Notícias de uma Nação Entristecida e seus (Im)Possíveis Cotidianos
Em seis de abril de 2021, acompanhamos pelos jornais o nascimento de Izabella, filha de Rodrigo e Ellen. O pai deu à luz em parto natural. À saída do Hospital Universitário em Montes Claros, interior de Minas Gerais, Ellen Carina, a mãe, informa ao jornal da região: "Estamos encantados com o respeito e dignidade com que fomos recebidos e tratados no hospital. Profissionais preparados para nos atender e nos deixar à vontade. O HU fez tudo para nos ajudar. Estamos abrindo portas para os próximos casais trans” 1. A matéria informa, ainda, que o receio com o coronavírus obrigou os pais de Izabella a deixarem o trabalho ainda antes do parto: Ellen, que atuava como cabeleireira junto a sua mãe, achou prudente fechar o negócio; e Rodrigo atuava como motoboy, encerrando as atividades logo no início da pandemia, considerando-se ainda os riscos de um pai grávido sobre uma motocicleta. O casal hoje vive de doações, acompanhando o contingente de pessoas que voltaram a viver na miséria no Brasil desde 2016, com o agravante de residirem no país com os maiores índices de assassinatos de pessoas trans no mundo, segundo dados da Transgender Europe (TGEU, 2016).
Nem bem celebrada a novidade do casal, dias depois, outra família passou a ser notícia. Alvo de discurso de ódio, o ator Paulo Gustavo, casado com o médico Thales Bretas e pais de Gael e Romeu, recebeu votos de óbito pronunciados pelo pastor evangélico neopentecostal José Olímpio. O ator, a essa época, encontrava-se internado por Covid há mais de trinta dias. Considerado o braço direito do presidente da Assembleia de Deus no estado de Alagoas, região Nordeste do país, dessa maneira professou ao seu rebanho o pastor: "Esse é o ator Paulo Gustavo que alguns estão pedindo oração e reza. E você vai orar ou rezar? Eu oro para que o dono dele o leve para junto de si" 2. Infelizmente, Paulo veio a óbito em 5 de maio, semanas depois dessa interpelação. Paulo deixou o marido e os gêmeos, estes com idade de um ano e nove meses, assim como uma imagem muito positiva na história da televisão e do cinema brasileiro, especialmente em relação a diversidade sexual e homoparentalidade. O sucesso de sua personagem Dona Hermínia - alusiva à própria mãe - gerou sequências do filme com enorme bilheteria. Ao performar em Minha mãe é uma peça, mesmo que alinhado às clássicas representações teatrais do gênero gay festivo, o saldo é uma recepção nacional sem precedentes para um ator assumidamente homossexual e pai de dois filhos, a despeito dos enunciados de ódio, como o do pastor Olímpio, e do momento de exceção político-moral que vivemos. Ainda que a homofobia e a transfobia sejam criminalizadas no país, equiparadas ao crime de racismo, desde 2019, por ação do Supremo Tribunal Federal 3, as falas de ministros/as e mesmo do então Presidente da República desafiavam a decisão judicial e autorizavam seus e suas seguidores/as a proferir o discurso de ódio.
Outra notícia, entretempos, acompanha a centralidade da questão da família e das crianças: “[...] um projeto de lei para proibir a veiculação de publicidade com pessoas LGBTQIA+ ou famílias homoafetivas no estado de São Paulo”. Marta Costa, deputada estadual pelo PL, justifica o projeto de sua autoria, da seguinte forma: “[...] essas propagandas trariam ‘desconforto emocional a inúmeras famílias’ e que mostram ‘práticas danosas’ às crianças. Para ela, a proibição vai ‘evitar a inadequada influência na formação de jovens e crianças’” 4. A ação contou com grande mobilização e resistência dos grupos LGBTQI+ e suas representantes no parlamento, entre elas a deputada Erica Malunguinho - a primeira mulher transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo -, além de uma moção de repúdio ao projeto por parte da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) 5. A autora do projeto pertence à Igreja Assembleia de Deus 6 e está em seu segundo mandato como deputada estadual pela sigla PSD - Partido Social Democrático -, base aliada ao atual governo federal, evidenciando o corrosivo avanço dos partidos teocráticos sobre o pacto constitucional da laicidade.
