O tema da saúde sexual das mulheres lésbicas e bissexuais acompanhou historicamente a luta por visibilidade do movimento lésbico no Brasil. Em contrapartida, desde o início da epidemia da aids na década de 80, as relações sexuais lésbicas foram identificadas como de risco nulo ao HIV/aids, portanto, não contempladas em agendas programáticas da saúde (Alves et al., 2020). Assim, nos dias atuais, essas vivências seguem marginalizadas no campo da saúde, em relação ao acesso a serviços, produção de conhecimento científico e disponibilização de insumos específicos para práticas sexuais (Ferreira et al., 2018; Valadão & Gomes, 2011).
O conceito de vulnerabilidade desponta no campo da saúde coletiva durante a implementação das políticas públicas para o combate à epidemia da aids na década de 1990. Esse ancora práticas focadas na integralidade dos sujeitos, propondo um contraponto ao olhar epidemiológico de grupos de risco, entendendo que a suscetibilidade para quadros de adoecimentos e infecções não é um fator exclusivamente individual, mas produzido também a partir de fatores coletivos e contextuais (Oviedo & Czeresnia, 2015). Assim, compreende-se a vulnerabilidade em três eixos: individual (práticas, intenções e características do indivíduo e da experiência), social (vivências macrossociais de gênero, raça, escolarização, entre outras) e programático (relacionado ao campo institucional e interventivo do Estado na forma de políticas públicas, por exemplo) (Ayres et al., 2013).
Uma revisão sistemática internacional analisou vinte e dois estudos provenientes da América do Norte, Europa e África e os resultados mostraram que a prevalência de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) em mulheres lésbicas teve variação de 4,9 a 37,8%. Em relação às especificidades destas, variaram: Vaginose Bacteriana (entre 31 e 42,8%), Papiloma Vírus Humano (HPV) (entre 1 e 40%), Herpes Genital (entre 1,1 e 26%), Tricomoníase (entre 1,3 e 17%), Clamídia (entre 0,6 e 13,5%), Sífilis (entre 1 e 3,6%), Gonorréia (entre 0,6 e 2,7%) e HIV (entre 1 e 1,8%) (Takemoto et al, 2019). No Brasil, o estudo clínico de Andrade et al. (2020), com 150 participantes, indicou 47,3% de diagnóstico de IST em mulheres lésbicas e bissexuais, sendo as infecções mais prevalentes o HPV (45,3%), a Clamídia (2%), a Tricomoníase e Sífilis (1,3%) e o HIV e a Gonorréia (0,7%).
Entre os fatores associados a maior chance de ter IST no grupo, indicados pelo estudo clínico de Andrade et al. (2020), estão: uma chance quatro vezes maior em mulheres com histórico de IST, três vezes maior em mulheres que nunca haviam realizado a sorologia para IST e nove vezes maior entre mulheres que tiveram relações sexuais com homens cisgêneros nos últimos doze meses. Somado aos fatores referidos, Logie et al. (2015) apontam a percepção de risco e conhecimento sobre IST, o número de parcerias sexuais ao longo da vida e a frequência de realização do exame Papanicolau como preditores do histórico de IST em sua amostra.
Em relação ao uso de métodos de barreira preventivos, as mulheres referidas apontaram uso mais assíduo nas relações sexuais envolvendo homens cisgêneros (Mora & Monteiro, 2013; Nóbrega et al., 2013; Palma & Orcasita, 2018). O uso de preservativos nas relações cisheterossexuais variou entre 45,5% (Pinto et al., 2005) e 87% (Rufino et al., 2018) em amostras brasileiras. Nas relações sexuais lésbicas, a literatura relata o uso de “gambiarras” como estratégia de prevenção, sendo estas adaptações caseiras de métodos preventivos ou materiais existentes, como preservativo cortado, luvas látex e plástico filme. O uso de preservativo cortado ou em dildos nas relações sexuais com mulheres foi de 2,1%, enquanto o uso de luvas de látex e plástico filme foram quase nulos (Pinto et al., 2005).
Entre mulheres lésbicas e bissexuais, o não uso de barreiras preventivas esteve associado à ausência de percepção de necessidade, confiança na parceira, desconhecimento de métodos e inviabilidade do uso dos insumos existentes (Mora & Monteiro, 2013; Palma & Orcasita, 2018; Pinto et al., 2005). Nesta direção, algumas estratégias preventivas construídas a partir da experiência individual e coletiva foram as mais utilizadas por mulheres lésbicas e bissexuais, conforme a literatura (Almeida, 2009; Batista & Zambenedetti, 2017; Barbosa & Facchini, 2009; Mora & Monteiro, 2010; Nóbrega et al., 2013).
