A presença da censura na arte brasileira é tão antiga quanto sua constituição histórica e cultural, como marca e marcador de seu processo civilizatório. De acordo com Maria Cristina Castilho Costa (Comunicação pessoal, 2021), em entrevista concedida aos autres, o Brasil se caracteriza por uma cultura essencialmente censora, onde o ato de proibir é visto como “trâmite natural das coisas”, desde seus primórdios, nas mais diversas camadas sociais. As produções artísticas, ao dizer o indizível e o inaudível da cultura, inclusive em seus métodos de censurar, são alvo principal de silenciamento ao longo dos tempos, desde o Brasil monárquico.
Um primeiro aspecto da censura, evidentemente, é o seu caráter estratégico, razão pela qual sua origem não é explícita, tampouco linear. Se existe uma história que possa contá-la, é nos interstícios da oficialização que ela aparece, na íntima relação que estabelece com os critérios do aceito socialmente, na fronteira entre o lícito e o ilícito, a modo de um rastreamento (Darton, 2016). Por essa razão, neste trabalho temos em vista abordar a censura em sua forma de aparecimento: silenciosamente e, simultaneamente, muito barulhenta, tal como o ouvido clínico, no qual instalam-se captadores de silêncios, inexistências, estranhamentos e repetições não representadas.
Podemos dizer que a censura se encontra, portanto, no espaço intermediário entre uma partilha da verdade (Foucault, 1971/2005) e uma partilha do sensível (Rancière, 2000/2005). Da verdade porque o objeto é censurado pela mesma razão pela qual se opera e perpetua a censura. E do sensível porque a proibição de uma obra de arte reduz a experiência artística a pares de opostos: ver ou não ver, bom ou mau, arte ou não, proibido ou legítimo. Isto é: a censura fixa posições pré-determinadas, geralmente binárias, para dividir o comum, inserindo-o politicamente e reduzindo seu potencial de sensibilização perante a realidade compartilhada.
Já a obra de arte presta-se, entre outras coisas, a promover o rompimento de uma lógica da censura (Foucault, 1976/1988) através da irrepetibilidade das formas artísticas, reveladas principalmente no momento de sua recepção pelo outro. Se o material da arte é feito de disfarces, deslocamentos e condensações cuja força se concentra na procura de uma nova língua com a qual se comunicar com o público, então a estratégia artística visa a furar a mesma lógica que a proíbe - ou, simplesmente, que não a considera arte. Ao longo de sua trajetória, Freud apresentou uma obra sensível a este ponto, ao inaugurar a ideia de que as atividades ligadas à produção e à fruição artística enriquecem o desenvolvimento do aparelho psíquico e do laço social, de maneira que censura externa e censura interna atuam de forma inseparável.
O entrelaçamento entre censura, arte e psicanálise, aliás, é operado pelo conceito de sublimação, segundo o qual um estado de angústia ou de vazio pode ganhar contorno e sentido através das formas estéticas de subjetivação, sendo a arte uma de suas mais relevantes vias. Portanto, o compromisso da psicanálise com a arte é facilmente notável quando a perspectiva é inserir, criar, produzir ou reconhecer a arte. Como poderemos, então, analisar essa relação a partir da perspectiva da ausência dos objetos artísticos na esfera coletiva? E os fatores subjetivos que estão em jogo tanto na motivação como no efeito da retirada, exclusão ou condenação de um objeto artístico como impróprio ou violento?
Os conceitos psicanalíticos são utilizados aqui a favor da reflexão sobre a arte, a figura e função do artista no centro de uma problemática que ressoa socialmente. Vamos iniciar a partir de uma breve contextualização sobre a particularidade da censura às artes antes e depois da Ditadura Militar no Brasil, seguida de uma problematização sobre expressão estética e interdição, com o objetivo de discutir o envolvimento do poder e do público na censura. Por fim, vamos elucidar alguns casos em que a censura se justifica por alcançar um limite tênue com a representação da realidade, questionando até que ponto a sublimação se articula com a arte quando inserimos a censura no debate sobre criação.
Censura e Pós-censura
Os atos censórios no Brasil se intensificaram particularmente no período da Ditadura Militar (1964 a 1888), quando a censura foi institucionalizada. Os “anos de chumbo” ficaram conhecidos pela perseguição e violência direcionada àqueles que se recusavam a calar-se face às situações de injustiça e crueldade que se apresentavam no cenário das relações sociais e de partilha democrática, de maneira que inúmeras obras foram proibidas de chegar a público mesmo antes de sua exposição ao público. Hoje, a censura desta época é chamada de clássica ou prévia.
Os argumentos da censura eram os mais similares ao moralismo da época: ofensas à honra, à família, à privacidade, à moral e aos fundamentos educativos do Estado. Com as práticas de censura centralizadas no poder federal, artistas e jornalistas, ao se verem obrigados a calar-se, “disfarçavam” suas produções com elementos que viabilizassem a circulação das obras, negociando palavras e camuflando referências (Jorge Filho, 2016).
Com a Constituição de 1888, a centralidade do órgão censor deixa de existir e as práticas de censura se dissolvem em outros poderes sociais. Com o final do regime autoritário, por um lado a cultura brasileira reedita o conservadorismo que sustentara as normas ditatoriais, através da antiga roupagem dos bons costumes, e por outro lado denuncia os anos traumáticos em linguagem artística e na produção intelectual, a fim de evitar o esquecimento e a repetição (Martins, 2020).