Essa articulação moral e de apelo à determinada representação de família - como um grupo exclusivamente heterossexual e cisgênero, ademais de branco - é também uma das principais frentes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta presidida pela pastora evangélica neopentecostal Damares Alves. O ministério, que, atualmente, em nada se aproxima das pautas dos direitos humanos, foi responsável recentemente por um acordo com a Coordenação Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES), uma das mais importantes agências de financiamento em formação de pesquisadores/as do país e ligada ao Ministério da Educação, com deliberada intenção de promover estudos que reforcem os ideais regulatórios supracitados.
A pasta de Damares propôs junto ao órgão de fomento a chamada de pesquisa Programa Família e Políticas Públicas no Brasil, determinada a fortalecer estudos que se alinhem aos pressupostos morais da família, em detrimento à sua crítica e intersecções como diversidade sexual e de gênero ou pluralidade religiosa. A ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, se pronunciou contra tal edital, juntamente com outras associações científicas. A mobilização na Psicologia encontrou forte articulação dos Grupos de Trabalho Psicologia e Estudos de Gênero e Psicologia, Política e Sexualidades:
[...] o edital não dialoga e, em inúmeros pontos, está em confronto direto com o que têm demonstrado as investigações científicas mais atuais e comprometidas com a realidade social do Brasil no campo dos estudos sobre famílias, relações de gênero e sexualidades. Destaca-se, também, a total inobservância de parâmetros legais assim como de definições nacionais e internacionais no que se refere à proteção das famílias, alinhados aos direitos humanos e à promoção e respeito à diversidade. (Anpepp, 2020, n. p.)
Além disso, a pastora e ministra foi protagonista de uma das cenas de violência de gênero mais terríveis que o Brasil pôde testemunhar publicamente - embora a violência seja corriqueira. Diante de uma situação de abortamento, a ser realizada em uma menina de 11 anos, desde os seis anos de idade violada pelo tio, grupos ultraconservadores cristãos invadiram o hospital no qual o procedimento legal ocorreria. A informação foi vazada com intermediação de Damares e sua aliada Sara Winter - ex-feminista ou nunca feminista, mas se apresentando como tal. Embora o Ministério tenha negado sua participação na gestão do caso, a responsável pela criança (a avó) fora assediada por representantes religiosos para evitar o aborto, sendo a ela oferecido tratamento para acompanhamento da gestação facilitado pela Ministra. Ademais, um grupo com cerca de duzentos ativistas católicos e evangélicos, liderados por parlamentares (da bancada teocrática), tentaram invadir o hospital para impedir o procedimento médico 7, permanecendo em vigília com orações e gritos em direção ao obstetra: “'assassino', 'aborteiro', 'demônio' e frases como 'por que o senhor não mata seus filhos?'”
Outra face da cruzada antigênero é o transfeminicídio: cerca de quatro mulheres trans são assassinadas por semana. Ainda que subnotificado - por contingências da própria transfobia e racismo estrutural e institucional -, o número de vítimas fatais chegou a 175 no ano de 2020, sem contabilizar homens trans. Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, ativistas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - Antra, traduzem esse quadro, adicionando outras variáveis que integram o Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras, lançado no dia da visibilidade trans, 29 de janeiro, em 2021:
Quando perguntadas sobre suas principais necessidades, o direito ao emprego e renda aparece em 87,3% das respostas, seguido pelo acesso à saúde (em termos gerais e, também, em questões específicas de transição), educação, segurança e moradia. Além disso, 58,6% declararam pertencer ao grupo de risco para a COVID-19 (Antra, 2020, p. 9).
