As reformas neoliberais, ampliadas na década de 1990, repercutiram no setor educacional e promoveram transformações expressivas no ensino superior. Dessa forma, foi exigida dos docentes uma adequação à lógica empresarial e a modelos de organização do trabalho pautados pela produtividade (Costa, 2016). Este movimento se associou a um processo mais amplo de precarização laboral, que se traduziu em flexibilização e intensificação do trabalho (Borsoi, 2012; Cunha & Cunha, 2015; Sguissardi & Silva Júnior, 2018).
Neste contexto, os professores foram submetidos a jornadas excessivas e à ampliação do número de alunos em sala de aula. Também tiveram de lidar com infraestruturas precárias, com a escassez de materiais, dentre outros problemas (Maués, 2010; Cunha & Cunha, 2015). Isto se manifestou, por exemplo, na falta de recursos audiovisuais, na ausência de apoio técnico e na degradação de laboratórios e bibliotecas (Arbex et al., 2013; Ferenc et al., 2015).
Soma-se a isto a estagnação dos salários e o aumento da contratação de professores temporários, admitidos como “horistas” sem plano de carreira, responsáveis apenas pelas atividades de ensino (Ferenc et al., 2015; Arbex et al., 2013; Leda & Mancebo, 2009). A precarização também está associada às tarefas de caráter técnico-administrativo, que passaram a ser atribuídas aos professores (Freitas & Navarro, 2019). Observa-se, também, a desvalorização ocasionada pela descategorização, contratação de profissionais que não são da área ou que não possuem o domínio necessário sobre o conteúdo, bem como pela baixa remuneração, que enfraquece a identidade profissional (Cunha & Cunha, 2015).
A falta de investimentos, que faz com que os professores busquem recursos em agências de fomento para a aquisição de equipamentos ou para o financiamento de atividades de ensino, pesquisa e extensão (Santos et al., 2016), é outra questão importante para se compreender o trabalho docente no ensino superior. A disputa por recursos, aliada à cultura da produtividade, gera competição entre os docentes (Santos et al., 2016; Ferenc et al., 2015), fragiliza as relações de trabalho e mercantiliza o ensino (Mancebo, 2007; Bosi, 2007).
Em relação às universidades públicas, diversas instituições aderiram a programas de expansão, como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), que estimularam a ampliação da infraestrutura e a interiorização das universidades. Para receber mais alunos, houve, ainda, o aumento do quantitativo de cursos de graduação e pós-graduação. Além disso, o REUNI definiu metas como: a proporção de 18 alunos para cada docente e uma taxa média de 90% de conclusão de cursos presenciais,em 5 anos (Decreto Federal n. 6.096, 2007). Ademais, houve aumento do número de ingressantes e de matrículas. Em vários casos, isto se deu sem a contrapartida da ampliação do quadro de profissionais e do acréscimo de verbas para atender à demanda gerada, o que resultou na intensificação do trabalho dos professores (Borsoi & Pereira, 2011; Maués, 2010).
A partir destas discussões, o propósitoda investigação foi compreender os impedimentos ao poder de agir de docentes que atuavam em um campus estruturado a partir da expansão e da interiorização das universidades públicas através do REUNI, tendo em vista ofício e a atividade destes.
Nesse sentido, de acordo com a Clínica da Atividade, entende-se que o ofício é constituído por quatro dimensões: pessoal, interpessoal, impessoal e transpessoal. A dimensão transpessoal diz respeito ao gênero profissional: um conjunto de regras implícitas, construídas pelo coletivo de trabalho, que, embora não façam parte da prescrição oficial, dão orientações sobre a forma como este coletivo julga o que deve ser feito e dito na realização da atividade. Ao apropriarem-se das regras criadas coletivamente, os sujeitos imprimem nelas o seu modo de fazer, seu estilo profissional ou sua dimensão pessoal do ofício. A dimensão interpessoal, por sua vez, engloba as relações com os pares, chefias, dentre outras interações. Já a dimensão impessoal do ofício diz respeito aos aspectos da estruturação do trabalho, da tarefa prescrita e da infraestrutura à disposição, ou seja, aquilo que preexiste e se organiza para além da pessoa que ocupa o cargo (Clot, 2010; Pinheiro et al., 2016).