Além disso, Palma et al. (2017) identificaram a falta de conhecimentos e informações adequadas sobre promoção e prevenção no sexo lésbico como principal produtor de vulnerabilidade no campo. As mulheres mais jovens, com maior escolaridade e que se relacionavam com mulheres a menos tempo foram as mais preocupadas (Barbosa & Facchini, 2009). No entanto, mesmo este grupo buscou principalmente fontes informais de conhecimento como amigas, parceiras ou páginas da internet (Lima & Saldanha, 2020).
Assim, a temática da prevenção e promoção em saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais apresenta-se com lacunas expressivas em produções acadêmicas. São indicadas escassez de produções, resultados que se contrapõem, amostras não representativas (formadas em sua maioria por mulheres brancas, lésbicas, integrantes de movimentos sociais e com alta escolaridade) e restritas (tamanho de amostra pequeno) (Marques et al., 2013). Também, a ausência de insumos produzidos para a prevenção às ISTs nas relações sexuais lésbicas, além do desenvolvimento de estratégias de mensuração e detecção da transmissão de ISTs neste contexto são fatores que tornam urgente a necessidade de ampliar o olhar científico para o tema (Mora & Monteiro, 2013). Nesta direção, é necessário nomear processos e vivências para que estes passem a integrar agendas programáticas e práticas de saúde. Com isso, este estudo objetiva descrever e analisar as estratégias preventivas, uso de barreiras e percepção de risco em relação às IST de mulheres lésbicas e bissexuais brasileiras.
Método
Trata-se de um estudo de método misto sequencial organizado em três fases: quantitativa, qualitativa e de triangulação de dados. A coleta de dados foi realizada entre os meses de junho a setembro de 2020 na modalidade online. A divulgação ocorreu através de redes sociais pela equipe de pesquisa, coletivos e festas lésbicas, feministas e da diversidade sexual e em grupos virtuais voltados para a socialização de mulheres lésbicas e bissexuais.
A amostra da fase 1 (quantitativa) foi composta por 1.225 mulheres que se auto identificaram como lésbicas ou bissexuais, sendo não probabilística e por conveniência. Os critérios de inclusão na amostra foram: referir relações sexuais com mulheres, ter mais de dezoito anos de idade e residir no Brasil.
O questionário da etapa 1 foi composto por três dimensões exclusivamente quantitativas. A primeira dimensão foi de dados sociodemográficos: idade, estado civil, raça/cor, escolaridade, orientação sexual, região de residência no país e cobertura de saúde. A segunda dimensão avaliou a percepção de risco das participantes sobre acometimentos de saúde que poderiam ser transmitidos em relações sexuais lésbicas, sendo possível assinalar quantas respostas avaliassem necessárias. As infecções postas como alternativas nesta dimensão do questionário foram construídas a partir da literatura clínica nacional e internacional sobre a temática (Takemoto et al., 2019; Andrade et al., 2020; Pinto et al., 2005; Ignacio et al., 2018). A terceira dimensão avaliou os conhecimentos das participantes sobre estratégias preventivas às IST no sexo lésbico, podendo também assinalar múltiplas respostas e tendo como base estudos nacionais (Almeida, 2009; Batista & Zambenedetti, 2017; Barbosa & Facchini, 2009; Mora & Monteiro, 2010; Nóbrega et al., 2013).
Foram realizadas análises descritivas e inferenciais dos dados quantitativos com o suporte do programa SPSS 22.0 (Statistical Package for the Social Sciences). As análises descritivas quantificaram a percepção de risco das participantes e conhecimento sobre estratégias preventivas no sexo lésbico. Na análise estatística, por sua vez, realizou-se o cálculo de correlação de Pearson em que se correlacionou os dados sociodemográficos de idade e escolaridade com os índices de percepção de risco, conhecimento sobre estratégias preventivas no sexo lésbico e uso de barreiras preventivas, sendo todas as variáveis desta análise contínuas.
As participantes que relataram no questionário quantitativo usar o Sistema Único de Saúde (SUS) como principal cobertura de saúde foram convidadas para participar da fase 2 do estudo. A seleção das participantes desta etapa ocorreu a partir de análise das respostas do questionário sociodemográfico, buscando participantes com experiências diversificadas de idade, orientação sexual, raça/cor, escolaridade, região de moradia do país e tamanho do município. Um total de doze participantes concederam a entrevista.