O elenco de notícias da guerra diária contra a liberdade de expressão sexual e de gênero, o racismo e a distribuição ambiental 8 no Brasil é amplo e não encontraria espaço no propósito deste trabalho, ademais de ser objeto de inúmeros trabalhos e registros que podem ser acompanhados através do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) 9. Interessa-nos, por outro lado, apontar estes recortes como políticas do cotidiano heterocisnormativo 10 local, porém acirrados globalmente, a partir de determinadas condições e possibilidades na trama do giro neoliberal - a começar com Reagan e Thatcher nos anos 1980 e o laboratório neoliberal do Chile durante todo o governo Pinochet, no qual as ideias da escola de Chicago foram testadas. Hoje, a ascensão da extrema direita (em uma associação entre neoliberalismo, ultraconservadorismo moral e xenofobia) no globo, assumiu destaque nos âmbitos legislativo, executivo e judiciário, como na Europa, EUA e América Latina, com pautas ultraconservadoras dirigidas à escola, às crianças, às famílias, à saúde pública e ao conhecimento científico.
No Brasil, isso se dá especificamente em: movimento escola sem partido, “não se meta com nossos filhos”, homeschooling e movimento antivacina, por exemplo. Tais operações discursivas e modos de compreender o mundo passam pela economia financeira das relações sociais e autorresponsabilidade dos indivíduos em todas as esferas da vida social e privada (Dardot & Laval, 2016; Brown, 2017). Ademais, é fundamental considerar os efeitos da cruzada antilaicidade e os fundamentalismos associados a (im)posturas ultraconservadoras (Chamayou, 2020) mobilizados nesta “nova razão do mundo” (Dardot & Laval, 2016).
Como a problemática geral do governo não separa subjetivação e formação do Estado (Lemke, 2017), a articulação entre diversas estratégias de poder em torno da gestão da vida por via de regulações amplas e legais sobre a população é produzida por tecnologias que atravessam os sujeitos, produzindo significados, marcando a diferença, estruturando e moldando “o campo de ação possível dos sujeitos” (Lemke, 2017, p. 23).
Diante do exposto, compreendemos as possibilidades de atuação da Psicologia e sua incidência social em termos que deslocam os processos subjetivos do foro individual, para a dimensão política e social. Seguindo o rastro feminista, o pessoal é político, e, acompanhando este argumento, para nós: o psíquico é político, a subjetividade e os modos como a compreendemos (o conhecimento que se produz em sua direção) é igualmente engendrado desde racionalidades específicas e de interface com a razão de Estado e a cultura. O conhecimento que produzimos, portanto, faz parte de uma política de subjetivação.
Apresentamos a seguir alguns movimentos de um ensaio carto-genealógico (como sustentado em outra publicação, Pocahy, 2020) que busca acompanhar/compreender algo em torno das (des)articulações entre racionalidade político-econômica, conservadorismo e diferença. Estamos interessados em discutir como tais (des)nexos contribuem para a hetero-cis-normatividade e o racismo (seguramente implicados ainda em especismo e capacitismo), produzindo impacto sobre parentalidades e conjugalidades diversas, sobre os modos de vida contemporâneos, bem como os efeitos de resistência que se produzem no interior das disciplinas psi.
Sobre Nossas Miradas: Modos de Pesquisar, Modos de Subjetivar
A aliança que estabelecemos entre a perspectiva genealógica de Foucault (2001a, 2001b) e o trabalho cartográfico presente em Deleuze e Guattari (1997) e Rolnik (2011) compõem um plano de problematizações sobre as condições e possibilidades de emergência dos discursos que se opõem e/ou se associam aos jogos de verdade e que dão contornos à relação dos sujeitos consigo mesmos(as) no processo de sua (auto)constituição (Foucault, 2001a).
Como estratégia de nossa produção de análises, assumimos os princípios da cartografia como modo de rastrear e questionar algo da produção de “campos de forças e relações” que se desdobram “no tempo, mas também no espaço” (Prado Filho & Teti, 2013, p. 48), de modo que, a partir do gesto deleuziano (e em interlocução com Foucault, 2001a), a cartografia funciona como mapa processual de redes e fluxos/diagramas de relações de forças (um modo de perceber os diagramas de saber-poder) que se ligam umas às outras, oferecendo-nos condições para a composição de paisagens político-culturais-existenciais (ou dis/posições de sujeito, agência, subjetividade).
