O aumento da expectativa de vida da população representa uma tendência global, por conta do aumento da longevidade somado à redução das taxas de fecundidade mundial (Fundo de População das Nações Unidas [UNFPA], 2012). No Brasil, a lei nº 10.741 de 2003 considera idoso aquele que possui 60 anos ou mais. Contudo, o processo de envelhecimento se inicia na meia-idade, a faixa-etária compreendida entre 40 e 60 anos, fase na qual começam a surgir impactos sobre a qualidade de vida nos aspectos físico, psíquico e social, com alterações de papéis sociais e declínio nos status sociais (Fechine & Trompieri, 2012). Pela iminência da velhice, a meia-idade se torna um momento crucial para a conquista de um envelhecimento saudável, considerando-se que a expectativa de vida do brasileiro aumentou 30 anos nas últimas décadas, atingindo 76 anos desde 2017 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018).
Estas questões têm despertado, nos chamados “adultos maduros”, a necessidade de criarem significados novos para suas vidas estendidas. No âmbito profissional, estimula a continuarem atuando independentemente da aposentadoria (Antunes et al., 2018), uma vez considerado o trabalho um elemento fundamental na existência humana, bem como um recurso adaptativo positivo e fator de proteção significativo na construção de um envelhecimento bem-sucedido (Ribeiro et al., 2020). Contudo, ter um trabalho significativo e uma identidade profissional na maturidade mostra-se algo mais complexo em comparação às outras fases da vida (Quishida & Casado, 2009), principalmente para aqueles que sempre foram assalariados formais e não encontram outra oportunidade de emprego, e que costumam ter maior resistência para transição para o trabalho autônomo (Mountian & Diaz, 2018).
Em meio a um contexto de crise econômica global, a reforma da Previdência Social implementada pelo Governo Federal Brasileiro via Emenda Constitucional nº 103, de 2019, tornou essa fase da vida ainda mais desafiadora. Em épocas anteriores, o profissional de meia-idade estaria se preparando para encerrar sua vida profissional com a aposentadoria, mas agora necessitará trabalhar por mais tempo para ter direito a este benefício. Cabe ressaltar que o significado que a pessoa atribui ao trabalho irá influenciar na decisão sobre continuar atuando ou não durante a velhice, independente da aposentadoria. No entanto, o trabalho frequentemente costuma ser o único recurso para evitar a ociosidade, após a aposentadoria, em função da falta de outros interesses (Macêdo et al., 2017).
Considerando este cenário da atualidade, numa sociedade em constantes transformações e a supervalorização do trabalho na vida humana, compreender os sentidos do trabalho para indivíduos de meia-idade representa um tema importante e emergente. Sua relevância se justifica tanto em termos da compreensão do desenvolvimento do ciclo vital, dos aspectos psicossociais envolvidos, quanto em relação à discussão acerca de uma modalidade específica de discriminação conhecida como etarismo (Hanashiro & Pereira, 2020) e seus desdobramentos.
Criação de Sentido, Trabalho e Carreira
Partimos do pressuposto de que o sentido que uma pessoa atribui ao seu trabalho influi diretamente no modo como organiza sua carreira. Significados e sentidos do trabalho são constructos complexos, multidisciplinares e dinâmicos, sendo estudados por diversas linhas teóricas. Na literatura científica não há um consenso sobre a utilização destes termos (Rosso et al., 2010), que podem ser tomados como semelhantes ou complementares em um mesmo construto, bem como distintos entre si. Neste caso, “significado” refere-se à construção social compartilhada e “sentido” à construção individual e subjetiva (Pereira & Tolfo, 2016; Rosso et al., 2010).
De acordo com os trabalhos da Meaning of Work International Research Team (MOW), três seriam as dimensões principais do sentido do trabalho: a) a centralidade do trabalho na vida da pessoa; b) as normas sociais sobre o trabalho, aspectos éticos, deveres e direitos do trabalhador e c) os resultados valorizados do trabalho, que justificam a realização das atividades (Neves et al., 2018; Pereira & Tolfo, 2016). Morin (2001) identificou as principais características do trabalho significativo: a) utilidade do trabalho; b) integridade moral; c) aprendizado e desenvolvimento; d) autonomia; e) qualidade das relações e f) reconhecimento.
