Palavras e o Inominável
urge uma língua dos saberes a serem costurados,
saberes periféricos que gritam a vida intolerável,
dor e resistência que alinhavam uma costura do cuidado
Este texto surge como efeito de uma necessidade de unir duas ou mais coisas com linha por pontos de agulha; demanda irrefreável de acolher pontilhados traçados em meio a ferimento ou incisão; desejos de coser, remendar, com-por; costuras de letras para além do conhecido dicionário. Narra composições tecidas por meio da participação do Programa de extensão “Clínica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade”, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no evento “Como enfrentar um cotidiano de violências? Alianças e redes molhadas em favor da vida”, promovido pelo Observatório Popular de Violências, pela vida de mulheres de povos e comunidades tradicionais, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Alinhava, assim, duas iniciativas de extensão acadêmica que promovem uma rede de relações entre universidades e comunidades enlaçadas por projetos criados a partir de demandas prementes dos territórios vivos em que se situam.
Num contexto paralisante provocado pelo desgaste da pandemia do coronavírus (Sars-Cov-2) e pelos efeitos do desinvestimento em políticas públicas no Brasil, a escrita se insurge como aposta político-clínica na tessitura de uma morada comum entre mulheres. Tecer juntas uma morada possível tem, aqui, um sentido abrangente, que vai do quase literal - mulheres que coabitam um espaço a fim de que elas e suas filhas e filhos permaneçam vivos - como nos conta Mukasonga (2017)1, até um sentido existencial-filosófico de compartilhamento de um ethos coletivo cerzido em suas narrativas de dor e superação. São escritas para ensaiar gestos que disputem os modos de ser e viver na versão neoliberal-cifrada de um regime colonial-capitalístico, como analisa Deleuze (1992, p. 226) ao pensar as sociedades de controle, em que os indivíduos passam a ser “dividuais, divisíveis”, e as massas, lógicas bancárias. “É a própria pulsão de criação individual e coletiva de novas formas de existência, suas funções, seus códigos e suas representações, que o capital explora, fazendo dela seu motor” (Rolnik, 2018, p. 33). Pensando estratégias que incidam justamente na relação entre capital e força vital, Suely Rolnik aponta a urgência de inventarmos modos de resistir no próprio campo da política de produção de subjetividades. Inventar saídas, criar palavras, germinar vida, ali mesmo onde as políticas de morte a querem inviabilizar.
Mas as palavras parecem já não querer sair. Elas também parecem cansadas diante da dominância das palavras de ordem das redes sociais e o pouco tempo para serem experimentadas em sua passagem de sentido. Cada dia fica mais difícil acompanhar o que enuncia o acontecimento que vivemos. Se criar palavras, há algum tempo, tem sido uma das nossas formas de lutar contra imperativos do capital normalizador (branco, masculino, cis-hetero identitário, empreendedor - sabemos do perigo de adjetivar), cristalizados em chavões midiáticos, em mapas discursivos que nos atravessam e nos constituem, o que fazer sem a força das palavras inomináveis? Março de 2022. Ao completarmos dois anos de pandemia do novo coronavírus, acompanhado de suas mais novas variantes, percebemo-nos entrando em um redemoinho sem fim de cansaço, medo, morte à espreita, exasperação das desigualdades sociais, intensificação da sobrecarga de trabalho doméstico (leia-se, tradicionalmente delegado às mulheres, logo, invisibilizado e desvalorizado), amplificação das múltiplas violências que assolam o dia a dia das mulheres brasileiras, especialmente as pobres, pretas e periféricas. Desesperança lutando para não virar desespero. Queda em espiral lutando para calcar um pé no fundo do poço e retornar à superfície respirável. Sensação de poço sem fundo.
Nossas práticas vacilam com o tanto que se escuta de violência e de perda numa sociedade que a cada dia amplia um modo necropolítico de governar. Políticas de morte que, como bem definidas por Mbembe (2016), são fundadas na racialização, o que envolve pensar a colonialidade, o racismo e a violência de Estado na análise das formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte e que encontram maneiras locais e globais de agir. Analisando (e abrasileirando) o conceito do filósofo camaronês, Bento (2018) sugere uma derivação do mesmo ao propor o conceito de necrobiopoder como um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte, considerando os atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia, retirando deles a possibilidade do reconhecimento humano. Hierarquia esta que justifica, segundo critérios que lhe são próprios, quais corpos devem ser eliminados e quais devem viver. Ao destacarmos estes modos de governar racializados na composição de uma morada feminista, afirmamos também os efeitos das relações de branquitude, pois, conforme Almeida (2019, pp. 1608-9), “a herança silenciada da branquitude grita na subjetividade contemporânea das mulheres brancas, beneficiárias simbólicas e concretas dessa realidade”.
A autora destaca que o feminismo branco não é o feminismo de mulheres brancas, mas aquele que “não reconhece a perspectiva racial do seu feminismo e que não valoriza o engendramento das perspectivas não brancas e branca crítica para o feminismo” (Almeida, 2019, p. 1608). Ao escutar vozes da vida de mulheres, confrontamo-nos com as lógicas racistas e patriarcais de grande parte da população brasileira, em específico incidindo nos corpos de mulheres marcados pela violência da desigualdade de gênero. Violência exacerbada na experiência da pandemia no Brasil. O intolerável grita.