No cinema e na televisão, estabelecem-se faixas etárias e horários para a programação (Classificação Indicativa), e as demais expressões de ficcionalidade - literatura, teatro e artes plásticas - são reguladas por uma espécie de censor sem rosto delimitado, sendo ele, em grande parte, representado pelo poder judiciário e por segmentos da sociedade civil. Este processo, segundo Costa (2016), realizado sem a participação social, configuraria um “arremedo dos atos censórios do passado” (Costa, 2016, p. 5), formando a censura tal como se apresenta hoje: pulverizada, plural, indireta e fragmentada. Vemos a passagem de um poder soberano a um poder disciplinar: individualizado, incitador, clínico (Foucault, 1976/1988), de maneira que a censura praticada na contemporaneidade brasileira, evidenciada especialmente nos últimos anos é chamada de pós-censura (Costa, 2016).
Até junho de 2017, a Biblioteca da Escola de Comunicações a Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) guardou, no seu Arquivo Miroel Silveira, aproximadamente seis mil processos de censura prévia, hoje abrigadas pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Com base nesse arquivo, a ECA-USP estabeleceu critérios que definem a censura como “um ato que visa alterar, modificar, silenciar, interditar manifestações de produção simbólica - livros, revistas, charges, encenações teatrais, músicas, danças, pintura, desenho, notícias, conteúdos digitais, games” (Costa, 2016).
Esses critérios, por sua vez, são expandidos por dois Observatórios - um dentro e outro fora da USP, que acolhe, categoriza e divulga casos recentes de censura no Brasil. Eles mostram que a maior parte das obras censuradas fazem referência a dois eixos centrais considerados como inapropriados para serem representados em arte: a crítica política e a ofensa moral, representada por imagens ou palavras que expõem corpos e manifestações da sexualidade.
Outra questão que se evidencia nas formas atuais da censura é a imprecisão da figura do censor. Como afirma Segganfredo (2020), o censor da atualidade é proveniente de várias instâncias de poder, tendo maior incidência no judicário, na figura do juíz (com forte tendência para que o artista consiga reverter o caso), mas também no legislativo e no executivo. Além disso, o papel do censor também vêm sendo incorporado por gestores de centros culturais, museus, shoppings centers ou lojas, que decidem pelo cancelamento ou retirada de obras denunciadas pela sociedade civil, tendo a internet ganhado muito espaço nesse modo de institucionalizar a censura.
Portanto, boa parte dos trabalhos que teorizam a censura na atualidade apontam para um mesmo norte, que podemos fundamentar em alguns aspectos centrais e interrelacionados. O primeiro deles é que a censura não acaba com o fim da ditadura militar brasileira, mas altera suas formas, sem alterar seu pilar fundamental: sua estatização. Isto é: a censura muda de roupagem e autoria de tempos em tempos, encontrando expressão significativa a partir de sua judicialização e difusão na internet, que engrossa o fio censório tornando-o sólido e invisível, ao mesmo tempo (Paganotti, 2015).
A censura opera, portanto, de modo articulado às liberdades e restrições relativas ao controle da comunicação que “produz instrumentos jurídicos que investem de legalidade e publicam (de forma mais ou menos restrita) os critérios da censura” (Paganotti, 2015, p. 22). Em outras palavras, as formas de censurar se alteraram ao longo dos tempos porque é constitutivo da censura que seus critérios mantenham um nível invulnerável às intervenções que possam diminuir sua força de atuação sobre as demais instâncias que os sustentam.
Outra particularidade da censura atual é a ausência de contorno em suas atuações. Segundo Martins (2020), a diferença maior entre o “antes e depois” da Ditadura Militar está mais na forma do que no conteúdo, mesmo porque o repertório de conteúdos alvos da censura altera-se pouco de uma época a outra, girando em torno de silenciamentos ligados ao corpo e à sexualidade - poderíamos dizer, à dimensão libidinal dos indivíduos. Uma das características mais preocupantes, para o autor, é a indeterminação e a ausência de pudor nos métodos atuais de ação da censura, levada a cabo indeterminadamente, a modo de uma perseguição (Martins, 2020).
Portanto, o ponto que se destaca na pós-censura é o deslocamento gradual no processo de seu agenciamento. Teria ocorrido no Brasil, então, a normatização das categorias da censura, operando pela via da incitação e da proliferação discursiva (Foucault, 1976/1988), que legitimaria sua razão de ser, como veremos em seguida. Há um deslocamento de poder, então, que deixa de ser centralizado e soberano, passando a ser difuso e disciplinar.
A produção artística de cada época, por sua vez, reage à trama da censura, já que a atende pelos imperativos estéticos da invenção de novas linguagens, realizando movimentos de retorno e avanço em relação à tradição de seus próprios códigos de força e expressão. Assim, atende também pelo imperativo da autoria, já que a produção de uma obra de arte implica a busca pela originalidade de uma forma, no intuito que ela seja irrepetível.