Para além da distinção entre tarefa e atividade, entende-se que a atividade real está dividida em duas instâncias: o real da atividade e a atividade realizada. Pode-se dizer, por um lado, que todas as possibilidades não concretizadas, como o que se tenta fazer, o que se pensou em fazer e não se fez e o que poderia ter sido feito, ou seja, as atividades inibidas, constituem o real da atividade. Por outro lado, as atividades de fato efetivadas se constituem como atividade realizada (Pinheiro et al., 2016). O poder de agir, por seu turno, se desenvolve através da troca entre pares, manancial do sentido sobre o que se faz, e das técnicas empregadas, origem da eficiência. Com a ocorrência mútua desses dois movimentos se dá o desenvolvimento do poder de agir e a manutenção da eficácia do trabalhador. Nesse sentido, o poder de agir pode aumentar ou diminuir em função do sentido e da eficiência da ação. Desta forma, é mister investigar os impedimentos que são colocados à atividade e inviabilizam a atuação criativa diante dos desafios que o ofício impõe (Clot, 2010).
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa três professores, duas mulheres e um homem. Todos possuíam o título de doutor, trabalhavam como docentes efetivos, com vínculo de 40 horas semanais e dedicação exclusiva, em um campus de uma universidade pública localizado em uma cidade do interior cearense, e atuavam em um mesmo curso de graduação da área de humanidades. A escolha dos participantes se deu por conveniência. Durante a realização deste estudo, este campus, ampliado a partir do REUNI, possuía: oito cursos de graduação, com o total de 2.285 alunos matriculados; quatro mestrados acadêmicos, com 162 pós-graduandos; um mestrado profissional, com 12 pós-graduandos; 224 docentes ativos; 23 docentes substitutos e 70 técnico-administrativos.
Os participantes serão chamados de Rosa, Sâmia e Inácio (nomes fictícios). Rosa, 41 anos, era casada e tinha um filho. Ela possuía 17 anos de experiência docente, dos quais 13 na universidade. Além disso, atuava como professora permanente em dois cursos de mestrado. Sâmia, 47 anos, era casada e não tinha filhos. Iniciou a carreira docente na universidade há 12 anos. Atuava, ainda, como professora em um curso de mestrado, no qual também ocupava o cargo de vice-coordenadora. Inácio era casado, tinha 43 anos de idade, um filho e 23 anos de carreira docente. Trabalhava há 10 anos na universidade e exercia a função de coordenador do curso de graduação no qual atuava.
Instrumentos
Em Clínica da Atividade (Clot, 2010), faz-se uma distinção entre metodologia e método. O primeiro termo refere-se aos princípios nos quais se ancora o modo de estruturar as ferramentas utilizadas, enquanto o segundo se refere às técnicas aplicadas. Estas podem variar e adquirir formatos e contornos diversos, desde que se mostrem coerentes com a metodologia adotada. Assume-se, então, uma metodologia histórico-desenvolvimentista (Clot, 2010), posicionamento derivado da perspectiva histórico-cultural de Vygotsky (1995), donde se colocaa necessidade de transformar para conhecer, pois a atividade real só se revela em movimento (Clot, 2010).Nesse sentido, aatividade realizada é, então, uma forma fossilizada, assentada pelo seu uso cotidiano.
Na análise do trabalho, é essencial, portanto, não se ater ao comportamento manifesto e adotar um método indireto que permita compreender sua gênese (Clot, 2010; Roger, 2013). Tem-se por meta transformar a vivência de um objeto em objeto de análise e, a partir daí, torná-lo objeto para uma nova experiência vivida.
Vê-se, considerando-se o conceito de mediação semiótica (Vygotsky, 1995), a partir do qual se admite que os signos são utilizados para regular a própria conduta, bem como a conduta alheia, que é preciso inserir um terceiro termo na interação entre o trabalhador e sua atividade, de modo que esta possa ver vista de uma perspectiva exotópica (Clot, 2010). Essa mediação se amplia por meio das trocas dialógicas entre o facilitador e o sujeito, pois parte-se da premissa de que o trabalhador detém a expertise sobre o seu fazer (Clot, 2010).
Tomando-se estes pressupostos, foram utilizados, como mediadores para a realização de entrevistas individuais, dezoito figuras que representavam aspectos relacionados ao ofício.A escolha das imagens se deu a partir dadescrição proposta por Ferreira e Mendes (2008) sobre características gerais da organização do trabalho, das condições laborais e das relações socioprofissionais, de modo a circunscrever as dimensões impessoal e interpessoal do ofício.Além disso, a revisão de literatura feita sobre o tema e a experiência dos pesquisadores em investigações prévias sobre o trabalho docentepermitiu a seleção de figuras que caracterizavam especificamente o contexto laboral no ensino superior.
A classificação nas três dimensões citadas acima foi utilizada como critério para dividir as imagens em três grupos.O primeiro grupo, pertinente às condições de trabalho, continha sete imagens que serviam, a partir dos significados atribuídos pelos pesquisadores, para ilustrar: o mobiliário, as práticas de remuneração e os benefícios, os materiais utilizados em sala de aula, os instrumentos e as ferramentas multimídia, a sinalização, a climatização dos ambientes e os diversos espaços presentes num contexto educacional.