Nesse contexto, retomamos linhas de nossa caixa de costura na tentativa de encontrar pontos passíveis de narratividade à medida que nos colocamos no paradoxo entre um saber produzido pela trajetória em psicologia social, saúde mental e direitos humanos, em universidades públicas; e a ignorância gerada pelo acontecimento pandemia. Mas a ignorância pode ser um signo que move a experiência quando reconhecemos o encontro com a diferença que solicita a dialogia entre os saberes com aquelas com quem compartilhamos nossas práticas. As mulheres não se assustam com a ignorância, fazem do intervalo interrogativo do pensamento - “o que fazer agora?” - um espaço para alinhavar sentidos. São ligadas ao espaço que vivem - tópicas - e costuram com os fios possíveis, mesmo vacilantes e no imprevisto. De onde brota tal prontidão, mesmo diante do intolerável de uma pandemia e da desigualdade social que cresce enquanto as políticas públicas diminuem? Nossa indagação encontra eco nas reflexões de outra pesquisadora ocupada com o tema do cuidado com e das mulheres, quando se pergunta: “como é possível versar sobre cuidado e não se ocupar em investigar e visibilizar as causas globais e locais que têm gerado cada vez mais sofrimento e exaustão nas pessoas, especificamente nas mulheres negras?” (Borges, 2020).
Essas são questões que nos acompanham nesta escrita à medida que exercitamos a nomeação de uma clínica feminista e encontramos o exercício político de mulheres articuladas no movimento social. É o caso das marisqueiras que, ao alinhavarem entre si um exercício político da vida, experimentam, no espaço de organização política, efeitos de cuidado. Entre mulheres marisqueiras que se organizam num movimento social e mulheres que sofrem violência que se movimentam no apoio mútuo ao serem escutadas, fios se cruzam na questão: como as mulheres costuram o cuidado como uma prática do comum?
Criar um regime de visibilidade ao intolerável, problematizar o que vem sendo constituído como algo menor, mobilizando um fazer ético, estético e político, eis a nossa aposta. Esse fazer também é a aposta de Abreu e Coimbra (2018), na formulação de perspectivas político clínicas a partir dos encontros-experimentações da Equipe Clínico-Grupal Tortura Nunca Mais 2. Costurando ciência e política, a ênfase recai nos processos de diferenciação, agenciamento, variação, criação e devir revolucionário, no sentido de esconjurar a vergonha ou responder ao intolerável.
Partindo da análise de Foucault (2006) a respeito das vidas infames - intoleráveis em seu tempo - encontradas em registros documentais pela intensidade do exercício do poder para governá-las, propomos uma cartografia do intolerável como uma pista para percorrer os escombros do presente. Assim, quando a escrita se torna inominável para o vivido, estamos nos movimentando na intensidade das relações de poder em nossos corpos, forças em disputa. Ao nos aproximarmos das experiências de mulheres em comunidades específicas, seus trabalhos, suas articulações comunitárias, suas vulnerabilidades e seus sofrimentos, passamos a compartilhar relações que nos atravessam e nos constituem como mulheres que (se) cuidam 3. É a abertura para acompanhar o que nos afeta na produção do intolerável e que nos leva a alinhavar um outro regime de visibilidade e dizibilidade do acontecimento.
Se antes o desespero pela nomeação nos desviou do exercício do sentido, agora percebemos que o intolerável emerge no paradoxo, entre o que se coloca em análise no acontecimento e o exercício ético e político de quem estamos nos tornando nesta experiência de ver e dizer. O campo problemático da relação entre saúde mental e políticas sexistas e racistas nos aproxima da demanda de escuta do intolerável vivido por mulheres. E o intolerável não é o aparente. Estamos interessadas em um fazer, juntamente com outras mulheres:
[...] de modo que certas frases não possam mais ser ditas tão facilmente, ou que certos gestos não mais sejam feitos sem, pelo menos, alguma hesitação; contribuir para que algumas coisas mudem nos modos de perceber e nas maneiras de fazer; participar desse difícil deslocamento das formas de sensibilidade e dos umbrais de tolerância (Foucault, 2006, p. 347).
Assim, se parece intolerável que, no meio de um momento de formação política e gênero, uma mulher solicite aos homens que saiam porque ela precisava falar e ali nos conta sobre violências vividas; se parece intolerável que, também em outro momento de formação política, mulheres comecem a falar, transbordando em cascata, violências vividas sem hesitação, sem pensar que não estavam em ambiente ‘protegido’, ‘seguro’, ‘entre pares’, ‘com sigilo pactuado’ para isso; se parece intolerável associar a ida ao mangue juntas à terapia - o trabalho é árduo, mas é prazeroso, porque é uma terapia. Nós brinca, nós canta, nós pula, nós pinta e borda 4 -, intolerável nos parece a naturalização de tais violências, a ponto de ouvirmos.