As entrevistas tiveram, em média, 40 minutos de duração. O roteiro de entrevista abordou as trajetórias das participantes em relação ao cuidado em saúde, enfocando na percepção de risco e práticas preventivas, considerando a diversidade e interseccionalidade das vivências relatadas. As entrevistas foram gravadas em áudio e foi utilizado o critério de saturação teórico (Minayo, 2017) para delimitar o número de participantes que foram identificadas no texto como “P1”, “P2” e assim por diante até “P12”.
As entrevistas foram analisadas sob a ótica da análise temática (AT) de Braun e Clarke (2006). Esta ocorreu em cinco fases, conforme descrito pelas autoras. Após a transcrição cuidadosa das entrevistas e leitura exploratória, listaram-se os códigos iniciais. A partir disso, os códigos foram agrupados em temas abrangentes e posteriormente revisados e avaliados quanto à sua consistência interna e diversificação externa. Por fim, houve o refinamento das nomenclaturas e definições dos temas finais.
A fase 3 do estudo triangulou os dados encontrados em ambas as análises. O objetivo da triangulação foi relacionar os resultados, expandindo o campo analítico e produzindo aprofundamento dos dados e maior precisão inferencial, segundo Creswell e Clark (2013).
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da PUCRS através do CAEE n. 31713520.1.0000.5336. Todas as participantes firmaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) antes de iniciar a participação tanto na fase 1 quanto na fase 2 da pesquisa.
Resultados
A idade da amostra da fase 1 (quantitativa) variou entre 18 e 59 anos e a média de idades foi de 24,5 anos. Aproximadamente metade das participantes, 49,2% (n= 603), tinham o ensino superior incompleto (Tabela 1). No que se refere a identidade étnico-racial, 75% (n= 919) se identificou como branca. Quanto à orientação sexual, 52,6% (n= 644) se definiu como lésbica, sendo que 50,9% (n= 624) tinham parceria fixa. Em relação à região de residência no país, 86,5% (n= 1.055) da amostra vivia no Sudeste e Sul do Brasil, enquanto 13,5% (n= 165) morava nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Sobre a cobertura de saúde, 18,2% (n= 223) fazia uso exclusivo do setor público (SUS), 46,9% (n= 574) utilizava somente o setor privado de saúde e 34% (n= 428) da amostra tinha dupla cobertura de saúde.
Variáveis | Fase 1 | Fase 2 | |
---|---|---|---|
N | % | N | |
Total | 1.225 | 100 | 12 |
Idade | |||
18-29 anos | 1.049 | 85,7 | 09 |
30 anos ≥ | 175 | 14,3 | 03 |
Estado Civil | |||
Com parceria fixa | 624 | 50,9 | 08 |
Sem parceria fixa | 601 | 49,1 | 04 |
Raça cor | |||
Brancas | 919 | 75,0 | 06 |
Pretas, pardas, indígenas e amarelas | 306 | 25,0 | 06 |
Escolaridade | |||
Ensino escolar incompleto | 22 | 1.8 | 0 |
Ensino médio completo | 134 | 10,9 | 02 |
Ensino superior incompleto | 603 | 49,2 | 06 |
Ensino superior completo | 466 | 38 | 04 |
Orientação sexual | |||
Lésbicas | 644 | 52,6 | 09 |
Bissexuais | 581 | 47,4 | 03 |
Fonte - Elaboração própria
As participantes entrevistadas (Fase 2) tiveram idades variando entre 19 e 51 anos, provenientes das regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, sendo nove lésbicas e três bissexuais. Sobre a escolaridade, duas tinham o ensino médio completo, seis ensino superior incompleto e quatro com ensino superior completo. Seis participantes se identificavam como brancas e seis se identificavam como pardas ou pretas. Oito participantes tinham uma parceira fixa.
Os resultados a seguir estão apresentados de forma triangulada, mesclando dados quantitativos e qualitativos, processo resultante da fase 3 do estudo. A partir de temáticas comuns elencadas na análise temática, os achados foram agrupados nos seguintes temas: Percepção de risco; Estratégias preventivas e cotidianos de prática; e Barreiras sexuais preventivas no sexo lésbico.