O segundo grupo de figuras,referente à organização do trabalho,albergava seis imagens. Os significados dados a elas pelos pesquisadores estavam ligados à fiscalização do desempenho, à sobrecarga, a normas e controles, à divisão de tarefas, à pressão temporal e à cobrança por resultados. Quanto ao terceiro grupo, destinado às relações socioprofissionais, compuseram-no cinco imagens ilustrativas, para as quaisos pesquisadores atribuíram os seguintes significados: reunião da coordenação com o colegiado de docentes; reunião de professores; reunião com a direção do campus; relação professor-aluno e relação com demais funcionários, como porteiro e motorista.
Procedimentos
Construção dos Dados. Foram feitas entrevistas individuais, registradas em áudio, que tiveram, em média, uma hora de duração, entre os meses de fevereiro e março de 2020, período que antecedeu o início do isolamento social no estado do Ceará devido à pandemia de Covid-19. Era sugerido aos participantes um jogo no qual deveriam sortear um número, que representava uma das figuras apresentadas anteriormente, e fazer comentários acerca daquilo que depreendiam da imagem e da relação desta com seu trabalho na universidade. O sorteio dos números era realizado em, no mínimo, três rodadas, de modo que as três categorias fossem contempladas com, pelo menos, uma imagem de cada. Por fim, era solicitado que discorressem sobre como as figuras sorteadas se relacionavam entre si.
Análise dos Dados. Os áudios das entrevistas realizadas com os professores foram transcritos e submetidos à análise construtivo-interpretativa (González-Rey & Mitjánz, 2015). Esse tipo de análise pretende ser processual e compreender os fenômenos inseridos em uma realidade social, histórica e cultural. As categorias de análise são geradas a partir da articulação entre os dados, o referencial teórico adotado e a experiência dos pesquisadores. Dessa forma, os conteúdos foram organizados em indicadores que contemplaram aspectos do ofício e da atividade dos docentes: (a) o fazer dos professores e as limitações ao poder de agir, (b) os impedimentos trazidos pelas condições de trabalho, (c) tempo de trabalho, sobrecarga e pressão e (d) fortalecimento do poder de agir a partir do reconhecimento e da relação com os pares.
Resultados e Discussão
O Fazer dos Professores e as Limitações ao Poder de Agir
Ao comentar sobre seucotidiano, os docentes indicaram que a rotina era composta poratividades que, em vários momentos, extrapolavam o ambiente da sala de aula. Rosa afirmou que sua semana era dividida entre atividades letivas, como a preparação das aulas, a correção de trabalhos, as leituras e os estudos relacionados ao campo da pesquisa e às orientações; e atividades burocráticas, dentre as quais as demandas de ordem administrativa, as reuniões e a participação em comissões. Destas, a ida à sala de aula era percebida por ela como um “coroamento” do seu trabalho. Não obstante, relatou se sentir pressionada a realizar as atividades burocráticas que não eram reconhecidas socialmente:
[existe] uma dimensão política de não reconhecimento também desse trabalho, ou até de uma má-fé, que se junta com uma ignorância de pessoas que não têm o acesso ao que a gente faz aqui e que parece que essa papelada, por mais que a gente esteja pressionado a fazer tudo isso, parece que a gente não fez o suficiente, também no sentido de não ter devolvido para o âmbito social tudo que a gente poderia ter devolvido. (Rosa, comunicação pessoal)
Já Inácio e Sâmia falaram sobre atividades de ensino, pesquisa e extensão que envolviam: preparar e ministrar aulas, coordenar grupos de pesquisa, ir a campo para coletar dados, realizar intervenções e produzir artigos. Citaram, ainda, atividades de gestão, as quais estavam relacionadas com a atuação na coordenação de cursos de graduação, pós-graduação e clínicas-escola. Tal como Rosa,também mencionaram ter de lidar com serviços de caráter técnico-administrativo, como o preenchimento de relatórios destinados ao anuário da universidade.
Este rol de atividades pode ser classificado a partir da distinção entre trabalho visível e invisível no ensino superior (Mancebo, 2011). Àquele estão relacionados o ensino, a pesquisa e a extensão, e a este a participação em comissões, a elaboração de pareceres, a alimentação de sistemas de informação, dentre outros. Esta invisibilidade de algumas atribuições, associada ao fato de que muitas atividades desempenhadas pelos docentes, como orientação em projetos e pesquisas, colaboração em grupos de estudos, participação em reuniões, consomem tempo e nem sempre são reconhecidas como parte da produção acadêmica, colabora para a intensificação do trabalho (Borsoi, 2012; Santos et al., 2018).