Escutamos narrativas de violência em transbordamento, como se desejando encontrar eco, acolhida bem como modos de transmutação; como se desejando explodir a forma individualizante com que tais questões tendem a ser “cuidadas” e encontrar caminhos coletivos de luta. À medida que pontilhamos os fios entre suas narrativas, encontramos uma linha que atravessa as histórias costuradas nas escutas com e entre mulheres, tornando visível uma enunciação coletiva: uma costura clínico-política por um cuidado feminista.
Alinhavos de um Fazer Feminista
O que fazer? Olhos marejados aqui e ali buscam mais elementos para essa caixa de costura. Encontram a entrevista da escritora espanhola Irene Vallejo (El País, 2020). Letras, vocábulos e orações agitam o corpo, amontoam-se desordenados, como que avistando um solo-argumento para brotarem como cogumelos em meio ao mofo das palavras (de ordem reiteradamente proferidas pelos homens de bem) que informam e nos apequenam nesses tempos, silenciando a vida secreta das/nas palavras, assim como mulheres seguem sendo silenciadas, às vezes por se montarem (em gestos e palavras) demasiadamente encrustadas a esse falatório do progresso do homem capitalista. Lágrimas e Irene, emoção e tessitura, coisas de mulher (não é?).
No texto Imaginar gestos para barrar a produção pré-crise, Latour (2020) coloca em questão o falatório de que a pandemia teria efeitos paralisantes no comércio, na produção, na economia. Esse falatório sustenta a necessidade reiteradamente veiculada de que não podemos parar, de que vidas precisam ser sacrificadas em nome do progresso e do desenvolvimento da produção capitalística (anterior) ao período pandêmico. A economia está paralisada? Tendemos a concordar que sim, mas não a capitalística, esta segue funcionando muito bem. Paralisada está (há algum tempo) nossa economia desejante. A produção capitalística, pré e pós-crise pandêmica, tem tido efeitos nefastos, sim, na nossa economia subjetiva, apequenando nossa terra-corpo, nos furtando a deriva, a vitalidade, o viço da vida. Mas, o que fazer? Como não paralisar? Como sobreviver? Como seguir vivendo? Como seguir imaginando? 5 Emoção-costura-mulher. Emoção e costura, gestos femininos que disputam outros exercícios com a vida na captura insistente da economia subjetiva capitalística. Emoção e costura, um gesto, “um meio sem finalidade, ele se basta, como na dança ... ele abre a esfera da ética ... na conjunção impossível entre o moribundo e o embrionário” (Pelbart, 2003, p. 69) desse nosso tempo. Emoção e costura agenciando-se na artesania de uma vida que resiste à sina de ser ração do capital.
Emoção, primeira inteligência e linguagem humanas, diria Wallon (2008) no livro “do ato ao pensamento”. As emoções - esses espasmos musculares, corporais, como o choro de um bebê - nos mantiveram vivas até aqui. Nós, humanos, animais que nascemos tão vulneráveis, não sobreviveríamos sem elas. Emoção, “um gesto ao mesmo tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer imaginamos” (Didi-Huberman, 2016, p. 26). Sentindo as dores desses nossos tempos, uma exigência ética e estética vai nos guiando: que ampliemos nossa capacidade de imaginar, de fabular mundos. Essa ampliação é realizada quando somos tomadas de emoção. Emoções movimentam e inventam mundos (Didi-Huberman, 2016). Entretanto, não nos referimos aqui a uma “emoção psicológica” associada a uma interioridade do indivíduo, mas a uma “emoção vital” que compõe aquilo que Rolnik (2018) chama de “saber-do-corpo” ou “corpo vivo”, uma espécie de germe de mundo e de coletivo que nos habita.
O saber-do-corpo e seus mundos em estados virtuais produzem efeitos-subjetividade por meio dos encontros que fiamos (seja presencialmente, seja por meio das tecnologias de informação) com gente, coisas, paisagens, ideias, situação políticas, clínicas etc. (Rolnik, 2018). Assim, é preciso atentar aos estados de estranhamento, pois eles sinalizam o movimento da experiência que nos subjetiva e suas expressões podem nos dar pistas dos mundos que nos inventam e inventamos. As formas criadas para acompanharmos essa experiência, o movimento do “saber-do-vivo”, também passam por este estranhamento e demandam uma estética própria. O paradoxo do intolerável vivido no encontro com mulheres, durante a pandemia, alinhava fios dos processos que nos subjetivam, ou seja, estamos cartografando os modos viventes - e insurgentes - do cuidado.
Emoção vital que costura a artesania de uma vida. Irene Vallejo (El País, 2020), na busca pelas mãos de mulheres na história do livro e da leitura, na história do conhecimento (a escritora pontua, inclusive, a existência de um primeiro texto da história, feito desconhecido, assinado por uma mulher, uma sacerdotisa arcádia, Enheduanna) assinala, no vídeo supracitado, que, apesar das obrigações que encerraram as mulheres dentro de suas casas, encontramos a presença de narradoras de histórias. As mais antigas, as contavam enquanto costuravam. “Ao mesmo tempo em que cosiam, contavam suas emoções, suas histórias”, usando o que tinham nas suas mãos: tarefas femininas transmutadas em gestos de costura, em ações de bordar discursos, inventar um enredo, entre coser e narrar, uma contra-memória da mulher se tecia, fazia-se experiência, acontecimento, emoção vital, tecia-se uma vida para além do espaço da casa, apesar de ali encerradas. Costura, um gesto de artesania, de resistência à produção capitalística fabril, empresarial, alma-empresa.