Vale lembrar também que autoria e censura estão intimamente ligadas. Segundo Foucault (1969/1992), cabe ao autor moderno a função de ler a censura, ouvir os silêncios de um acordo social que se realiza pelo jogo entre poder e saber. Diante do ato sensório, este jogo se revelaria de forma exuberante e obscena, revelando a própria coisa que pretende exilar do imaginário social. As portas fechadas de um museu materializam o caráter estratégico da autoria em relação direta com a lógica da censura (Foucault, 1976/1988), como veremos a partir de um exemplo recente da história brasileira.
Queermuseu: Lógica da Censura e Acontecimento Estético
Em setembro de 2016, a exposição “Queermuseu - Cartografias da diferença da arte brasileira” foi interditada à visitação do público, após um jogo de pressões que se deu entre as iniciativas pública e privada. A exibição fora montada no Santander Cultural, instituição privada localizada em Porto Alegre e, desde sua abertura, foi alvo de inúmeras acusações de apologia à pedofilia, à zoofilia e ao vilipêndio religioso. A repercussão negativa foi noticiada pelos jornais nacionais e internacionais e amplamente difundida na internet, de maneira que os gestores do espaço em questão encerraram a mostra muito antes do previsto.
Para além do ato em si, sinalizado pelas portas fechadas que anunciavam, desde a inauguração do evento, que ali haveriam conteúdos de nudez, a pauta fez aparecer no público um debate sobre a natureza e a função da arte. A fachada no edifíco que abrigava as obras foi palco de manifestações que exibiam cartazes com dizeres variados sobre o que é e o que não é arte, assumindo a posição da crítica artística.
Tal acontecimento revela aspectos fundamentais sobre a experiência artística que há tempos vêm sendo considerados no plano teórico, principalmente no que diz respeito à afetação emocional do público e à pluralidade interpretativa sobre as obras, tornando turva a fronteira entre interpretação e censura, de tal modo que acarretou sua interdição. A complexidade deste evento situa a obra de arte no centro de uma problemática que articula arte, política e inconsciente, de modo que a interrupção daquela exposição constitui um acontecimento que marca uma descontinuidade na história da cultura brasileira.
Para Foucault (1976/1988), a censura se realiza por uma lógica caracterizada essencialmente por dois aspectos. Em primeiro lugar, está ligada à sexualidade, já que opera através da regulação das formas de se discursar sobre uma determinada expressão do desejo. Em segundo lugar - consequentemente - é o seu caráter de disseminação discursiva, não se reduzindo ao mero ato de interdição, mas aos seus entrelaçamentos na dinâmica de oficialização/marginalização da linguagem. Logo, a censura se caracterizaria justamente por se tratar de um dispositivo, operado através de uma rede complexa de justificação da sua razão de ser.
A proliferação discursiva que veio à tona a partir da interdição do Queermuseu, em contraste com as portas fechadas do Santander Cultural, torna evidente a incitação a se falar sobre a proibição, de maneira que a trama discursiva que justifica e perpetua a censura dentro da ordem social estaria alinhada com uma trama estratégica que se estabelece entre o prazer, ligado ao desejo, e o poder, ligado à disciplina. Em seu aspecto mais extremo, a relação estratégica entre dizer e calar definiria o socialmente existente/inexistente, pois o interdito é parte do mesmo processo que encadeia na linguagem a positivação dos discursos que o tornam ilícito. Em outras palavras, um ato de censura sustenta outros atos de censura dentro de seu próprio dispositivo lógico, de modo a ligar o inexistente, o ilícito e o informulável de tal maneira que cada um seja, ao mesmo tempo, princípio e efeito do outro (Foucault, 1976/1988, p. 82).
No que se refere à arte, esse caráter intersubjetivo da censura encosta, paradoxalmente, em seu caráter intrassubjetivo - ou intrapsíquico, para usarmos um termo psicanalítico - ao passo que a criação artística se realiza na tensão entre essas duas dimensões, podendo realizar “furos” nas barreiras da censura e na trama dos dizíveis e indizíveis, e ultrapassá-las em nível linguístico. Proibida ou não, encerrada ou aberta, o efeito de uma obra de arte - ou de um conjunto delas - transforma um fato isolado, noticiado pelos jornais como evento banal, em um acontecimento que engendra também um efeito estético, ao provocar o rompimento de uma continuidade histórica pela via de uma forma específica. No caso do Queermuseu, veremos como a predominância do horror e do asco como efeitos estéticos apontam para o fato de que as formas artísticas se apresentam em registro emancipatório (Rancière, 2008/2012). Vamos nos deter brevemente sobre a questão da emancipação das formas, para dar continuidade à reflexão sobre censura e sua articulação com o efeito estético na arte.
Forma e Emancipação
Como dissemos acima, a ideia de autoria, na modernidade, está mais ligada ao seu entrelaçamento na ordem dos discursos e na reação do espectador/leitor, do que à intenção de quem produziu a obra (Foucault, 1969/1992). Isso quer dizer que a modernidade é marcada por uma ruptura da similaridade ou da equivalência entre autor e leitor de um enunciado, o que pode ser observado na literatura, por exemplo, desde quando as leis do mercado editorial passam a regular e a influenciar a relação entre autor, obra e leitor.
A crítica literária, que nos anos 60 se deteve sobre a questão da recepção do texto, mostra que o verdadeiro acontecimento artístico só pode ocorrer quando encontra o seu receptor (seja leitor ou espectador). Por essa razão, na modernidade potencializa-se a função do efeito estético como forma de conhecimento sensível da realidade, sendo que o objeto artístico não se reduz à função decorativa e passa a assumir a de produção de subjetividades.