Dessas entradas de problematização - no sentido foucaultiano, pensar como algo se constitui como objeto dado a ser pensado, conhecido e governado - temos a oportunidade de analisar “relações de naturezas diversas, formas circulantes de subjetividade, agenciamentos do desejo, práticas de objetivação e sujeição, modos de subjetivação e assujeitamento, práticas de resistência e de liberdade, ou mesmo formas históricas de estetização e produção de si mesmo” (Prado Filho & Teti, 2013, p. 57).
É desse modo que tomamos a ideia de uma junção daquilo que, em tese, esteve desde sempre reunido: a cartografia-genealogia como possibilidade de traçar as linhas que constituem o regime de materialidade de um enunciado, redefinindo as suas possibilidades de (re)inscrição e legitimidade nos jogos de poder-saber (Foucault, 1999) e aquilo que nos coloca em uma posição de dobra, uma inflexão ética - o dentro-fora de nós mesmos na relação com o mundo (e os seus efeitos na estilística das existências - modos de subjetividade, modos de produzir saúde e bem-estar).
Ao considerarmos a força das interpelações morais e o agenciamento de jogos de verdade que se produzem em múltiplas instâncias da/na cultura, o campo empírico das problematizações deste trabalho é composto por registros de enunciação e por regimes normativos que os (im)possibilitam - como as notícias que abrem este manuscrito.
Buscamos, portanto, compreender a partir dos pressupostos discursivo-desconstrucionistas e das epistemologias feministas, o modo como se constituem os jogos de verdade que passam a orientar / dar sentido aos modos como devemos nos conduzir em uma determinada época-lugar e sob determinadas condições.
Os princípios do método que apoiam nosso trabalho consistem em: a) elaboração de um conjunto de entradas de problematização - o que nos permite pensar como algo entra ou se constitui na ordem do pensamento e governo; e b) circunscrição de conjuntos enunciativos que produzem, marcam e movimentam o governo da diferença.
Para isso, recorremos a evidências sobre os rastros de governamentalidade(s), assumindo a diferença como elemento central dos processos de subjetivação. Tomamos como pontos centrais e rotas de problematização dois movimentos: a) a constituição de um campo pelo qual deveriam se movimentar os sujeitos a partir de uma dada inteligibilidade (população), a que chamaremos de produção e marcação da diferença; b) o modo como os sujeitos, interpelados a partir desses processos de produção e marcação, conduzem a si mesmos/as, ou seja, como determinados fluxos sociais e culturais governam e incidem sobre os jogos de verdade e sobre as formas de governo, instituindo o que denominamos de circularidade de reafirmação ou de assujeitamento - a determinados regimes de verdade, como a branquitude em suas intersecções com gênero, sexualidade e capacitismo, por exemplo - e às pedagogias (as quais ensinam e produzem efeitos de verdade) que operam para a fixação e (dis)posições de sujeito. Na trama dessas problematizações, destacamos a força da interseccionalidade e perspectiva anti(neo)colonialidade (Curiel, 2007; Lugones, 2008; Akotirene, 2019) como baliza ético-epistemológica e política para sem a qual dificilmente poderíamos compreender as condições e possibilidades que definem a noção/posição de humano (im)possível e (in)viável para uma dada sociedade.
Os elementos (im)possíveis dessa agonística da diferença e da democracia são expressos a partir de evidências, isto é, de conjuntos empíricos dispersos, mas situados em um espaço-tempo determinado - em nosso caso, processos da reabertura política aos dias de exceção política e pandêmica que marcam os jogos de (re)afirmação das políticas públicas como prática cotidiana não apenas em disputa, mas em reinvenção de sentidos, como uma agonística da/na/com a diferença.
