridade que podem ser repetidos de forma violenta, mesmo que sob o eventual desconhecimento do analista (frequentemente subjetivado como cis), em sua abordagem das questões trans.
A Psicanálise Diante da Necrobiopolítica das Transidentidades
Nessa perspectiva, nosso argumento aqui é que, se a construção de um “personagem trans” é parte de um procedimento (necro)biopolítico de controle das vidas e dos corpos, então, ao dar consistência ao personagem psiquiátrico (tornado também psicanalítico) do “transexual”, a psicanálise abre mão de sua radicalidade ética e política (sua orientação pela singularidade) e se torna, quer o queira, quer não, uma das ferramentas necrobiopolíticas de governo da maneira como os corpos podem se configurar, por meio de uma teoria implícita do desenvolvimento que levaria à assunção da cisgeneridade como destino esperado da subjetivação.
Ao carregarem (tacitamente ou não) uma preconcepção do modo como deveria ser a assunção do sexo e a determinação do gênero de um sujeito (a maneira esperada de se tornar um homem ou uma mulher, de incorporar a masculinidade ou a feminilidade etc.), os psicanalistas que o fazem acabam por reforçar a dimensão normativa presente no laço social e por reeditar essa mesma normatividade em seu trabalho teórico-clínico, a exemplo de uma passagem relatada brevemente por Preciado quanto a uma de suas experiências de análise em que o analista buscava que Paul se desfizesse do que ele (o analista) pensava serem as “‘múltiplas formas de fetichismo que ameaçavam [sua] sexualidade feminina’” (Preciado, 2020b, p. 73, tradução nossa).
Não é de espantar, então, que o filósofo se enderece à psicanálise a partir de um lugar de transferência negativa, marcado pela desconfiança e pela acusação dos elementos normativos presentes em nosso campo. Caberia lembrar aqui uma importante contribuição clínica de Lacan segundo a qual a transferência negativa do analisante é produzida como resposta à resistência do próprio analista, o que se apresenta, no caso de Paul, pela dificuldade dos psicanalistas pelos quais passou em o escutarem como sujeito dissidente das normas hegemônicas de gênero e de sexualidade sem buscar novamente normatizá-lo ou sem reproduzir, diante dele, algum tipo de agenciamento do discurso do mestre:
Eu mesmo fui psicanalisado durante dezessete anos por diversos analistas, freudianos, kleinianos, lacanianos, guattarianos... Tudo o que lhes digo não digo como um outsider, mas sim como um corpo da psicanálise, como um monstro do divã. Em primeiro lugar, não me seria possível qualificar estas experiências múltiplas com um só adjetivo, nem bom nem mau. O êxito ou o fracasso de minhas análises dependeu em grande medida não da lealdade dos analistas a Freud, Klein ou Lacan, mas, pelo contrário, de sua “infidelidade” ou [...] de sua criatividade, de sua capacidade para sair da “jaula”. Durante diferentes sessões, pude observar como todos os meus analistas tiveram que lutar com e contra o marco teórico em que haviam sido educados para poder escutar uma pessoa trans sem antepor o diagnóstico, a crítica ou a reforma. (Preciado, 2020b, p. 72, tradução nossa).
Paralelamente, poderíamos nos lembrar da análise lacaniana da contratransferência, entendida como a “soma dos preconceitos do analista” (Lacan, 1953-54/2010, p. 36), que se cristalizam no registro imaginário do eu e podem intervir na condução clínica, assim como ocorreu com Freud e sua assunção prévia de heterossexualidade no caso Dora. A análise desta paciente foi interrompida em grande medida pelos preconceitos heterossexuais de Freud, como ele mesmo reconhece, ao presumir que Dora, por ser uma mulher, deveria amar um homem (o Sr. K.), e não uma mulher (a Sra. K.), a qual era o verdadeiro objeto de seu interesse. Lacan (1951/1998) não poupa críticas à maneira como a contratransferência de Freud impediu o andamento da análise de Dora, na medida em que o analista interveio aí com seu imaginário egoico, isto é, com a sua preconcepção imaginária de que um casal seria feito por um homem e uma mulher, de que as meninas devem amar os meninos.