A produção capitalística, como indicam Guattari e Rolnik (2000), tem como gatilho fundamental a tomada de poder sobre nossas subjetividades, sobre nosso desejo, sobre nossa força vital. A crise é ecológico-subjetiva e não da produção capitalística, pois esta segue inquestionável, tomando sempre outras formas, aproveitando-se de nossas forças, da vida das nossas palavras e de nossos gestos que cada vez mais se automatizam. Mas, o que fazer? Emoção-costura-mulher-natureza. A pergunta persiste perturbadora: o que estamos aqui a costurar? Que história estamos bordando e borrando? Essa história parece difícil de se rastrear porque ela está sendo tramada agora junto aos restos, ao refugo desse tempo. Nós temos bordado uma história com mulheres. Mulheres cujos corpos testemunham múltiplas violências. Mulheres do nordeste e do sul, mulheres das periferias de Porto Alegre - trabalhadoras, mães, lideranças comunitárias -; e mulheres das águas de Sergipe - marisqueiras, chefas de família, trabalhadoras, lideranças comunitárias, participantes de um movimento social. Essa trama tem alinhavado aproximações entre academia e comunidade, tem enredado conhecimentos científicos e conhecimentos de comunidades tradicionais, os quais poderíamos chamar de conhecimentos populares e ancestrais. São alinhavos que se estendem entre as fissuras deixadas por lógicas cartesianas de apreender a vida, fios que buscam re-ligar aquilo que a racionalidade moderna rompeu, rasgando bordas de um mesmo tecido que não deveria afastar clínica e política, teoria e prática, academia e militância, pesquisa e extensão. Nessas costuras que aproximam trabalhadoras das periferias gaúchas às marisqueiras dos mangues sergipanos e às extensionistas-pesquisadoras das duas universidades federais, remendam-se e reinventam-se junto mulheres que parecem tecidas com fios de uma trama ampliada com e na diferença. Marias cuja “estranha mania de ter fé na vida”, como entoado na canção de Milton Nascimento, ampliam sentidos para a palavra “cuidado”, para a palavra “afeminada” (aprendemos que cuidar é coisa de quem?). Estamos costurando uma história de mulheres, entre mulheres, uma história feminista.
O feminismo também tem isso: ele não coloca só o problema do reconhecimento dos direitos da mulher em tal ou qual contexto profissional ou doméstico. Ele é portador de um devir feminino que diz respeito não só a todos os homens e às crianças, mas, no fundo, a todas as engrenagens da sociedade. Aí não se trata de uma problemática simbólica - no sentido da teoria freudiana, que interpretava certos símbolos como sendo fálicos e outros maternos - e sim de algo que está no próprio coração da produção da sociedade e da produção material. Eu o qualifico de devir feminino por se tratar de uma economia do desejo que tende a colocar em questão um certo tipo de finalidade da produção das relações sociais, um certo tipo de demarcação, que faz com que se possa falar de um mundo dominado pela subjetividade masculina, no qual as relações são justamente marcadas pela proibição desse devir (Guattari, & Rolnik, 2000, p. 73).
Se intentamos, mais do que sobreviver, insistir na vida, precisamos afirmar, de uma vez por todas, que essa captura da totalidade do desejo e essa blindagem da subjetividade à alteridade é acumulação de morte. Estamos cada vez mais “frente a frente com a morte de uma forma generalizada” (Preciado, 2020, p. 5). Uma clínica feminista quer afirmar e expandir a vida. Quer remendar, cerzir, costurar, bordar como atividades que criam sentidos no desvio do hábito que tenta manter, nós mulheres, na lógica patriarcal-domesticada. A singularidade e a singularização das mulheres se tecem nos tropeços das funções designadas na história deste país colonizado. Então, se queremos alinhavar posições que enfrentam as formas totalizantes e os códigos dominantes, é urgente radicalizar, em nossas práticas, a indissociabilidade entre clínica e política. Nessa direção, pensar a clínica como um exercício de problematização da subjetividade assujeitada aos valores dominantes codificados em saberes morais (Abreu, & Coimbra, 2018). Ora, se tanto as práticas clínicas quanto as chamadas práticas políticas estão presentes e se articulam numa certa política de subjetivação, como pensá-las em separado? Aliás, com que finalidade? As autoras apostam que a tentativa de exclusão da política como plano de forças coletivas que permeia vida, produzindo modos de subjetivação desta ou daquela maneira, é um modo de retirar das pessoas sua potência crítico-inventiva de criação de muitas maneiras de existir, fortalecendo, assim, modos de cuidado tutelares e moralizantes.
Do Alinhavo à Costura
Mas, o que fazer? Emoção-costura-mulher-natureza-clínica-política. Acompanhamos mulheres do Movimento de Marisqueiras de Sergipe e promovemos uma rede de cuidado a mulheres em situações de violência na cidade de Porto Alegre. Política se faz clínica e clínica se faz política; um espaço entre tais palavras é habitado coletivamente. São essas composições entre comunidades e o exercício da extensão universitária que possibilitam a experiência dialógica entre mulheres e a passagem da pergunta “o que fazer” para uma prática interrogativa do comum.