Nossas evidências teórico-empíricas consistem em: a) acontecimentos relativos aos processos políticos de afirmação da diferença e dos direitos humanos, vivenciados pelo Brasil desde a reabertura democrática até a atualidade da pandemia de Covid-19, e a gestão negacionista e reacionária do atual governo federal (e de seus aliados); b) rastros (ou resíduos) desta necropolítica (Mbembe, 2018) nos processos de subjetivação, apresentados sob a forma de recrudescimentos de letalidade - da diferença como regime de expansão e prática de liberdade, com efeitos na saúde, direitos e cultura; e c) do cerceamento da participação nos processos decisórios ou minimamente a existência de representação legislativa/legisladora da/ para a horizontalidade política e garantia de direitos -, assim como sobre práticas de reversibilidade (contradiscursos) que se agenciam em termos coletivos e individuais - movimentos sociais e redes de resistência, como ocupações, insurgências anti-identitárias etc.
Vidas (Im)Possíveis, Vidas (In)Governáveis
O par modos de governar / modos de subjetivar nos permite indicar compromissos ético-políticos e estéticos que interrogam as práticas psi - notadamente, a Psicologia e seus modos de produzir conhecimento e atuação profissional. No entanto, nossa abordagem privilegia algo que se constitui como o centro das demandas conservadoras e que estiveram em pauta nesse lastro da redemocratização: a questão da família e, mais especificamente, dos modos de composição de conjugalidade e parentesco. Não apenas objetos da política de governo, estes são temas centrais para a área e uma das principais chaves de compreensão dos processos de subjetivação.
Ainda que muitas dessas chaves estejam relacionadas às analíticas individualizantes, elas encontram-se hoje no centro dos debates da sociedade brasileira: tanto as composições dissidentes (dos modelos cis-hetero-centrados), quanto o impacto na vida cotidiana em relação aos processos educacionais, como a vida na escola - importante arena social através da qual as famílias se relacionam diretamente com os sentidos da nação, assim como por tudo aquilo que pode ser acompanhado nas políticas públicas (saúde, trabalho, assistência).
Destacamos, ademais, que os temas de gênero e sexualidade, em sua intersecção central com raça/etnia, configuram-se não apenas do ponto de vista da abordagem em educação sexual, mas refletem fundamentalmente princípios e horizontes de uma sociedade em constante transformação e participação de múltiplos sujeitos, acompanhando a emergência de outros modos de vida - como as famílias e conjugalidades que se instituem no avesso da cisheteronormatividade e da branquitude (principais motes de enunciação conservadora 11).
El género en llamas: cuestiones de apropriación y subversión encerra a primeira parte do livro Cuerpos que importan - sobre los límites materialides y discursivos del ´sexo´, de Butler (2003), no qual acompanhamos uma de suas experimentações conceituais mais conhecidas: o gênero parodiado, o regime de (re)citacionalidade que ficciona um suposto real nas tramas do parentesco. Partimos de seus argumentos para firmar nossas apostas com este ensaio, destacando pontos de uma carto-genealogia da família moderna em contexto neoliberal e ultraconservador.
Nos interrogamos sobre as (im)prováveis metáforas contemporâneas do gênero em chamas, o parentesco incendiado e a carbonificação da heterocisnormatividade são responsáveis por alimentarem o fogo dos ideais de humano (in)viáveis e (im)possíveis no mundo ocidentalizado e a supremacia racial da branquitude.
O gênero como performativo, logo, se fusiona à família como dispositivo, ou seja, da lógica da aliança (aristocrática) para a sexualidade (burguesa), na configuração do Estado Moderno. Butler (2003) recorre ao documentário Paris is burning, tensionando nesse momento não apenas a ideia do gênero como ideal regulatório, mas a insurgência performativa de comunidades e formas diversas de filiação em uma paródia interseccional de gênero, raça, classe e sexualidade, através da (literal) dança dos significantes “houses”, “filhas”, “mães” nas comunidades de gays e transgêneros afrolatinoamericanos em Nova York.
