No primeiro trimestre de 2019, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (2019), os trabalhadores domésticos correspondiam a 6,9% da população ocupada, totalizando 6.7 milhões de pessoas, e apresentavam rendimento médio mensal de R$ 909,00 (inferior ao salário-mínimo do período, de R$ 998,00). Em 2015, 14,3% das mulheres que exerciam algum tipo de atividade remunerada atuavam como empregadas domésticas, porcentagem que chegava a 18,0% entre as negras (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2017). Esses dados ilustram a complexidade do tema, ocasionada por suas características particulares, como a associação a aspectos fundamentais da organização social e das desigualdades étnico-raciais e de gênero, que resultam em marginalização e sistemático desrespeito aos direitos humanos e aos direitos fundamentais do trabalho - conforme indica a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio da convenção 189 de 2011.
Historicamente, o trabalho doméstico no Brasil é concebido como desqualificado; possível de ser realizado por qualquer indivíduo; estigmatizado por se tratar de atividade braçal, envolver sujeira e intimidade e por ser ocupado por pessoas definidas como de status social inferior (Cardoso & Guimarães, 2019). Sua origem está relacionada à abolição da escravização, época em que emergiu como a principal fonte de subsistência para as então ex-escravizadas, e seu caráter precarizado também remonta a este período, especialmente por se tratar de emprego no qual, inicialmente, recebia-se benefícios e não dinheiro (Teixeira et al., 2015).
Apesar de corriqueiramente ser utilizado o termo “trabalhadoras domésticas”, as circunstâncias de atuação deste grupo são heterogêneas, incluindo diferentes modalidades de pagamento (e até ausência de remuneração), a possibilidade de ter que dormir no local de trabalho e a formalização ou não de vínculo-empregatício (Rocha & Pinto, 2018). Essa variabilidade ultrapassa a dimensão burocrática, estando presente nas diferentes percepções sociais do que é trabalhar em domicílios, que são perpassadas por dimensões relacionadas à identidade e alteridade (Teixeira et al., 2015). Isso pode ser constatado pelo constrangimento de muitas profissionais ao exercer tal labor em virtude dos preconceitos sociais ainda inerentes à categoria profissional e da percepção de sua invisibilidade social, política e moral, refletida na própria consideração do seu valor pessoal (Cardoso & Guimarães, 2019; Pena & Silva, 2017; Silva & Queiroz, 2018).
Em uma revisão de literatura sobre o emprego doméstico no Brasil, Silva e Queiroz (2018) constataram que a ocupação ainda é marcada pelo preconceito e discriminação social, resultante de relações de trabalho paternalistas, exacerbadas pelo domínio financeiro, social e racial dos patrões, e que culminam na desvalorização dessa categoria profissional. Segundo os autores, há consenso nos estudos de que o emprego doméstico no país apresenta traços de servidão, que impõem à mulher/trabalhadora doméstica uma posição subalternizada, caracterizada por baixa remuneração e desigualdades sociais e de direitos.
O trabalho de Silva et al. (2017), que incluiu a entrevista de oito trabalhadoras domésticas residentes em Belo Horizonte, sinalizou que tal profissão é fonte de ressentimentos e humilhações, impactando negativamente a subjetividade de quem a desempenha, por ainda ser marcada pela desigualdade nas relações de trocas materiais e simbólicas, oriunda da estigmatização e da discriminação por parte dos empregadores e da sociedade. Por outro lado, essas representações negativas, segundo constataram Teixeira et al. (2015), impactam a identidade das profissionais à medida que tentam mascarar o distanciamento simbólico existente entre elas e seus empregadores através do sentimento de pertença à família e da negação de sua condição de empregada.
Ampliando o conhecimento a respeito da relação entre empregadores e Empregadas Domésticas, a pesquisa de Angelin e Truzzi (2015) permite compreender a influência da classe social nos relacionamentos, de modo que esses podem ser mais afetivos e harmoniosos, quando há paridade entre o poder aquisitivo do contratante e da contratada, ou mais formais e com maior tendência a conflitos, quando o patrão pertence às classes média e alta. Há, entretanto, aspectos que não apresentam distinção, como a baixa remuneração recebida pelas trabalhadoras domésticas, a extensa carga-horária de trabalho, a fragilidade do vínculo empregatício e a tensão nas relações, marcadas por humilhações e desconfiança.