Percepção de Risco
Apenas 0,2% da amostra da fase quantitativa acreditava que nenhuma infecção listada poderia ser transmitida nas relações sexuais lésbicas e 11% desconheciam a problemática. A infecção mais identificada como passível de transmissão nestas relações foi o herpes (87%), seguido por HIV (78,3%), HPV (76,1%) e sífilis (76,1%). Esta preocupação com a possibilidade de transmissão de infecções nas relações sexuais lésbicas foi trazida nas entrevistas da fase qualitativa:
“Eu acho que existe uma necessidade para combater algumas doenças que podem acontecer (...) É sempre essa preocupação com a gravidez em excesso, mas sem se preocupar com as outras doenças. Mulher com mulher não pode engravidar, mas transmite doenças sim.” (P7)
Duas entrevistadas tiveram dificuldade de identificar risco em suas práticas individuais. A baixa percepção de risco implicou em uma redução da busca por informações sobre o tema e por atendimentos de saúde sexual e ginecológica:
“Eu fui uma vez só [ao atendimento em saúde sexual e ginecológica], talvez com 12 anos e foi isso, depois eu nunca mais fui. Até porque eu nunca tive problemas com ciclo, problemas com cólica, nem problemas com espinhas. Nunca tive nada que fosse me levar a voltar lá e, sei lá, tratar sobre um possível tratamento com anticoncepcional. E também como eu não tenho relações sexuais com homens [cisgênero], eu realmente nunca mais fui." (P9).
O sentimento de desamparo devido à incerteza quanto à eficácia de métodos preventivos e diferentes informações divulgadas sobre risco foi trazido pelas entrevistadas enquanto gerador de angústias. Nesta direção, uma participante relata:
“Alguns guias informativos falam que realmente é menos arriscado a transmissão, outros lugares falam que o índice de contaminação por alguma IST aumentou absurdamente entre mulheres lésbicas nos últimos anos. Ninguém sabe. Não tem um consenso, realmente, de fato” (P2).
No estudo, a confiança na parceira fixa mostrou-se um elemento central para a baixa percepção de risco no estudo. Por outro lado, participantes sem parceira fixa relataram a dificuldade e preocupação com o risco de adquirir IST quando estavam com múltiplas parcerias. Além disso, a necessidade de confiar na palavra da parceira, mesmo sem intimidade, também produzia angústias, interferindo nas trajetórias sexuais das participantes. Nesta linha, foi dito: “Ainda mais quando a gente não tem uma parceira fixa, a gente quer se aventurar, então a gente está suscetível a várias coisas, a várias situações” (P7).
“É aquela coisa, tu não vais julgar também a pessoa que vai sair querendo transar com todo mundo, porque é uma coisa dela, um direito dela, ela faz o que bem entender. Mas como é que tu vais chegar pra uma pessoa que tu vais ter uma relação casual e dizer: ''ah, eu tô confiando em ti, tá? tu confia em mim também''?” (P5).
Estratégias Preventivas e Cotidianos de Prática
No questionário quantitativo (fase 1), as estratégias preventivas mais elencadas como possibilidades no sexo lésbico foram (Tabela 2): consulta regular em saúde sexual e ginecológica (88,7%), cortar as unhas (83,2%), pedir exames às parceiras (74,4%) e uso de preservativo interno (62,9%). Nas entrevistas (fase 2), a assepsia corporal pré e pós relação sexual, testagens rápidas e o diálogo com outras mulheres foram frequentemente mencionadas enquanto práticas preventivas.
Variáveis | Sim | Não | ||
---|---|---|---|---|
N | % | N | % | |
Estratégias preventivas assinaladas como possíveis no sexo lésbico | ||||
Ir ao ginecologista periodicamente | 10S6 | 88,7 | 139 | 113 |
Cortar as unhas | 1019 | 83,2 | 206 | 16,8 |
Pedir exames às parceiras sexuais | 911 | 74,4 | 314 | 25,6 |
Preservativo interno | 771 | 62,9 | 454 | 37,1 |
Não tirar as cutículas ao fazer as unhas | 544 | 44,4 | 6S1 | 55,6 |
Uso de luvas látex | 523 | 42,7 | 702 | 573 |
Manter parceira sexual fixa | 505 | 41,2 | 720 | 58,8 |
Uso de plástico filme como barreira vaginal | 439 | 35,8 | 7S6 | 64,2 |
Presen'ativo externo | 261 | 213 | 964 | 78,7 |
Abstinência sexual no periodo menstrual | 24S | 20,2 | 977 | 79,8 |
Evitar escovação de dentes próximo às relações | 199 | 16,2 | 1026 | 83,8 |
Pílula/injeção anticoncepcional | 9 | 0,7 | 1216 | 99,3 |
DIU | 3 | 03 | 1222 | 99,8 |
Não sei | 96 | 7,8 | 1129 | 923 |
Nenhuma | 5 | 0,4 | 1220 | 99,6 |
Não é necessário | 7 | 0,6 | 1218 | 99,4 |
Fonte: Elaboração própria
A estratégia preventiva mais utilizada relatada nas entrevistas foi a testagem rápida de HIV, sífilis e hepatites virais, realizada em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). Oito participantes referiram testar-se de forma regular (uma vez ao ano ou a cada seis meses) ou em caso de exposição (identificado como relação sexual com parceira casual):
“E aí eu comecei a identificar a possibilidade de mulheres que fazem sexo com mulheres [cisgênero] contraírem IST e comecei a buscar o serviço também para fazer o teste rápido periodicamente. A primeira pessoa que eu fiquei depois de terminar meu relacionamento eu segui e depois fiz o exame. O último exame que eu fiz tem um pouco mais de seis meses” (P11).