Borges e Alves Filho (2001) propõem quatro facetas do significado do trabalho: a) a centralidade do trabalho em relação às outras as áreas da vida; b) atributos valorativos, que representam os valores atribuídos ao trabalho; c) atributos descritivos, que se referem o que o trabalho realmente é ou deveria ser de fato para o indivíduo e d) hierarquia dos atributos, em relação aos atributos valorativos e descritivos. Rosso et al. (2010) identificaram, em seus estudos, as principais fontes de significado do trabalho: a) o self, relacionado aos valores, motivações e crenças individuais; b) as outras pessoas ou os grupos, dentro e fora do trabalho; c) o contexto de trabalho e d) a vida espiritual. Esses autores também identificaram os mecanismos para construção e atribuição de sentido do trabalho: a) autenticidade; b) autoeficácia; c) autoestima; d) propósito; e) pertencimento; f) transcendência e g) criação de sentido cultural e interpessoal.
No presente estudo, recorremos à Abordagem Experiencial de Eugene Gendlin, pois ainda que sua teoria não trate especificamente de questões laborais, oferece importantes construtos para a compreensão sobre a criação e funcionamento dos significados para as pessoas (Gendlin, 1962). A descrição da base do psiquismo humano como um fluxo chamado de experienciação (do original experiencing) indica a ênfase no processo e não em um conjunto de traços (Messias, 2015). Nessa dinâmica, significar implica transformar a própria experiência e, a partir desse ângulo conceitual, encontra ressonância no conceito de função psicológica do trabalho descrito por Bendassolli e Gondim (2014).
Isso pode ser compreendido em termos experienciais considerando-se que toda experiência humana é implicitamente permeada por sentidos e significados, ainda que o grau de percepção em relação a esse processo varie de cada pessoa para pessoa. Tais elementos simbólicos estão em constante retroalimentação por meio do cruzamento (crossing), tanto em termos dos conteúdos de uma mesma pessoa, quanto em termos dos fenômenos intersubjetivos. Na dimensão individual, explica como distintos interesses podem se combinar fomentando maior criatividade; na dimensão interperssoal, esclarece como as gestalts grupais ganham características tão próprias. A imersão (dipping) nesse tipo de trama remete ao senso sentido (felt sense), registro intuitivo da interação essencial corpo-ambiente (Gendlin, 1995).
Para Gendlin (2012) há dois importantes elementos, sempre interligados entre si e na relação corpo-ambiente, os conceitos de implicar (implying), relacionado ao que está sendo demandado, em sentido amplo, e ocorrer (occurring) relacionado a o quê, de fato, acontece. Significados e sentidos funcionam no processo de implicar-ocorrer-implicar, provocando o avançar experiencial (carrying forward). Portanto, acontecimentos atuais explicam os eventos anteriores e os eventos posteriores estão impregnados de aspectos implícitos dos eventos atuais e anteriores (Gendlin, 2013).
Essa perspectiva se mostra compatível com o paradigma Life Design proposto por Mark Savickas, influenciado pelas Teorias de Construção de Si (Theories of Self-Constructing) de Guichard (2009) e da Construção de Carreira (Career Construction) de Savickas (2005). Este modelo considera o ciclo vital ao longo da vida, de forma duradoura, holística, contextual e preventiva (Duarte et al., 2010), com destaque para a adaptabilidade de carreira (Ambiel, 2014), que representa elemento essencial para enfrentar os desafios de um mercado de trabalho vigente em constante transformação.
Para Ibarra (2009), a Identidade Profissional (Working Identity) representa a percepção do próprio papel profissional, de como a pessoa se mostra para os outros e de como vivencia sua vida no trabalho. Realizar uma mudança (ou transição) de carreira significa a redefinição da própria identidade profissional, exigindo novas habilidades e atitudes. De acordo com Bridges e Bridges (2016), os conceitos de transição e mudança são distintos, sendo a transição um processo interno e complexo (“psicológico”) e a mudança um processo externo e situacional. Tais autores defendem que todas as transições, dentre elas a de carreira, são compostas por três fases, a saber, a) término - sendo o final de uma condição que gera perdas significativas e pode desencadear raiva, medo, depressão, confusão e diferentes intensidades de sofrimento; b) zona neutra - definida como a fase intermediária entre a identidade abandonada e a nova, que desencadeia um realinhamento psicológico na busca por novas possibilidades, podendo gerar ansiedade, frustração, desorientação, como também, excitação, motivação e resistência e c) novo começo - o início de uma nova identidade já escolhida, envolvendo o realinhamento e a renovação de propósitos e energia, do qual pode surgir sensação de alívio, animação e comprometimento.