Apesar das ainda precárias condições e relações de trabalho, através de diversas lutas sociais, os direitos das Empregadas Domésticas foram equiparados aos já proporcionados aos demais trabalhadores celetistas (Silva & Queiroz, 2018). A Lei Complementar nº 150 (2015), é a resposta mais recente a esse quadro de desigualdades sociais. Ela regulamenta a Proposta de Emenda à Constituição, conhecida como PEC das Domésticas, que redundou na Emenda Constitucional 72 de 2013, responsável por alterar o Parágrafo Único do artigo 7º da Constituição Federal e estabelecer, por conseguinte, a equidade entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores brasileiros. Com ela, as Empregadas Domésticas, que eram contempladas apenas por nove dos 34 direitos sociais previstos na Constituição Federal, passaram a ter equiparação legal aos demais trabalhadores do país (Bernardino-Costa, 2015).
Contudo, a luta pela igualdade e respeito social permanece, visto que esses direitos ainda não foram alcançados (Silva & Queiroz, 2018). Nesse sentido, Bernardino-Costa (2015) observa que, nos últimos 80 anos, há um movimento de trabalhadoras domésticas no Brasil, criticamente apropriado das noções de classe, raça e gênero, que interpreta as relações sociais brasileiras e faz, em seus pleitos reivindicatórios, as articulações intelectuais e políticas necessárias ao que objetivam.
Entre eles, é possível destacar a página “Eu, Empregada Doméstica” (2020a), situada na rede social Facebook, que desde a sua fundação despontou como um espaço de denúncias e reivindicações por melhores condições de trabalho, ganhando notoriedade na imprensa nacional (Coelho, 2016), ao publicizar, regularmente, relatos anônimos, produzidos pelas próprias profissionais ou indivíduos vinculados a elas, sobre a história, o cotidiano e as experiências no trabalho. O material divulgado é recebido e organizado pela proprietária do perfil, que atuou como Empregada Doméstica. Dessa forma, trata-se de um ambiente que oportuniza aos relatantes o compartilhamento das histórias com alguém que possui vivências similares às narradas, bem como a difusão a um público que, majoritariamente, interessa-se e valida as informações fornecidas e, muitas vezes, experienciou igualmente tais situações.
Considerando as especificidades do domínio eletrônico supracitado, em comparação ao formato adotado pelos demais estudos voltados à compreensão do trabalho doméstico remunerado, geralmente desenvolvidos por pesquisadores advindos de um contexto social distinto desse público, e levando em conta que a produção do material ocorreu após a aprovação da Lei Complementar nº 150 (2015), período pouco abordado pelas produções científicas, esta pesquisa objetiva analisar as representações sociais sobre o trabalho doméstico remunerado compartilhadas na página “Eu, Empregada Doméstica” e as práticas sociais delas decorrentes. Espera-se, a partir desta produção, conforme destacam Rodrigues et al. (2017), compreender uma nova faceta desse fenômeno, retirando-o do espaço privado e o levando a público, e propiciar a visibilização desses profissionais, valorizando-os e promovendo um acréscimo de informações que agreguem na luta por igualdade de direitos. A fim de possibilitar a compreensão relativa ao referencial teórico adotado, a Teoria das Representações Sociais, a próxima seção apresentará um panorama sobre ele.
Teoria das Representações Sociais
O conceito de Representação Social é proposto por Serge Moscovici que, em 1961, descreveu-o em sua tese de Doutorado intitulada La Psychanalyse: Son Image et son public. Trata-se de um termo que retoma e transforma a noção de representação coletiva, defendendo a impossibilidade de se dissociar analiticamente o indivíduo e a sociedade e se interessando, especialmente, pela força transformadora das fontes de inovação sobre o conhecimento social e a cultura, viabilizada pela comunicação cotidiana, que se constitui como o meio de elaboração, transformação e difusão das representações sociais (Vala & Castro, 2013).
Cotidianamente, os indivíduos em suas relações interpessoais são convocados a se manifestarem sobre questões e informações que emergem no horizonte social e, para fundamentarem seus argumentos, procuram explicações, fazendo julgamentos e tomando posições. Essas interações sociais engendram universos consensuais, nos quais as novas representações são produzidas e difundidas, passando a compô-los não mais como opiniões, mas como teorias do senso comum, isto é, construções esquemáticas que visam abranger a complexidade do objeto, orientando condutas e facilitando a comunicação, de modo a forjar a identidade grupal e o sentimento de pertença do indivíduo ao grupo (Alves-Mazzotti, 2008). As representações sociais emergem da demanda por ajustamento das pessoas, que precisam identificar, conduzir e resolver problemas que lhes são apresentados, tornando o desconhecido em conhecido (Mendonça & Lima, 2014).