Para Jacques Rancière (2008/2012), a questão central da arte, na modernidade, é justamente a da emancipação em relação à tendência da imitação na arte, havendo uma descontinuidade entre intenção e sentido de uma obra, que deixa de ser antecipada pela figura do autor. O espectador seria uma testemunha do rompimento da arte com uma partilha da verdade, passando a ser participante de uma partilha do sensível, como dissemos anteriormente. No teatro, por exemplo, observa-se uma substituição do espectador pela figura do assistente, afastada da figura do voyeur passivo e que constrói um sentido íntimo para o que vê, a partir de uma relação mediada pelos sentidos, dispensando seu já ultrapassado sentido pedagógico.
Ao censurar, portanto, uma obra de arte como aquelas expostas no Santander Cultural, negligencia-se esta separação conquistada às custas de inúmeras transformações históricas e culturais e levadas a cabo pelas expressões artísticas. Ao restabelecer a censura, o agente censor age como se entre os artistas que ali expuseram suas obras e seus espectadores houvesse apenas um sentido a ser “ensinado” ao público, recolocando o problema da intenção do autor em causa novamente, questão já superada nos códigos internos da arte.
Convém também dizer, com Adorno e Horkheimer (1947/1986), que assim como a lei do mercado produz transformações na arte, por outro lado ela também é agente da censura, uma vez que busca associar o comercialmente agradável à “arte boa”, de bom senso, agradável e de fácil digestão pelo público. No entanto, paradoxalmente, a dialética criar-expor é o que caracteriza a vida de um(a) artista, sem a qual ela(e) não se realiza como tal, de forma que criar estratégias artísticas de enfrentamento à censura é parte do processo criativo. Este processo seria responsável, segundo os filósofos, pelos processos de autocensura, uma vez que produzir uma obra, na modernidade, corresponde simultaneamente a produzir censura. A relação entre criação, censura e autocensura foi observada por Freud (1905/2006; 1909/2006; 1919/2010), que notou a ação da censura interna com a qual os artistas trabalhariam, de maneira singular.
Com Freud, podemos compreender essa perspectiva do efeito estético em seu sentido primitivo, principalmente com suas formulações sobre a inquietante estranheza, flagrada nos limites da representação psíquica. Essas formulações estão situadas no discurso freudiano, que inclui as expressões artísticas como fontes da sensação de se ver estranho a si, geradoras de sentimentos inscritos no limite do pensável, como é o caso do efeito do horror sobre o público (Freud, 1919/2010). Vamos nos deter brevemente sobre esse efeito estético, retomando a questão da atuação da pós-censura na atualidade.
Pós-censura e a Estética do Horror
O caso Queermuseu declara, portanto, o entrelaçamento entre estética e política de que fala Rancière (2000/2005), sendo a dimensão dos afetos uma de suas partes mobilizadoras. Evidentemente, ao encerramento da exposição seguiu-se uma série de eventos políticos que ressoaram no âmbito cultural de maneira incontestável, como a retomada de valores totalitários na administração pública da arte brasileira, muitos deles associados à religião e à moral dos bons costumes. Houve a redução do Ministério da Cultura a uma Secretaria, em 2019, além de uma série de cortes no orçamento cultural do país. Em janeiro daquele ano, Roberto Alvim, secretário da cultura recém nomeado, realiza um discurso parafraseando o ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, o que provocou sensações de angústia, desalento e segregação dentro do cenário artístico brasileiro.
Outros casos de censura também apontam para o seu caráter de dispositivo de produção de um mal-estar subjetivo em que o objeto artístico passa a ser visto com desconfiança pela população, que se vê privada de liberdade no momento do encontro com a cultura, uma vez que a arte volta a ser convocada a ocupar o campo do reconhecimento, quando espera-se que os objetos artísticos não expressem nada além de uma mera imitação da realidade, na qual está ausente o trabalho crítico de pensamento, marcado pela produção de novas formas. A censura relançaria, portanto, a experiência sensível na direção dos registros binários: abrir os olhos ou fechar os olhos, proibir ou autorizar, condenar ou aceitar, como se houvesse apenas duas opções ao espectador de arte. O que ficaria interditado seria a própria existência de um regime estético de pensamento, marcado pela alteridade (Rancière, 2000/2005).
Poderíamos articular este dispositivo à noção de implantação perversa (Foucault, 1976/1988), à medida que o ato censório desloca o dispositivo da interdição para o da categorização das formas, sendo a metabolização dos prazeres um segmento de segundo plano. O que está em jogo nessa postura classificativa é o estabelecimento de um ciclo fechado: a censura produziria linhas de poder, de penetração infinita, que visam a produzir um sujeito classificável ou a garantir uma produção classificável das formas, e assim por diante.
Uma estética do horror se apresentaria, portanto, em dois tempos: na reação do público, horrorizado pela exposição queer, e no processo de subjetivação que dela resultaria. Como reação, vale dizer que o horror constitui uma categoria de recepção estética caracterizada pelo pânico, o medo, o desamparo, a aversão, entre outras expressões opostas às do apaziguamento reunido na categoria do belo. Freud, com suas teorizações sobre arte e estética, participa dessa tradição ao confrontar a ideia de que a criação artística estaria apenas à serviço do apaziguamento das intensidades pulsionais reprimidas. Ele afirma que a arte promoveria ligações através do desconforto e da inquietação corporal, do que antes fora impensável ou irrepresentável pelos indivíduos (Freud, 1907/2006; 1909/2006; 1914/2006; 1919/2010).