Para Dutra (2017) a transição de carreira abarca um processo emocionalmente desgastante, marcado por sentimento de perda, gerado pela renúncia de uma identidade profissional construída e vivenciada por tanto tempo. Contudo, considera que este momento também oferece oportunidades de realização pessoal e profissional. Quatro etapas caracterizam o processo de transição de carreira: a) etapa racional; b) etapa emocional; c) etapa do limbo e d) etapa da consolidação da nova carreira.
Em face a esses elementos, este estudo objetivou compreender os sentidos que mulheres e homens de meia-idade atribuem ao trabalho na transição para uma nova carreira a partir da concepção de que esse processo impacta o desenho de suas novas carreiras.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo exploratório de inspiração fenomenológica conforme o método desenvolvido por Edmund Husserl (1859-1938) e que abrange a redução fenomenológica, descrição das vivências dos participantes e a busca da essência do fenômeno. Por ter caráter exploratório, não pretende testar hipóteses ou fornecer soluções conclusivas, mas sim explorar e aprofundar os conhecimentos sobre o fenômeno pesquisado (DeCastro & Gomes, 2011).
Participantes
Ainda que a meia-idade compreenda a faixa-etária de 40 a 60 anos, optou-se por enfocar o que seria a segunda metade dessa fase, por estar mais próxima da velhice. Assim sendo, participaram desta pesquisa 10 indivíduos com idade entre 50 e 59 anos (M=55), todos casados e residentes nas regiões metropolitanas de Campinas ou de São Paulo. Todos possuem formação superior completa, 90% são pós-graduados e 80% têm filhos (Tabela 1). Os pseudônimos foram escolhidos por eles próprios, estratégia que contribuiu para melhor compreensão dos sentidos e vivências que expressaram.
Nome | Idade | Gênero | Estado Civil | Filhos | Regiao |
---|---|---|---|---|---|
Abraham Lincoln | 57 | M | Casado | 2 | Campinas |
Barack Obama | 57 | F | Casado | 1 | São Paulo |
Batman | 59 | M | Casado | 1 | Campinas |
Bia | 55 | F | Casado | - | Sao Paulo |
Elizabeth Bennet | F | Casado | 1 | Campinas | |
Gabriela Prioli | 50 | M | Casado | 2 | Campinas |
Janies Bond | 56 | M | Casado | 4 | São Paulo |
Jerry Maguire | 55 | M | Casado | 1 | Campinas |
Maria da Paz | 56 | F | Casado | 2 | Sào Paulo |
Penelope Charmosa | 51 | F | Casado | - | Campinas |
Elaborado pelos autores
Os participantes foram identificados a partir de indicações da rede de relacionamentos da pesquisadora, por meio de divulgação em redes sociais e pela técnica da Bola de Neve (Snowball), na qual indicam outras pessoas. Embora tenham sido escolhidos por conveniência, procurou-se manter, intencionalmente, equivalência entre gêneros, como também, a diversidade de áreas de atuação profissional (Tabela 2).
Nome | Carreira Profissional | Aposentado | |||
---|---|---|---|---|---|
Anterior (*) |
Tempo (**) | Nova / Atual | Inicio | ||
Abraham Lincoln | Gerente de Enga de Vendas |
32 | Empreendedor Consultor |
2019 | Não |
Barack Obama | Gerente de Projetos e RH |
33 | Coordena dora Pedagógica |
2018 | Sim |
Batman | Supervisor de Produção | 22 | Consultor de Empresas |
2017 | Sim |
Bia | Gerente de Projetos |
30 | Empresaria Empreendedora |
2018 | Sim |
Elizabeth Bennet | Coordenadora | 28 | Clínica Orientação | 2019 | Não |
de RH | Profissional | ||||
Gabriela Prioli | Gerente de Vendas |
29 | Consultor Comercial |
2019 | Não |
James Bond | Policial Civil |
26 | Advogado | 2019 | Sim |
Jerry Maguire | Especialista em RH | 33 | Consultor de Imóveis |
2020 | Sim |
Maria da Paz | Especialista em Qualidade de Vida |
37 | Confeiteira | 2017 | Sim |
Penelope Charmosa | Secretaria de Diretoria |
30 | Costureira | 2017 | Sim |
Notas: (*) Ultimo cargo na carreira anterior. (**) Anos na carreira anterior.