Apesar de as práticas sociais não se constituírem um fenômeno de interesse exclusivo dos estudiosos da Teoria das Representações Sociais, um dos pontos centrais dessa perspectiva teórica é a relação entre representações e práticas sociais (Almeida et al., 2000). De acordo com Abric (1994), a determinação de práticas e comportamentos pelo sistema de representação aparenta ser indiscutível, todavia, compreender a associação entre representações e práticas sociais envolve um exercício analítico que contempla cada um dos seguintes aspectos: a natureza e a estrutura da representação, a existência de autonomia, as crenças vinculadas e os principais elementos constitutivos, pois a natureza da representação define seu significado na interação social. Nessa perspectiva, os argumentos teóricos e as evidências empíricas fortalecem a noção de que as práticas sociais são definidas pelas representações. Por outro lado, há um conjunto de teóricos, conhecido como “Grupo de Midi”, no qual se destacam as proposições de Michel-Louis Rouquette, que defendem a mútua influência entre práticas e representações sociais. Contudo, a relação entre elas não ocorre igualmente, de modo que as representações são entendidas como condicionantes das práticas e as práticas como um agente transformador das representações (Wolter & Sá, 2013).
A respeito da construção das representações sociais e de sua aplicação, Howarth (2006), adotando uma perspectiva crítica, aponta que, enquanto ferramentas psicossociais que orientam a compreensão sobre o mundo, ao apoiarem uma versão particular da ordem social, as representações protegem alguns interesses em detrimento de outros. Nesse sentido, ao passo que as de caráter hegemônico permeiam a construção social dominante da realidade, as de oposição contestam tais versões. Esse jogo de forças ilustra como, em contextos específicos, as representações - hegemônicas ou de oposição - podem ser utilizadas para sustentar a ordem social, defender identidades e limitar os interesses de outros. Assim, na “batalha” pelo significado, quem consegue se impor são aqueles cujas versões da realidade são, ou passam a ser, legitimadas socialmente (Howarth, 2006).
Em contrapartida, questões relacionadas à resistência indicam a coconstrução da identidade como um aspecto central da representação social e, sem uma compreensão sobre ela, não seria possível explicar o porquê e como indivíduos diferentes utilizam representações para fins distintos - para legitimar, negar, contestar, transformar. Em suma, as representações seriam utilizadas para adoção de posicionamentos, reivindicação de identidades comuns e defesa ante práticas estigmatizantes ou marginalizantes (Howarth, 2006). E é sob essa perspectiva, que prevê a existência de uma disputa entre as representações sociais sobre um mesmo objeto, que se propõe analisar, em seção posterior, o fenômeno do trabalho doméstico remunerado a partir dos relatos da página “Eu, Empregada Doméstica”.
Método
Trata-se de um estudo documental, de abordagem qualitativa e caráter exploratório-descritivo (Flick, 2008), realizado a partir dos relatos publicados pela página da rede social Facebook “Eu, Empregada Doméstica”. O perfil, curtido por mais de 160 mil pessoas em agosto de 2020, foi fundado em julho de 2016 e ganhou visibilidade nacionalmente por se configurar como um espaço de divulgação e denúncia de situações abusivas sofridas por trabalhadoras domésticas, difundidas em diferentes formatos, como notícias, vídeos, documentários e relatos de episódios vivenciados por este público - enviados anonimamente por usuários da rede social. Tal propósito é evidenciado, inclusive, na descrição disponibilizada pela proprietária da página: “Expor não só a minha história, mas dividir isso com os meus seguidores aqui no Facebook e incentivar as pessoas contarem os seus relatos ou relatos das mulheres de suas famílias que já foram ou são Empregada Doméstica” (Eu Empregada Doméstica, 2020b).
Optou-se pela utilização dos dados decorrentes dessa fonte por se tratar de uma referência na internet para a exposição de experiências sobre o trabalho doméstico remunerado de modo anônimo, condição que oportuniza contribuições de trabalhadoras em diversas circunstâncias econômicas e sociais. Ademais, apesar de não haver identificação de autoria dos relatos, o que impossibilita a determinação do gênero dos autores, considerando que o trabalho doméstico é uma atividade exercida majoritariamente por mulheres, optou-se pela utilização dos termos no gênero feminino.
Procedimentos
Nesta pesquisa, foram analisadas, exclusivamente, as publicações intituladas como relato pela proprietária da página e disponibilizadas em formato textual, no período compreendido entre o lançamento da página, em julho de 2016, ao mês de agosto de 2020, totalizando 276 relatos. O material foi agrupado em um arquivo e sofreu revisão ortográfica e gramatical antes de ser submetido à análise de dados, a fim de garantir a confiabilidade dos resultados após seu processamento. Para a análise dos dados, utilizou-se a técnica de Classificação Hierárquica Descendente (CHD) do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaire (IRaMuTeQ), em que segmentos de texto (STs) são classificados com base em seus respectivos vocabulários e o conjunto repartido em função da frequência dos termos em sua forma reduzida (raiz) (Camargo & Justo, 2018). A CHD objetiva obter classes de segmentos de texto que apresentem vocabulário semelhante entre si e distinto dos segmentos de texto das outras classes (Camargo & Justo, 2013).