O Projeto de Fortalecimento Sociopolítico das Marisqueiras de Sergipe - que integra o Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC/SE) - e o Observatório Popular de violências, pela vida de mulheres de povos e comunidades tradicionais de Sergipe são dois projetos de extensão que se constituem como espaços de articulação entre pesquisadoras, técnicas do PEAC e mulheres de povos e comunidades tradicionais e de movimentos sociais. Neste fazer redes, seguimos na espreita de experimentar uma micropolítica que não se contenta com a conquista e manutenção de direitos constituídos, mas insista na produção incessante de territórios de vida fiados por meio das relações históricas entre mulheres, delas com suas atividades laborais, seus fazeres constitutivos de si e do mundo do mangue. Seguimos a constituição de uma cultura da mariscagem, o modo como preparam os mariscos, os cantos, a articulação entre mulheres e entre estas e as águas no processo de mariscar, os gestos, os saberes envolvidos nesse modo de vida e suas relações com a maré e o mangue.
Sou marisqueira desde os oito anos de idade. Vivo do mangue, trabalho no mangue. O patrão nosso é Deus! A gente vai no dia que quer, se for hoje e não quiser amanhã a gente não vai. A gente sabe que eles estudando eles vão ter patrão, vão ser mandado, vão ser dominado. Mas a gente quer uma coisa melhor pra eles porque é pesado o serviço do mangue 6.
A empresa vem e destrói tudo, as casas de veraneio, os condomínios vêm e destrói tudo. O mangue é vida, é de onde a gente tira o nosso sustento, e muito deles comem o que a gente pega, mas continuam fazendo isso aí... Eu vivi isso. Jagunços dizendo que a gente não podia mais ficar ali. Tivemos de deixar nossas casas e dormir na mata com nossos filhos. Morreu gente. O pobre não tem direito ao mangue e nem à sobrevivência 7.
O Programa de extensão Clínica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade (CliFI) foi estruturado a partir da provocação da ONG Themis - Justiça de Gênero e Direitos Humanos, e do Movimento de Mulheres Olga Benário, organizador da Ocupação Mirabal, para uma parceria que aproximasse a universidade pública da realidade de violência vivida por mulheres da cidade de Porto Alegre. A proposta inicial, planejada ao final do ano de 2019, visava realizar a formação em saúde mental com mulheres das comunidades destas organizações parceiras, que são responsáveis por acolher mulheres que vivem situações de violência. Mas o imprevisto da pandemia ativou o movimento de um novo fazer pela premente demanda de atender mulheres em sofrimento psíquico em função de situações de violência, levando o programa de extensão a organizar uma metodologia de trabalho com escutadoras em saúde mental, em atividades de acolhimento e grupos de apoio mútuo online. Ao longo do ano 2020, vai sendo costurada a colcha de retalhos do coletivo CliFI, com cerca de 20 mulheres, num encontro de gerações que vai dos 20 aos 60 anos, e num encontro entre práticas de professoras, psicólogas, assistentes sociais, estudantes de psicologia, enfermagem e saúde coletiva, advogadas e promotoras legais populares.
Interpeladas pelas dores de muitas das violências experimentadas pela condição de ser mulher, atropeladas pelas urgências que as restrições sanitárias de isolamento pandemia do Covid-19 impuseram, e com nossos narizes incomodados com o mofo de palavras como “clínica” e “feminismo” (ambas palavras brancas), foi sendo artesanalmente fiado o que temos chamado de Clínica Feminista na perspectiva da Interseccionalidade. “O abandono é triste, o abandono dói, mas nós queremos viver. Hoje eu tenho vocês”; “Eu tenho direito, mas eu tinha medo”; “Eu não me via, as pessoas me viam, mas não fechava. A pessoa dizia que eu fazia muito na comunidade para as outras mulheres, eu não acreditava”; “Hoje tu botou batom vermelho, no grupo tu não usa! - Eu não usava batom vermelho, ele dizia que era coisa de puta. No primeiro dia que fui escutada, as psicólogas estavam com batom vermelho, umas divas. Eu pensei: quando vou usar também? Hoje resolvi usar, porque ia encontrar todas aqui”; “Quando a gente entra no grupo, a gente tá no fundo do poço, e aí a gente vai saindo, saindo ... fiquei 50 anos casada e nunca fui mulher, agora sou 8.
No dia 25 de junho, sábado, retornei à cidade onde quase morri assassinada para dar meu testemunho de sobrevivente. A diferença é que a ocasião não era por motivos de investigação policial, em um interrogatório frio e revitimizante, ou a tortura psicológica vivida nas audiências públicas do Judiciário, onde advogados nos maltratam como uma forma institucionalizada de vingança por saberem que seus clientes não serão absolvidos dos crimes pelos quais foram presos em flagrante, ou com provas incontestes - essas palavras, e a maneira como são ditas, nós as conhecemos bem e rotineiramente. (Hipólito, 2022, n.p.)