(***) Ano que iniciou nova carreira.
Elaborado pelos autores
Para a inclusão era necessário ter uma nova carreira iniciada nos últimos três anos, por vontade e por interesse financeiro e com pretensões de continuarem nesta atividade depois dos 60 anos.
Instrumento, Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
O recurso metodológico utilizado para coleta de dados foi o de Narrativas Compreensivas. Este recurso, de inspiração fenomenológica, tem como pressuposto a cocriação de conhecimento a partir da intersubjetividade pesquisador-pesquisado (Brisola et al., 2017). Primeiramente, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - CAAE 24725019.0.0000.5481. Os convites foram feitos por meio do telefone (WhatsApp), e-mail ou redes sociais. Diante da manifestação de interesse dos convidados, foram agendados encontros dialógicos individuais quase em sua totalidade por meio de videoconferência, utilizando recursos como o Skype e o Zoom em função da eclosão da pandemia Covid-19. Foram respeitadas as condições de privacidade e conveniência para os participantes e os encontros somente aconteciam após esclarecimentos e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O diálogo partiu da questão norteadora “como está sendo, para você, investir em uma nova atividade profissional nesta fase da vida?”. A pesquisadora procurou estabelecer uma comunicação empática, visando compreender os significados da experiência na visão dos pesquisados. Ressalta-se que os encontros dialógicos não foram gravados ou anotados durante sua realização para que pudesse haver um clima facilitador da relação intersubjetiva, conforme orientam Brisola et al. (2017). Ao final do encontro, solicitou-se a cada participante a escolha de um pseudônimo.
Imediatamente após o término de cada encontro, a pesquisadora iniciava a elaboração de uma narrativa compreensiva, redigida de forma abrangente e em primeira pessoa, contemplando elementos compartilhados e impressões que emergiram no próprio encontro, sem análise, julgamento ou conclusões (Brisola et al., 2017). Tal processo assemelha-se aos relatos de sessões que psicólogos em formação elaboram para a supervisão clínica e, por essa razão, representa uma práxis tradicional do fazer psicológico. A narrativa inicial foi revisada quantas vezes fosse necessário até não haver novas impressões ou significados a serem considerados.
No passo seguinte, cada narrativa individual foi apresentada aos pesquisadores do grupo de pesquisa “Psicologia e Trabalho: Abordagem Experiencial” do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, do qual a pesquisadora faz parte. Essa estratégia permite contribuir, de maneira coletiva com a compreensão fenomenológica das vivências dos participantes ao mesmo tempo que funciona como um mecanismo de controle de viés. Os debates com os demais pesquisadores permitiram o refinamento e elaboração de uma versão final de cada narrativa graças ao cruzamento de percepções e imersão no fenômeno (Gendlin, 1995).
Concluída esta etapa, foi construída uma única narrativa-síntese, a partir da análise e da identificação dos elementos significativos vividos. A construção da narrativa-síntese permite a compreensão dos elementos essenciais do fenômeno pesquisado e orienta a construção dos resultados da pesquisa (Brisola et al., 2017).
Procedimentos de Análise de Dados
Em uma pesquisa exploratória fenomenológica não se busca comprovar hipóteses ou identificar elementos de análise previamente definidos. Fenomenologia significa “estudo daquilo que se mostra”, ou seja, privilegia descrições mediadas pela intencionalidade, que representa o ato consciente direcionado a um objeto, e transcende esse ato (Holanda & Portugal, 2018).
Empreendeu-se, portanto, a redução fenomenológica (epoché) com o propósito de mudar de uma atitude natural, que pressupõe a maneira comum de relação com o mundo, irrefletida e assistemática, para a atitude fenomenológica, intencional e metódica (DeCastro & Gomes, 2011). Em termos práticos, nessa etapa do estudo o esforço dos pesquisadores é canalizado para a suspensão de juízos prévios, o “colocar entre parênteses” husserliano. Imbuídos de tal postura, os autores releram o material repetidas vezes até que os elementos estruturais pudessem emergir.