O corpus de análise foi composto por Unidades de Contexto Iniciais (UCIs) correspondentes a cada um dos relatos que, após o processamento do software, resultaram nas Unidades de Contexto Elementares (UCEs), representadas pelos STs, utilizadas para os cálculos estatísticos. Após a CHD, a seleção dos termos representativos de cada classe foi realizada manualmente pelos pesquisadores, baseada nos seguintes critérios: frequência no corpus superior à frequência média por palavra (>10,37) e associação significativa do termo com a classe, constatada por meio do teste de qui-quadrado (x2≥3,84) e p-valor< 0,01.
Resultados
O corpus, composto por 276 UCIs, foi dividido 2112 UCEs, cujo aproveitamento na CHD foi de 82,39%, correspondendo a 1.740 segmentos de texto. Ao total, 74.341 palavras foram analisadas, com frequência média de 10,37. Conforme a Figura 1, o corpus foi repartido em cinco classes, numeradas aleatoriamente pelo software; inicialmente, ele foi dividido em dois subcorpora, de modo que as Classes 1 e 2 se opuseram às Classes 3, 4 e 5. Posteriormente, a Classe 5 se diferenciou das Classes 3 e 4. Por fim, houve uma terceira partição: A Classe 3 se distinguiu da 4 e a Classe 1 se diferiu da 2.
A Classe 5 (“Regras da Cozinha”), primeira partição do conjunto constituído pelas classes 5, 4 e 3, abrange 14,02% do corpus e contempla as regras, explícitas ou não, estabelecidas pelos empregadores durante o convívio com as Empregadas Domésticas. É possível constatar que as normativas impostas geralmente se relacionam à cozinha, materializando-se através de restrições aos produtos que elas podem consumir ou definindo quando e onde devem se alimentar. Trata-se, então, do espaço doméstico em que as trabalhadoras identificam com maior nitidez o lugar simbólico que ocupavam na residência em que prestavam serviços e a distinção de status em relação aos seus chefes. Os termos “comer”, “comida”, “geladeira”, “prato” e “mesa”, que se destacam na classe, costumam se associar a situações de violência, psicológica e verbal, perceptíveis nos excertos:
Eu trabalhei para todos os tipos de família, da classe média a mais rica! Todas têm uma coisa em comum, mesquinhos! Jogam comida no lixo, mas não te oferecem! Eu e a Empregada tínhamos que comer a comida do dia anterior, assim não havia desperdício (Relato número 216);
Porém, os empregados não podiam comer dessa comida e minha tia cozinhava uma comida diferente e mais simplória para a gente (e nem preciso comentar que os talheres e pratos eram separados, né?). Sempre sobrava alguma coisa da comida deles, mas, mesmo assim, não podíamos comer (Relato número 244).
A Classe 3 (“Relações de Trabalho”), que inclui 24,14% do corpus analisado, abrange narrativas sobre as relações de trabalho estabelecidas entre patrões e empregadas. As situações mencionadas incluem, majoritariamente, episódios em que os empregadores afirmam sua autoridade, reiterando às trabalhadoras sua subordinação a eles. Há, assim, o distanciamento de um padrão de tratamento profissional, de modo que a passionalidade se instaura nas tentativas de garantir que o trabalho seja desenvolvido; além de indicar que, na compreensão dos contratantes, a hierarquia profissional existente em tal contexto permitiria o uso de agressividade, conforme o uso dos termos “pedir”, “falar”, “gritar”, “ligar” e “sair” ilustram nos trechos:
Sempre que eu pedia para comparar produto de limpeza a patroa me dava um sermão dizendo que eu gastava muito e as coisas não eram de graça que ela ia descontar do meu salário (Relato número 90);
Durante a semana eles ligavam toda hora e tinha que atender, senão a Patroa falava: “Onde você estava? Por que você demorou para atender o telefone? Você está aqui é para trabalhar” (Relato número 183).
A Classe 4 (“Tarefas”), que incorpora 20,17% do corpus, descreve as tarefas que as profissionais executavam em seu cotidiano de trabalho, incluindo, entre elas, “lavar”, “limpar”, “passar”, “roupa” e “criança”. Tratam-se de relatos que, apesar de descritivos, isto é, inseridos com intuito de apresentar aspectos da rotina laboral, incluem manifestações de insatisfação, resultantes, sobretudo, da diversidade de atribuições destinadas às trabalhadoras domésticas, que mencionavam ter que assumir a administração e a manutenção da residência; do acúmulo de funções, que extrapolavam o que era entendido como parte de suas atribuições; e do excesso de demandas, uma vez que geralmente não possuíam o suporte de outros trabalhadores, tendo que assumir todas as tarefas delegadas por seus patrões, como mostram os relatos:
Fui contratada para fazer tudo, limpar, passar, cozinhar e ainda tomar conta das crianças (Relato número 67);
Eles enchiam a boca para falar que ela era da família. Dormia lá de segunda a sexta, mas se alguém quisesse ela emprestada para cozinhar finais de semana ela tinha que ir fazer o banquete, inclusive de Natal e ano novo, mas ela era parte da família. Levava as crianças na escola, cozinhava, faxinava, lavava, passava (inclusive roupa de pessoas que não moravam na casa), mas ela era parte da família (Relato número 162).
