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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.75309 

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

Terapia Cognitivo-Comportamental em Grupo: Estratégia de Psicoeducação com Estudantes de Enfermagem

Group Cognitive Behavioral Therapy: Strategy for Psychoeducation with Nursing Students

Terapia Cognitivo-Conductual en Grupo: Estrategia para la Psicoeducación con Estudiantes de Enfermeira

Deise Coelho de Souza* 

Psicóloga. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo - USP.


http://orcid.org/0000-0002-2602-7362

Lucas Rossato** 

Psicólogo. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo - USP.


http://orcid.org/0000-0003-3350-0688

Marta Regina Gonçalves Correia Zanini*** 

Psicóloga. Doutora em Psicologia. Professora no curso de Psicologia do Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino - UNIFAE.


http://orcid.org/0000-0003-4776-8917

Fabio Scorsolini-Comin**** 

Psicólogo. Doutor em Psicologia. Livre Docente. Professor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP).


http://orcid.org/0000-0001-6281-3371

*Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil

**Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil

****Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino - UNIFAE, São João da Boa Vista, SP, Brasil

****Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil


RESUMO

Este estudo teve por objetivo apresentar os resultados de um grupo psicoterápico psicoeducativo desenvolvido junto a estudantes de Enfermagem. Foram realizados seis encontros com cinco estudantes de uma universidade pública do Estado de São Paulo. Os encontros foram audiogravados, transcritos e submetidos à análise temático-reflexiva. Os resultados encontrados permitiram a construção de cinco categorias temáticas: (1) Desafios da adaptação ao ensino superior; (2) Concepções sobre saúde mental na universidade; (3) Autocuidado e equilíbrio entre a vida universitária e pessoal; (4) Relações interpessoais e vida universitária; (5) Perspectivas e expectativas sobre a formação. O processo de integração à universidade requer mobilização cognitiva, afetiva e social, sendo que as relações com os pares, professores e familiares foram destacadas como importantes para essa adaptação. As participantes destacaram conhecer a importância do cuidado em saúde mental, mas admitiram dificuldades de promoverem o autocuidado. O espaço grupal foi utilizado como ambiente de escuta, estabelecimento de vínculo e autocuidado. Os grupos psicoeducativos demonstraram ser importantes para a construção de estratégias de enfrentamento e um espaço para o acolhimento de demandas que emergem nessa etapa do desenvolvimento.

Palavras-chave: psicoterapia em grupo; saúde mental; universitários; terapia cognitivo-comportamental em grupo.

ABSTRACT

This study aimed to present the results of a psychoeducational psychotherapy group developed with Nursing students. Six meetings were held with five students from a public university in the state of São Paulo. The meetings were audio-recorded, transcribed and submitted to a reflexive-thematic analysis. The results found allowed the construction of five thematic categories: (1) Challenges of adapting to higher education; (2) Conceptions about mental health at the university; (3) Self-care and balance between university and personal life; (4) Interpersonal relationships and university life; (5) Perspectives and expectations about training. The process of integration into the university requires cognitive, affective and social mobilization, and relationships with peers, teachers and family members were highlighted as important for this adaptation. The participants highlighted knowing the importance of mental health care, but also admitted difficulties in promoting self-care. The group space was used as a listening environment, bonding and self-care. Psychoeducational groups proved to be important for the construction of coping strategies and a space for the reception of emerging demands.

Keywords: group psychotherapy; mental health; college students; cognitive-behavioral group therapy.

RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo presentar los resultados de un grupo de psicoterapia psicoeducativa desarrollado con estudiantes de Enfermería. Se realizaron seis reuniones con cinco estudiantes de una universidad pública del Estado de São Paulo. Las reuniones fueron grabadas en audio, transcritas y sometidas a un análisis temático-reflexivo. Los resultados encontrados permitieron la construcción de cinco categorías temáticas: (1) Desafíos de la adaptación a la educación superior; (2) Concepciones sobre la salud mental en la universidad; (3) Auto cuidado y conciliación de la vida universitaria y personal; (4) Relaciones interpersonales y vida universitaria; (5) Perspectivas y expectativas sobre la formación. El proceso de integración universitaria requiere de una movilización cognitiva, afectiva y social, y las relaciones con pares, docentes y familiares son importantes para la adaptación. Los participantes destacan conocer la importancia del cuidado de la salud mental, pero admiten que tienen dificultad para promover el auto cuidado. El espacio grupal fue utilizado como ambiente de escucha, vinculación y auto cuidado. Los grupos psicoeducativos demostraron ser importantes para la construcción de estrategias de afrontamiento y un espacio de recepción de demandas emergentes.

Palabras clave: psicoterapia de grupo; salud mental; estudiantes universitarios; terapia de grupo cognitivo-conductual.

O ingresso na universidade é marcado pela necessidade de adaptação a novos contextos de ensino e novas responsabilidades, podendo interferir no desenvolvimento pessoal, cognitivo e social dos estudantes (Matta et al., 2017). Os desafios enfrentados ao longo do ensino superior são diversos e podem estar relacionados à saída do ambiente familiar, necessidade de desenvolver novas relações interpessoais, mudanças no ritmo de estudos e ampliação das responsabilidades, exposição a situações de estresse e ansiedade, bem como ao processo de transição da adolescência para a vida adulta (Rossato et al., 2022).

Ao ingressarem na universidade, muitos estudantes conservam características típicas da adolescência, ao passo que necessitam cada vez mais expressar e desenvolver características associadas ao universo adulto, notadamente em termos de maior autonomia e responsabilidade pelo próprio percurso desenvolvimental (Souza et al., 2020). As mudanças vivenciadas na universidade são, desse modo, importantes de serem observadas, pois incidem diretamente na saúde mental e na qualidade de vida desses sujeitos.