Resultados e Discussão
A construção das narrativas possibilitou uma aproximação com os elementos que emergiram em relação aos sentidos que os participantes atribuem ao trabalho, a partir dos seus processos experienciais neste momento de vida. Os principais elementos estruturantes do fenômeno apreendidos foram organizados em cinco categorias descritas a seguir, mas vale destacar que estão interligados entre si e se retroalimentam por meio do processo de cruzamento (Gendlin, 1995). Alguns excertos das narrativas individuais ilustram os tópicos em discussão.
A Transição Profissional como Fator de Sofrimento
Nesta pesquisa, os depoimentos dos participantes revelaram vivências de angústia e sofrimento em algum momento do processo de transição profissional que experienciaram recentemente, em consonância com as observações de Dutra (2017), que indica que este processo costuma gerar nas pessoas intenso desconforto e pode desencadear um processo de depressão. Os que demonstraram maior sofrimento foram os que vivenciaram o desligamento do último emprego como um encerramento indesejado de sua trajetória profissional, gerando a perda de uma identidade social e profissional significativa. Esse tipo de transição se caracteriza por ser complexo e intenso, envolvendo questões internas e externas, podendo gerar intenso sofrimento pelas várias perdas sofridas com o final de uma condição vivida (Bridges & Bridges, 2016).
James ainda tinha um ano de licença remunerada para tirar antes de se aposentar, e combinou com seu chefe que continuaria atuando em sua unidade mesmo estando de licença, pois queria continuar na ativa. Conta que foi aposentado a contragosto e, comenta, com rancor, que o valor da aposentadoria foi reduzido por ter perdido um dos benefícios do qual teria direito. Com dívidas a saldar ficou tão decepcionado e magoado com a Polícia que entrou em depressão.
Em geral, os participantes tiveram uma ruptura abrupta da sua principal carreira com a perda de vínculos de emprego de longo tempo e a impossibilidade de se recolocar no mercado formal, gerando um vazio existencial. Alguns vivenciaram tal desligamento como luto nesta fase da vida, desencadeando angústia e sentimento de inutilidade, como ficou evidente nas histórias de James, Obama e Bia, cuja perda do emprego esteve permeada de intenso sofrimento. Como nos estudos de Bridges e Bridges (2016), a fase de término e zona neutra são as mais difíceis de serem vivenciadas e o novo começo costuma ser percebido como positivamente desafiador.
Esse tipo de ruptura exemplifica o ocorrer-implicar-ocorrer (Gendlin, 2012; Messias, 2015), no caso, compreendido como um bloqueio no fluxo experiencial. O novo ocorrer, ou seja, a perda do emprego anterior, implica todo um outro contexto de desdobramentos profissionais. Atribuir novos sentidos, bem como ter consciência dos mesmos, é fundamental para que esse processo possa ser vivido de maneira mais salutar e isso depende da abertura de cada um à própria experiência (Gendlin, 2013).
Foi possível observar que a longevidade não está trazendo a qualidade de vida e a autonomia esperada para a velhice, mas gerando novas dificuldades no âmbito pessoal (identidade), financeiro e profissional. O sofrimento parece estar ligado à perda da função psicológica do trabalho, cuja ausência, ainda que temporária, deixa de articular sentidos pessoais e sociais, acarretando uma espécie de vazio, evidenciando que o trabalho constitui um dilema existencial (Bendassolli & Gondim, 2014).
A Construção da Identidade Pessoal e Social por Meio do Trabalho
O conjunto de valores, motivações e crenças individuais ao qual Rosso et al. (2010) se referem como self foi colocado à prova nas trajetórias dos participantes deste estudo. Depois de atuarem, em média, por 30 anos como empregados de empresas, atualmente exercem atividade autônoma, formal ou informal, adotando uma nova identidade profissional (Ibarra, 2009). Constatou-se que migraram para o trabalho autônomo ou empreendedor, por ser a alternativa encontrada para se manterem profissionalmente ativos nesta fase da vida, o que ilustra o mecanismo de adaptabilidade (Ambiel, 2014; Savickas, 2005) essencial para o desenho de vida.