Já as Classes 1 e 2, que se contrapuseram às 3, 4 e 5, envolvem informações relacionadas à representação das trabalhadoras domésticas sobre suas trajetórias pessoais e profissionais, bem como de suas perspectivas de vida diante do experienciado no trabalho. A classe 1 (“Trajetória”), abrangedora de 24,25% do corpus, reúne elementos que permitem compreender a inserção e permanência na profissão, que tendem a estar relacionadas ao contexto, de restrição financeira e de oportunidades, em que estavam inseridas essas mulheres. É possível identificar, ainda, uma constância de relatos em que as atividades começaram a ser desempenhadas ainda na infância, após episódios de êxodo rural e rompimento de vínculos familiares, assinalados pelos termos “ano”, “família”, “morar”, “cidade” e “interior”. Constata-se, então, que a atuação como Empregada Doméstica é compreendida, frequentemente, como resposta à necessidade de obtenção de sustento e à indisponibilidade de ocupações com maior reconhecimento social e retorno financeiro, não se tratando de uma aspiração profissional, conforme expõem os excertos:
Quando vim para a cidade onde moro hoje estava cheia de sonhos. Mas minhas crianças eram pequenas e não tinha como trabalhar. Então quando elas ficaram grandinhas e a situação econômica minha e de meu marido ruim, resolvi, então, que era hora de ganhar algum sustento. O que apareceu foi trabalho doméstico, afinal eu não tinha faculdade e experiência na carteira (Relato número 111);
Tenho 26 anos, nasci na zona rural de um município do interior da Bahia. Aos 18 fui morar na cidade, por ter sido aprovada no vestibular de uma universidade estadual. Na falta de opção de outro trabalho, fui ser empregada doméstica (Relato número 186).
A Classe 2 (“Perspectivas”), que engloba 17,41% do conjunto analisado, diferindo-se das demais, apresenta vocábulos resultantes de uma percepção positiva sobre suas perspectivas, seja pelas conquistas obtidas ou pelas aspirações de um futuro distante da realidade vivenciada. Estão inclusas, também, manifestações de gratidão das relatantes à proprietária da página pela oportunidade de compartilharem suas experiências profissionais e denunciarem situações entendidas como abusivas, cujo anseio é que não se repitam. Estão incluídas palavras como “Deus”, “página”, “agradecer”, “respeito” e “vida”, sinalizando que, apesar do conteúdo evocado contemplar, em sua maioria, vivências de sofrimento, as profissionais são otimistas ao abordarem suas expectativas futuras, apesar de, notadamente, distanciarem-se do trabalho doméstico, e valorizarem o espaço concedido a elas na rede social, utilizando-o como meio para romper a representação social existente sobre a profissão, sustentada pelos empregadores e imposta a elas, conforme o exemplo:
Olá, (proprietária da página), boa tarde. Primeiramente eu gostaria de agradecer muito a iniciativa de criar uma página que dá voz a tantas mulheres e que denuncia as situações de exploração praticada pelos senhores do século XXI (Relato número 106);
Hoje, graças ao bom Deus e às voltas que a vida dá, minha mãe tem seu próprio negócio e moramos muito bem. Vejo os danos psicológicos que aquela época de tristeza causou quando ela, às vezes, até chora por ir ao mercado e poder comparar o que quiser. Quando ela me liga e diz: “Filha, quer Danone? Pode ser mais de um, mamãe compra para você”, como se meu Danone fosse nosso troféu (Relato número 110).
Esses resultados permitem compreender que os relatos divulgados na Página “Eu, Empregada Doméstica”, convergindo com a proposta original do espaço, incluem representações e práticas acerca do trabalho doméstico remunerado valoradas majoritariamente como negativas. Contudo, há uma distinção no material, identificada pelo IRaMuTeQ ao realizar a primeira repartição do corpus textual, entre: a) as percepções e atuações de empregadores e empregadas, situado no que se exige cotidianamente das profissionais a nível comportamental, consequência do entendimento sobre a profissão (classes 3,4 e 5); e b) do que as próprias trabalhadoras reconhecem como constituintes de sua atividade, isto é, a significação dada, a partir de suas vivências, à ocupação (classes 1 e 2).