O ambiente universitário exige do estudante a capacidade para lidar com transformações significativas na rotina de vida, sendo situações para as quais nem sempre estão preparados, além de terem que reelaborar expectativas irreais que tinham em relação a esse ambiente (Porto & Soares, 2017). A universidade torna-se um local em que serão vivenciadas experiências que interferem na construção dos aspectos pessoais e profissionais e onde os estudantes permanecem grande parte do dia, por vários anos e convivendo com uma diversidade de pessoas (Carleto et al., 2018). Assim, a adaptação ao ensino superior caracteriza-se por ser um processo em que o estudante, diante desses novos contextos de vida, desenvolve a capacidade de se integrar a esse ambiente e consegue desfrutar das diversas condições de aprendizado com ganhos para sua formação profissional e pessoal (Oliveira et al., 2018).

É pertinente destacar que a adaptação ao ensino superior é um processo individual e contextual, sendo que cada estudante pode vivenciar esse evento de modo singular, tendo em vista a realidade que está inserido, as condições de enfrentamento que possui, a capacidade de se ajustar diante da realidade vivida e o apoio que recebe da família e da instituição de ensino. Desse modo, em termos institucionais, mostra-se pertinente que as universidades se atentem a esses aspectos e promovam ações com enfoque na prevenção do adoecimento psíquico, possibilitando a permanência dos estudantes e evitando a evasão.

Estudos têm destacado que estudantes de ensino superior são mais propensos a desenvolverem sintomas psicopatológicos em função das mudanças que ocorrem no cotidiano após o ingresso nessa modalidade de ensino (Gomes et al., 2020; Graner & Cerqueira, 2019; Schmitt et al., 2021). As demandas que emergem na vida cotidiana, principalmente aquelas relacionadas a contextos de vida desconhecidos e desempenho acadêmico, podem inserir os estudantes em situações potencialmente estressoras (Lameu et al., 2016).

Entre os universitários, os estudantes de Enfermagem têm sido destacados quando observadas as interferências da vida acadêmica nas condições de saúde mental. Pesquisa realizada por Carleto et al. (2018) registrou 43,5% de Transtornos Mentais Comuns (TMC) entre estudantes de Enfermagem, com correlação inversa relacionada à adaptação à universidade. Assim, quanto melhor a adaptação, menores são as probabilidades de desenvolvimento de TMC.

É importante considerar que desde o início da formação acadêmica os estudantes de Enfermagem lidam com grande estresse e distúrbios emocionais em suas rotinas de atividades acadêmicas. As demandas que emergem na formação exigem do estudante a capacidade para lidar com procedimentos e técnicas específicas da profissão, intermediarem relações interpessoais com pacientes, familiares e outros membros da equipe de saúde, estarem atentos aos diversos avanços tecnológicos da atualidade que incidem diretamente sobre as práticas profissionais, entre outros aspectos (Rossato et al., 2022).

As situações de estresse e outros distúrbios emocionais, além da baixa autoestima, pode levar a uma menor autoeficácia e a comportamentos autodestrutivos que interferem diretamente na permanência ou abandono do curso. Diante desse contexto, os estudantes de Enfermagem estão cerceados por estigmas que perduram ao longo do curso e mesmo após a finalização do mesmo, afetando a atuação profissional, inclusive (Querido et al., 2020).

Esses fatores têm sido considerados para o desenvolvimento de projetos de promoção de saúde para o público universitário, sendo que a literatura científica tem evidenciado atendimentos psicoterápicos, estratégias de incentivo ao lazer, propostas de grupos, entre outros (Souza et al., 2020; Souza et al., 2021). Os grupos psicoterápicos permitem conexão, acolhimento, pertencimento e sentimento de compreensão, troca de experiências e informações, além do reconhecimento por seus pares (Souza et al., 2021). Dessa forma, uma das práticas grupais que tem ganhado espaço nas universidades são aquelas embasadas nas práticas da Terapia Cognitivo-Comportamental em Grupo (TCCG) (Lin et al., 2019; Toghiani et al., 2019).

Em relação às intervenções grupais para a promoção de saúde mental com estudantes universitários, a literatura científica tem evidenciado sua efetividade. Essas propostas têm sido realizadas com o objetivo de acolher demandas, auxiliar na adaptação ao ensino superior e na redução de sintomas, promovendo cuidados em saúde mental (Robazzi, 2019; Rossato & Scorsolini-Comin, 2019; Rossato et al., 2022; Samantaray et al., 2021). Essas estratégias de cuidado em saúde mental baseadas em intervenções grupais têm se mostrado uma possibilidade viável e significativa para o cuidado e bem-estar dos estudantes universitários da área da saúde, sensibilizando também o interesse de gestores educacionais acerca do tema. A partir desse panorama, tendo em vista a necessidade de se pensar na saúde mental no contexto universitário e considerando que as estratégias grupais têm se mostrado efetivas para o cuidado e promoção em saúde, o presente estudo tem por objetivo apresentar os resultados de um grupo psicoterápico psicoeducativo desenvolvido junto a estudantes de Enfermagem.