A principal experiência profissional de Penélope aconteceu em uma multinacional, onde trabalhou por mais de 20 anos e chegou a ser Secretaria da Diretoria. Desligada, chegou a procurar emprego, mas não conseguiu por conta da idade. Começou a buscar alternativas e pensou em ser costureira, algo que aprendeu com sua mãe, que foi costureira profissional por 30 anos. Rindo discretamente, diz que inicialmente não achou essa atividade uma boa ideia, mas pensou ‘por que não?’, superando um certo preconceito que tinha e demonstrou estar realizada com sua atividade atual.
No entanto, embora com trajetórias de vida diferentes entre si, o rompimento com o vínculo empregatício acarretou angústia na maioria dos participantes, demonstrando estarem despreparados para uma carreira autônoma, semelhante aos achados dos estudos de Mountian e Diaz (2018). Alguns também relataram sensação de desvalorização social associada à perda do título do cargo que possuíam ou do nome da empresa associado ao seu próprio nome (como um sobrenome).
Este achado corrobora as considerações de alguns autores, que consideram o trabalho elemento importante para a construção da identidade individual e sentidos existenciais, por envolver aspectos individuais e sociais (Borges & Alves Filho, 2001; Guichard, 2009; Morin, 2001). Houve, também, relatos de situações de etarismo diante da tentativa de conseguir um novo emprego, carregados de estereótipos de idade, preconceito e discriminação com os profissionais mais velhos (Hanashiro & Pereira, 2020).
Para a maioria dos participantes o trabalho está relacionado à própria identidade pessoal e social. Vivenciaram negativamente o processo de desligamento laboral neste momento da vida, pelo fato de o trabalho representar seu principal papel existencial e fonte de significado. Alguns participantes buscam reconhecimento social e pessoal pelo trabalho, tendo papel central em suas vidas. A centralidade do trabalho constada está alinhada às considerações de vários autores (Morin 2001).
Fundamentado em uma perspectiva oposta ao mecanicismo, Gendlin (2013) argumenta que os processos geram estruturas, e não o oposto. No caso do presente estudo, significa compreender que o modo como o processo de transição é vivenciado acarreta desdobramentos práticos sobre os passos seguintes. O incômodo psicológico expresso não se remete, apenas, às questões concretas das perdas e receios, mas ao senso sentido (felt sense) inerente à interação corpo-ambiente e funciona como um referencial para a busca de novas possibilidades de ação e posicionamento (Gendlin, 1995). A atenção a essa dimensão intuitiva da existência pode servir como guia para a criação de sentido e tomada de decisões propiciando maior segurança e bem-estar (Gendlin, 1962).
Trabalho como Fonte de Propósito de Vida
Todos os participantes sentem-se capazes e com vitalidade, e querem continuar trabalhando para se manterem ativos, produtivos e úteis, e para ter funcionalidade social. Querem ser valorizados e reconhecidos por meio do trabalho. A maioria demonstrou que sente necessidade de ter um propósito na vida, quer um projeto para se responsabilizar e se comprometer ao longo do tempo. Além disto, querem ter objetivos e metas para conquistar nesta fase da vida. Essas perspectivas encontram ressonância nos estudos de Antunes et al. (2018).
Quando a atuação como consultor ficou restrita devido à pandemia, Batman buscou alternativas e, conta animado, que está estudando para ser corretor de imóveis, pois percebeu que gostava desta área quando ajudou parentes a resolverem um problema imobiliário. Acredita que vai gostar de captar imóveis, clientes, fazer vendas, orientar pessoas e mediar negociações.
Também estão em acordo com os estudos de Rosso et al. (2010), que consideram propósito como o senso de direção e intencionalidade na vida de uma pessoa, bem como o de Ribeiro et al. (2020), que sustenta a importância do proposito de vida como fator protetivo significativo no processo de envelhecimento. Por outro lado, Souza (2017) questiona tais elementos considerando que podem representar uma estratégia para o não enfrentamento do processo de envelhecimento.