O conhecimento da sua sorologia, bem como a da parceira, tranquilizava as participantes, assim como ter uma parceira fixa ou reduzir o número de parcerias sexuais, sendo a última entendida inclusive como única estratégia preventiva por parte das entrevistadas na fase qualitativa. No entanto, houve preocupação, já que a testagem precoce previne agravos, mas não a ocorrência de infecções:
“O máximo que a gente consegue fazer é ter diálogos com a parceira, testar frequentemente, conversar com a parceira pra ela testar também, porque é importante ver a sorologia dela. E tentar métodos tipo de redução de danos, sabe?” (P6).
“Olha, eu tenho um problema muito grande que é o medo de contrair alguma IST, então um dos mecanismos que eu venho utilizando até hoje é evitar ter relações sexuais com outras pessoas. O que é péssimo inclusive, né? Porque gera uma paranoia, limita o meu comportamento, enfim. Uma preocupação às vezes até demais.” (P11).
Outra estratégia indicada também por quase todas as entrevistadas foi o cuidado com a higiene. Em relação à higiene das mãos, manter as unhas curtas e limpas, evitar esmaltá-las e o cuidado com as microfissuras nos dedos. O asseio com o corpo também foi referido, sendo tomar banho antes das relações uma das práticas mais relatadas.
O estudo sobre o próprio corpo e sobre a temática de prevenção e IST foi relatado pela amostra. Oito participantes trouxeram alguma forma de estudo, sendo eles autônomos (via internet e leituras) e três participantes pesquisavam o tema no âmbito acadêmico:
“Eu só pesquiso mesmo na internet. Nunca fui de ir ao hospital depois que eu comecei a me relacionar com mulheres. As coisas que eu fico sabendo, eu nunca fiquei perguntando no ginecologista, até porque, sei lá, sempre me deu um pouco de vergonha” (P12).
Além disso, conversas com pessoas que têm vivências e angústias similares foram identificadas como práticas preventivas. A manutenção de uma boa saúde física, imunidade e alimentação também foram identificadas por três participantes como uma estratégia preventiva:
“Eu busco sempre conversar com mulheres, com pessoas, que eu sei que tem essas inquietações. Testar algumas práticas, tipo luvas e tal, não acho que nada contempla muito a saúde dessas pessoas, minha também inclusive e tenho buscado alternativas. Eu acho que uma delas é em relação a prevenção, imunidade, manter uma imunidade boa, ter uma boa alimentação” (P2).
Em relação aos métodos disseminados nos grupos sociais, não tirar as cutículas ao fazer as unhas (44,4%) (Tabela 2), abstinência sexual em período menstrual (20,2%) e evitar escovação de dentes próximo à relação sexual (16,2%) foram trazidos no questionário quantitativo. Nas entrevistas, abordou-se de forma aprofundada estas práticas. Além disso, parte das participantes mencionaram evitar práticas sexuais como a tribadismo (tesourinha) e o uso de dildos, identificadas por elas como “práticas de risco”: “Evitar, nem faço muito uso, mas tipo de objetos sexuais, por exemplo. Evitar também transar, por exemplo, em dias de ciclo, em que está menstruada também” (P1).
Apenas 0,4% da amostra da fase 1 relatou que nenhuma estratégia seria possível (Tabela 2) e 0,6% que estes não seriam necessários. Nesta direção, a não adoção de estratégias preventivas foi relatada nas entrevistas. Uma das participantes reconheceu isto, não só na sua experiência, como também na de mulheres lésbicas e bissexuais próximas:
“Eu não uso nem um tipo de método de proteção contra IST ou coisa parecida e inclusive quando eu entro em discussão com as minhas amigas, ninguém usa. Na verdade, nunca ouvi nenhuma dizer que usa qualquer tipo de coisa para se proteger contra IST” (P9).