Método

Trata-se de um estudo interventivo e exploratório amparado na abordagem qualitativa. O desenvolvimento da intervenção partiu das demandas de um curso de Enfermagem de uma universidade pública localizada no interior do Estado de São Paulo. Essas demandas, inicialmente apresentadas por docentes, foram apreciadas pela gestão da unidade e encaminhadas a um setor de apoio psicológico que desenvolve atividades de cultura e extensão universitária relacionadas à saúde mental. A equipe formada por psicoterapeutas estruturou, então, o projeto piloto de um grupo de promoção em saúde embasado na Terapia Cognitivo-Comportamental em Grupos (TCCG). Os encontros tiveram duração de uma hora e trinta minutos, foram audiogravados, havendo o emprego do diário de campo para anotação de registros. Esse material era compartilhado e revisado por todos os coordenadores e discutido semanalmente em supervisão.

Participantes

Participaram da intervenção cinco estudantes, do sexo feminino, com idades entre 19 e 23 anos. Todas estavam matriculadas no curso de Enfermagem, duas cursavam o primeiro ano letivo, uma no segundo ano e duas cursando o terceiro ano.

Procedimento

Os encontros do grupo foram coordenados por três psicólogos que ocuparam as posições de terapeuta, coterapeuta e observador. Os encontros ocorreram em uma sala de aula da instituição, com capacidade para 30 pessoas e com condições adequadas para a atividade. Previamente foi realizado um treinamento para os coordenadores do grupo e semanalmente as estratégias eram discutidas para adequação da proposta à demanda dos participantes.

O grupo psicoeducativo em saúde para universitários foi oferecido a partir de um projeto de pesquisa e extensão que oferece atendimento psicoterápico breve a graduandos de Enfermagem. O projeto, que contava com a oferta de atendimentos individuais e em grupo, foi divulgado nas redes sociais da instituição e por meio de e-mail institucional. Os participantes dos grupos foram convidados por meio de contato por mensagem no WhatsApp, encontrados a partir de uma lista de graduandos que informaram interesse no projeto.

Tendo em vista que o interesse inicial predominante entre os estudantes era por atendimento individual, a disponibilidade para participação do grupo ocorreu apenas em 10% dos interessados que se inscreveram no projeto. Quando contatados para atendimento grupal, muitos estudantes demostraram resistência em relação a essa modalidade de atendimento, o que reforça o perfil predominantemente individual dos atendimentos psicoterápicos na tradição da Psicologia.

Os grupos foram embasados na TCCG (Neufeld & Rangé, 2017), que possui uma divisão entre quatro modalidades grupais: (1) grupos de psicoeducação, (2) grupos de apoio, (3) grupos de orientação e/ou treinamento e (4) grupos terapêuticos. Na presente intervenção foram realizados grupos em psicoeducação, uma vez que a utilização dessa modalidade se caracteriza pelo oferecimento de informações quanto a sintomas, curso e tratamento eficazes para temática específica, além de serem grupos fechados, realizado entre quatro e seis sessões estruturadas, baseadas em técnicas de psicoeducação e resolução de problemas. Os grupos em TCCG propiciam um caráter colaborativo entre as informações compartilhadas pelos participantes e as orientações fornecidas pelos terapeutas, fatores que dificilmente apresentariam a mesma eficácia e possibilidade caso ocorressem em encontros individuais (Neufeld, 2011). Esses fatores permitem uma reciprocidade no processo e identificação de não ser o único vivenciando situações desafiadores, permitindo a percepção de um ambiente confiável, que oferece apoio e aceita as particularidades de cada um.

Os recursos disparadores foram escolhidos de acordo com os objetivos foco de cada encontro. Foram realizados seis encontros, com frequência semanal. O grupo desenvolveu-se em formato aberto apenas no primeiro encontro. Ou seja, no primeiro encontro qualquer graduando de Enfermagem da instituição que tivesse interesse poderia participar do grupo para conhecer a proposta, ainda que não houvesse realizado inscrição prévia. A partir do segundo encontro não foi permitida a entrada de novos membros.

Os temas trabalhados, conforme Tabela 1, foram previamente selecionados pelos coordenadores, a partir da literatura da área. As propostas de temas foram apresentadas aos participantes no primeiro encontro, sendo que após explanação das temáticas abriu-se espaço para alterações que elas julgassem pertinentes às suas demandas.

Tabela 1 Numero de sessões e atividades desenvolvidas na intervenção 

Sessões Atividades Desenvolvidas
Sessão 1 Apresentação dos objetivos do grupo. Explicação e assinatura do TCLE;
Apresentação dos coordenadores e dos participantes:
Ênfase na coesão grupal;
Dinâmica da mochila: reflexão sobre a importancia de ser perceberem de forma integrada;
Realização do Contrato Terapêutico.
Sessão 2 Rapport e psicoeducação sobre saúde mental no contexto universitário, orientação sobre as distorções cognitivas, crenças centrais e reestruturação cognitiva;
Dinâmica da batata quente: perguntas referentes ao estilo de vida e estratégias de autocuidado;
Discussão reflexiva com questionamento socrático referente ao autocuidado e presença desse para qualidade de vida e melhor adaptação ao contexto acadêmico e saúde mental do universitario, elaboração de cartões de enfrentamento para trabalhar questões de reestruturação cognitiva sobre autocuidado;
Feedback referente ã temática.
Sessão 3 psicoeducação sobre relações interpessoais, orientações sobre análise de riscos e recursos;
Curta Alike: para refletir sobre as relações de poder na universidade;
Discussão reflexiva quanto às relações dentro do contexto universitário entre professores e alunos, entre os pares e a importância de manter nossa autenticidade para a saúde mental:
Feedback referente à temática.
Sessão 4 e psicoeducação sobre habilidades sociais, orientação sobre manejo de ansiedade e dessensibilização sistemática.
Vídeo com a música “Leve e Suave", interpretada por Lenine;
Discussão reflexiva quanto a forma como utilizamos nossas habilidades sociais podem permitir uma vida mais equilibrada, importância de exposição a estímulos aversivos, mas que são necessários para realização de determinadas atividades e cumprimento de melas; Feedback referente à temática.
Sessão 5 Rapport, psicoeducação sobre relações familiares, orientações sobre resolução de problemas e tomada de decisões;
Dinámica: fazer um desenho da família e apresentá-la ao grupo;
Discussão reflexiva quanto nossas relações familiares e seus reflexos nas vivências universitárias;
Feedback referente ã temática
Sessão 6 Rapport, psicoeducação sobre propósito de vida, orientações sobre automonitoramento das emoções;
Dinâmica: Linha da Vida e referente às expectativas de futuro;
Discussão reflexiva quanto as expectativas para o futuro, mercado de trabalho e possibilidades para alcançar as metas almejadas: Retomada dos conceitos aprendidos e das dúvidas presentes;
Encerramento; Avaliação do processo terapêutico;
Avaliação qualitativa sobre o grupo - feedback.