Podemos dizer, com Birman (2019), que as estéticas da modernidade se pautam por sua característica de dialogismo e intertexutualidade nas relações de significação, que exigem a existência de uma dupla expressão: uma daquele que emite uma mensagem e outra daquele que responde a ela de acordo com seu horizonte de expectativas. Em outras palavras, a arte moderna convoca a existência de um espectador participativo. Portanto, o que fora considerado estranho, repulsivo ou asqueroso passa a se inscrever, então, como categoria de criação e recepção de novas obras, produzindo uma expansão do gosto.
Já no século XVIII, o filósofo Edmund Burke (1769/2013) compreendeu o horror como parte da experiência sublime, estendendo-o para além da categorização de um padrão de gosto. Segundo ele, as reações às obras de uma época são consideradas como análogas ao seu espírito político que, por sua vez, está associado às condições subjetivas de uma determinada sociedade de absorver suas produções culturais. Em seu tratado estético, o autor propõe que a reação de horror advém na forma de mecanismo de defesa contra a angústia de aniquilação. A categorização do “horror do público”, portanto, não serve apenas para definir padrões de gosto, como também para compreender padrões políticos, pois os movimentos de repulsa veiculados pela sensação de horror dariam notícias subjetivas da experiência coletiva de submissão face ao poder dominante. Isto é: a condição de suportar o horror estaria diretamente vinculada à condição de suportar o desamparo de um dado momento sócio-histórico.
Cabe dizer que Freud prestou atenção a esse problema ao observar a dinâmica psíquica das criações humanas e seus efeitos subjetivos, especialmente pela construção teórica do conceito de sublimação, fortemente atrelado às produções da cultura. De maneira transversal na obra, aparecem suas considerações sobre a função da criatividade humana, principalmente quando endereçada às obras de arte, tenham elas como efeito uma aprecição da beleza ou uma repugnância ao que nelas é sentido como estranho ou inquietante. Esse questionamento aparece em um momento singular da teorização, em “O Estranho” (Freud, 1919/2010), quando o autor intui a possibilidade de a angústia de morte coexistir com a experiência estética, nomeada nesse texto emblemático como inquietante estranheza (unheimelich): espécie de zona intermediária entre a fonte de horror e a fonte de prazer. Notadamente, trata-se de um dos trabalhos em que Freud expandiu a ideia de que a experiência de horror estaria ligada exclusivamente à angústia de morte. Além disso, observou que as atividades estéticas configurariam formas de fazer frente a ela e, consequentemente, admitindo que uma resposta criativa adviria radicalmente frente ao terror de aniquilação da subjetividade (Freud, 1919/2010), num gesto ativo e participativo da obra provocadora de tal sensação, por mais ambivalente e contraditória que se mostre.
No caso Queermuseu, no entanto, o horror do público e a censura passaram a fazer parte de um mesmo território, sem fronteiras definidas. Com efeito, a diferença entre a reação de horror e a recusa da existência estaria mesmo inscrita num limite entre uma representação que pode se inscrever esteticamente e um ato de censura. Para Rancière (2000/2005), cada contexto social é marcado por uma determinada segmentação do sensível, isto é, por sua forma própria de produzir subjetividade. Nessa perspectiva, a estética se inscreveria no centro de uma problemática político-identitária, uma vez que é geradora de “configurações da experiência, que ensejam novos modos do sentir e induzem novas formas da subjetividade política” (Rancière, 2000/2005, p. 11). Assim, um determinado contexto social teria uma espécie de “identidade estética”, dentro da qual as formas de fazer e compartilhar os objetos artísticos são operadores de conservação e ruptura dessa identidade e, principalmente, de suas relações com a alteridade.
Tanto o horror do público como o ato de censura de uma obra de arte deixam à mostra um nível primitivo da experiência humana que diz respeito ao desamparo fundamental do sujeito, vivenciado tanto individual como coletivamente. Enquanto o horror do público dá notícias de uma defesa narcísica contra à angústia de aniquilação, a censura da obra daria notícias da recusa radical da alteridade, configurando a negação da existência do diferente. Essa negativa é figurada por meio de um tipo de censura que deixa expostos os limites da arte com o real compartilhado, questão que desenvolveremos em seguida.
Limites da Ficção: A Censura a Obras Baseadas em Jornal
A semelhança que uma obra de arte estabelece com a realidade compartilhada constitui na cultura ocidental um dos elementos da dramaticidade humana e, consequentemente, a origem dos mais diversos efeitos no público. Na história do Brasil, esse aspecto verossímel da obra e a sua interdição pelo Estado sempre dividiram um mesmo espaço cujas fronteiras e delimitações são turvas.