Podemos, então, arriscar-nos a situar, a partir daí, uma abordagem do problema da resistência do analista diante das questões de gênero por meio da releitura lacaniana do problema da contratransferência. Afinal, muitas vezes, entra em jogo, como obstáculo ao tratamento, a preconcepção dos analistas de como deve se parecer um homem ou uma mulher, de quais pronomes de tratamento deve-se usar se um sujeito é suposto ter nascido com um pênis ou uma vagina, de quais são os elementos relevantes para reconhecer alguém como um homem ou uma mulher. Trata-se aí da presença do imaginário no reconhecimento do gênero de alguém, ou seja, das concepções imaginárias do que é (ou deve ser) a boa forma de uma pessoa, concepções essas que são frequentemente estruturadas pelos roteiros normativos da cisgeneridade na cultura e que podem ter implicações clínicas violentas para sujeitos que não se reconhecem por essas categorias.
A esse respeito, quando um analista sustenta o tratamento pronominal de um paciente trans pelos pronomes e pelo nome próprio designados ao nascimento, e não pelos pronomes e pelo nome próprio por ele reivindicados, seu gesto tende a reproduzir a força e a violência das ficções biopolíticas ainda hegemônicos em nosso tempo que tomam o gênero de alguém como decorrente de seu sexo anatômico. Nessa forma de tratamento, está muitas vezes implícita uma concepção tácita de gênero que conformou a subjetivação do próprio analista, que entende que pessoas dotadas de pênis seriam homens e deveriam ser tratadas no masculino - e que pessoas dotadas de vagina seriam mulheres e deveriam ser tratadas no feminino.
Também não é demais considerar que há aí, por parte do analista, a assunção - deliberada ou não - do risco de consentir com os rituais necropolíticos de extermínio das pessoas trans, ao redobrar a violência social de não ser reconhecido pelo nome próprio, pronome ou identidade de gênero que reivindica para si - déficit de reconhecimento que não poucas vezes pode ser um dos fatores que levam um sujeito ao autoextermínio. Então, nesses casos, “talvez não seja a pessoa trans a que se nega ao trabalho analítico [...], mas sim o analista que não possa se confrontar com o desafio de enxergar um corpo mais além de sua própria experiência cis e heterossexual, de suas próprias convenções de gênero e sexuais” (Preciado, 2020b, p. 89, tradução nossa).
O que o contemporâneo escancara é que os rituais sociais da cisgeneridade são um semblante que muitas vezes se impõe de forma violenta sobre os corpos, sendo que alguns corpos consentem com se submeter a essas designações e irão nelas se reconhecer (mesmo que de forma sempre precária e parcial), enquanto outros corpos não, e buscarão, portanto, outras formas de se nomear e se subjetivar - decisão que um analista precisa estar aberto a acompanhar para não correr o risco de reproduzir, com seus pacientes, o discurso do mestre ainda hegemônico que toma o gênero como supostamente decorrente do sexo biológico. Nesse sentido, enquanto analistas, talvez fosse o caso de operarmos uma espécie de retificação subjetiva que vise a nos responsabilizarmos pelos efeitos de violência que foram e são gerados por uma série de concepções normativas de gênero, raça e sexualidade que se infiltraram no edifício teórico-clínico da psicanálise ao longo de seus mais de cem anos de história. Está em jogo, hoje, fazermos com isso algo diferente do que já foi feito por nosso campo diante de experiências subjetivas dissidentes das normas hegemônicas.
O ponto que Paul busca fazer ouvir é que as subjetivações trans não são redutíveis aos protocolos médicos que buscam conformá-las aos ideais biopolíticos que as condicionam: “Não quero o gênero feminino que me foi atribuído no nascimento. Também não quero o gênero masculino que a medicina transexual me promete e que o Estado acabará me outorgando se eu me comportar de forma correta. Não quero nada disso” (Preciado, 2008/2018, p. 149). Afinal, tanto o cis quanto o trans são “dois status de gênero biopolítico [...] tecnicamente produzidos. Ambos dependem de métodos de reconhecimento visual, de produção performativa e de controle morfológico comuns” (p. 137), de modo que “o gênero ‘trans’ não é melhor nem mais político que o gênero ‘cis’”. Trata-se apenas de duas ficções biopolíticas, entre as quais o Estado e a medicina buscam regrar sua transição (cf. Preciado, 2008/2018, p. 272) - ao mesmo tempo que definem, por sua exclusão, quais são as formas de experiência transidentitária que sequer contarão dentro desse espectro normativo de reconhecimento.