Barreiras Sexuais Preventivas no Sexo Lésbico
O teste de correlação de Pearson (Tabela 3) indicou correlações significativas entre o resultado da percepção de risco (número de infecções assinaladas como possíveis de transmissão no sexo lésbico) e o conhecimento sobre estratégias preventivas ao sexo lésbico (número de estratégias de prevenção corretamente referidas), uso de barreiras sexuais nas relações sexuais lésbicas, idade e o grau de escolaridade da amostra da fase 1. Assim, as participantes que se perceberam mais em risco para um maior número de infecções, também identificaram mais alternativas de prevenção e fizeram maior uso de barreiras sexuais com mulheres. Em relação à escolaridade, quanto mais anos de estudo, maior foi a percepção de risco e conhecimento sobre estratégias preventivas. No entanto, escolaridade não foi um indicador significativo no uso de barreiras sexuais com mulheres. A idade não foi significativa na análise.
Número de infecções assinaladas | Uso de barreiras sexuais no sexo lésbico | Número de estratégias preventivas assinaladas | Idade | Escolaridade | |
---|---|---|---|---|---|
Número de infecções assinaladas | 1 | 0,112* | 0,335* | 0,048 | 0,097* |
Uso de barreiras sexuais no sexo com mulheres | 0,112* | 1 | 0,157* | 0,051 | 0,004 |
Número de estrategias preventivas assinaladas | 0,335* | 0,157* | 1 | 0,014 | 0,079* |
Idade | 0,048 | 0,051 | 0,014 | 1 | 0,485* |
Escolaridade | 0,097* | 0,004 | 0,079* | 0,485 * |
1 |
Fonte: Elaboração própria
* Valor de p = 0,001
Nas entrevistas, houve semelhança das experiências relatadas. Uma hipótese explicativa ao dado quantitativo encontra-se no fato de que as participantes expuseram as dificuldades e impossibilidade do uso das “gambiarras”, bem como o incômodo e a revolta por não existirem insumos e agendas programáticas voltadas para sua vivência.
As mulheres bissexuais ou que haviam tido um histórico de relações sexuais com homens cisgêneros trouxeram se sentir mais seguras e confortáveis em relação aos métodos preventivos desenvolvidos para as relações cisheterossexuais. Este ponto convergiu com o fato de que grande parte da amostra qualitativa que relatou relações heterossexuais fazia uso de preservativos externos:
“Ah, é que eu acho que com homem tem camisinha, assim, então meio que elimina essa preocupação, né? Tipo assim, maior parte sempre com prevenção, vez ou outra a gente acaba dando uns vacilos, eu sei que é errado, mas acontece e aí o medo retorna. Mas com mulher não, [o sexo] é cem por cento das vezes desprotegido. Então, toda vez que fico dá aquele receio, aquele medo” (P10).
A invisibilidade histórica das mulheres lésbicas e bissexuais na sociedade foi relacionada às lacunas no campo da prevenção. O atravessamento de questões sociais de preconceito e discriminação, a partir da negligência, configuraram o complexo campo de produção de risco e vulnerabilidades:
“Eu acredito que é mais ou menos assim: o mundo não quer, a sociedade não quer que mulheres se relacionem com mulheres. O mundo não quer enxergar que isso é uma realidade e que isso é uma questão de saúde pública (...) existem essas estratégias, só que isso não é para a gente, a gente sabe que não é para a gente” (P5).
Em geral, com relação ao uso dessas “gambiarras”, houve um estranhamento e revolta quanto à viabilidade do uso das mesmas:
“Isso acaba sendo ridículo, essas opções, usar papel plástico, cortar camisinha, usar luva médica. Se tem essas opções, por que não as adaptar para o público que tem essa necessidade? Então, acho que é muito complexo e é um pouco revoltante, na real” (P8).
Nesta direção, outro ponto de crítica das participantes foi a falta de informações sobre prevenção e transmissão de IST no sexo em questão. Abordou-se que a crença social do baixo ou nulo risco nas relações sexuais lésbicas invisibilizava a pauta em espaços de socialização e das políticas públicas da saúde e educação, dificultando o acesso à informação e se configurando como tabu na sociedade:
“Eu sinto que se fosse mais divulgado, se eu entendesse um pouquinho melhor e se fosse uma coisa da cultura, que batessem mais nessa tecla, eu acho que isso seria até uma discussão maior, acho que as pessoas teriam consciência da necessidade, assim como tem da camisinha, sabe?” (P9).
“Olha, sinceramente, eu não tenho nem muito conhecimento. Eu acho que o tabu mesmo, o não falar das coisas é o que limita mesmo nosso acesso à informação. Tipo, por exemplo, eu sei que existe uma camisinha feminina, mas eu nunca nem vi uma. Então, eu nem sei se é o caso, se seria o caso de uma relação entre duas mulheres, se as duas usam, eu não sei” (P10).