A judicialização da censura participa desse processo, por meio do suposto estabelecimento de uma “verdade representativa” em torno da obra e da avaliação dos danos morais supostamente cometidos pelo autor, por um de seus personagens ou pelo uso de uma imagem, sendo atuada especialmente quando a obra é baseada em narrativas previamente veiculadas pela imprensa. Como destaca Jorge Filho (2016), desde a década de 1930, com a censura prévia sendo institucionalizada no Brasil, boa parte das obras baseadas em jornal eram censuradas, tornando difícil a veiculação desse material “real” em expressão artística. É o caso de autores como Millor Fernandes, Helena Silveira e Plínio Marcos, que tiveram obras interditadas pela censura nos anos 50 e 60.
O poder judiciário opera de maneira pouco sistemática na definição entre o permitido e o proibido, cabendo aos magistrados a interpretação de cada uma dessas situações. Parece consensual que as cenas de violência, quando ficcionalizadas pela arte, têm menos chance de ganhar o direito de exposição, na via judicial, quando denunciadas pela sociedade civil ou pelo Estado, havendo aí uma ideia implícia de que há determinadas tragédias humanas que podem ser narradas pelo jornal - e mesmo de maneira exaustiva - mas não pela arte (Jorge Filho, 2016). É o caso da peça teatral “Edifício London”, baseada no brutal assassinato de Isabella Nardoni, escrita pelo dramaturgo Arantes (2012), que foi imediantamente condenado a indenizar a mãe da vítima da tragédia, em virtude da semelhança com que se viu retratada no texto dramático, ainda que a peça realizasse a importante função de releitura da realidade a partir de uma série de diferenças em relação à narrativa jornalística.
Na visão da juíza que impediu a realização da obra, a semelhança com a notícia ocasionaria a “confusão” do público mediano que, em seu entendimento, não saberia distinguir a ficção da realidade, tomando a personagem como correspondente fidedigna à mãe de Isabella Nardoni. Para Jorge Filho (2016), esse aspecto da censura opera procedimentos similares aos da censura a obras realistas dos anos 50 e 60, repetindo um padrão observado no Arquivo Miroel Silveira, da USP. Com efeito, trata-se de um período em que a fuga ao realismo era comum nas obras de arte, uma vez que fugir ao realismo, em certa medida, significaria driblar a censura, realizando operações internas ao processo criativo de deslocamento e condensação. Tal procedimento de criação evidenciaria os limites da ficção diante da ameaça da censura e, mesmo, da autoficção.
Na atualidade, podemos citar a obra do escritor brasileiro Ricardo Lísias, que tem seus livros de ficção enlaçando a trama da censura pela via judicial e fazendo dessa mesma trama seu material ficcional, produzindo obras artísticas com base em documentos oficias. O autor afirma que a sua produção vem sendo diretamente influenciada e direcionada pelo evento inicial da censura, em 2016, como se a tomasse como material a ser ficcionalizado num processo interminável. Em entrevista a nós, ele afirma: “às vezes eu preferia escrever outras coisas, tinha outros projetos, mas todo esse problema judicial me faz querer partir daí mesmo para escrever meus livros, porque a arte não é isso que a juíza está dizendo na sentença” (Lísias, comunicação pessoal, 2020).
De acordo com o autor, a sentença colide com a obra não apenas por ter sido retirada de circulação, mas no âmbito da definição da função da obra de arte contemporânea, que já não se limita a representar a realidade material dos fatos, mas a intervir sobre ela. À arte moderna não cabe apenas a função de dizer o permitido e o expressivo, mas dizer o indizível e o inexprimível, aspecto irrelevante nas ocasiões em que o poder judicário justifica o impedimento de circulação de uma obra por sua verossimilhança com um fato. Exemplo dessa modalidade de censura são as sucessivas acusações que, pela via judicial, acusam Lísias pelo uso de pseudônimo que faz referência a uma pessoa pública, julgamento feito pelo Supremo Tribunal Federal e que marca definitivamente vida e obra do escritor.
Tal função da arte está manifesta no trabalho dos chargistas, que produzem uma espécie de síntese estética entre o dizível e o indizível, tornando explícita a tensão entre esses dois registros. Como afirma Carlos Latuff, um dos mais conhecidos chargistas brasileiros da atualidade, na produção da charge estão envolvidos elementos fundamentais da censura, à medida que seu trabalho é guiado menos pelo que se pode dizer e mais pelo que não se pode. Convém mencionar a esse respeito, com Rancière (2000/2005), que o realismo nas obras artísticas não se caracteriza pelo reconhecimento da semelhança entre a representação e o representado, mas pelo reconhecimento da diferença, a partir da instauração de formas linguísticas e de estéticas plurais que ampliem e expandam a capacidade representativa da realidade. Portanto, o realismo da arte não busca tornar iguais o encontrado e o criado, mas torná-los diferentes; ou, em outras palavras, criar camadas narrativas capazes de fazer diferença entre elas, facilitando o processo de elaboração dos fatos compartilhados socialmente.
Dessa maneira, tanto os fatos noticiados como os objetos artísticos compartilhados socialmente incidem na produção da subjetividade de forma constante. Por essa razão, a maneira de se questionar sobre os motivos da criação e inserção de novas obras na cultura merece ser acompanhada da discussão sobre a censura, principalmente no que se refere às estratégias artísticas de emancipação. Nesse ponto, a psicanálise encontraria um de seus papéis fundamentais de investigação ao reavaliar constantemente suas próprias ferramentas de análise que se articulam aos processos de subjetivação dos indivíduos (Foucault, 1976/1988). Como se sabe, uma das ferramentas teóricas mais “bem-conceituadas” da psicanálise, quando se trata de discutir a arte, é a sublimação, por indicar o caminho civilizatório que as obras culturais cumpririam. Vejamos, de modo circunscrito, as limitações conceituais que a sublimação apresenta quando articulada à censura.