Todos os participantes privilegiam uma vida mais equilibrada entre os aspectos pessoal e profissional, ainda que, para alguns, o trabalho seria sua única fonte de prazer e de realização. A maioria demonstrou querer uma atividade que acarrete menos estresse e sacrifício, características que marcaram a carreira anterior. Esses aspectos estão alinhados com as considerações de Borges e Alves Filho (2001) e Morin (2001).
Trabalho como Principal Espaço de Interação Social
Nos encontros dialógicos foi possível perceber que a maioria dos participantes considera o trabalho como a principal fonte de interação social, meio pelo qual construíram amizades e relacionamentos. Para alguns, representa a única fonte de contato social. Esses achados estão em consonância com as considerações de Morin (2001) ao afirmar que para um trabalho ter significado precisa possibilitar estabelecer relacionamentos positivos e sensação de pertencimento.
A maioria dos participantes associou a perda do último emprego à perda dos amigos, ficando com a impressão de que as amizades só existiam no contexto da empresa e em função do título profissional que possuíam. A identidade social é consolidada por meio das relações geradas pelo trabalho (Borges & Alves Filho, 2001; Morin, 2001; Rosso et al., 2010), o que imprime maior sofrimento no tocante a esse aspecto.
Obama continuou a falar com expressão ainda abatida, dizendo que no primeiro mês ‘tirou férias’, mas depois sobrava muito tempo ocioso. Sua vida estava limitada a fazer as coisas da casa e era terrível vê-la resumir-se às atividades domésticas depois de ter feito tanta coisa. Mostrou-se indignada diante do desaparecimento dos amigos, de forma tão fria, quando deixou de ser a Obama da Empresa X.
Em alguns relatos, ficou evidente a importância funcional dos relacionamentos, a partir da argumentação de que, para terem a possibilidade de vivenciarem novas experiências ou sentidos, era importante interagir com outras pessoas. Esse tipo de constatação indica um aspecto importante que vai além do que seria uma forma de lidar com a solidão ou isolamento, mas refere-se à construção de novas competências necessárias à construção de si e da nova carreira (Duarte et al., 2010; Guichard, 2009; Savickas, 2005). Interações sociais permitem cruzamentos e imersões (Gendlin, 1995) que podem inspirar novas maneiras de dar sentido (Gendlin, 1962) ao trabalho e à carreira, bem como buscar recursos e formas de atuar. Esse aspecto ilustra o processo gerando novas estruturas (Gendlin, 2013) que, neste caso, expressam-se em distintos posicionamentos pessoais, busca por qualificação, propostas imateriais como a oferta de um serviço de consultoria e a aquisição de equipamentos para a confeitaria ou costura.
Trabalho como Recurso Financeiro e Subsistência
Em alguns relatos, momentos de angústia, ansiedade, medo e frustração diante de perdas (como salário fixo, benefícios, cargo e horário fixo) ficaram mais evidentes. Contudo, todos acabaram se adaptando às novas atividades como autônomos e seguiram em frente, em um avançar experiencial (Messias, 2015). Mostraram-se capazes de perceber aspectos positivos nesta fase da vida na situação atual de trabalho, tais como ter maior liberdade, flexibilidade, autonomia, reconhecimento, qualidade de vida e prazer no que se faz, como nos estudos de Quishida e Casado (2009).
Maria queria realizar uma atividade que lhe permitisse ficar mais livre e não trabalhar quando não quisesse. Comenta que seus filhos já estão grandes e criados e que seu marido é autônomo. Como gosta de passear e viajar, quer ter liberdade e flexibilidade para poder acompanhá-lo ou para fazer outras coisas além do trabalho. Chegou a pensar em abrir uma loja de bolos, mas as questões empresariais e o compromisso que isso exigiria não a animaram. Pareceu-me que sua atividade atual está mais relacionada com o estilo de vida que gostaria de ter neste momento.
O aspecto econômico inerente ao sentido do trabalho foi descrito por vários autores, como nos estudos do Grupo MOW (Borges & Alves Filho, 2001; Morin, 2001; Neves et al., 2018; Pereira & Tolfo, 2016; Souza, 2017). O trabalho, como principal fonte de subsistência ou manutenção do padrão de vida, foi evidenciado por todos os participantes, em maior ou menor grau, mesmo entre os que estavam aposentados. Todos associaram, de alguma forma, o retorno financeiro ao reconhecimento e mérito pelo trabalho realizado, de maneira semelhante ao que vivenciaram em suas trajetórias profissionais anteriores como assalariados, dentro de um sistema de meritocracia. De acordo com a perspectiva processual, compreende-se que eventos atuais são explicados pelos eventos anteriores (Gendlin, 2013). Contudo, essa valorização na questão financeira do trabalho pode mudar com o tempo, baseado no processo experiencial que vivenciarem em suas experiências futuras.