Essas palavras-vidas escutadas alinhavam a nomeação de nosso fazer feminista, percorrendo os labirintos do tanto que já nos silenciou, encontrando fios de redes de sentido por terras e águas que nos movimentam juntas. Coser, uma arte de escutar. Instalar experiências com as palavras mulher, feminino, feminismo. Ensaiar gestos femininos que possam rasgar um tecido social cerzido sobre o sangue e suor das mulheres que há tanto serve ao regime colonial-capitalístico. Como reafirma Federici (2019, p. 140) na conclusão da obra que atualiza e revisita os principais temas de seu seminal Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, de 2004: “o ataque contra as mulheres vem, sobretudo, da necessidade de o capital destruir o que não consegue controlar e degradar aquilo de que mais precisa para sua reprodução. Trata-se do corpo das mulheres”.
Trata-se, pois, de, no avesso deste movimento, bordar uma (des)subjetivação feminina. Tramar uma política de cuidado ou um cuidado na política para que todas e cada uma mulher possa fazer certa travessia, ampliando seus territórios de vida (social, subjetivo e ambiental), tramar uma ecosofia (Guattari, 2001), costurando com linhas heterogêneas.
Nesta trama, as feministas negras têm tido uma contribuição destacada, pois, como alerta Akotirene (2019), há uma riqueza epistêmica nessas leituras de mundo contra hegemônicas, já que as intelectuais negras contemplam saberes periféricos do lado sul-nortista. Há, portanto, uma com-posição epistêmica que possibilita contrapor a geopolítica do conhecimento que sentencia a vivermos sob a supremacia imperialista de publicação e difusão do conhecimento para o “resto do mundo”. A interseccionalidade aqui, mais que um conceito, é também uma ferramenta de luta política que nasce do cotidiano dos enfrentamentos e desafios políticos das mulheres negras. Permite enxergar as opressões e criar meios de combatê-las, já que o conceito nos ensina a compreender o cisheteropatriarcado, o capitalismo e o racismo, como coexistentes, como modeladores de experiências e subjetividades. Nas palavras da autora:
Adotando nisto o ponto de vista de Crenshaw, frequentemente e por engano, pensamos que a interseccionalidade é apenas sobre múltiplas identidades, no entanto, a interseccionalidade é, antes de tudo, uma lente analítica sobre a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais. A interseccionalidade nos mostra como e quando mulheres negras são discriminadas e estão mais vezes posicionadas em avenidas identitárias, que farão delas vulneráveis à colisão das estruturas e fluxos modernos (Akotirene, 2019, p. 37).
De uns tempos pra cá, parece natural falar em interseccionalidade e feminismos de muitas cores. Mas, para quem isso parece natural? Que feminismos ainda são (im)possíveis? E em meio a tantas pequenas mutações, por que as coisas seguem sendo assim e assado? Borges (2020), estudando os efeitos distópicos da pandemia, ainda em meados de 2020 constatava “que estamos todas e todos à deriva do mesmo mar de incertezas em relação ao ‘novo normal’, mas não estamos no mesmo barco, tampouco com os mesmos utensílios de segurança, já que a seletividade da necropolítica é categoricamente interseccional.” Afirmando categoricamente que o que está em jogo com a gestão pública mortífera da maior crise sanitária do século é uma continuidade do projeto de branqueamento do Brasil colonial, que se atualiza na forma de relação de posse e servidão perpetrada no âmbito privado a partir da operação do cuidado, que sempre descontou nas mulheres negras a via sine qua non para estruturar a complexa teia de relações sociais na sociedade brasileira até os dias de hoje.
Vale, neste sentido, o alerta feito por Franchini (2017) ao apontar as limitações da divisão meramente didática do feminismo por ondas. Segundo a autora, a interseccionalidade não foi uma novidade da terceira onda: “Mulheres negras feministas sempre existiram, desde a primeira onda; e, justamente por serem negras, sempre analisaram sua condição enquanto mulheres também sob o prisma do racismo”.
Racismo, machismo, classismo, capitalismo, colonialismo, parafraseando Butler (2003), circulam em nossas veias como sangue. Quem foi mesmo para o maior ato de mulheres do Brasil, o movimento “#Ele não” 9? As mulheres periféricas de Porto Alegre e as mulheres marisqueiras de Sergipe que não estão atuando em movimentos foram? “Imaginemos uma clínica na qual aquilo que se escuta é o que nos ensina o próprio fazer” (Baldasso, 2021, p. 93). Os ecos dessa escuta parecem mirar num trabalho de base, fazer povo, e “o povo é sempre uma minoria criadora” (Deleuze, 1992, p. 214). Acreditar no mundo, imaginar um mundo, tocar o real fazendo-o arder significa suscitar acontecimentos, contar histórias, fiar contradiscursos, ensejar gestos mesmo pequeninos, e é ao nível de cada tentativa que se avalia a capacidade de resistência ou de submissão a um controle, quiçá a coexistência das duas coisas, a disputa de forças que coexistem na macropolítica e em cada um e uma de nós. Nin (1987) dizia que o movimento de escrever era uma necessidade, assim como o mar precisa das tempestades, e era exatamente essa relação necessária com a escrita que ela chamava de respirar. Por isso nossa aposta é a de acompanhar histórias de mulheres, em criação e articulação. Tecer uma vida, com mulheres. Respirarmos juntas outros ares, renovar os ares.