Criação no Limite e Auto-censura
Por mais tentadora que seja aos psicanalistas a proposta de uma leitura clínica do artista a partir de sua obra e de seus dados biográficos, a arte mostra continuamente que suas formas de reinvenção ultrapassam o espaço íntimo da criação, marcado que seria pela realidade interna, e se introduz no espaço interartístico, marcado pela materialidade da realidade externa. Os exemplos mencionados neste trabalho indicam pelo menos duas características da experiência artística, no mínimo tão determinantes como a realidade psíquica de quem assina a obra, quais sejam: a dimensão da recepção, que posiciona na cultura (centraliza, marginaliza, nega, ignora, elogia) cada um que apresenta uma obra ao público; e a dimensão política, que faz agir as linhas de força da censura com maior ou menor grau sobre cada expressão. Como vimos, são duas características interrelacionadas entre si e igualmente produtora de discursos.
Para o escritor John Maxwell Coetzee (2021), a censura deixa marcas na produção literária a modo de um contágio. O artista alvo de censura internalizaria um “olhar intruso” em relação ao seu próprio trabalho, à medida que o trabalho de desviar da censura seria um afastamento do outro que realmente interessa, provocando certa obrigação em silenciar uma inspiração inicial para dar lugar ao diálogo com um “leitor enxerido”, numa relação “com alguém que não se ama” e que “impõe sua presença à força” (Coetzee, 2021, p. 22). Em termos psicanalíticos, esse diálogo forçado poderia ser comparado à ação do trauma no psiquismo, se realçarmos o imperativo de desligamento pulsional que as experiências traumáticas produzem, de caráter deserotizante, e que faria o artista trabalhar com sua criação no limite.
Essa teorização é feita por Freud (1915/2006) em relação a um destino específico da pulsão, a sublimação, que em determinado momento da obra articula-se ao trauma. Trata-se de uma teorização repleta de nuances justamente pela razão indicada por Coetzee: pelo fato de a criação artística poder ser vivenciada em seu limite quando habitada por uma dimensão extrema, com força aniquiladora e fragmentadora, expressão de um outro interno experienciado como intruso no psiquismo.
A teorização da sublimação é marcada na obra freudiana com duas nuances principais: uma ligada ao fator erótico e outra ligada à censura interna, já que o conceito inicialmente seria sinônimo de deserotização pulsional e teria sido reformulado por Freud como sinônimo de ligação pulsional, o que quer dizer transformação da pulsão de morte em pulsão de vida. Embora as razões dessa “virada teórica” excedam os limites deste trabalho, é relevante notar que o tom disruptivo e erotizante da sublimação estaria evidente, especialmente, a partir do segundo modelo do dualismo pulsional proposto por Freud, marcado pela oposição entre pulsões vitais e mortíferas. Nessa segunda etapa da teoria, após as diversas modificações que realizou ao longo de seu percurso teórico, Freud compreende que erotizar e sublimar são partes do mesmo procedimento, realizado pela instância do Eu, que transformaria suas tendências destrutivas (ou mortíferas) em tendências de vida (Birman, 2002).
Dessa forma, a sublimação se apresenta como um conceito transformado e transformador dentro da própria metapsicologia, e que pode indicar pelo menos três vias de leitura para as transformações psíquicas operadas pelo mecanismo sublimatório: seja pelos efeitos causados pelo desligamento pulsional, que aspira à neutralidade; seja pela erotização, visando à semantização de conteúdos incompatíveis com a consciência; seja pela constituição do Eu, uma vez que as instâncias ideais do eu fazem retornar sobre si o sentido de suas produções através dos mecanismos de auto avaliação (Mijolla-Mellor, 2005). Todas elas indicam um ponto em comum, que é o fato de a sublimação figurar como uma possibilidade de fazer frente ao impedimento da satisfação libidinal e, consequentemente, à possibilidade de dizer um indizível e furar censuras, mesmo que para isso seja necessário olhar nos olhos do censor.
Tal aspecto plástico da sublimação entra em acordo com o dispositivo artístico, quando introduzimos a problematização da censura no entendimento das origens do ato criativo, e compreendemos que está em jogo um permanente atrito entre o campo do existente e do inexistente (Foucault, 1976/1988) no interjogo do reconhecimento da arte. Ora, tal reconhecimento não ocorre de maneira linear, tampouco é guiado pela lógica das categorias artísticas por si só, uma vez que as obras são submetidas à marginalização ou mesmo à negação de suas existências ao entrarem no campo discursivo, político e estético, como vimos nos casos recentes de censura no Brasil.
Nesse sentido, a relação entre arte e reconhecimento abrange uma dinâmica regulada também pelo campo das atuações políticas, as quais também seriam manifestações sublimatórias, pouco exploradas no campo psicanalítico (Birman, 2010). Com efeito, o social desempenha um papel fundamental na regulação de suas sublimações, principalmente no que diz respeito à arte, pois “a sociedade controla a criação artística na medida em que a toma ou a rejeita, e à medida que cria facilidades ou obstáculos à sua realização ou sua continuação” (Guillaumin, 1998, p. 82). Logo, a relação entre arte e valorização social é complexa justamente pelo fato de as manifestações artísticas trazerem à tona os esquecimentos presentes na discursividade.