Nesse cenário, Paul testemunha o fato de que ele próprio não é o personagem trans que quiseram fazer dele; que sua vida não está restrita a uma tipologia médico-psiquiátrica; e que, hoje, há muitas pessoas trans que não buscam alienar-se ao protocolo médico, tampouco ao personagem psiquiátrico do “transexual”. Dessa forma, os comentários pontuais de Lacan (1971-72/2012) quanto à transexualidade feitos cerca de 50 anos atrás já não refletem as vivências de boa parte da comunidade trans com as quais temos muito a aprender.
Enfatizamos que o que deve decorrer daí não é um silenciamento forçado do psicanalista, como se se tratasse de se submeter ao comando dos protocolos médicos que excluem o sujeito ou dos imperativos da autoafirmação que reduzem as pessoas trans ao registro do eu (da identidade, das identificações) - aspectos em relação aos quais a posição de interrogação analítica continua a ser de suma importância. Mas é preciso também reconhecer que a realidade que vivemos hoje é outra que a dos tempos de Lacan e exige de cada analista um tempo - e ainda uma abertura afetiva - para compreender de que ordem são essas mutações.
Assim, diante de subjetivações racializadas ou dissidentes de gênero e sexualidade, trata-se, entre tantas coisas, de reconhecermos a urgência das reivindicações políticas de reconhecimento dessas populações diante da violência social, para que seja até mesmo possível dar lugar ao singular do caso clínico. Afinal, nada de singularidade sem antes passar por algum Outro, por algum coletivo que dê a alguém suas condições de subjetivação: mesmo na singularidade, é preciso saber situar quais são os vetores coletivos que organizam uma posição no laço social.
Com essa discussão, portanto, trata-se de um convite a deixarmos cair a consistência do “personagem trans” que nos foi vendido pela psiquiatria e que importamos para a psicanálise. E esse fato esbarra ainda em outro ponto urgente, a saber, o de abandonarmos a ilusão de falar em um “movimento trans” ou em uma “teoria de gênero” como se houvesse qualquer coisa de unívoco, unitário ou unificado nesse campo, que é repleto de disputas, tensionamentos e muita heterogeneidade, tanto no nível teórico-epistêmico quanto no nível prático-político. A tentativa de reduzir essa complexidade a um movimento único ou a uma teoria unificada não apenas demonstra a distância e o desconhecimento diante do campo, como também serve, na maioria das vezes, para produzir uma refutação apressada dessas questões, depreciadas como um rival imaginário em relação ao qual a psicanálise precisaria se diferenciar.
O Gênero de Preciado
Ao falar, por exemplo, em “hackers de gênero”, Preciado nos convoca a dar lugar a subjetivações que fazem usos singulares tanto do significante “trans” quanto dos procedimentos hormonais, jurídicos ou cirúrgicos que podem ou não ser empregados por um sujeito - e que, aliás, mesmo quando o são, podem ainda ser utilizados de maneiras muito próprias, desvinculadas de protocolos médicos (cf. Preciado, 2008/2018, p. 411). A categoria “trans” é, hoje, empregada de formas múltiplas, de modo que se trata de escutá-la como um significante (ou seja, descolada de qualquer significação a priori) e aprender com cada ser falante que se serve dessa categoria qual é o uso próprio que faz dela - seja para com ela compor um modo de estar no mundo, seja para a partir dela encontrar formas outras de se nomear.