O manejo de problemas sociais e psicológicos, relacionados à mudança de cidade, ao distanciamento do núcleo familiar e à adaptação à rotina de estudos no ensino superior, trazidos por alunos também foi mencionado pelos participantes. A fala de Sâmia é ilustrativa disso:
Os alunos vêm e, por questões mesmo de dúvidas de conteúdo, mas também tem as questões emocionais, que a gente acaba sendo essa pessoa de referência para o aluno e para a família do aluno. [...] De vez em quando, vêm famílias atrás da gente para conversar e, em outras situações mais graves, a gente acaba sendo também essa referência. (Sâmia, comunicação pessoal)
Como se verá adiante, tal fato foi atribuído pela docente à falta de profissionais que atuem com tais questões e de programas de apoio que acolham os estudantes em suas demandas psicopedagógicas e sociais. Nesse sentido, coloca-se a necessidade de as universidades aumentarem os investimentos em programas de acompanhamento e orientação aos estudantes (Castro, 2017).
Outro exemplo de atividade apontado por uma das entrevistadas foi ser avaliadora de candidatos a cotas para pessoas com deficiência no processo do Sistema de Seleção Unificada (SISU), responsável pela seleção de candidatos para o preenchimento das vagas no ensino superior de instituições públicas federais. Essa atribuição não está no rol de prescrições dos docentes, porém, dada a falta de pessoal no campus, acabava sendo realizada por eles:
Olha, isso aqui [avaliação de candidatos a cotas para pessoas com deficiência] não era pra gente estar fazendo, porque a gente está avaliando pessoas que vão ser nossos alunos.Isso aí era para ser uma equipe de técnicos da universidade. Psicólogo a universidade também não tem, por isso que a gente acolhe muita demanda de aluno. Não é nosso papel, a gente não é psicólogo, a gente é professor. E falta essa equipe de apoio aos estudantes. (Sâmia, comunicação pessoal)
Percebe-se que tal atividade, assim como aquelas relacionadas às demandas psicopedagógicas dos discentes, excedem a dimensão acadêmica. Fenômeno semelhante é observado em professores do ensino básico, que muitas vezes assumem as funções de agente público, assistente social, psicólogo, enfermeiro, dentre outras (Oliveira, 2004). Isso é característico da desprofissionalização, que se traduz, dentre outras dimensões, no questionamento da centralidade da atuação pedagógica (Noronha et al., 2008; Oliveira, 2004; Facci et al., 2018).
Os Impedimentos Trazidos pelas Condições de Trabalho
Sâmia relatou que, desde sua criação, o curso de graduação a que está vinculada não possuía prédio próprio.Passara, então, vários anos em espaços cedidos por outros órgãos e, fazia pouco tempo, compartilhava uma estrutura improvisada dentro do campus, em razão da implantação do curso de mestrado. Sobre esta situação, ela apontou a importância do REUNI para a descentralização do ensino superior, até então concentrado em capitais e grandes centros urbanos. No entanto, sinalizou fragilidades em relação a sua execução:
O movimento das expansões foi um grande ganho que a gente teve no Brasil e no Ceará - de tirar as Universidades das capitais -, mas junto com isso vieram algumas fragilidades, que foi o planejamento. Na verdade, veio o curso, mas não veio o planejamento. A gente não veio e já tinha um prédio, tinha tudo. Teve o curso, e depois eles pensaram onde a gente ia ficar. (Sâmia, comunicação pessoal)
A fala de Sâmia retrata o que aconteceu em algumas universidades brasileiras a partir do REUNI, que, a despeito da importância da interiorização do ensino superior citada pela docente, provocou uma precarização estrutural. Isso porque ele se deu focado no alcance de metas quantitativas, como o aumento de vagas ofertadas, em detrimento das condições necessárias à qualidade do ensino (Leda & Mancebo, 2009). Tais condições, segundo Guerra et al. (2019), só começaram a ser viabilizadas simultaneamente ao ingresso dos alunos.