Emblemática das ficções políticas em torno do familismo, branquitude e heterocisnormatividade é a aposta de Butler (2006) sobre a ressignificação dos termos simbólicos de parentesco, que animam os atos de fala presentes nas experimentações das comunidades sob jugo das matriarcas transgênero (ou mesmo das gays) no contexto do Harlem:
[...] hacen de madre´ unos de otros, son su ´casa´ y ´se crían´ entre sí y la resignificación de la familia a través de estos términos no es una imitación vana o inútil, sino la construcción discursiva y social de una comunidad, una comunidad, que une, cuida y enseña, que protege y habilita. [...] Significativamente, esta elaboración del parentesco forjada a través de una resignificación de los términos mismos que consuman nuestra exclusión y abyección, hace que esa resignificación cree el espacio discursivo y social para la comunidad; en esa elaboración vemos una apropiación de los términos de la dominación que los dirige hacia un futuro más capacitador. (Butler, 2006, p. 199)
Ao questionar incisivamente o status ontológico do parentesco como desde sempre heterossexual (Butler, 2006), o debate sobre matrimônio e os limites impetrados ao reconhecimento do parentesco não-patriarcal. Ela afirma, com base na experiência estadunidense (e perceptível através de algumas homologias no contexto a que concerne nosso trabalho) que:
existe y persiste una cierta cantidad de relaciones de parentesco que no se conforman al modelo de la familia nuclear y que sirven de relaciones biológicas y no biológicas que exceden el alcance de las actuales concepciones jurídicas, y que opera según reglas que no se pueden formalizar. (Butler, 2006, p. 149)
E, a despeito das concessões em termos de matrimônio igualitário, o reconhecimento do parentesco, especialmente nos acirrados debates psi (como ocorrido no contexto francês e brasileiro), repercutem ainda em balizas importantes para a adoção de crianças ou para o acesso e a garantia à reprodução assistida.
A ressignificação dos modos de produção do parentesco, a exemplo das comunidades e filiações estabelecidas nas houses de Paris is burning, são amplamente verificáveis em outros registros, como podemos perceber no caso brasileiro, através das comunidades trans matriarcais (Benedetti, 2000; Amaral & Toneli, 2018) e das comunidades de apoio (como a Casa Nem, no Rio de Janeiro, conduzida pela liderança trans Indianarae Siqueira). Estas seguem no avesso das chaves de inteligibilidade do Estado, predominantemente ocupadas com o casamento e a família. Desde o espectro hegemonicamente heteronormativo, mesmo no caso de configurações LGBT, seguindo às provocações de Butler (Butler, 2006; 2003), estaríamos diante de uma interpelação cuja resposta seria performativa, a fim de obter reconhecimento?
Afinal, quem estaria habilitado a desejar o desejo do Estado? A quais jogos de verdade se deveria estar submetido/a em razão do reconhecimento? Qual modelo de família e parentesco se deve reivindicar para ser reconhecido/a como sujeito viável e possível? Na mesma direção da autora: de que maneira devemos responder (e quem estaria habilitado a isso) às preocupações sobre os efeitos prejudiciais da variabilidade do parentesco em relação aos projetos dos estados nacionais? (Butler, 2006). Qual família e quais modos de produção de filiação, comunidade ou parentesco estariam, de fato, sob o fogo contemporâneo do neoliberalismo, conservadorismo e da fixação/hierarquização da diferença no globo ocidental?
De nosso lado, à brasileira, algumas homologias: forjamos e forçamos (pelo nosso compromisso político com a psicologia social) entradas de problematização sobre: a) o lugar da família e da criança (como objeto da regulação do Estado moderno); e b) as pedagogias psi e suas contribuições para o governo dos indivíduos/ população marcados no avesso do que se instituiu como vida inteligível (ou normal), tomando como espectro privilegiado as desarticulações entre racionalidade neoliberal, ultraconservadorismo e agência, ou diferença, desde o marco regulador constitucional de 1988 até a fatídica eleição de um governo de extrema direita (2018) e a agonia político-sanitária pandêmica que asfixia o Brasil atual.