Para tanto, parece ser necessário, inclusive, recusar o lugar de vítima. Entendemos que as múltiplas violências empreendidas na constituição de um corpo-mulher, assim como a clínica moralizante da tutela e o terror de Estado, são instituições historicamente estabelecidas, reiteradas por nossas práticas sociais, inclusive nossas práticas clínicas. Assim, os efeitos-subjetividade que nos chegam na clínica não podem se apequenar, como quando os entendemos como experiência privada, íntima, individual (Abreu & Coimbra, 2018). Trata-se de desindividualizar, despatologizar e politizar sofrimentos que são parte de um plano comum na composição desses corpos. Importante ressaltar que essa problematização não ignora as singularidades das experiências trágicas, mas coloca em análise estratégias de captura do sofrimento provocado pela Violência (aqui já entendida como instituição) no plano das forças reativas, que só conseguem clamar por vingança e punição, retroalimentando o fortalecimento de uma identidade vitimada, despotencializada, à espera de um salvador, o (pai e o príncipe encantado) Estado. Desenha-se, assim, a arapuca armada para o lugar vítima - “a tutela sob todos os aspectos” (Abreu & Coimbra, 2018, p. 105).
Aos nos propormos o exercício feminista como composição de nossa prática educativa numa extensão universitária, nos colocamos como parte de uma comunidade de aprendizagem em que participamos mutuamente do trabalho e em que, conforme define Bell Hooks (2020, p. 49), “descobrimos juntas que podemos ser vulneráveis no espaço de aprendizagem compartilhado, que podemos nos arriscar”, pois acolhemos e exploramos juntas as práticas do saber como uma prática da liberdade. Nesta perspectiva, a autora afirma a escuta, o silêncio, o diálogo, as formas de compartilhar e contar histórias como alguns dos ensinamentos que promovem o apoio mútuo e uma sabedoria/prática dos modos de aprender antirracistas e feministas.
Neste sentido, essa abertura para alinhavar e costurar com quem passa a compor uma comunidade de extensão envolve o movimento desde o momento que formamos uma equipe para desenvolver o projeto: professoras/es, técnicas/os, estudantes, colaboradoras/es, problematizando vestes hierárquicas, racializadas e sexistas, possibilitando que corpos experimentem quem podem se tornar nesta outra textura, entre costuras interdisciplinares e transversais. Ou seja, a experiência com as mulheres no acolhimento, nos grupos e nas assessorias, provoca também um movimento crítico ao modo como se constituem as práticas de extensão, ensino e pesquisa, pois a instituição educação e suas materialidades pedagógicas também estão em análise ao compormos uma comunidade de aprendizagem mútua.
É hora de devir cardume, já não se pode desinventar a bomba atômica, a ética colonial e patriarcal da destruição não irá retroceder, o esperado não virá, não há lugar para voltar e sim mundos a construir pela resistência e composição entre mulheres. Nesta paisagem mortífera, em pleno 2020, o embrionário da vida se espraia, fia-se um tecido histórico de mulheres que insiste em transversalizar nordeste e sul, academia e periferia, saberes científicos e populares. Uma clínica feminista em que o setting é o corpo que acontece nos encontros de mulheres, nós de acolhimento, emoções vitais de estranhamento, pois é do vivo viver. Atualidade que agiganta nossa responsabilidade ética-acadêmica com as ações que se tecem na imanência do intolerável.
Uma política, uma clínica que tem como território comum um desejo coletivo de outrar as palavras mulher, feminino e feminismo. “Algumas palavras são corpos em combate”, conclamam os editores da N-1 em pequenos presentes-petardos que acompanham as obras de pensadoras/es que nos ajudam a respirar em tempos de ares rarefeitos. Um outrar as palavras mulher e feminino e seus modos de encarnação, propor-lhes uma contra-dança. Escrevemos entre nós, e por nós, devindo mulher. E esse “nós” expande-se entre mulheres que passam por algum tipo de violência pelo nada simples fato de terem se constituído como mulheres. O enfretamento dessa lógica requer a constituição de um plano coletivo, um nós que se expande para todo corpo amansado, arrebanhado, organizado como humano, demasiado humano.
No habitar esse território coletivo desejante por outras germinações das palavras da experiência do intolerável que nos constitui mulheres, no acompanhar mulheres periféricas e de comunidades tradicionais, em situação de múltiplas violências, outro paradoxo surge como uma pedra angular no caminho: a moral de gênero barrando um devir-mulher, a multiplicação das vozes, a pluralidade das línguas, a vida das palavras, a emancipação coletiva, a articulação heterogênea, como se o buraco da agulha fosse muito pequeno para a linha passar, ou como se a linha tivesse se esgarçado e já não passasse. Algo impede conexão e costura. Para habitar esse paradoxo, ensaiando com a clínica e a política de uma ecosofia, percorremos uma atitude ético-estética: uma clínica feminista faz-se comprometida com a transvaloração, com um colocar em análise a moral de uma época, arrimo do instituído.