Todos os entrevistados se mostraram insatisfeitos com as condições de trabalho, apesar de Sâmia reconhecer, como se verá no excerto a seguir, que aquela era a melhor fase do curso até então. Ela também indicou a necessidade da ação reivindicatória para a conquista de melhorias:
Em relação ao espaço mesmo, de estrutura, a gente está na melhor fase. Eu achei tão interessante que veio uma moça que trabalha no laboratório de Odontologia… Ela [disse]: “como é que vocês estão aqui? A gente saiu daqui porque não tinha condições de trabalhar por conta do mofo, por conta da umidade”. Aí, eu [disse]: “Não, eles colocaram uma manta asfáltica em cima, procuraram impermeabilizar, e a gente está tão feliz aqui...” A gente está tão feliz no nosso espaço, mas a gente não pode se acomodar (sic). A gente tem que continuar lutando por um espaço melhor. Então, eu acho que não é só o externo, a gente tem que se esforçar também, porque, se a gente se cala, ninguém da reitoria ou do governo vai dizer assim: “Ah, vocês estão precisando do quê?”. Ninguém vai fazer essa pergunta (risos). (Sâmia, comunicação pessoal)
De modo geral, também foram elencados problemas em relação à biblioteca, aos laboratórios de informática e à ausência de espaços para supervisões e reuniões. Foi indicada, ainda, a falta de gabinetes para os professores guardarem seus pertences e receberem os alunos. Em relação às salas de aula, foi relatado que sua quantidade era insuficiente para o número de turmas e foi apontada a precariedade de suas estruturas. A fala de Rosa no trecho adiante ilustra alguns destes problemas e os aponta como causadores de prejuízos para o desempenho de suas atividades:
Embora a gente tenha, na prática, certas salas de computadores e bibliotecas, mas a gente tem de uma forma muito insuficiente. A precariedade em termos da nossa estrutura física afeta diretamente o trabalho que a gente pode desenvolver. (Rosa, comunicação pessoal)
Em outro ponto da entrevista, Rosa disse que as salas de aula eram pequenas para comportar o número de alunos, além de possuírem acústica e climatização inadequadas. Até a inexistência de espaços de convivência prejudicava o andamento das aulas, pois, como se vê no trecho a seguir, o barulho das pessoas conversando fora da sala se somava aos ruídos de dentro desta:
Na minha lista de chamada, tem 56 pessoas matriculadas, às vezes, tem um barulho infernal. Você tem que falar muito alto para se sobrepor não somente ao barulho que tem dentro da sala.Então, as pessoas estão conversando lá fora, e isso reverbera dentro da sala de aula, e, às vezes, não é uma maldade, é porque realmente não existem esses outros espaços para que as pessoas estejam. (Rosa, comunicação pessoal)
O tamanho da sala, o ruído do ar-condicionado e o barulho externo foram relatados por Rosa como fatores que a faziam elevar a voz para se sobrepor a esses sons. Esforços vocais como esse, realizados pelos professores,são apontados por Borsoi e Pereira (2011) e Borsoi (2012) como potencializadores de incômodos e irritação na garganta. Sobre isso, a professora disse:
Semana passada foi a primeira semana de aula, e nas primeiras duas horas de aula eu saí rouca, e esse [a voz] é meu instrumento de trabalho básico. (Rosa, comunicação pessoal)
A insuficiência de espaços importantes para o fazer docente foi também exemplificada por Rosa com a escassez do acervo da biblioteca, o que limitava a funcionalidade desta como espaço de pesquisas e estudos. Por sua vez, Sâmia apontou limitações nos laboratórios de informática, visto que não existiam softwares necessários para utilização em pesquisas e em práticas de algumas disciplinas. A falta de salas fazia com que os docentes realizassem as atividades de supervisão com os discentes nos mais variados espaços, o que acarretava constantes interrupções. Este era, por exemplo, o caso de Inácio, que era solicitado a resolver demandas relativas ao seu cargo de coordenador enquanto realizava supervisões na sala da coordenação, uma vez que não ficava evidente que estava ali na condição de docente.
Como se pode ver, o suporte estrutural, material e instrumental, vinculado à dimensão impessoal do ofício, era insuficiente para a realização das atividades. Tal déficit pode ser relacionado aos repasses insuficientes de verbas do REUNI, que dependiam do cumprimento de metas e dos limites orçamentários (Mancebo, 2010). Ademais, os docentes precisavam gerenciar a precariedade das condições para realizar suas atividades.
Tempo de Trabalho, Sobrecarga e Pressão
Os três participantes destacaram que possuíam uma carga de trabalho elevada, em razão do grande número de demandas e das pressões para realizá-las em prazos, muitas vezes, exíguos. Dentre outras consequências, isto repercutia no uso do espaço doméstico para a realização de atividades, assim como na ocupação do tempo de descanso por atribuições da universidade, conforme o excerto abaixo:
Professor, via de regra, tem carga horária excessiva. Na verdade, o trabalho intelectual tende a ter uma carga horária excessiva, porque você trabalha muito fora do âmbito do trabalho, né? [...] A gente prepara a aula, corrige trabalho, corrige prova, esse tipo de coisa, fora do espaço físico e do tempo da universidade. Um e-mail que você responde uma hora depois que você encerrou o trabalho, uma [mensagem de] WhatsApp que você vê no final de semana. É um artigo que você corrige ali no domingo de manhã, e assim vai. Até que chega um ponto em que você não tem mais pausa no trabalho. (Inácio, comunicação pessoal).