As relações entre política de Estado, modos de governar e a atuação incisiva de sociedade civil organizada (ou movimentos sociais), aliadas ao advento de tecnologias ciberculturais, balizadas por racionalidade econômica específica no Brasil das últimas décadas (1995-2016), criaram condições e possibilidades para que as pautas de identidade (e diferença) repercutissem sentidos amplos na esfera da garantia de direitos políticos, sociais e individuais, com importantes indicadores de bem-estar, reconhecimento e legitimidade social em várias instâncias da sociedade - Carrara (2016) sugere, sobre a questão a ideia de cidadanização.
Em face dos termos condicionantes dessa relação, acreditamos que os acordos internacionais relativos aos blocos econômicos mundiais (Mercosul, Comunidade Europeia, Nafta, Asean e Apec) e às grandes conferências de direitos das populações e povos, convocadas pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) - como as conferências ambientais, raciais e das mulheres -, incidiram sobre os rumos de muitas políticas de governo, regulando desde o exterior a governamentalidade e as lutas internas. Thomas Lemcke (2017) chama a atenção a este processo de incidência dos organismos transnacionais na governamentalidade dos estados-nação para além do debate que Michel Foucault (1999) propôs (nascimento da biopolítica), e que se contextualizava nos limites dos países soberanos.
Em entre as (im)possibilidades que viemos acompanhando desde a década de 1990, havia uma tensão entre um projeto de Estado Social (Castel, 1997) e um ciclo econômico neoliberal no Brasil. Neste projeto de construção de cidadania, o rastro da luta pelos direitos humanos e pela liberdade política refletiram-se em uma Constituição que foi, não à toa, chamada de Cidadã e reconhecida pela marca da cidadania como um dos seus princípios, alargando o campo político da participação, porém, ainda incipiente na reversibilidade da racionalidade econômica (pouco permissiva às reformas tributárias - princípio de redistribuição - taxação da riqueza etc.).
Os impasses em torno da garantia de direitos individuais e coletivos também se fizeram presentes e na luta, à época, pelos chamados direitos dos homossexuais - e posteriormente ampliado em sua própria agonística interna, das conferências nacionais, para LGBT e hoje LGBTQIA+. Este cenário não avançou senão que, majoritariamente, por via jurisdicional em detrimento do legislativo e políticas de Estado, embora algumas políticas de governo tenham sido ensaiadas.
Com isso, estamos considerando que há uma equação entre forças globais - mobilizadas pela racionalidade neoliberal - e regimes de produção e regulação (governo) da diferença. Seus efeitos sobre as subjetividades são acompanhados em significativos tensionamentos, ao que algumas/alguns denominaram avanços, como, por exemplo, a despatologização (parcial) da sexualidade e do gênero.
Por outro lado, há importante saldo (resíduos) desses fluxos socioeconômicos e culturais, rígidos em princípios, cujas perversas manifestações de exploração e extermínio de povos e culturas, sobretudo indígenas e quilombolas - o caso dos grandes conflitos em torno dos mercados mundiais, como petróleo e mineração e a gentrificação - se mantêm como importante máquina de produção de subjetividades e sentidos do presente.
(Des)Apontamentos Finais... Ou: Para Não Desistir.
Enfrentar a trama das (des)articulações entre racionalidade político-econômica, onda ultraconservadora e diferença significa, pois, analisar os modos como alguém (ou uma instituição, campo de saber) se relaciona consigo mesmo e com o mundo (Nardi & Silva, 2005). Essa foi nossa aposta-guia neste trabalho. Sobre os efeitos dessas (des)articulações em relação aos modos de conjugalidade dissidentes, parentalidades e famílias (objeto da análise), somente podemos responder apostando em ampliação das margens teórico-metodológicas e epistemológicas para a reflexividade ética. Isto não apenas em uma circularidade causal ou assujeitada a metanarrativas (Silva, 2011), mas no entendimento de que qualquer explicação será sempre provisória, pois ela, em si mesma, situa-se regulada e forjada por determinados jogos de verdade e desde certa (im)possibilidade epistêmica - que está em constante transformação, e é rizomática, diríamos.