Destarte, as regras são percebidas pelas relatantes como excessivamente rígidas e planejadas para impedir seu acesso a benefícios e produtos, sobretudo alimentícios, pertencentes aos chefes, sob pretextos e práticas que evidenciam a repulsa ou o desejo de afirmar sua posição de superioridade hierárquica em relação a elas. De maneira similar, o controle sobre o trabalho ocorre com severidade, exigindo-se das Empregadas Domésticas que executem, indiscriminadamente, quaisquer tarefas vinculadas à residência em que prestam serviços, mesmo que não tenham sido previamente acordadas. Presente no estabelecimento das normas e tarefas, a rispidez nas relações de trabalho é a principal via utilizada pelos empregadores para menosprezar suas funcionárias, materializada em ameaças e no tratamento infra-humanizado. O relacionamento instaurado é violento, também, à medida que a desconfiança perpassa os afazeres cotidianos de diferentes modos, embora tenda a ocorrer unilateralmente, como meio de cristalização dos papeis atribuídos a empregadores e empregadas, o que, na prática, representa uma estratégia de manutenção do papel das trabalhadoras em consonância ao que se compreende por Empregada Doméstica.
Frente a este modo de conceber a profissão e das práticas adotadas no aparente intento de garantir que não haja mudanças representacionais sobre ela, as Empregadas Domésticas, embora identifiquem seu trabalho como doloroso, atribuindo essas dores, sobretudo, aos constrangimentos e humilhações sofridos durante seu exercício profissional, buscam a valorização dos indivíduos, essencialmente mulheres, que os desempenham, incluindo em seus relatos outros aspectos além de seu cotidiano, como suas trajetórias, marcadas pela luta por sobrevivência, e perspectivas, de ascensão social e de rompimento do ciclo de violências relacionadas à profissão. Nesse sentido, a gratidão expressa à criadora da página representaria a satisfação das relatantes em localizar um espaço que as permita romper com a visão hegemônica sobre seu emprego, emergindo como uma alternativa de resistência às práticas abusivas identificadas em seu cotidiano. Essa disputa representacional e as práticas engendradas por ela serão abordadas na próxima seção, de Discussão.
Discussão
Os dados analisados permitem depreender que, apesar do discurso sobre o trabalho doméstico ainda ser representado de maneira negativa, há, por parte deste grupo, o empenho em afirmar outras perspectivas, fundamentadas em características positivas, acerca de sua identidade pessoal e profissional. Essa tensão explicitada nos relatos, entre o que as relatantes sabem que se pensa sobre elas e como se enxergam e gostariam de se afirmar, materializa o entendimento de Howarth (2006) sobre o uso das representações sociais como defesa e, dessa forma, sustentação de uma construção particular da realidade, ou como estratégia de resistência à estrutura estabelecida, em um processo possibilitado pela comunicação, negociação, confronto e transformação.
O conjunto dos dados demonstra que, quando se trata do cotidiano de trabalho, as relações interpessoais, as tarefas e as regras permanecem cristalizadas, não havendo indícios de mudanças significativas sobre as concepções relativas à profissão por quem detém a autoridade, isto é, os empregadores. Tal constatação se torna visível às Empregadas Domésticas, ganhando notoriedade em seus relatos, por meio das práticas de violência perpetradas contra elas, seja por meio da privação ou da sobrecarga. Cabe ressaltar que, embora os dados provenham de um espaço destinado a denúncias, eles estão em consonância com outros estudos, como o de Silva et al (2017) que destacaram os episódios de humilhação como visíveis em aspectos que designariam o status da ocupação, como as vestimentas, as dependências destinadas às trabalhadoras, a linguagem e as relações de submissão, dependência e isolamento, que impedem quaisquer tentativas de organização e oposição enquanto categoria. Ademais, a díade representações e práticas, como observado nos excertos apresentados e em outras pesquisas, aparenta compor um ciclo de manutenção da estrutura estabelecida para o trabalho doméstico, correspondendo a uma relação de reciprocidade, prevista por Almeida et al (2000), em que cada um dos polos, em caráter dialógico, constitui uma totalidade indivisível, atuando como um sistema que produz, justifica e legitima o outro.