Rosa, por sua vez, a despeito de reconhecer a importância de não haver uma delimitação de expediente para o trabalho docente, afirmou desejar a existência de um mediador (no caso, uma “máquina de ponto”) que separasse o tempo de trabalho do tempo livre. Ela imaginou que isso poderia impedir a invasão indicada na fala anterior de Inácio:
O fato de a gente não ter uma máquina de ponto deveria ser uma coisa super libertadora, mas tem dias que eu juro que eu queria ter uma máquina de ponto, que eu queria entrar às 8h da manhã, carimbar o meu cartão, 6 horas da noite descarimbar o meu cartão e pronto, acabou. Depois desse horário, eu estou livre para ver Netflix e falar besteira. (Rosa, comunicação pessoal)
Como se pode ver, a falta de delimitação entre a vida privada e o tempo de trabalho tem relação com a flexibilidade característica do trabalho docente, que não exige a permanência no âmbito da universidade durante toda a jornada laboral, o que se amplia com o uso de novas tecnologias. Se, por um lado, isso gera maior autonomia, por outro, repercute em um tempo de trabalho ampliado (Borsoi, 2012). No entanto, não se pode ignorar que a precarização das condições de trabalho manifestas, dentre outras, na responsabilização dos professores por atividades burocráticas, anteriormente alheias ao seu cargo (Borsoi, 2012), tornam essa falta de delimitação ainda mais proeminente (Santos et al., 2016).
A expansão dos cursos de graduação e pós-graduação, ao preconizar a utilização dos recursos humanos disponíveis sem que houvesse a respectiva contrapartida no número de trabalhadores técnico-administrativos, é um dado significativo para o entendimento das alterações nas responsabilidades docentes e sua consequente sobrecarga (Mancebo, 2007; Ferenc et al., 2015; Sguissardi & Júnior, 2018; Rocha, 2018). Nesse sentido, é ilustrativa a fala de Rosa ao comentar sobre atribuições que poderiam ser exercidas por outros trabalhadores, assim como sobre as pressões que sofria. Estas foram relacionadas às condições de trabalho, a atribuições que poderiam ser exercidas por outros trabalhadores e a exigências legais desconectadas da realidade:
A gente também não consegue fazer isso tão bem quando está pressionado, inclusive com coisas que poderiam realmente ser diferentes, [que] poderiam ter sido feitas por outras pessoas, às vezes até por máquinas [risos]. Você tende a pressionar as pessoas por coisas que não são das pessoas [...] Eu acho que a pressão é reforçada pelas possíveis faltas de condição e por leis que, embora queiram o melhor, nem sempre reconhecem que a gente não tem a pré-condição que é necessária.(Rosa, comunicação pessoal)
O excesso de atribuições é um estressor no ambiente laboral e acarreta desgastes físicos, psíquicos e emocionais que podem progredir para doenças ocupacionais (Santos et al., 2016; Ferenc et al. 2015). Nesse contexto, Rosa afirmou que a pressão para o cumprimento de prazos era uma fonte de estresse:
Acho que as demandas chegam, muitas vezes, em cima da hora, e aí a gente não sabe de onde ela chega e de onde ela começa. [...] E, pessoalmente, muitas vezes, eu tenho essa sensação de que eu não vou dar conta, essa sensação terrível, porque essa é uma sensação que gera esse estresse mesmo do trabalho. (Rosa, comunicação pessoal)
A sobrecarga no trabalho, além da constante exigência de produtividade, faz com que os docentes tenham pouco tempo livre e prejudica os momentos de lazer e descanso (Borsoi, 2012). Conforme Freitas e Navarro (2019), muitos docentes consideram a prática de exercícios importante para atenuar ou prevenir problemas de saúde, emboraindiquem a falta de tempo, os trabalhos durante os finais de semana e o cansaço como fatores que interferem na prática de atividades de lazer. Sobre isto, Inácio citou estratégias de prevenção aos problemas de saúde, como realizar atividades físicas e cultivar amizades que não sejam apenas do âmbito do trabalho.