Nenhuma das doze participantes entrevistadas estava satisfeita com as estratégias preventivas existentes para as relações sexuais lésbicas. As possibilidades conhecidas, desenvolvidas a partir da experiência ou pelo meio social, foram identificadas como “redução de danos”, mas não como práticas eficazes:
“A gente não tem um interesse, uma intenção por meio das políticas públicas, por meio das figuras públicas de estudar isso a fundo para identificar o que que serve, o que que funciona mais e o que que funciona menos. E aí a gente recai em uma outra problemática que é meio que a gente vai testando enquanto vai fazendo e aí vamos correndo risco e vendo o que que vai dando certo. É meio que ver durante o processo” (P11).
Discussão
Os resultados do presente estudo apontam que a falta de informações disponíveis sobre as formas mais efetivas de prevenção, bem como a falta de insumos específicos para o sexo lésbico, caracterizam a vulnerabilidade programática que estas mulheres estavam expostas. Somado a isto, existe um baixo uso de estratégias preventivas. Os dados também mostram que as participantes que se perceberam em risco para um maior número de ISTs, identificaram significativamente mais alternativas de prevenção e fizeram maior uso de barreiras sexuais no sexo lésbico. Em relação à escolaridade, quanto mais anos de estudo, maior foi o número de infecções percebidas como possíveis de transmissão no sexo entre mulheres, o que pode indicar uma desigualdade de acesso à informação.
As participantes sentiram-se vulneráveis às IST nas relações sexuais lésbicas. Essa percepção produziu sofrimentos como “medo” e “pânico” em algumas participantes, impactando suas trajetórias de vida, saúde e sexualidade ao evitarem práticas sexuais entendidas como de risco, por exemplo, ou pelo fato de se manterem em relacionamentos fixos por conta do medo da exposição e impossibilidade de prevenção adequada. Este dado contrasta com os achados de Barbosa e Fachini (2009) e Mora e Monteiro (2013) em que foram relatadas baixas preocupações referentes ao tema. Tal divergência pode estar relacionada com o fato de que se trata de uma amostra com alta escolaridade, variável que esteve associada a uma maior percepção de risco na análise de correlação.
As infecções que foram mais percebidas como transmissíveis nas relações sexuais lésbicas pela amostra não foram as mesmas apontadas como de maior prevalência nos estudos clínicos da área (Takemoto et al., 2019; Andrade et al., 2020; Logie et al., 2015). A questão de a testagem rápida ter sido identificada como a principal prática preventiva é preocupante tendo em vista que o teste detecta a presença de HIV, sífilis e hepatites virais (B e C), infecções que não estão entre as ISTs mais prevalentes em mulheres lésbicas e bissexuais, segundo a literatura referida. Isto reflete a urgência de democratizar o acesso a exames clínicos como o de clamídia e tricomoníase no SUS, bem como a necessidade de realização do exame Papanicolau para todas as pessoas com útero.
Assim, existe um risco de transmissão de IST em relações sexuais lésbicas, considerando a prevalência de IST em amostras com práticas sexuais exclusivamente lésbicas (Takemoto et al., 2019). No entanto, especificidades deste risco, como as formas e probabilidades de transmissão, ainda são desconhecidas não só pelas mulheres lésbicas e bissexuais, mas pela saúde pública e comunidade científica. Alguns fatores preditores de histórico de IST foram indicados pela literatura (Andrade et al., 2020; Logie et al., 2015) no entanto, estes se localizavam primordialmente relacionados à vulnerabilidade individual das participantes, vinculados ao número de parcerias, parceiros cisgêneros masculinos nos últimos meses e percepção de risco.
A construção de estratégias “alternativas”, tanto para as práticas preventivas quanto para o acesso a informações, produzidas a partir da experiência e pelas crenças sociais, surgem como consequência ao desamparo e o não-saber instituído sobre risco e prevenção às ISTs. As participantes relataram, como principais recursos, práticas como manutenção da imunidade e diálogo com parceiras ou amigas da área da saúde. Isto as remontam para uma posição clandestina na saúde, em que são mantidas à margem dos serviços, não sendo integralmente incorporadas em políticas e programas, passando a buscar respostas para suas demandas fora do sistema de saúde (Ferreira, Pedrosa & Nascimento, 2018), o que reforça a potência dos movimentos em busca de tornar visíveis estas demandas, conforme Alves, Moreira e Prado (2020).