No que tange a rotina profissional, convém destacar que as regras, particularmente, estavam intimamente interligadas à cozinha, enquanto área de trabalho e ambiente em que são realizadas as refeições. Explicita-se, assim, que o espaço é entendido como de pertença e interesse às Empregadas Domésticas, de modo que a autoridade é exercida tacitamente, por meio de sanções, mas percebida fortemente pelas Empregadas Domésticas, ao passo em que se trata de um local imprescindível ao desenvolvimento de tarefas e à manutenção da saúde (através da alimentação) dessas mulheres. Nesse sentido, o estudo de Pena e Silva (2017) demonstra que o observado não se trata de mera casualidade, pois tais profissionais sempre estiveram proximamente distantes do contato com seus contratantes, situação atestada pela proximidade entre cozinha e o quarto dos fundos da casa, habitualmente destinado a elas; o que, em alguns casos, representava um meio de obter controle e obediência.
Esses comportamentos adotados pelos patrões exprimem o que Howarth (2006) identifica como a manutenção de práticas que objetivam posicionar indivíduos marginalizados enquanto diferentes e potencialmente perigosos. Com base nos dados, é possível perceber que, cotidianamente, as representações sociais vitoriosas relativas ao trabalho doméstico remunerado são as que os contratantes buscam conservar, inclusive por meio de suas práticas. Configuram-se, contudo, construções sociais que, para atingir os objetivos de quem as alimenta, produzem efeitos física e psicologicamente extenuantes sobre seu público-alvo.
Semelhante aos relatos presentes na página “Eu, Empregada Doméstica”, as narrativas obtidas por Cardoso e Guimarães (2019) evidenciam que a consciência por parte das Empregadas Domésticas sobre a desvalorização de seu trabalho e o reconhecimento de sua invisibilidade social, política e moral, impactam na consideração que têm de seu valor pessoal. Para Silva et al (2017), esses sentimentos de desvalorização são resultantes da desigualdade no sistema de trocas simbólicas e materiais entre empregadores e empregadas. Assim, o que é fornecido, por intermédio da prestação de serviço e dedicação pessoal, encontra-se em desequilíbrio com o que se recebe, no tocante à remuneração e ao tratamento, marcado por desconsideração ou depreciação. Todavia, mais do que uma disparidade no tratamento, reflexo da origem escravocrata da profissão, a relação estabelecida pode ser entendida como uma estratégia hegemônica de preservação de privilégios, como argumenta Howarth (2006) ao afirmar que a reprodução das relações de poder exige o uso contínuo e criativo de representações que mistificam, naturalizam e legitimam o acesso ao poder.
Se, por um lado, há um robusto conjunto de representações sociais hegemônicas e práticas delas decorrentes, produzidas, majoritariamente, pelos empregadores; por outro, há o desenvolvimento de representações sociais que se contrapõem à realidade social, a partir do protagonismo das trabalhadoras domésticas. Isso ocorre por meio do rompimento, nas narrativas, do enfoque dado ao que se espera delas, transposto para evocações sobre quem são e o que almejam. Assim, ao apresentarem informações que ultrapassam o caráter de denúncia, elas buscam compartilhar a percepção que têm sobre si, incluindo elementos que demonstrem seu valor, compondo uma identidade positiva pessoal e, por extensão, profissional.
De acordo com Howarth (2006), sob uma perspectiva psicossocial das representações sociais, deve-se reconhecer a resistência como uma possibilidade simultaneamente social e psicológica, pois é por intermédio do próprio processo de representação social que os significados se tornam ambíguos, híbridos e contestáveis, possibilitando, posteriormente, o diálogo, o debate e o conflito. Nesse sentido, o movimento de resistência das relatantes pode ser observado quando recorrem ao espaço destinado a divulgação de denúncias na rede social; ação que pode ser entendida como oposta ao papel esperado delas, de passividade e submissão. Ademais, o registro dos percalços de suas histórias de vida, que frequentemente se congregam à trajetória profissional, apesar de incluírem questões negativas, destacam a força despendida para garantir a própria sobrevivência e de seus familiares.
Por último, ao mencionarem suas perspectivas e, em algumas situações, suas conquistas, as trabalhadoras domésticas inserem essas informações no campo das representações sociais, contribuindo para sua valorização social, enquanto sujeitas e trabalhadoras, mesmo que em contexto restrito (tendo como audiência os indivíduos que acompanham a publicização dos relatos). Os efeitos dessa atitude reivindicatória atingem, sobremaneira, a construção identitária do grupo, conforme aponta Bernardino-Costa (2015) ao identificar que, na busca por romper com o padrão dominante disposto no mundo moderno, o ativismo das Empregadas Domésticas introduz um projeto de resistência e existência, individual e coletiva, constituído a partir da ressignificação de suas vidas.