Eu procuro fazer uma divisão que me deixa espaço para a saúde mental, para arejar a minha cabeça. Fazer outras atividades. Ainda manter um cultivo de amizades fora do âmbito do trabalho, porque também é muito comum: você acaba restringindo as amizades ao âmbito do trabalho […] Praticar atividade física. Inclusive eu estou parado, mas eu voltarei, mas não foi por questões do trabalho, foi por questões outras, por questões pessoais. (Inácio, comunicação pessoal)
A vinculação aos programas de pós-graduação e a consequente exigência de publicação de artigos, de elaboração de projetos, e de produção de relatórios, constituem elementos de sobrecarga, visto que o trabalho dos docentes, em especial na pós-graduação, passou a ser avaliado pela quantidade de produtos que estes conseguem apresentar (Freitas & Navarro, 2019). Sâmia, ao comentar sobre sua vinculação à pós-graduação como vice-coordenadora, relata que a falta de docentes para absorver uma parte de suas atividades na graduação é motivo para não reduzir a carga horária, conforme lhe seria garantido por resoluções internas da universidade. Tal situação implica mais uma fonte de intensificação do trabalho.
Abrir um mestrado, e sendo professor de graduação, não aumentou um real do nosso salário. Nada! Aumentou a carga horária. [...] Eu estou na vice-coordenação do mestrado, então eu posso reduzir pela metade a minha carga horária na graduação. Não acontece isso por conta que não tem quem dê conta da graduação. (Sâmia, comunicação pessoal)
Até o momento, foram apresentados elementos impeditivos ao poder de agir dos docentes. Adiante, serão discutidos aspectos relacionados ao reconhecimento e à dimensão interpessoal do ofício que apontam para sua ampliação.
Fortalecimento do Poder de Agir a partir do Reconhecimento e da Relação com os Pares
A atividade de ministrar aulas no curso de graduação é vista por Inácio como fonte de prazer. Nesse sentido, o retorno dado pelo trabalho não estava vinculado somente à remuneração, como é possível observar-se no seguinte excerto:
Eu acho que é muito nítido o prazer que eu tenho em dar aula. [...] Então, como eu sei onde está alocado meu desejo, pelo menos até agora, fica mais fácil eu extrair prazer do que fazer um trabalho que é repetitivo [...] Nesse caso, a remuneração, que é o meio material de subsistência, não é o fim pra mim, é a consequência de um trabalho que é prazeroso. (Inácio, comunicação pessoal)
A partir de Clot (2010), compreende-se que não basta o reconhecimento no trabalho vir de alguém, é necessário que ele se reconheça em algo que propicie orgulho. Nesse sentido, vislumbra-se necessário que o trabalhador reconheça a si no gênero profissional ou no objeto de trabalho, para que consiga suportar as desilusões provenientes da busca de reconhecimento direcionadas aos pares (Clot, 2010; Silva et al., 2015). Portanto, percebe-se que a identificação que os docentes têm com as atividades exercidas, no caso de Inácio com a atuação em sala de aula, é aquilo que aponta para um “trabalho bem-feito”, que possibilita reconhecer a si mesmo, tanto de forma individual quanto coletiva, “sintonizado com uma história profissional que se persegue e pela qual cada um se sente responsável” (Clot, 2010, p. 15).
Além disso, os três entrevistados indicaram que a boa relação com a equipe de trabalho é uma característica importante no ambiente laboral, indo de encontro ao que se vê na literatura ao mostrar um ambiente de competição e disputa entre docentes nas universidades (Ferenc et al., 2015). Nesse sentido, o excerto a seguir é ilustrativo:
O que me segura muito aqui, hoje, é a relação que eu tenho com a minha equipe de trabalho, com o colegiado e com a direção. Eu sinto que a gente trabalha de forma colaborativa [...] com o vice-diretor e o diretor do campus [...] construímos juntos, porque eles escutam a gente, escutam as nossas demandas. (Sâmia, comunicação pessoal)
A fala de Sâmia remete à dimensão interpessoal do ofício, a partir da qual se sustenta e se renova o trabalho da organização, que depende da possibilidade de o diálogo entre os trabalhadores ser exercitado (Clot, 2010). Com este excerto, pode-se presumir que esse diálogo é viabilizado, inclusive com os gestores, o que é acentuado pela justificativa de que isto a matinha ligada ao campusem que atuava, apesar de todas as falhas estruturais mencionadas pela docente no decorrer da entrevista. A existência de tal diálogo pode ser, inclusive, fonte para a manutenção do gênero profissional.
Considerações Finais
A pesquisa visou analisar os impedimentos ao poder de agir de docentes que atuavam em um campus que se estruturou através do REUNI. A partir de entrevistas, realizadas com o uso de imagens mediadoras que representavam características do contexto de trabalho, foram discutidos elementos do ofício e da atividade que apontavam para o rebaixamento e para a ampliação do poder de agir. Os áudios das entrevistas foram transcritos e submetidos à análise de conteúdo construtivo-interpretativa.