Todas as sessões foram audiogravadas e transcritas na íntegra e literalmente. A análise das transcrições e dos diários de campo produzidos ao longo dos encontros foi empreendida a partir do diálogo com a literatura da área de grupos, de saúde mental junto aos universitários e a partir de elementos emergentes nos encontros. A análise qualitativa foi realizada por meio da transcrição dos dados do grupo, que foram organizados e analisados em profundidade, utilizando-se os procedimentos da análise temático-reflexiva de Braun e Clarke (2019).

Aspectos Éticos

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CAAE 12615819.0.0000.5393).

Resultados e Discussão

A partir da análise qualitativa das transcrições dos grupos e do registro de diário de campo foi possível construir cinco principais temas: (1) Desafios da adaptação ao ensino superior; (2) Concepções sobre saúde mental na universidade; (3) Autocuidado e equilíbrio entre a vida universitária e pessoal; (4) Relações interpessoais e vida universitária; (5) Perspectivas e expectativas sobre a formação. A seguir, esses temas serão apresentados e discutidos.

1) Desafios da Adaptação ao Ensino Superior

A adaptação acadêmica se define a partir da habilidade do universitário em se integrar ao contexto do ensino superior, o qual requer mobilização de processos não apenas cognitivos, mas também afetivos e sociais para sua efetividade (Rossato et al., 2022). Esses processos, quando devidamente aproveitados, possibilitam diferentes situações de aprendizado, ampliando os ganhos para a formação acadêmica e profissional (Oliveira et al., 2018). A relevância de investimento em processo cognitivos, afetivos e sociais para propiciar maior adaptação e bem-estar é exemplificada por meio da fala da Participante 2 ao pontuar:

O que eu acho legal da nossa experiência de estar aqui período integral e tudo mais, é viver a faculdade, não só ir para aula, a gente vive a faculdade, só que as vezes a gente é engolido pela faculdade e aí não é uma coisa legal. Então acho que está me ajudando um pouco, buscar coisas fora, buscar coisas na cidade também, conhecer a cidade para sentir que eu estou encaixada em alguma coisa aqui.

O ingresso no ensino superior é um período de amadurecimento e de afirmação da própria identidade. Segundo Casanova et al. (2020), há nesse percurso distintos desafios destinados aos seus ingressantes. Tais desafios são vivenciados pelos estudantes em sua ocorrência e intensidade, relacionadas aos níveis de maturidade e aos recursos que dispõem para lidar contra adversidades e demandas do ensino superior, o que é ilustrado na fala da Participante 1:

Eu estou passando, eu acho por um processo de amadurecimento (...). Eu achei que no meu primeiro ano era para eu relaxar, eu tinha que aproveitar a minha liberdade ao máximo, ir em festa, ficar fora de casa (...). Hoje em dia eu estou dando mais valor a outras coisas.

Essa adaptação é um processo que se dá ao longo de toda a graduação. De acordo com estudo de Sahão (2019), são fatores facilitadores para a adaptação o fornecimento de informações, integração acadêmica, rede de apoio, características de infraestrutura da instituição, integração social, participação em atividades extracurriculares, questões pedagógicas, contato com a profissão, relacionamentos interpessoais, entre outros. Os fatores que dificultam essa adaptação são nível de exigência elevado, relacionamentos interpessoais disfuncionais, saída de casa, rede de apoio reduzida, características do ensino superior, situação financeira e características individuais quanto à cognição e personalidade.

Algumas dessas dificuldades de transição e adaptação podem ser ilustradas nas falas das integrantes do grupo sobre como lidar com esse processo, conforme pontuado pela Participante 1: “Eu quase me acabei no primeiro semestre. Então, assim, eu fiquei realmente muito mal, a ponto de, assim, sabe? De... falar: eu não vou aguentar”. Também referente à necessidade de mudança de cidade, na fala da Participante 2: “Eu lembro que quando eu mudei de cidade, tem um medo também de adaptação porque é outra casa e é outra cidade, então você fica meio: ‘será que eu vou me adaptar ou não?’”. Sobre a dificuldade de lidar com a modificação do estilo de aprendizagem entre o ensino médio e o ensino superior, a Participante 5 destaca: “(...) depois que eu entrei aqui... eu acho que teve de ruim... uma vez eu tirei dois na prova. Meu Deus, como é que eu consegui tirar dois na prova!? Eu nunca tirei dois... eu fico me cobrando até”.