A troca de exames com a(s) parceira(s) foi a segunda estratégia preventiva mais referida pela amostra, reforçando o ethos romântico da cultura lésbica. A construção de confiança em uma parceira fixa passa a ser um dos métodos mais efetivos na experiência das participantes, tendo em vista a lacuna de alternativas e conhecimentos. Nóbrega et al. (2013) e Lima e Saldanha (2020) abordaram essa problemática, identificando a confiança e fidelidade da parceira como fator de grande influência na percepção de risco das mulheres lésbicas e bissexuais. No entanto, Mora e Monteiro (2013) apontaram que estratégias enfocadas no casal não acessam integralmente as vivências das mulheres lésbicas e bissexuais, sendo necessária a construção de estratégias preventivas enfocadas em práticas específicas, possibilitando a expressão e vivência fluída e livre da sexualidade, independentemente do número de parcerias.
Ademais, mostrou-se relevante o debate sobre a eficiência versus efetividade dos métodos de barreira preventivos para a prática sexual lésbica. Isto porque a amostra demonstrou conhecimento sobre estratégias preventivas no campo, no entanto, o uso destas barreiras foi quase nulo, o que está em consonância com os resultados do estudo de Rufino et al. (2018). Este dado converge também com os resultados do estudo norte-americano de Muzny et al. (2013) em que as participantes tinham conhecimento de estratégias e barreiras preventivas para o sexo lésbico seguro, mas se referiam a estas de forma hipotética e não como algo que fizesse parte de seu cotidiano. A impossibilidade de aderir às “gambiarras” foi trazida no estudo, apontando falhas na efetividade das propostas de prevenção existentes.
Por fim, a crença social do baixo ou nulo risco de transmissão de IST em relações sexuais lésbicas atua se sobrepondo a esta grave lacuna no campo da saúde: a inexistência de conhecimentos científicos e insumos específicos para o sexo seguro entre mulheres (Valadão & Gomes, 2011). Este estudo, assim como o de Nóbrega et al. (2013) e Lima e Saldanha (2020), aponta a dimensão programática da vulnerabilidade (Oviedo & Czeresnia, 2015; Ayres et al., 2013) como a mais deficitária e produtora de iniquidades para essas mulheres.
A partir deste referencial (Ayres et al., 2013), a invisibilidade de conhecimentos e práticas vulnerabiliza as participantes e as coloca, por vezes, mais suscetíveis a riscos. Desta forma, é necessário adentrar aos cotidianos de práticas em suas complexidades e singularidades, considerando as vivências de hostilidade, preconceito e violência na saúde, em prol da responsabilização de instâncias de governo pela efetiva produção de insumos e cuidados adequados para as mulheres lésbicas e bissexuais para além de estratégias de prevenção “alternativas” e condutas individuais isoladas.
Considerações Finais
O estudo mostrou-se potente por mapear, ao nível brasileiro, percepções e uso de barreiras no campo da prevenção em uma ampla gama de vivências sociais, culturais e singulares. A transformação do silêncio em linguagem e ação, conceito cunhado por Audre Lorde (2019), nesta direção, é uma ferramenta de combate à heterossexualidade compulsória, visibilizando a existência de mulheres lésbicas e bissexuais na saúde e reconhecendo-as enquanto sujeitos sexuais e políticos que amam, vivem singularmente e, de sua maneira, se expõem a riscos.
Para além da produção discursiva, é necessário repensar práticas e qualificar profissionais de saúde para o adequado atendimento e acolhimento dessas mulheres, considerando o referido afastamento delas do sistema de saúde, em especial dos atendimentos de saúde sexual e ginecológica. Para o efetivo combate à violência e preconceito trazido, torna-se urgente a ação conjunta entre movimentos sociais, sociedade civil e Estado, além da transversalização das pautas da diversidade sexual e, especificamente, das mulheres lésbicas e bissexuais nas agendas programáticas, reconhecendo, nestes processos, a interseccionalidade das vivências de gênero, raça, deficiência e classe.
A coleta de dados online foi uma estratégia que possibilitou a abrangência nacional do estudo. Contudo, esta estratégia limitou o acesso da pesquisa a mulheres que possuíam aparelho eletrônico e sinal de internet e que circulavam pelos meios de divulgação da pesquisa (redes sociais). Como efeito disto, atingiu-se uma amostra caracterizada pela alta escolaridade, juventude, branquitude e, predominantemente, situada nas regiões Sul e Sudeste do país, o que refletiu nos dados produzidos e configurou-se enquanto limitação do estudo. É relevante que próximas pesquisas abordem a percepção de atores sociais como profissionais da saúde e outras minorias da diversidade sexual e de gênero, já que o estudo teve acesso apenas a mulheres cisgênero. Além disso, é importante o desenvolvimento de estudos sobre a eficácia e efetividade das estratégias preventivas produzidas a partir da experiência dessas mulheres.