Dentre os resultados que apontavam para a redução do poder de agir, viu-se a intensificação do trabalho promovida pela atuação em curso de pós-graduação e pelas atividades invisibilizadas, como aquelas relacionadas à burocracia. Observaram-se também características de desprofissionalização associadas ao desempenho de atividades alheias ao fazer docente, como a lida com questões sociais e psicológicas dos discentes, que deveriam ser exercidas por outros profissionais os quais não existiam no campus por deficiências estruturais no quadro de pessoal.
Ainda sobre o rebaixamento do poder de agir, observou-se a ausência de estrutura física adequada, relacionadacom a precarizaçãoestrutural que ocorreu com a implementação do REUNI. As condições inadequadas das salas de aulas, por exemplo, foram apontadas como fonte de problemas vocais. Além disso, houve indicações sobre uma carga de trabalho elevada e a existência de pressões para o cumprimento de prazos, associadas ao uso do espaço doméstico para a realização de atividades, assim como à invasão do tempo de descanso por atribuições da universidade.
No que diz respeito à ampliação do poder de agir, houve indicações sobre o reconhecimento em relação ao próprio fazer, o que apontou para a dimensão de um trabalho bem-feito. Também foi destacada a boa interação entre pares e entre os docentes e os gestores locais.
Os resultados do estudo podem nortear ações de promoção da saúde docente, dar balizas para a discussão sobre melhorias dos contextos de trabalho e para contextualizar análisessobre o processo de expansão universitária. Dentre as limitações da investigação, está o número reduzido de docentes que participaram da pesquisa. Além disso, eles atuavam em apenas um dos oito cursos de graduação do campus visado. Também não foi possível encontrar elementos específicos do gênero profissional, bem como vislumbrar potencialidades do real da atividade a partir das quais os professores pudessem se reposicionar diante do próprio fazer. Tal limite pode ser atribuído à falta de interação entre os participantes, decorrente do uso de entrevistas individuais. Isto aponta para a necessidade de um aperfeiçoamento da aplicação do método, de modo que os mediadores possam ser utilizados para facilitar diálogos em grupo, o que promoveria, ainda, um fortalecimento mais direto dos coletivos de trabalho.
Entre as possibilidades de investigações futuras, está a ampliação dos participantes para professores de outros cursos do campus. Também se pode visar ao entendimento específico de como o trabalho na pós-graduação repercute sobre o fazer e a saúde docente. Além destas alternativas, pode-se vislumbrar um maior aprofundamento acerca do modo como se organizam as relações profissionais entre docentes e da maneira como isto traz implicações para o ofício, em especial para sua dimensão transpessoal.
Conforme se viu na literatura já produzida sobre o tema, assim como é possível inferir a partir dos achados deste estudo, oprocesso de expansão, reestruturação e manutenção das universidades ocorreu, portanto, às custas da precarização e da intensificação do trabalho docente.Contudo, a situação atual não se deve apenas ao REUNI, pois outras políticas propostas posteriormente a esta também repercutiram no funcionamento das universidades, a exemplo do estabelecimento, em 2016, do teto de gastos constitucional (PEC 241) e dos cortes das verbas repassadas às agências de fomento à pesquisa como CAPES e CNPq. Estas são apenas algumas das muitas políticas de desvalorização e sucateamento da universidade pública empreendidas paulatinamente, em face do projeto de desestruturação do ensino público em favor de políticas privatistas e elitistas.
Mesmo em face disso tudo e apesar das críticas que podem e devem ser feitas ao processo de implantação do REUNI, os autores deste trabalho reconhecem a sua importância para a descentralização do ensino superior no Brasil, até então circunscrito a capitais e a grandes centros urbanos, principalmente na região sudeste. Esta é uma ressalva que estava presente em falas dos participantes da pesquisa durante a coleta de dados e que foi consensual durante a devolutiva do estudo, momento em que os professores tiveram acesso à equipe de pesquisa e com ela discutiram acerca do relatório final.
Frise-se que o REUNI permitiu a milhares de pessoas em cidades do interior terem acesso à educação pública e de qualidade. Muitas delas jamais teriam condições de se deslocar para outras cidades para fazer cursos de graduação e de pós-graduação. Esta descentralização também se estendeu à pesquisa e à extensão, e, assim, problemas locais, que demandam estudos- dentre os quais este se pode destacar como exemplo -, desenvolvimento técnico e tecnológico, além de intervenções e ações formativas, têm sido pautados por docentes que atuam nos novos campi que advieram deste programa.