Em conformidade com Bernardino-Costa (2015), Cardoso e Guimarães (2019) apontaram o estabelecimento de redes de apoio como estratégia de subversão adotada pelas profissionais, que constroem vínculos de trocas entre familiares, amigos e vizinhos. Forma-se, então, uma rede, que é acessada pela lógica do dar, receber e retribuir, onde circulam informações, cuidados, objetos ou outros bens, materiais ou não, que permitam a adoção de práticas que possibilitem a subversão aos contextos de opressão. Similarmente, a resistência identificada nos relatos, além de ter como finalidade a autoafirmação, pode ser entendida como um meio de produzir redes de apoio, seja com os personagens mencionados nas histórias ou mesmo com os leitores da página, de maneira a instituir naquele ambiente virtual um meio de contraposição ao que se difunde como o trabalho doméstico remunerado, em uma experiência pontual de inversão de percepção negativa entre patrão e Empregada Doméstica. Fenômeno semelhante foi constatado por Teixeira et al (2015), que indicaram que o processo de formação identitária desse grupo ocorre via vinculação negativa às condições de trabalho.
Destarte, segundo Howarth (2006), é necessário examinar quais interesses e identidades estão envolvidos no fenômeno psicossocial da codificação, pois quando há confronto entre perspectivas e os interesses dominantes excluem ou representam erroneamente os demais, as representações não são inequívocas. Cabe, então, que sejam exploradas a ambiguidade, a tensão e a disputa dentro de ambas as representações sociais salientes, de forma global e em contextos específicos (Howarth, 2006). E é esse procedimento que tais profissionais aparentam adotar ao utilizarem o espaço concedido pela página “Eu, Empregada Doméstica”, cuja proprietária já atuou na profissão. Há uma busca por produzir tensionamentos através da exposição de informações que não estariam de acordo com o que se espera de quem exerce o trabalho doméstico remunerado. Por meio dessa prática, é possível conceber que as Empregadas Domésticas esperam alterar as representações sociais difundidas sobre o trabalho doméstico remunerado, de modo que elas traduzam, efetivamente, a realidade da profissão. Isso representa a dinâmica prevista pelo Grupo de Midi, apresentada por Wolter e Sá (2013), na qual as práticas emergem como potenciais agentes transformadores das representações.
Sobre o movimento das Empregadas Domésticas, Bernardino-Costa (2015) afirma se tratar de uma prática político-cultural de luta e resistência contra diferenciações que têm por marcadores o racismo, o machismo e o patriarcalismo, e que estabelecem separações entre humanidade e infra-humanidade. Nessa perspectiva, em vez de ficarem sujeitas ao padrão de poder hegemônico, elas se fizeram sujeitos, articulando interpretações e estabelecendo alianças (Bernardino-Costa, 2015), fenômeno que, como observa este estudo, aparentemente encontrou em uma rede social espaço para o seu desenvolvimento.
Considerações Finais
Este estudo documental se dedicou a analisar as representações e práticas sociais presentes nos relatos divulgados pela página “Eu, Empregada Doméstica” da rede social Facebook. Os resultados demonstraram haver uma representação social de caráter negativo sobre a profissão, indicando que as regras estipuladas, as tarefas desenvolvidas e as relações interpessoais estabelecidas eram marcadas por diferentes formas de violência. Já as perspectivas apresentadas de modo positivo consistem na busca por uma realidade diferente da vivenciada como Empregadas Domésticas. Nesse contexto, as práticas empreendidas pelas trabalhadoras domésticas e seus patrões provêm de um conjunto de representações sociais conhecido por ambos, mas que ocasiona posturas distintas. Assim, de um lado, os empregadores agem de forma a preservar essas representações, de outro, as Empregadas Domésticas atuam na busca por modificá-las. Desse modo, a disputa envolve, também, as práticas sociais e o potencial delas de transformarem as representações.
Problematizando os achados com base no questionamento de Howarth (2006) sobre o objetivo da pesquisa na perspectiva das representações sociais e de seu uso na consolidação ou transformação da ordem social, é possível identificar a existência de um tensionamento entre as representações hegemônicas, apropriadas e utilizadas pelos empregadores como modo de manter a ordem social existente, e as representações sociais de oposição, evocadas e manifestadas, por meio de práticas, pelas trabalhadoras como estratégia de resistência e de construção de uma identidade positiva.
Por fim, é necessário reconhecer, entretanto, que a fonte documental escolhida se reivindica como um ambiente para denúncias dessa classe profissional, indicando haver um viés sobre as características dos textos analisados. Ademais, considerando as limitações impostas pelo uso de uma fonte secundária de informações, recomenda-se a realização de estudos futuros que avaliem se tais achados refletem outros contextos. Por outro lado, as informações obtidas ganham relevância por acrescentarem às discussões sobre o trabalho doméstico remunerado uma dimensão que se difere de outros estudos sobre a temática, à medida em que há um reconhecimento das relatantes de que se trata de um canal com visibilidade e apropriado para denúncias, além da percepção de que o material, divulgado anonimamente, seria lido por uma audiência solidária aos desafios enfrentados por elas.