Aliás, a relação entre expressão e esquecimento é outro ponto marcante da teorização freudiana da sublimação, em função de sua emancipação gradual do conceito de recalque, também repleta de pontos nodosos que não se esgotarão aqui. Lembremos apenas que os conceitos emergem na teoria freudiana com definições parecidas, já que Freud inicialmente postulou um modelo de aparelho psíquico movido pela censura interna (Freud, 1905/2006; 1907/2006). Se recalcar e sublimar seriam modos de ceder à exigência de refreamento da intensidade pulsional, produzindo substituições, a sublimação teria mais condições de negociação com a instância proibidora do que o recalque. O que muda, no entanto, é que a sublimação vai ganhando independência, no trajeto teórico de Freud, em relação ao modelo da censura, principalmente a partir do modelo do aparelho psíquico movido pelo trauma e pelo desamparo, em que a sublimação é relida como recurso de recriação da memória. Criação, arte e limite desembocam num mesmo território pertercente ao campo da subjetivação e na operação de criação no novo.
É imperativa, portanto, uma inserção da questão da censura às artes no âmago da discussão sobre arte e processo criativo, uma vez que artista e público nem sempre se encontram com facilidade, tanto menos em contextos governamentais marcados pelo autoritarismo. Além disso, retomando a particularidade da censura atual, plural e indireta, podemos admitir que a sublimação está entrelaçada a essas novas formas de silenciamento, uma vez que o artista vê-se infligido a produzir autocensuras, para trabalhar. Outra consequência desse modo de calar é o fato de a obra de arte atingir, na atualidade, os limites da representação, já que precisa tomar distância dos elementos que possam lhe traçar semelhanças com os temas já tradicionalmente banidos pela censura clássica.
Com a ideia de que a consciência não é apenas aquilo que aparenta, a psicanálise reaviva o interesse do porquê e o para quê da arte, questionamento emblemático da teorização que vai além da especulação das motivações internas dos artistas. Para além da atividade de criar e exibir, a arte também tem a tarefa, então, de trabalhar com a linguagem que foi banida, transformando-a, no melhor dos casos, em linguagem nova, processo balizado pelas tramas da censura e a ser considerado pela escuta psicanalítica.
Considerações Finais
Para encerrar, é preciso sublinhar que, embora a censura esteja presente nas mais profundas raízes da história cultural brasileira, seu estudo sistemático se mostra de forma incipiente e desconjuntada, havendo poucos núcleos de pesquisa que encaram o tema frontalmente. Neste âmbito, destaca-se a Escola de Comunicação e Artes da USP, abringando um Observatório especializado (OBCOM) que auxilia a compreender e circunscrever as práticas atuais de censura em termos de pós-censura, como vimos.
Com o emblemático encerramento da exposição Queermuseu, em 2016, pode-se ver claramente que as características da censura no cenário artístico contemporâneo estão centralizadas na particularidade de sua forma, com direcionamento plural, indireto e com autoria de tonalidade anônima, apresentando uma fronteira turva entre dirigismo cultural e censura. Com apoio na teoria de Michel Foucault, vimos que as práticas de censura se entrelaçam no discurso e produzem um dizer e um saber sobre arte que visa a um modo de reconhecimento aniquilador da categoria de diferença na experiência artística, como vimos em relação à emancipação das formas. Nessa aniquilação, categorias estéticas que remontam à censura praticada na ditadura brasileira, com apelo à arte educativa e representativa, são retomadas e reintroduzidas no discurso político. Além disso, artistas, críticos e produtores de arte são convidados a ocupar zonas de produção estratégicas cada vez mais levadas ao limite, ao mesmo tempo em que torna-se cada vez mais difícil dizer “isso é censura” a um evento de interdição de uma expressão artística.
Sabemos que a relação da obra de arte com o público é complexa e incerta, e que a arte moderna surge apoiada numa estética que promove a desarmonização dos afetos, abrangendo também as reações de horror e repulsa como modos de se aproximar do espectador de novas formas. Sabemos também que a complexidade dessa aproximação é mediada por uma dimensão política, ao passo que o Estado intervém na instituicionalização da liberdade de expressão, aspecto que caracteriza a censura propriamente dita, ou censura clássica. Na pós-censura, no entanto, a proibição é marcada por uma instância mutante, que pode se transfigurar em uma pessoa pública, um documento, ou um vídeo compartilhado pela internet, o que faz com que os artistas não saibam exatamente quem está do outro lado da mesa no jogo de “negociação de palavras” do ato censório.
Para o campo psicanalítico, o estudo da censura se apresenta como uma oportunidade de mão cheia para que o debate ultrapasse a proposição de que os artistas produzem suas obras motivados unicamente pelo conflito com seus fantasmas internos, sua história infantil ou mesmo suas marcas traumáticas. Ainda que a experiência da criação confira forma, tonalidade e singularidade em todas essas instâncias da vida psíquica, “a obra de arte é um fato social” (M´Uzan, 1977) que sob essa ótica merece ser analisado, tanto mais por um campo tão particular como a psicanálise.