A importância da integração e adaptação ao contexto universitário tem sido evidenciada na literatura científica como um aspecto significativo de ser observado pelas instituições de ensino, em especial com os estudantes das áreas da saúde, como os da Enfermagem, que vivenciam significativas transformações em função das atividades acadêmicas que desenvolvem. Ofertar um espaço de escuta e reflexão para os acadêmicos, de forma a trabalhar possíveis estratégias focadas no bem-estar durante o curso, é uma recomendação fortemente presente na literatura científica, com desfechos positivos em relação à saúde mental (Rossato & Scorsolini-Comin, 2019; Rossato et al., 2022).

De acordo com Porto e Soares (2017), as expectativas relacionadas ao ingresso no ensino superior podem resultar em um sentimento conflitante entre satisfação e percepção de insuficiência pessoal, isso devido ao impacto de ingressar em uma universidade pública de renome e os esforços exigidos desde o início da vida universitária. Tais aspectos podem ser percebidos pela verbalização da Participante 3 quando afirma:

(...) o peso da universidade é muito grande, o peso do nome em você. Então assim, eu estou aqui (...) têm dias assim que eu olho e choro desesperadamente, assim, mas eu não posso desistir. É como se, não que eu tenha essa vontade também, mas é como se estar aqui fosse algo assim que você não pode nunca abdicar na sua vida, porque muita gente queria e muita gente não consegue.

É fundamental salientar que o ingresso na universidade tende a ser a realização de um sonho, muitas vezes pessoal e também familiar, sobretudo no contexto em que essa intervenção foi realizada: em um curso com forte concorrência e em uma universidade prestigiada. Assim, essas estudantes vivenciam um sentimento de ambivalência em relação à satisfação de poderem fazer de um grupo seleto, mas que, ao mesmo tempo, promove sofrimento e impõe desafios que, muitas vezes, não são facilmente transpostos. É importante também considerar que a adaptação a esse contexto não pode ser compreendida apenas como um desafio que deve ser assumido pelo estudante, mas também pela gestão universitária.

2) Concepções sobre Saúde Mental na Universidade

A saúde mental dos estudantes universitários tem ocupado boa parte das discussões sobre o ensino superior na contemporaneidade. Uma das causas desse interesse é a constatação do significativo crescimento do adoecimento emocional entre os acadêmicos, o que remete à necessidade de investimento em prevenção de doenças e em estratégias de promoção de saúde, estabelecendo sólidas ações para apoio aos estudantes em vulnerabilidade emocional (Gomes et al., 2020; Schmitt et al., 2021). A percepção dos universitários a respeito de sua saúde física e mental, além do próprio estilo de vida, é importante devido ao processo de psicoeducação e, consequentemente, maior conscientização sobre comportamentos que são necessários (Scapin et al., 2021).

Ao serem questionadas sobre sua percepção da própria saúde mental e a perspectiva que possuíam a respeito da conceitualização de saúde mental, as participantes relataram sobre o desafio de definir esse construto, mas, principalmente, a dificuldade de se prevenirem e promoverem o autocuidado emocional de maneira saudável. De acordo com a Participante 5, saúde mental é estar apta a lidar com desafios, como pode ser ilustrado na frase: “(...) não sei se preparado é a palavra, mas pronta para lidar com as coisas, tipo fora, fora de você. Estar bem consigo mesmo, conseguir lidar com as coisas das pessoas a volta. Eu acho que é isso”.

Essa percepção pode ampliar a discussão e auxiliar na consolidação de uma perspectiva mais ampla do conceito de saúde mental (Gaino et al., 2018). Essa perspectiva integral pode ser percebida na fala da Participante 1 ao salientar que “Tem momentos que eu consigo parar e pensar: não, pera, o que que está acontecendo?! Olha o todo. Vamos colocar as coisas no lugar. Tem dia que eu já estou tão louca que eu não consigo”.

Relacionado a essa perspectiva, ao longo dos encontros grupais, uma característica positiva percebida foi quanto à postura e à fala das participantes a respeito da percepção das mesmas quanto a importância de se olharem, fazerem uma psicoeducação com seus pensamentos, suas emoções e como isso reflete em seus comportamentos. Esse posicionamento que vai ao encontro ao proposto pelo grupo, conforme apontado por Neufeld (2011). Esse movimento de autopercepção pode ser ilustrado pela verbalização da Participante 4 referente à necessidade de:

(...) entender os “porquês”. Os “porquês” de você tá fazendo uma coisa, e... se você está sentindo, conseguir fazer as coisas. (...) ficar nervosa, é normal, mas até que ponto eu não consigo fazer a tarefa porque eu estou nervosa. Ou até que ponto esse nervosismo começa a me atrapalhar.

3) Autocuidado e Equilíbrio entre a Vida Universitária e Pessoal

As participantes demonstraram perceber a importância de se cuidarem para além do contexto universitário, o que fica evidenciado pela fala da Participante 5 ao pontuar que “Tudo é uma questão de equilíbrio, não é?!”. No entanto, há uma dificuldade em encontrar equilíbrio entre as exigências acadêmicas e as demais atividades de vida, como lazer, momentos com a família, relacionamento amoroso, sair com os amigos, praticar atividade física, hobbies ou simplesmente descansar. A respeito dessa adaptação, a Participante 2 salienta que: “Hoje em dia, fazer jardinagem, fazer artesanato não gasta tanta energia que eu vou ficar três dias seguidos numa festa, então eu estou conseguindo dividir mais o meu tempo para fazer mais coisas, estou me sentindo mais útil”.