Ao mesmo tempo, não é possível negar os impactos das normas de gênero na vida das pessoas trans em meio a uma sociedade cisnormativa, que toma esses sujeitos como alvos preferenciais do ódio e da violência do Outro social e não os reconhece propriamente como sujeitos em sua forma de se nomear. Essa é, ao menos, a experiência vivida de Paul em relação às tentativas de controle por parte do Estado, da família, da sociedade e, inclusive, da psicanálise. Designado como mulher ao nascimento, Paul diz de sua recusa em consentir com o lugar idealizado da feminilidade que lhe foi atribuído pela família, que queria que ele fosse uma “menina modelo” (Preciado, 2008/2018, p. 102): “Devia me converter em uma boa namorada heterossexual, em uma boa esposa, em uma boa mãe, em uma mulher discreta” (Preciado, 2020b, p. 23, tradução nossa). Nada mais longe de suas aspirações; ao mesmo tempo que, conforme nos diz, tampouco se tratava de um desejo de “ser homem”: “Não, eu não queria me converter em um homem como os outros homens. Sua violência e sua arrogância política não me seduziam” (p. 28, tradução nossa). Também não estava em jogo ser considerado “normal” e/ou “saudável”; ele dizia buscar, antes, uma saída que lhe permitisse escapar “dessa paródia da diferença sexual”, em que se é ou um homem ou uma mulher conforme a norma binária, assumindo e incorporando uma identidade masculina ou feminina prêt-à-porter.
Nesse regime, ou se aceita a regulação biopolítica da sua identidade, ou se aceita a própria morte - simbólica, social e eventualmente material - por desafiar tal regulação. Paul recusa, assim, tanto a feminilidade ideal que lhe deram ao nascimento quanto a versão normativa de masculinidade que gostariam de lhe impor a partir do momento em que inicia uma transição de gênero. Ele sustenta uma crítica da masculinidade necropolítica que existe no Ocidente, a qual se define pelo “uso legítimo das técnicas da violência (contra as mulheres, contra as crianças, contra outros homens não brancos, contra os animais, contra o planeta em seu conjunto)” (Preciado, 2019/2020a, p. 313). “Como homem trans, desidentifico-me da masculinidade dominante e de sua definição necropolítica. [...] Não gozo com essa estética do antigo regime sexual. Não me excita ‘molestar’ quem quer que seja. Não me interessa sair de minha miséria sexual passando a mão nos outros no metrô” (Preciado, 2019/2020a, p. 316). E, ao mesmo tempo, não pretende “representar em nenhuma medida nenhum coletivo” (Preciado, 2019/2020a, p. 312).
Trata-se, para o filósofo, de construir outra forma de habitar um corpo, que não esteja encarcerada pelas obrigações rígidas de uma “identidade”. Está em jogo, portanto, a tentativa de construir outra forma de vida, que lhe permita escapar tanto às regulações biopolíticas do gênero quanto às determinações mortíferas da necropolítica - seja enquanto corpo ininteligível subalternizado e destinado à morte, seja enquanto corpo convocado a reencenar a norma da masculinidade hegemônica. Nesse mesmo sentido, Paul pensa sua transição não como a passagem de A a B, com um ponto de partida e um ponto de chegada bem delimitados (de uma ficção biopolítica a outra), mas sim como a construção constante de um fora (em relação ao binário normativo da diferença sexual); ele pensa a “fabricação” da sua “liberdade” não como um estado, mas como um “túnel”.
É por isso que ele só se reconhece como um “homem trans” avisado de sua dimensão de semblante, de uma nova “jaula”, agora escolhida e redesenhada a seu modo. Mas o que ele evoca é, também, a dimensão do “monstro”, isto é, “aquele que vive em transição” (Preciado, 2020b, p. 45, tradução nossa), aquele cujo rosto e cujo corpo, cujas práticas e cuja linguagem não são reconhecidas como legítimas em um determinado regime de inteligibilidade, de saber e poder, alguém que pode parecer monstruoso à luz da maneira tradicional ou hegemônica de se entender o que é ser um homem ou uma mulher.
O filósofo recusa uma narrativa heroica de sua transição e aponta que, se houve algo de heroico, foi o seu “desejo de viver”, “a força com que o desejo de mudar” nele “se manifestou e se manifesta ainda hoje” (Preciado, 2020b, p. 51, tradução nossa). Trata-se de um “desejo de viver de outro modo, de experimentar uma mudança, de ser outro, de estar, por assim dizer, radicalmente vivo” - uma vida que, da sua perspectiva, o regime da diferença sexual, ao buscar normatizar os corpos e seus modos de gozo entre “homens” e “mulheres” de forma rígida, acaba por mortificar. Paul enfatiza sua recusa desse modo de subjetivação pautado pela domesticação - pela “aniquilação” de sua “potência vital” - e diz que, desde cedo, procura para isso uma “saída”, pois, “de outro modo, não poderia viver” (p. 24, tradução nossa).