Acompanhar mulheres em situações de violência, assessorar um movimento social de mulheres, passa por colocar em análise a moral de gênero e, com ela, as instituições família, maternidade e amor, e requer a coragem de se desprender, de se perder, de considerar que a agulha que costura implica um furo, uma abertura ao estranhamento, à dor e à transmutação. Aqui, lembramos de um evento de saúde mental, que se inicia com um levantar de mão na plateia seguido da seguinte pergunta: “eu quero saber quando vamos incinerar as mães”. Essa pergunta é fora da razão? Sim, como Baldasso (2021) nos indica, ao pesquisar um certo deslo(u)camento do feminino, basta lembrarmos da pátria mãe gentil, amada, Brasil, e da sina das mulheres brasileiras em educarem seus filhos para serem homens de bem. Caso falhem, culpa delas que não os educou devidamente. Acompanhar mulheres em situações de violência requer também colocar em análise esta moral classista e racializada.
Essas questões são nossas, de brasileiras que desejam colocar em análise as práticas psi (colonizadoras). No livro Ensaios do assombro, Pelbart (2019) recorre a Aimé Cesaire para afirmar que
talvez valesse a pena estudar, clinicamente, no detalhe, as trajetórias de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês do século XX [e às almas empresas neoliberais do século XXI], muito distintas, muito humanistas, muito cristãs, que elas carregam um Hitler que se ignora, que mora nele. (Cesaire como citado em Pelbart, 2019, p. 178)
Uma clínica feminista luta por desvencilhar-se de procedimentos de individualização, para fazer explodir essa paisagem de apequenamento da vida numa cara civilizada, racializada e generificada.
Remendos e Marés
Um mero remendo não será suficiente. No meio da cratera será preciso reinventar literalmente tudo, começando pelo social (Mbembe, 2020, p. 8).
Na direção de tentar finalizar o texto e seguir na luta, retomemos o que paralisou a costura dessas palavras: o cansaço após um ano de pandemia que se reedita com o fortalecimento e mutação do vírus versus homogeneização/cristalização da vida humana num contexto de políticas públicas precarizadas - sim, o vírus varia em meio à nossa incapacidade de variar modos menos predatórios de viver. Em Necropolítica nos trópicos, Pelbart (2019) diz que o projeto central de soberania contemporânea se baseia na instrumentalização generalizada da existência humana e na destruição material de corpos humanos e populações. Afirma, articulado ao pensamento de Mbembe, que viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de viver na dor, atualizando memórias de humilhação, interrogatórios, espancamentos, estupros. Corpos periféricos que já não têm por que ser explorados, são relegados a uma humanidade supérflua, entregues ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital.
Como discute Preciado (2020, p. 5), a crise da Covid-19 poderia ser entendida como “crise da soberania do corpo branco, europeu e heterossexual do capitalismo patriarco-colonial”, mas também como uma experiência coletiva que poderia vir barrar a aceleração capitalista. “Essa desaceleração repentina não tem apenas um impacto econômico, é também igualmente suscetível a produzir outras formas de subjetivação” (Preciado, 2020, p. 4). Passado um ano, a aceleração parece ter se exacerbado e se instalado de uma vez por todas no coração das nossas casas e corpos. Sigamos, então, a modular outros gestos que criem pausa, que permitam olhar para o que nos acontece no tempo que o coração bate, sem a taquicardia do medo e tirando o véu da verdade da cena da acumulação financeira do capital. Costurar encontros que movimentem uma vida pulsante, humana e não humana, que coloque em análise a moral de uma época, eis a mirada clínico-política. Enfrentar o humanismo (primo-irmão da escravidão) para uma ecosofia, atingir um horizonte pós-humano, uma ética do alinhavo de fios múltiplos e da passagem para outrar.
Nesse agenciamento entre política, clínica e feminismo, vale a pista deixada pela filósofa Tiburi (2020, p. 183): “Precisamos construir caminhos para uma política da escuta. Uma política da escuta que esteja atenta aos nossos anseios éticos, à dimensão do outro, seja esse outro aquele que nos é próximo, seja a natureza da qual estamos cada vez mais alienados”. E então, fizemos. Escutamos, escutamos e escrevemos. Escrevemos lágrimas. Escolhemos irrigar uma forma de existência e resistência, um outro modo de gerar conhecimento, compondo - com e entre mulheres - uma estética da existência do intolerável. São escolhas políticas, não são adereços do feminino, como a lógica macho-branco-universal faz questão de acenar como mais um modo de desqualificar nossa narratividade.
Lágrimas são intoleráveis. São afetos - emoções vitais - que tocam e fazem lacrimejar, não por fragilidade, mas porque o corpo solicita ação. Marejar os olhos é irrigar o que vemos com outro contorno, certamente não é a forma que foi reproduzida por séculos, ditando o que e como devemos expressar nossos sentidos. Irrigar as palavras, tirar a aridez que seca a geração de sentido, que retira morada da voz de quem fala e com quem fala. Redes molhadas com mares a favor da vida. Sigamos a costurar!