Tendo em vista as variadas transformações que ocorrem na vida e rotina do universitário após seu ingresso no ensino superior, a prática de exercícios físicos pode causar benefícios ao corpo, à saúde e à qualidade de vida em geral. Essa recomendação aparece na fala da Participante 3 ao afirmar a importância da atividade física para seu bem-estar: “Eu não sei o que faço para o autocuidado a não ser praticar esportes... quando eu estou triste, parece que eu não penso nas coisas... Quando eu pratico esportes, eu penso: ah, vou controlar a respiração, essas coisas assim, é isso”.

Em uma revisão integrativa sobre lazer entre universitários, Vieira et al. (2018) afirmam que ainda há limitações quanto à visão de possibilidades distintas de lazer nesse público. As participantes do grupo apresentaram variadas possibilidades de lazer como cozinhar, autocuidado com a beleza, conversar com amigos e dançar, como na fala da Participante 4: “Às vezes, eu tiro o dia, pego tudo o que eu acho nas minhas coisas e faço um dia de beleza. Tipo, porque eu sou incrível. E, ou eu vou cozinhar, porque eu adoro cozinhar”. A Participante 5 fala que “o que eu mais gosto é de ficar deitada, mexendo no celular e só. Gasto mais meu tempo com isso”.

Outras estratégias que visam ao bem-estar e ao autocuidado entre o público universitário podem ser práticas integrativas e complementares. Belasco et al. (2019) apresentam um trabalho realizado na Universidade Federal do Sul da Bahia com oferecimento de atendimento interdisciplinar e em Práticas Integrativas e Complementares da Saúde (PICS), como em acupuntura e auriculoterapia, para os universitários da instituição. Práticas semelhantes foram citadas pelas participantes do grupo. Um exemplo foi apresentado pela Participante 2 ao afirmar que “uma coisa que eu faço às vezes quando dá na telha, eu escuto uns podcast, umas coisas meio mindfulness, sabe, essas coisas... daí, mas nada estabelecido. É de momento”.

As participantes do grupo também citaram como estratégia de autocuidado e que auxiliava em sua saúde mental a presença da religiosidade/espiritualidade (R/E). A Participante 1 afirmou que “(...) minha religião me ajuda muito. (...) é o que mais me segura em pé é a minha religião. No sentido de que... quando eu me sinto fraca é lá que eu busco ajuda”.

A R/E pode ser uma influência positiva para a satisfação de vida, contribuindo para a adoção de estratégias para o enfrentamento de problemas e como possibilidade de autocuidado quanto à saúde mental. Estratégias de enfrentamento apoiadas na R/E podem ser positivas não apenas em função de seu caráter de autocuidado, mas tendo em vista que essas estudantes formarão um grupo de profissionais da saúde, sendo responsáveis pelo cuidado do outro. A escuta da R/E junto a universitários da saúde é importante para favorecer, futuramente, um trabalho mais humanizado e integral, mas também em função da possibilidade de promoção de saúde e bem-estar aos envolvidos no processo (Rossato et al., 2021).

4) Relações Interpessoais e Vida Universitária

Graner e Cerqueira (2019) pontuam que as relações estabelecidas podem se tornar fator de proteção à saúde mental ou assumirem um papel de risco para os universitários. São fatores de sofrimento emocional ter dificuldade de fazer amigos, se sentir excluído, relações conflituosas e não sentir que recebe o apoio emocional necessário. Os conflitos nessas relações podem ser percebidos na fala da Participante 2:

Eu tenho tido um pouco de dificuldade, assim. Eu tenho uma amiga muito próxima que me ajuda, só que ao mesmo tempo como a gente se vê pouco e acaba se procurando só em momentos de dificuldade (...). Meu namorado me ajuda, mas ao mesmo tempo (...) às vezes, o motivo de você estar com conflito, mal ou nervoso, é por isso, por causa dele. (...) Na minha família, meu pai sempre ajudou muito, mas agora a gente... ele saiu de casa, então, a gente não tem mais tanto essa proximidade.

O suporte social é um dos fatores de proteção mais importantes durante a experiência na universidade, podendo se dar de diferentes formas, como no auxílio para gerenciar situações mais burocráticas, na partilha de momentos de prazer e de descontração, para promover uma escuta diante das dificuldades enfrentadas, para oferecimento de apoio material e emocional, entre outros (Scapin et al., 2021). Também existem as relações aluno-professor e os desafios que são inerentes à hierarquia. A Participante 5 comenta sobre uma experiência na qual a negociação junto a um professor não foi possível, mesmo com os esforços dos alunos:

Eu tinha tirado o resto do dia para estudar e simplesmente, ele vira na nossa cara e fala: eu quero esse relatório para hoje, até às 6h da tarde. Mas, professor, a gente tem uma prova importante amanhã e a gente precisa estudar, não dá pra ser até amanhã? Não, vocês têm que fazer agora.

As relações interpessoais são muito importantes para a composição de uma rede de apoio. Segundo estudo de Graner e Cerqueira (2019), estudantes que possuem amigos com os quais podem compartilhar momentos sociais apresentam menor nível de sofrimento e isolamento, o que demonstra a importância de possuírem atividades de lazer como variáveis de proteção para sua saúde mental. Mas nem sempre os estudantes conseguem verbalizar o seu mal-estar e acionar a rede de apoio. A Participante 2 verbaliza “Gosto muito de conversar, nunca tive problema com isso. Eu sempre gostei de ouvir muito. Só que na hora de falar que eu estou mal, eu nunca faço isso. (...) às vezes se eu conversasse eu me sentiria melhor mais rápido, não sei”.