Se há o clamor pela diferença, essa em si mesma dispensará (em algum momento e ocasião) as benesses da identidade ou se modificará a tal ponto de constituir-se noutro modo de regulação, talvez norma. Pois, quando sujeitos ditos dissidentes ou excluídos/as (re)clamam por direitos - como o casamento, a adoção, a procriação assistida, ou mesmo o direito de seguirem vivendo porque são “humanos como os/as outros/as” (ou almeja-se o reconhecimento e status do humano, quase nunca viável e possível para muitos, conforme Butler (2005) -, isso não significa que esse direito corresponde a uma libertação.
Por outro viés, trata-se de uma margem de liberdade que permitirá a instauração de um modo de vida (talvez outro), que não será imune a novas configurações regulatórias, e que terá a possibilidade (de acordo com as condições políticas, como de políticas de Estado) para recusar certas formas de assujeitamento e exclusão.
Será, portanto, mais regulado, quanto mais estiver enredado nas tramas de uma dada racionalidade político-econômica (um modo de governo), uma vez que precisa responder de alguma forma à razão de Estado/ de certo estado - e em sua relação com outros estados-nações ou a racionalidade hegemônica e, consequentemente, as formas de dominação por estas instituídas. Como afirmam Nardi e Silva (2005):
A verdade corresponde à construção de lógicas específicas que os sujeitos utilizam para compreender quem são. [...] [A verdade é] produzida por indivíduos livres, que organizam um certo consenso e que se encontram inseridos em uma rede específica de práticas de poder e de instituições que as impõem e legitimam. (p. 95)
Com isso, reiteramos nossa aposta de que, quanto maior o lastro da forma de governo (na medida em que permite aos sujeitos constituírem margens de autogoverno), maiores serão as possibilidades (muito temidas, claro) de produzir diferença. Diferença aqui, portanto, configura-se como relação e não como objeto. Ela refere-se, outrossim, mais à possibilidade de diferir do que a de afirmar que se é isto ou aquilo. Nesse esteio, nos parece que, em certa medida, haveria esta potencialidade na ideia de queer - no instante mesmo em que essa disposição rejeitaria uma substanciação, um programa, uma identidade.
Nesse sentido, se, de uma parte, nos preocupa a precarização de modos de vida no registro do reconhecimento familiar, de parentesco e conjugalidades, igualmente percebemos os limites dessa forma de reconhecimento - muitas vezes vital, como forma de garantir a manutenção da vida e do viver. De outra parte, e se isso pode acalmar certos representantes da ordem e da moral familiar, essa mesma não parece ter sido removida de sua inteligibilidade (talvez arranhões em sua representação mais hegemônica); pois, ainda que em variações de figuras, a família e o parentesco seguem como um enquadramento razoavelmente estável. Surpreender-nos-ia se inventássemos outros modos de viver que não fossem balizados por esse esquema de inteligibilidade e regulação. Estudos mais recentes poderão apontar para alguns dos giros na composição de conjugalidade, família e parentesco nas/com as dissidências, ou poderão mesmo informar-nos de que quase nada, ou muito pouco, mudou e ainda fazemos família e compomos redes de parentesco praticáveis para a episteme de nossa época, regulada fortemente pela aliança neoliberal.
O protagonismo da Psicologia, a despeito das ondas conservadoras que disputam o próprio campo - desde fundamentalismos científicos até os religiosos - nos convence da aposta da efetiva articulação entre racionalidade político-econômica, conservadorismo (moral e científico ou científico-moral) e a intensa produção de diferença, o que corresponde a processos de subjetivação. Estarmos atentos a esses fluxos nos permite desindividualizar o sofrimento, sem deixar de singularizá-lo. Significa, ainda, reforçar o cuidado e a promoção da saúde como elementos que correspondem à agonística do humano-diferença de nossa época e lugar.