Neste estudo, constatou-se que a aposentadoria não representa o encerramento da fase laboral. Os participantes que estavam aposentados demonstraram que aposentar-se representa apenas poder contar com um rendimento fixo permanente, e os que ainda não se aposentaram, evidenciaram certa despreocupação em conseguir este benefício. Estudos recentes abordam estes mesmos aspectos e identificaram um crescente interesse na continuidade da vida laboral após a aposentadoria ou na velhice (Antunes et al., 2018; Macêdo et al., 2017; Mountian & Diaz, 2018).
Considerações Finais
O presente estudo objetivou compreender os sentidos que 10 brasileiros entre 50 e 59 anos atribuem ao trabalho em um momento de transição de carreira. O emprego de um método qualitativo de inspiração fenomenológica permitiu reforçar a perspectiva de que o trabalho constitui um elemento fundamental na existência humana. O aumento da longevidade vem fazendo com que o sentido do trabalho se torne central na vida das pessoas de meia-idade, em meio a um delicado contexto social, político e econômico vigente no Brasil.
Ainda que a expectativa de vida tenha aumentado, as vivências referentes à meia-idade ainda precisam ser melhor debatidas em função de suas complexidades e impacto sobre um processo de envelhecimento estendido, especialmente no tocante às questões laborais e ocupacionais. Ficou evidente que os ditos “adultos maduros” estão buscando novos sentidos para suas vidas e mais mobilizados para encontrar alternativas funcionais por meio do trabalho. Contudo, pretendem aproveitar a vida além deste e valorizam aspectos como flexibilidade, autonomia e liberdade. Pode-se concluir que o trabalho representa um fator protetivo no processo de envelhecimento quando vivido de maneira planejada e significativa.
Foi possível, também, identificar aspectos que dificultam a transição de carreira nessa fase de vida, como a falta de oportunidades, o preconceito etário, a necessidade de maior cautela financeira e as mudanças psicossociais advindas do envelhecer. Os participantes, contudo, demonstraram sentir-se jovens, com energia e vitalidade. Apresentam uma atitude positiva e não se sujeitam a estereótipos e estigmas sociais atribuídos. Por essa razão é de grande relevância haver uma maior atenção maior aos cuidados e suporte psicológico para essa população, visando prepará-la para melhor lidar com conflitos, dificuldades e desafios desencadeados em um momento de transição de vida e carreira.
Este estudo inova ao empregar o referencial experiencial fundamentado na Filosofia do Implícito de Eugene Gendlin. Espera-se que os conceitos apresentados possam contribuir para a ampliação do debate acerca da criação de sentido dada a sua relevância e possibilidade de diálogo com outros paradigmas, subsidiando novas pesquisas a respeito do sentido, significado e função psicológica do trabalho.
Duas limitações deste estudo precisam ser mencionadas. A primeira refere-se a uma certa homogeneidade em relação ao perfil educacional dos participantes e à experiência administrativa, ainda que em áreas distintas. Seria oportuno, portanto, investigar a transição de carreira e ocupação na realidade de pessoas de outras classes sociais e tipos de trabalho. A segunda limitação decorre do método empregado, que não permite a identificação de significados sociais, mas sentidos pessoais. Estudos quantitativos como surveys poderiam agregar dados interessantes à temática em questão.
Por fim, cabe ressaltar que a coleta de dados foi realizada nos primeiros meses do isolamento social no Brasil, por conta da Pandemia da Covid-19. Ainda assim, percebeu-se que este evento não impactou significativamente os resultados desta pesquisa. Se esta mesma pesquisa fosse realizada depois de alguns meses da pandemia no Brasil, possivelmente este evento teria maior influência nos resultados. Sugere-se que novos estudos sejam feitos, levando em conta a crise mundial desencadeada pela pandemia prolongada.