A partir desses achados é possível salientar a importância dos espaços grupais como possibilidade de verbalizar as angústias, as necessidades e os anseios experienciados entre esse público. Muitas das experiências, embora possam ser significadas como pessoais e individuais, também se revelam coletivas e podem ser compartilhadas, o que justifica a relevância de intervenções grupais junto a essa população, conforme sugerido nos estudos de Robazzi (2019) e de Rossato e Scorsolini-Comin (2019) tendo como referência especificamente os estudantes de Enfermagem. É fundamental que esses estudantes possam desenvolver também um senso de coletividade e de pertencimento, de modo que a busca pelo bem-estar e pela saúde mental não seja uma meta exclusivamente pessoal, mas que se beneficie de um engajamento grupal e também institucional. Fortalecer os vínculos entre pares e estabelecer suporte social nessas intervenções são vértices essenciais dos grupos psicoeducativos, a exemplo dos analisados na presente intervenção.

As relações familiares também podem ser um fator de apoio. De acordo com Preto et al. (2020), universitários de Enfermagem que não precisavam viajar para estudar apresentavam menor exposição ao estresse, o que pode guardar relação com a proximidade da família no cotidiano desses estudantes. Esses dados vão ao encontro dos pontuados por Lameu et al. (2016) ao afirmarem que residir com amigos ou sozinho aumenta a chance de ter estresse. Esses fatores aparecem na fala da Participante 1:

Eu, quase sempre (tenho me sentido triste e estressada). Mas, é por causa da mudança, tudo o que está acontecendo e tudo mais. Eu só relevo, mas... (...) ter vindo pra cá. Ficar longe da minha mãe, enfim... ter ido morar com o namorado. Não tem sido fácil.

Dessa forma, percebe-se que as relações sociais estabelecidas no contexto acadêmico são fundamentais para a adaptação, vivência cotidiana e também o alcance dos resultados acadêmicos. Além disso, a participação em atividades extracurriculares, integração em estágios e a rede de apoio, composta por familiares e amigos, acrescentados aos relacionamentos interpessoais no ambiente universitário, favorecem a adaptação acadêmica (Matta et al., 2017). Investir no fortalecimento dessas vinculações é uma forte recomendação para as intervenções grupais com esse público.

5) Perspectivas e Expectativas sobre a Formação

O ensino superior tem ampliado o seu número de vagas nos últimos anos, sobretudo considerando o constante aumento da sua relevância no ingresso no mercado de trabalho. O intuito é qualificar os alunos de forma que possam ter uma melhor colocação no mercado (Porto & Soares, 2017). A valorização dessa formação emerge na fala da Participante 3:

Eu fui para a escola de pintura e fiz seis anos na minha vida... mas, tipo eu fiz seis anos da minha vida. Tipo, as pessoas me incentivando, falando que era muito bonito. Mas, quando eu cheguei, eu falei: nossa, queria muito ser uma artista. Tipo, mas falaram: não, você tem que arrumar alguma coisa que dê coisa e agora eu não posso fazer? Aí, eu tive que achar... aí, foi o processo do ensino médio de encontrar uma profissão.

As expectativas relacionadas à formação acadêmica precisam ser consideradas e trabalhadas junto aos estudantes que ingressam no ensino superior, pois os ingressantes podem apresentar percepções acerca do curso e da universidade que não correspondem com a realidade (Porto & Soares, 2017). Em muitas situações, os ingressantes fortemente marcados pelas percepções positivas da futura área de trabalho, ao se depararem com as reais situações em campo, acabam sendo impactados negativamente.

As participantes comentaram sobre a dificuldade da escolha e de saber o que esperar da profissão. A Participante 2 afirma: “Nesse percurso, a irmã do meu namorado é daqui e (Enfermagem) e ajudou a tirar alguns conceitos que: ah, enfermeiro, lida só com, com aquelas coisas que quase ninguém gosta, né, troca de fralda, aquelas coisas nojentas”.

Nas falas das participantes do grupo emergem representações sociais que atestam a desvalorização e a falta de conhecimento da amplitude do trabalho do enfermeiro, o que pode ser percebido a partir da ausência de recursos adequados, quadro insuficiente de profissionais nos diversos equipamentos de saúde, longas jornadas de trabalho e baixa remuneração. Esses fatores interferem na percepção das acadêmicas quanto à valorização e ao trabalho exercido pela Enfermagem.

Em relação ao processo de formação e as exigências durante esse período as participantes sublinharam a existência de um padrão de comportamento ideal para o reconhecimento de suas habilidades. A Participante 2 pontuou que “uma professora já falou que existe mesmo um padrão de enfermeiro e que vocês vão ter que se encaixar, quem não se encaixar, vai dançar”. Essa percepção é corroborada pela Participante 1: “Até em aula normal assim, eles estão avaliando a pessoa que mais responde (...), mas tem técnicos de Enfermagem. Os professores ficam reparando isso, a pessoa que fala mais, às vezes eles sabem tudo, e elas ficam reparando isso, reparam roupa, tudo...”.

No entanto, apesar do incômodo dessas exigências geradas nas alunas, algumas dessas demandas vão ao encontro ao pontuado no estudo com egressos do curso de Enfermagem a respeito do ingresso ao mercado de trabalho. Os egressos salientaram satisfação com a contribuição do curso para sua formação, de forma direta e indireta, além da efetividade para entrada no mercado de trabalho. Eles também pontuaram aspectos comportamentais desenvolvidos durante a graduação, uma vez que são cada vez maiores os critérios vistos como competências essenciais para atuar na Enfermagem (Pafume et al., 2018).