O autor nos convoca a abrir mão de narrativas apriorísticas sobre uma etiologia ou psicogênese qualquer da transexualidade (desde concepções naturalistas de se ter “nascido no corpo errado” até chaves de leitura psicanalíticas como ter sido desejado pelo Outro como uma criança de outro gênero, o que nem sempre é o caso), a fim de escutar a singularidade do uso de cada um. No caso de Paul, está em jogo uma recusa à violência mortificadora do Outro, a fim de construir um corpo vivo capaz de gozar a seu modo. Com sua operação, temos, ao mesmo tempo, uma subversão das biopolíticas de gênero e a construção de uma linha de fuga em relação à necropolítica. Ele reivindica aqui o seu direito à vida, seu direito de viver à sua maneira, e, nesse ponto, como analistas, talvez devêssemos fazer com ele uma aliança inegociável, fazendo valer sua convocação a nos posicionarmos criticamente diante da necrobiopolítica contemporânea.
Considerações Finais
Com a intervenção de Paul, não se trataria de um convite para que refaçamos o gesto inaugural de invenção da psicanálise? Afinal, não foi Freud quem soube se calar e colocar de lado o discurso do mestre (o saber médico) para escutar o que suas pacientes histéricas tinham a dizer sobre si? Na prática, isso talvez signifique suspendermos a discursividade que se instaurou sobre as questões trans ao longo do século XX e abrir para o que de inédito se pode apresentar no singular do caso, bem como para uma interrogação dos lugares assumidos historicamente por psicanalistas diante da necrobiopolítica que envolve não apenas as transidentidades, mas também diversas formas de subjetivação dissidentes em termos de raça, gênero, sexualidade, localidade geográfica, entre tantos outros marcadores sociais da diferença.
Em nosso título, que dialoga com um artigo de Pelúcio (2016), sugerimos que o gênero - assim como a intervenção de Preciado - vêm sendo depreciados como questão por parte de analistas que os relegam a questões do imaginário, que passariam ao largo do que seria a visada da psicanálise (o real do gozo, a sexuação, o inconsciente). Diferentemente, buscamos aqui argumentar que os problemas de gênero não são apenas do registro do imaginário (do eu, das identificações, da imagem, do corpo narcísico), pois tocam também no registro do simbólico (do reconhecimento de um lugar como sujeito no laço social, por meio da recomposição do nome próprio, do tratamento pronominal, de sua forma de nomeação) e, especialmente, no registro do real (pela exposição sistemática das subjetivações dissidentes de gênero à violência, ao ódio e à crueldade do Outro social, e mesmo ao extermínio e à morte, fatores inelimináveis da política, mas também da própria prática clínica).
Nesse sentido, como afirma a psicanalista Gherovici (2022), as pessoas trans nos ensinam que o que está em jogo nesse debate não é apenas uma questão de gênero, mas também “de vida ou morte” (p. 33). Como lhe disse um de seus analisantes: “‘Eu não tive escolha. Eu estaria morto hoje se não tivesse feito a transição. Eu teria me suicidado’” (Gherovici, 2022, p. 33). Trata-se da possibilidade de “ressignificar a assunção de um corpo sexuado e mortal” (Gherovici, 2022, p. 33-34), de forma que a transição de gênero é, muitas vezes, “mais sobre mortalidade, o limite entre vida e morte, do que sobre sexualidade, a fronteira entre homens e mulheres” (Gherovici, 2017, p. 106, tradução nossa).
Para concluir, o que gostaríamos de acrescentar às construções de Gherovici (um ponto que a autora não enfatiza tanto em sua escrita) é o fato de que essa questão de vida ou morte nas transidentidades se coloca não somente no âmbito subjetivo (da transição como solução para um impasse próprio do sujeito), como também no âmbito do laço social, ou, mais propriamente, no entrelaçamento mesmo entre o subjetivo e o social: esbarramos aí na negociação tensa entre a necessidade de se fazer um corpo habitável e as fronteiras políticas do vivível e do matável. É por esse motivo que argumentamos aqui que o verdadeiro alcance da intervenção de Preciado é ressoar na dimensão necrobiopolítica do contemporâneo, diante da qual a psicanálise do século XXI não poderá recuar, se quiser estar à altura dos desafios colocados pelo nosso tempo.