Essa dissonância entre o que é passado pelos professores como possíveis exigências do mercado e a frustração das universitárias diante dessas demandas pode se dar em função de expectativas construídas no momento do ingresso ao ensino superior. A fala da Participante 2 ilustra bem essa mudança de perspectiva ao longo do processo:

Ah, mas é, pra mim é assim, hoje, a questão não é que eu não quero ser enfermeira, é que... eu vou me formar, eu posso até atuar, mas não é exatamente aquilo que dá aquele: nossa, eu gosto de fazer isso. Só que é legal o processo, porque é nele que você que você descobre... dentro desse processo que eu descobri N coisas que eu adoro fazer e N coisas que não, pelo amor de Deus, não.

De acordo com Sahão (2019), é importante que os universitários identifiquem quais aspectos da realidade acadêmica divergem de suas expectativas para, a partir disso, terem condições de construir possibilidades do ambiente real. Essa postura também permite maior comprometimento com a instituição e o curso, o que propicia maior satisfação, além de diminuir a probabilidade de evasão.

Somados a esses aspectos, é importante considerar que essas estudantes trazem, muitas vezes, distorções em relação a como podem vivenciar a experiência universitária. Algumas podem ser impactadas com as obrigações acadêmicas e com o número elevado de tarefas que são exigidas, reduzindo significativamente a quantidade de espaços de lazer. Assim, as obrigações curriculares e extracurriculares acabam sendo somadas com as dificuldades cotidianas, limitando a possibilidade de realizar atividades pessoais ou mesmo de investir em momentos de lazer e de promoção de saúde (Rossato et al., 2022).

Avaliação Qualitativa da Intervenção

A partir dos encontros grupais foi possível perceber a importância e fortalecimento do grupo ao longo do processo. As participantes, de fato, utilizaram a criação do vínculo no grupo para discutir e refletir a respeito de situações complexas ao longo da vivência acadêmica, além de compartilharem experiências e discutirem possibilidades de evolução para as principais angústias de cada uma. Elas se mostraram receptivas e abertas ao processo, o que foi primordial para o percurso enriquecedor que surgiu neste contexto.

As temáticas embasadas na literatura e pré-selecionadas se mostraram adequadas e foram ao encontro das demandas relevantes para o grupo. No entanto, foi possível perceber alguns estímulos disparadores podem ser repensados para futuras intervenções. As participantes também sugeriram o aumento do número de encontros, o que permitiria ampliar e aprofundar as temáticas trabalhadas. As sugestões das participantes salientam o dinamismo do grupo, o que corrobora os apontamentos de Rossato e Scorsolini-Comin (2019) acerca da eficácia dos grupos como ferramenta que propicia diálogos, reflexões e compartilhamentos diversos, valorizando o repertório de vida de cada participante e também a variabilidade do grupo como reflexo do contexto e momento de cada encontro.

Foi possível perceber, a partir da fala das participantes, que os encontros grupais alcançaram o objetivo de propiciarem um local seguro, sem julgamentos e que possibilitasse um espaço de descoberta para cada um. As participantes pontuaram como inicialmente tinham resistência sobre a participação no grupo devido ao receio de não conseguirem se expor, ficarem envergonhadas e, consequentemente, não obterem os resultados esperados. No entanto, ao final da intervenção todas apontaram o quanto o grupo foi importante por permitir que compartilhassem de forma significativa informações sobre si mesmas, além da percepção de que os terapeutas tornaram o espaço seguro para esse engajamento. As participantes destacaram, ainda, a relevância do feedback ao final de cada encontro, pois isso auxiliava na assimilação das informações obtidas ao longo dos encontros.

Considerações Finais

Neste estudo, determinados elementos foram considerados relevantes pelas estudantes para pensar a adaptação ao ensino superior. As participantes relataram questões do cotidiano universitário, como as cobranças em relação à aprendizagem e mesmo em termos da emergência de uma futura postura profissional como enfermeiras como elementos que marcaram a experiência no ensino superior. O afastamento da família de origem e de relações interpessoais seguras também marcaram essa experiência. A intervenção grupal proposta foi bem avaliada pelas estudantes. Intervenções como a relatada no presente estudo podem ser uma das opções que trabalhem estratégias de psicoeducação voltadas para a prevenção de doenças e promoção de saúde no ensino superior.

Ao final deste estudo, algumas limitações podem ser endereçadas. A primeira delas é que foram produzidas em um contexto bastante específico e fortemente marcado por elementos como a competitividade e a alta exigência em relação à formação em Enfermagem. Assim, recomenda-se que essa proposta possa ser adaptada para outros cenários, trazendo, possivelmente, discussões mais próximas das diferentes categorias profissionais. A proposta interventiva, tal como delineada, apresenta flexibilidade nesse sentido. Para além disso, destaca-se que se trata de uma intervenção realizada anteriormente à pandemia da COVID-19, de modo que possíveis repercussões desse momento global possam atravessar a organização de novas propostas interventivas. Em relação aos possíveis conteúdos emergentes em função da pandemia, o modelo TCCG mostra-se flexível também para essa adaptação, devendo ser alvo de estudos vindouros. Espera-se, por fim, que esses resultados possam ser encorajadores para intervenções grupais com estudantes como forma de promover a saúde mental e como estratégia de acolhimento corporificada pela gestão universitária.

Notas

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada com uma bolsa de doutorado da primeira autora e uma bolsa de doutorado do segundo autor pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pela bolsa de produtividade em pesquisa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do terceiro autor.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo pelo apoio institucional para o desenvolvimento da pesquisa e à Coordenação de Desenvolvimento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelas duas bolsas de doutorado recebidas e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de produtividade.

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Recebido: 08 de Outubro de 2021; Revisado: 07 de Novembro de 2022; Aceito: 14 de Novembro de 2022

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